BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

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  • GILBERTO FREIRE

    Casa-grande & senzala

    Elide Rugai Bastos

  • Publicado em 1933, Casa-grande & senzala compe, com Sobrados e mucambos e Ordem & Progresso, o conjunto denominado por Gilberto Freire "Introduo histria da sociedade patriarcal no Bra~il". Os subttulos dos livros j definem os temas desenvolvidos: o primeiro volu~e dedica-se ao estu-do da formao da famlia brasileira no regime de economia patriarcal; o se-gundo, decadncia do patriarcado rural e ao desenvolvimento das cidades; o terceiro, desintegrao da sociedade patriarcal no quadro da transio do trabalho escravo para o trabalho livre. Os textos enfocam perodos diferentes da histria brasileira- Co!n~~!__!!!l.Pi~!2.~-~~QllQH_a, respectivamente.

    Escrito trs anos depois das alteraes polticas de 1930, Casa-grande & senzala se insere num quadro em que o debate sobre a formao nacional compe um cenrio poltico em que a centralizao administrativa altera o, lugar no ape!las 4as regies como dos grupos que exercem o poder local e !egjori-1:-:Naquele momento, o desenho de polticas gerais demanda uma defi-nio do pblico a que sero aplicadas. Nesse cenrio, o livro responde a questes tais como: quem o povo brasileiro? Podemos falar de uma unidade nacional? Podemos pressupor a existncia de uma cultura brasileira? Esse perfil corresponde s exigncias da civilizao ocidental e, portanto, o Brasil pode figurar no concerto geral das naes?

    Com Casa grande & senzala, Gilberto Freire penetra no mago dessa discusso. Embora enfocando a formao nacional a partir do desenvolvimen-to da regio Nordeste, em especial Pernambuco, a explicao freiriana ganha espao nacional. Q.!t!?S!() r{!~gata o dilogo com autores do passado e_do pr~:

    _sente_, -~~tabelecendo uma polmica a respeit da questo racial, do determinismo geogrfico e sobre o papel desempenhado pelo patriarcado na configurao da sociedade brasileira, temas sempre presentes nessa bibliografia. As interpre-taes mais visadas so as de Oliveira Viana e Paulo Prado, autores de livros bastante celebrados na dcada anterior.

    Nascido em Pernambuco em 1900, tendo estudado nos Estados Unidos e posteriormente na Europa, onde se muniu de uma impecvel formao em Sociologia, realizada nos cursos da Universidade de Colmbia e com complementao em Oxford, Gilbe1to Freire se beneficia de novos instrumen-tos analticos fornecidos principalmente por Simmel e Boas, alm de uma rica temtica desenvolvida por autores espanhis: Ganivet, Unamuno, Pio Baroja e Ortega y Gasset. Com esse perfil, o autor pode, ein Casa-grande & senzala, inovar metodologicamente, buscando um ponto de partida diverso se compara-do com os autores anteriore_s. Assim, utilizar base documental diferente das convencionais utilizadas por historiadores, arrolando dados colhidos em dirios

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  • CASA-GRANDE & SENZALA

    ntimos, cartas, livros de viagens, folhetins, autobiografias, confisses, depoi-mentos pessoais escritos e orais~ livros de modinhas e versos, cadernos de receitas, romances, notcias e artigos de jornais. Por meio deles reconstituir a vida ntima dos componentes da s0ciedade patriarcal, via estudo do cotidiano vivido no complexo agrrio-industrial do acar.

    De leitura aparentemente fcil, Casa-grande & senzala no texto que entrega imediatamente compreenso sua temtica nuclear. Trata-se de um livro volumoso- na primeira edio, 44 pginas de prefcio mais 520 de expo-sio -, com inmeras notas sustentando a argumentao por meio de docu-mentos e indicao bibliogrfica, alm de ilustraes significativas. O estilo ao mesmo tempo vivo, espontneo, vigoroso e acre, o cuidadoso emprego das palavras, a utilizao de expresses populares, a ironia, a ineverncia conqu1s-_ tam o leitor, que se prende inemediavelmente aos vaivns da argumentao elo autor. Em narrativa construda em forma de espiral, o autor expe suas teses desenhando crculos que no se coclpletam, abrindo passo para uma nova argumentao, que novamentecoloca outro aspecto do argumento ... ad infinitum. De certo modo, a forma muitas vezes encobre a tese, quase que impondo a concordncia com ela.

    Sua concepo sobre a sociedade brasileira funda-se na artic_ulao de trs elementos: o patriarcado, a interpenetrao de etnias e culturas e o trpico. Esses marcos definidores da formao nacional conelacionam-se, de modo que cada um,deles encontra sua explicao no cruzamento com os dois outros. Da combinao resultam as diferentes teses que fundamentam a expli-cao da sociedade brasileira.

    CASAS-GRANDES E CONTINUIDADE SOCIAL

    Muitas vezes apontado como um escritor de tradio ibrica, que no separa a arte da vida, Gilberto Freire afirma essa caracterstica j no prefcio de Casa-grande & senzala. Ao contar como se gestou a escritura do livro, refere-se importncia simultnea das experincias acadmicas e das de lazer: em Portugal, os trabalhos na Biblioteca Nacional e no Museu Etnolgico acom-panhados da familiaridade com o vinho do Porto, o bacalhau e os doces de freiras; na Bahia, o conhecimento das colees do ~u Afro-baia_n_g __ :r;~"ina

    _ Jf~

  • ELIDE RUGAI BASTOS

    no decorrer dos captulos seguintes, pois um dos elementos que estruturam a pesquisa empreendida a recuperao d?s usos. e costumes do :eo_~o, para encontrar neles as razes culturais e sua relao com os grupos f()~adores da sociedade brasil~ira. Do mesmo modo, ao referir-se inflncia de Franz Boas, mestre em Colmbia, assinala no apenas o quanto suas foi111ulaes a respei-to da diferena entre raa e cultura orientaram seus estudos e sua interpreta-o - levando-o a refletir sobre a questo da miscigenao -, mas, tambm, como o . clima criado no curso o levou a preocupar-se intensamente com os destinos do Brasil. E como desse ambiente emerge um compromisso de busca de solues para "questes seculares".

    Dois eixos explicativos se definem: de um lado, a discriminao entre os . efeitos da herana racial e_ os_ de. influn~J~ so~_i~l~ ~ultuiT~--2ie-1Tiio; d:e outro,

    ~~p~~() do sistema qe produo ~

  • CASA-GRANDE & SENZALA

    -~~-~_:~.DLoJ.tJJJo. Casa-grande o smbolo de um status- o de dominao; senzala -- o de subordinao ou submisso. O & entre as duas palavras smbolo de interpenetrao, mostra a "dinmica democratizante como correti-vo estabelecida hierarquia". Em ou,tras palavras, no Brasil no se realizam as formas tradicionais de dominao, havendo uma inverso do processo, mu-dando-se os sinais que alocam socialmente os indivduos. ,

    UMA SOCIEDADE AGRRIA, ESCRAVOCRATA E HBRIDA

    No primeiro captulo do livro encontram-se expostas as teses principais do texto. 02-QY1tos apresentam o desenvolvimento delas, re~~~~~~~~_pap~l e_ o legado das trs raas formadoras d~ populao n~ional. Gilberto Freire

    ~ter-se orgairlzadoci~ilme~t~~-s~cleaaae-br~~ir~-smente em 1532, na medida em que se alterou o carter exclusivamente mercantil da colonizao portuguesa e se estabeleceu, no Brasil, uma explorao de raiz agrcola. Com isso definiu-se a singularidade do processo brasileiro, diferente da atuao de Portugal na ndia e na frica. ' .. " ,v' ( i('.-.~~--" bi-'"'--:of- .. 1; .

    ; if 7 c~,-~-t ct:tv A aptido do portugus pra esse desenvolvimento estvel, possvelgra..: i! 1.:' .. s_e_8c;~~id'o, primeiramente indgena, posteriormente negra, deve-se ao

    ' ' hibridismo resultante de seu passado histrico de "povo ind.~f!!!!Q._o entre a Eu-ropa ~ ~f:P.ca". Es,sa bicontinentalidade, dualis1;1o de cultura e de raa, mar-ca:seu carter. De um lado, permite um "bambo equilbrio de antagonismos",

    refl~tmdo.~se.em u:n;tpmportamento flexvel; de outro, possibilita a mobilidade, a miscibilidade e a aclimatabilidade, elementos fundamentais para o triunfo do empreendimento portugus no Brasil, compensando a deficincia de volume humano para a colonizao em to amplo territrio. Tais traos levam a que se forme "a primeira sociedade moderna constituda nos trpicos com caracters-ticas nacionais e qualidades de permanncia".

    Analisando a adaptabilidade do colonizador portugus s condies tropi-cais, assinala que isso foi possvel pela assimilao de elementos provindos dos outros povos - os indgenas nativos e os negros africanos - que constituiro

    _ _om ele a populao nacional, via mestiagem racial e cultural. Esse o pri-meiro ponto em que a anlise freiriana se confronta com as reflexes anterio-res sobre a formao nacional. O tema do trpico introduz um dilogo cr~ico com os cultores da tese do determinismo geogrfico. Gilberto Freire relativiza a argumentao destes afirmando a possibilidade do domnio ou da influncia modificadora do homem sobre a natureza e o clima. Trata-se de uma das

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  • ELIDE RUGAI BASTOS

    perspectivas componentes da tese culturalista que adota a partir da proposta de Franz Boas, ~que mQS1Ll:l_--!!t~ri9r!clge1g_~-~~~1.7:!~12~2~.4~.~!t~!fJ!liY::.M ral sobre os raciais e climticos. As~im, mesmo num clima "irregular, palustre,

    perturbdr-d~ ~};t~~a dig~sti~-~;,, desfavorvel ao homem agrcola europeu, o portugus estabelece uma sociedade estv~~!~~~-~~~"~uak ad~_p.,!~~,[!,~.SD. Modifica seus hbitos alimentares, altera suas tcnicas agrcolas, muda seus hbitos de higiene, sua vestimenta, seu modo de vida. Em lugar de deixar-se levar pelo clima contentando-se com uma colonizao baseada na pura.__~ra-: o de riqueza mineral, vegetal ou animal, desloca seus esforos para a cria-

  • CASA-GRANDE & SENZALA

    assentado em razes de carter cultural e no poltico. Reconstruindo as rela-es entre senhor branco/negra escrava, sinhozinho/moleque, sinh!mucama, mostra que so marcadas pelo sadismo dos primeiros e o masoquismo dos segundos. O sadismo desenvolver-se-ia para "o simples e puro gosto de man-do, caracterstico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de en-genho", tese que acaba por ganhar um patamar poltico. O masoquismo tend'e ao gosto pela dominao, pois, "no ntimo, o que o grosso do que se pode chamar 'povo brasileiro' ainda goza a presso sobre ele de um governo msculo e corajosamente autocrtico".

    Aqui se explcita outro dos pontos principais do texto: a vida poltica bra-

    1 sileira se equilibra entre duas msticas; de um lado, a ordem e a autoridade

    !(decorrentes da tradio patriarcal; de outro, a liberdade e a democracia, dsa-ll: fios da sociedade moderna. Trata-se de uma "dualidade no de todo prejudicial

    nossa cultura em formao, enriquecida de um lado pela espontaneidade, pelo frescor de imaginao e emoo. do grande nmero e, de outro lado, pelo contato, atravs das elites, com a cincia, com a tcnica e com o pensamento adiantado da Europa~'. Essa dualidade, segundo o autor, no deveria criar opo-sies, pois a formao brasileira tem sido ~~~-ta~~ Creio ser possvel afirmar que Gilberto Freire quer demonstrar, em um momento de transformao da sociedade brasileira, quando se promovem mudanas que afetam a prpria configurao do Estado, que os velhos setores da sociedade detn;t uma sabedoria que lhes perrpitiu organizar a sociedade de modo a evitar rupturas que afetassem o equilbrio social. Portanto, naquela ocasio- dcada de 30 -,os grupos tradicionais, momentaneamente alijados da direo poltica, deveriam estar presentes na nova configurao do poder.

    INDGENA E A FAMLIA

    Refletindo sobre o papel desempenhado pelo indgena na formao nacio-nal, Gilberto Freire encaminha a anlise no sentido de demonstrar que~

    .~-iais....!lQ.. Brasil, ..@sde os pJ:in::te:.o.Lmnm.en~ colonizao, constituram-se harmonicamente, sem conflitos de carter violento. Hbrida e

    han~;;~~~qu~nt~~~"rei*7Cfe ra-a; a sociedade brasileira teria se formado em um ambiente "de quase reciprocidade cultural", aproveitando ao mx~mo os valores e experincias dos povos nativos, contemporizando com sua cultu-ra. A mulher indgena foi incorporada sociedade crist, tomando-se esposa e me de famlia, transmitindo suas tradies famHia do colonizador. As ten-

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  • ELIDE RUGAI BASTOS

    ses resultantes dos choques entre as duas culturas - europia e indgena -, ao se explicitarem em conflitos, encontram o caminho da integrao, do equi-l~r~o. dos element~s antagniCos. Aponta dois caminhos, aparentemente ~nta-) gomcos, pelos quais o processo se-desenvolveu: de um lado, a degradaao da "raa atrasad"; de outro, a assimilao pela "raa adiantada" da cultura do-minada. Da combinao das duas vias resulta uma expressiva harmonia socil.

    --0 portugus, ao chegar ao Brasil, no encontrou um sistema vigoroso de cultura moral e material, mas uma populao culturalmente inferior maior parte das reas africanas. Os homens dedicavam-se caa, pesca e guerra; o trabalho agrcola era tarefa das mulheres. Ambos os papis no se adequa-riam s exigncias de mo-de-obra necessrias ao colonizador. Porm, alguns pontos levam aproximao dos_~ois segmentos raciais no incio da ~lo:ii!Z=. o brasileira: a es~sez de mulheres brancas e a necessidade de OCUQ_ao cJs> territrio. Isso ~~plica a tr~signc~_~E_!iscigenao e a in~orporao do homem ind.!$~~~~-EE,?Ce~~E...~~-4~fj_~iS_~?-~e espao. Assim, "a luxria dos indivduos, soltos sem famHia, no meio da indiada nua, vinha servir a poderosas razes de Estado no sentido de rpido povoamento mestio da nova terra". Desse modo, a ndia passa a ser base da famlia, multiplicando e robustecendo o pequeno nmero de povoadores europeus. Mais ainda, opera como valioso elemento de cultura na formao nacional. O ndio ser o guia na conquista dos sertes. ~----------~-- ~

    . s-e-~ssa necessidade leva a que as relaes sejam amenas - o portugus\ tolerando ou assimilando os costumes indgenas -, o contato europeu funcio- 1 nou como elemento dissolvente das culturas nativas. Assim, mesmo salvando- / se formas ou acessrios de cultura, perde-se seu potencial, sua capacidade construtora.

    O mais forte desse~~eiir.Qs-c!es!~~~~~~:s_ ~ a imp~~io pelos jesut~s da moral catlica, que toma, no Brasil, rumo puritano, sufocando a esponta-

    r~id~de nativa: A isso soma-se a destruio das diferentes lnguas regi~;;~is e a definio, pelos padres, de uma lngua geral, o tupi-guarani. Com isso pode ser d~struda toda manifestao artstica ou religiosa que no estivesse de acordo com a moral catlica e com as convenes europias.LP_a c_ate,q~_se, ~anizao social.e"g_iy_~_S.~

  • CASA-GRANDE & SENZALA

    tos moda indgena, a aplicao de legislao europia a supostos crimes de fornicao, a abolio das guerras entre tribos, as guerras de represso, a abolio da poligamia, os castigos impostos no-adaptao ao trabalho, as doenas disseminadas pelos brancos, a modificao do sistema alimentar, a alterao das condies de vida levando ao aumento da mortalidade infantil, a_

    ,-1 quebra da rela-o homem-natureza, a abolio do sistema comunal e da auto-' ridade dos chefe;~-pri~c-ipalmente a dos pajs. .

    Essas transformaes operam-se por meio do ensino e da tcnica econ-mica, que resultam na conservao_ "da ra_!_ ind~~ seiil_.l:lJ?!~~~ de sua '~!!lJ.!!I-~'. Assim, GlJrto:Ffei!e--p;~a mostrar que os padres se utiliza-m~ do sistema ped~g.Qg!_o-moral como uma forma de controle social. Isso ) impediu que se p;?a~assem os ndios pa~a ~;;~~;d;deira integrao na socie~ ~ dade, "a transio da vida selvag~mpara a civilizada'>--

    Se a adequao ao trabalho, concebido moda europia, era um ponto a ser alcanado, o outro era a transformao da noo indgena de propriedade, apoiada numa concepo coletiv~. A m resoluo dessa questo explica, se:. gundo o autor, por que no Brasil a propriedade acaba por ser um campo de conflito entre- antagonismo_s violentos. Assinale-se que, novamente,~

    t~~::E.~-~am~~nie~~- . Operando com a educao como elemento transformador, o jesuta elege como objeto privilegiado de sua ao o menino indgena, modo pelo qual afeta diretamente os val9res nativosque no se coad~nam com os da doutrina e da moral catlicas.

    O autor procura mostrar que nos dois primeiros sculos d~ colonizao existe um contraste e certo confronto entre a poltica jesutica, protetora dos ndios, em que pesem os erros na conduo do processo, e as int~nes prti-cas dos colonos que visam escraviz-los. Esse conjunto de~e~_mra_djt-

    . rias ~ar~~--? destino das culturas indgenas que ou so destrudas ou se mantm amargem da populao colonial. A soma desses elementos e a no-adaptao ao empreendimento agrcola ;fazem com que o ndio, primeiro "capital de insta-

    - lao do colono na terra'-:clesaparea como trabalhadqr. -----------_./......__......__/ . ...., __ ...___/\, __ / --

    Gilberto Freire mostra que, embora sejm marcantes a degenerao e a degradao das culturas indgenas, o processo no ocorreu de forma abrupta como aconteceu na Amrica do Norte. Aqui, o tempo permitiu a permanncia de vrias sobrevivncias. Estas dotaram a sociedade brasileira de "traos sim-

    pticos~'. Restou a confraternizao das raas, iniciada pelos jesutas, que: tra-taram com igualdade em suas escolas os filhos de portugueses, de ndios e mestios. Restaram os mestios, produto do intercurso sexual de ndias e por-

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  • ELIDE RUGAI BASTOS

    tugueses. Permaneceram os costumes de seu povo, que elas trouxeram ao seio da farm1ia: a cozinha, a higiene, o banho, as danas, a religiosidade. Restou -a lngua tupi-guarani, que, embora artificialmente criad~, serviu de instrumento de intercomunjcao dos dois universos culturais, cuja pr~sena percebemos at hoje.

    Acima de tudo, dessa interpenetrao racial e cultural restam traos psicossociais que se somaro queles de influncia africana e que mar~ arternacional. Primeiramente, o~~!P-e

    do~~-~~~~'!~~-/" a prpria mstica revolucionria brasilei-ra percebe-se "o laivo ou resduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vcios de organizao poltica ou econmica que o puro gosto de sofrer, de ser vtima ou de sacrificar-se". Um segundo trao psicossocial legado pelo indgena, resultante da intimidade com a floresta, o medo e o furor que o acompanha, expressando-se em ocorrncias polticas ou cvicas, em "assanhamentos desordeiros", movimentos que nada mais so do que "pre-

    ._____ ___________ -------

    texto de reg~esso cultl1fa primitiva, recalcada porm no destruda;;./ Gilber-to Freire assinala ser rara a emergncia desses traos destruidores, pois a

    ~~fg;.:gg-:no~~~~~.!:~2~~g~~~~-~~~2n.imos_:_ Mais uma_v_ez, __ Q __ elementos culturais explicam o poltico. Em resumo, a cultura indgena assimi-ladaemvarosde seus aspeetos"pela"cultura brsildra" presena viva, til,

    ativ~ ~:~ri;d~-;-uo deieiiYQJ.Y.t~i:llo--=-rtacinnab-Alm disso~ "oeo l~brico da ( P!gJ:un~~~~-~igenao" marcou as relaes sociais, qt!~-se desenvolvem

    harmonicamer}te-atingindo no apenas o nvel individual como o institucional./ ________ .1 . ______ . "'--.___ ____ .. / , ___ / 1.....____------

    PORTUGUS NA FORMAO DA SOCIEDADE

    Conforme vimos, para Gilberto Freire, o processo de acomodao no campo cultural ao mesmo tempo requer e produto do amalgamento biolgico e tnico. No Brasil isso foi realizado pela miscigenao: primeiramente, ante-rior colonizao do Brasil, dos portugueses com os rabes e judeus; poste-riormente, desses mestios com ndios e negros. Assim, dedica parte de Casa-grande & senzala a construir o perfil psicolgico do portugus, resul-tante daquele processo. Compreend-lo capacitar-se compreenso do Brasil, porque, como povo, som?s a extenso da populao ibrica, assimilados os elementos indgenas e africanos. O marco mais geral da anlise a caracteri-

    z~_Q do ~!,!~g~~s, de um l~do, como povo ~o originrio de uma s~dade organizada em moldes-pic~m1eilfereuds; de tr;. tendo "'Valldo nCmi-

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  • CASA-GRANDE & SENZALA

    nho d~ um burguesi_~~9_pr_ec_Q~~ Es~pru:ente-contra_d_in_JI!~rc_~-lhe a fei-,--Q~~ ~9i~_i!~~~4Qi= P-or_~_~c~lnc~~ do~ado da plasticidade exigid~~p~Iim~~~o mode~_

  • ELIDE RUGAI BASTOS

    famlia. A ru~dade que ~~_E~s~um:.s_i~~~ur_~B~u a mar_ca4e seu bom senso-;Ievou-o a ter u~a viso prtica eno teriCa. do munao, viso que ser transferida aos seus empreendimentos colonizadores. Esse trao tonm precria sua]igao com a civilizao oci ~m.~roximaJ?.do-se mais da miental. ---- . . ~----------0 sentido e ao, aliado a seu passado racial; abrjua_Q_QQrtugus a possibilida-

    de de roi_gg~o racial eCiilrurar:Nii;;i~(i~,possibilitc;AAue..._no momento de decadnciade-se~s _ _e~p-~~~~_9:!IDentQ~~~l}timos,_~~__ynlffi_~s-e_~-socie

    d~9.:~_de base agrria~ Esse conjunto de traos faz do portugus o colonizador /por ~~~~i~ci~~-A vitria da cultura lusitana sobre as outras, no Brasil, dar-se-

    1 sem rupturas e sem violenta imposio. Ao discutir as bases da sociedade portuguesa, Gilberto Freire levanta

    uma tese fundamental para a compreenso de Casa-grande & senzala: o ~s~~~~~~~p~ne/~~~~'!t0~/Em Portugal, esse papel des~~penhado pelos mouros. Sob o dommio mouro acentuara-se nesse pas a dualidade na cultura e no carter da populao. Quando vencidos, "persistiu sua influncia atravs de uma srie de efeitos da ao e do trabalho dos escra-vos sobre os senhores". Essa influncia "no s particular do mouro, do maometano, do africano, mas geral, do escravo", predispe o luso para a colo-nizao de base agrria, bem executada devido experincia daqueles. Com esses escravos tem um aprendizado tcnico que possibilita a instalao dos engenhos- mquinas de retirar gua, moinhos de vento, instrumentos de moa-gem. Essa dependncia explcita-se em vrios aspectos da vida social: na vestimenta- uso do algodo, do bicho-da-seda; na alimentao- desenvolvi-mento da oliveira, cultivo dos ctricos, cultura da cana-de-acar; nos diferen-tes ofcios - ferreiros, sapateiros, peleteiros, pedreiros, ourives, moedeiros, tanoeiros; e, ainda, na medicina, na arquitetura, na higiene, nas matemticas, nas artes decorativas. Mais que nos spectos materiais, essa influncia se faz ver na moral e na religio, transformando o cristianismo rgido do portugus numa religio mais humana e mais lrica.

    Todavia, se o escravo mouro alterou afacies da cultura portuguesa, afe-tou tambm o eixo que estrutura a sociedadet~-~.t!:zE.~--~o tr~9 Acostuma-dos escravido, os portugueses no sculo anterior colonizao da Amrica j haviam transformado o verbo trabalhar em mourejar; isso antecipa as for-mas que tomar essa viso no Brasil dos sculos seguintes: de que "trabalho s pra negro".

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  • CASA-GRANDE & SENZALA

    ESCRAVO NEGRO E A FORMAO DA SOCIEDADE

    Na definio do papel do escravo negro na formao brasileira, Gilberto Freire dialoga com os autores de sua poca e com alguns que o precedem, principalmente os racistas e os que superestimam o papel do indgena na forma-o nacional. Quatro so os pontos principais desse debate. Primeiramente, Ie..: vanta os traos psicossociais do negro, apontando para a sua adaptabilidade a> trpico, um dos indicativos da no-inferioridade da raa negra em relao branca. Em segundo lugar, procura demonstrar que na formao nacional existe uma marca profunda, menos racial do que cultural, do estoque africano no Bra-sil; e como resultado disso, a partir da interpenetrao das culturas lusa e africa-na, origina-se um processo que aproxima os antagonismos decorrentes da oposio senhor/escravo. Em terceiro lugar, atribui uma funo social diferente da con-vencionalmente atribuda ao negro na formao brasileira, a partir da qualifica-o dele como colonizador, isto , dando nfase ao papel civilizador por ele representado. E, como resultado dps pontos levantados anteriormente, indica a sociedade brasileira como caracterizada pela democracia racial.

    Parte da tese de que a populao brasileira tem razes nas trs raas -branca, ndia, negra- e no apenas nas duas primeiras, como ressaltam alguns autores. Afirma que os tipos eugnicos provm antes do africano do que do indgena, indicando que so de origem africana "muitas das melhores expres-ses de vigor ou d~ beleza fsica em nosso pas~. Mostra ser anticientfica a afirmao da superioridade ou da inferioridade de uma raa sobre outra, cons-truindo sua reflexo sobre a anterioridade explicativa da cultura. Busca mos-trar que o perfil da formao social nacional deve-se ao africano e que todo brasileiro racial ou culturalmente negro. D seqncia idia afirmando que o negro culturalmente superior ao indgena e inclusive, em certos pontos, ao portugus, contrapondo-se a algumas interpretaes consideradas oficiais. O fundamento para a discusso, principalmente com Oliveira Viana, a constatao da diferenciao interna, em termos de complexidade, das cultu-ras africanas; mais ainda, de que foram os estoques culturais mais adiantados aqueles transplantados, beneficiando-se o Brasil com "o melhor da cultura ne-gra da frica, absorvendo elementos por assim dizer de elite que faltaram na mesma proporo ao Sul dos Estados Unidos". H, na translao frica-Brasil, certa seleo racial e cultural. O objetivo no foi trazer escravos que operassem apenas como fora bruta, ao modo das colnias inglesas, pois aqui se visavam outros objetivos: a soluo da falta de mulheres brancas e a reso-luo da necessidade de tcnicos em metal para os engenhos e para as minas.

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  • ELIDE RUGAI BASTOS

    Seriam essas duas. poderosas foras de seleo que se estenderam miscigenao. Os negros que convivem comos brancos no so os degrada-dos pelo servio da lavoura e sim os escrav-os domsticos. Os pajens e mucamas so escolhidos na senzala a partr do tipo fsico mais a,traente e de aptides mais prximas das do "setor civilizado". Dessa maneira selecionam-se negros com traos culturais e raciais mais semelhantes aos brancos.

    Gilberto Freire levanta mais uma crtica aos racistas apontando os limites da aplicao do critrio estatstico como fonte cientfica indiscutvel. Falando a respeito dos testes de inteligncia, os quais indicariam para os racistas a infe-rioridade do negro, aponta-lhes as bases culturais.

    Numa direo mais positiva de seu dilogo, mostra a plasticidade do ne-gro, sua grande adaptabilidade. Ele o verdadeiro filho do trpico, conservan-do, nesse ambiente, suas caractersticas eugnicas enquanto as outras raas se deterioram. Por esse motivo toma-se mais adequado s formas que assu-miu a explorao econmica no Brasil. Essa adaptao, que tem razes fisiol-gicas e psquicas, resulta em traos psicolgicos. Assim, ao contrrio do ndio, o negro um tipo extrovertido, alegre.

    Em contraponto direto com Nina Rodrigues, discute a afirmao dos racistas que vem a amoralidade como uma caracterstica psquica do negro, considerando absurdo no se ter "reconhecido no negro a condio absor-vente de escravo". A escravido retirou o africano de seu meio social e de famlia, colocando-o em um ambiente em que imperavam foras dissolventes de sua organizao social e sua cultura. No h escravido sem depravao sexual; portanto, a corrupo sexual de que acusada no se realizou pela negra mas pela escrava. O que Gilberto Freire quer demonstrar a superio-ridade da influncia da estrutura social sobre a racial e do meio fsico. Nova-mente, a tese de Boas.

    Todavia, mesmo partindo desse ponto inovador, o autor no se atm ape-nas aos elementos culturais que, segundo ele, relativizariam a interpretao. Buscando uma viso mais ampla, encontra na interao raa-meio fsico as caractersticas psicolgicas que definem o povo. Inter-relacionam-se etnias/ culturas e trpico como elementos explicativos: fundamental anlise apre-ender no apenas o grau como o momento de cultura que os diferentes povos nos comunicaram, alm de sua adaptao ao trpico. Assim, a identificao de grande nmero de negros maometanos, de "cultura superior"; sabendo ler e escrever, ajuda a compreender algumas das revoltas de escravos no Brasil como uma erupo da cul~ura adiantada, oprimida por outra, menos nobre. Mas, ao lado do peso cultural, h um trao psicolgico que se torna freio

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  • CASA-GRANDE & SENZALA

    revolta: a bondade - a bondade do negro que o impede de rebelar-se e o leva a aceitar tratamentos rudes.

    O negro , tambm, responsvel pelo trao dionisaco do carter brasi-leiro; ele quem ameniza o apolneQ presente no amerndio, marca to paten-te em seus rituais. A dana, por exemplo, nos primeiros tem carter sensual, enquanto nos segundos puramente dramtica. A alegria do africano contra:. balanou o carter melanclico do portugus e a tristeza do indgena. A alegria e a bondade do africano so em grande parte responsveis pela doura que marca as relaes senhor/escravo no Brasil.

    Essas caractersticas definem o lugar social do negro na sociedade brasi-leira. Ele se toma parte da. famlia, sendo seu lugar "no o de escravos mas o de pessoas de casa. Espcie de parentes pobres nas fanu1ias europias". Tal situ~o se refere aos escravos domsticos, os cristianizados e j abrasileirados, que vivem nas casas-grandes, que tm possibilidade de constituir faim1ias, o que os retira do clima de luxria e primitivismo que marca os que vivem na senzala, dedicados lavoura, pagos e comunicando-se por seus dialetos.

    Esse conjunto de traos psicolgicos, sociais e culturais permite que o negro exera um papel colonizador, no apenas como colaborador do branco, mas exercendo tambm entre os ndios uma misso civilizadora no sentido europeizante, atuando na mesma direo que o lusitano. Ao entrar como es-cravo na casa-grande, o negro, principalmente a mulher, impe sua cultura como dominante. B verdade que j cristianizaqo, mas, se o catolicismo foi a forma de aproximar-se do senhor e de seus padres de moralidade, o catolicis-mo mstico aqui praticado foi a poltica de assimilao e ao mesmo tempo de contemporizao seguida pelos senhores de escravos. Tal poltica consistiu em permitir aos negros a con$ervao, sombra da doutrina catlica, das formas e acessrios da cultura e da mtica africanas. Isso "d bem a idia do processo de aproximao das duas culturas". A religio foi o primeiro caldo em que se confraternizaram os valores e sentimentos negros e brancos.

    O escravo negro formou o carter brasileiro legando-nos sentimentos e valores. A ele devemos nossa sensibilidade, imaginao e uma doce e doms-tica religiosidade. So africanos vrios dos hbitos considerados brasileiros -de higiene, de vestimenta, de alimentao -, bem como o so as crenas em um mundo mgico, os sortilgios de amor, as tradies musicais, a linguagem. A mucama exerceu uma forte ao na educao das crianas, incutindo-lhes hbitos de vida, crendices, alterando a lngua tradicional portuguesa, tomando-a uma "fala sem ossos" que opera "um amolecimento de resultados s vezes deliciosos para o ouvido".

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  • ELIDE RUGAI BASTOS

    A partir da lngua, Gilberto Freire tenta captar ao mesmo tempo a interpenetrao das culturas e a trama das relaes sociais no Brasil. No pro-cesso de assimilao dos negros sociedade de raiz portuguesa, as diferentes lnguas africanas no persistiram; mas a lngua portuguesa perdeu sua pureza, no se corrompendo totalmente e, tambm, no mantendo a rigidez das salas de aula.

    A lngua brasileira resulta da interpenetrao de duas tendncias: a es-trutura oficial e a fala popular. Todavia, mais do que uma forma cultural, ex-pressa conciliao na esfera social; uma das maneiras pelas quais se amenizam os conflitos. Ilustra a tendncia discutindo os modos de construo do impera-tivo. Um duro, portugus - diga-me, faa-me, espere-me -, outro ameno, brasileiro - me diga, me faa, me espere. So dois modos antagnicos e servimo-nos de ambos. "Faa-me, o senhor falando, o pai, o patriarca; me d, o escravo, a mulher, o menino, a mucama." A simples colocao dos pronomes pode mostrar que, como brasileiros, temos duas faces: a dura e antiptica, do dominante, que se expressa no "faa-me"; a suave, simptica, pronta a obedecer, do dominado que pede "me faa". Segundo Gilberto Freire, as duas formas devem coexistir, porque a fora da cultura brasileira reside "na riqueza dos antagonismos equilibrados". Se segussemos s um modo em de-trimento do outro, abafaramos metade de nossa vida emotiva e nossas neces-sidades sentimentais, pois "somos duas metades confratemizantes que se vm mutuamente enriquecendo de valores e experincias diversas". Essas duas faces do indivduo estendem-se sociedade. isso que caracteriza nossa for-ma de nos relacionarmos socialmente. Somos uma democracia social porque somos uma democracia racial.

    CoNSIDERAEs FINAIS

    A famlia a categoria nuclear da explicao freiriana. na famlia que se toma possvel perceber os elementos que caracterizam as relaes e os processos que envolvem os homens. a que encontramos as formas funda-mentais que a vida assume. Essa definio desenha o caminho da anlise freiriana. Primeiramente, a escolha das instituies e dos personagens a serem estudados. O complexo agrrio-industrial do acar visto como um microcosmo que se alarga e figura a sociedade. Os personagens - o patriarca, central na definio desse universo _social; o escravo, a mulher, o menino, secundrios, gravitando em torno do primeiro. Mas os sinais se invertem. Os atores aparen-

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  • CASA-GRANDE & SENZALA

    temente marginais ganham o centro do palco, mudam o rumo da histria. So eles que recriam em outro patamar as relaes sociais. Terminam por impor seu modo de vida, sua viso do mundo, seus costumes, sua esttica, sua fala~ Assim, altera-se a ordem social, mudam-se os papis. O dominante acaba por ser dominado. E o dominado, por dominar, impondo sua cultura. Trata-se, para o autor, da figurao da democracia.

    Sobre essa afirmao se assenta a principal crtica feita no apenas a Casa-grande & senzala, mas a vrios textos posteriores _escritos por Gilberto

    Freire- O mundo que o portugus criou (1940), Interpretao do Brasil (1947), Novo mundo nos trpicos (1971), para citar alguns. Vrios movimen-tos sociais e estudiosos da questo racial no Brasil tm denunciado a tese da democracia racial como mito que funda uma conscincia falsa da realidade. Ou seja, a partir dela acredita-se que o negro no tem problemas de integrao, j que no existem distines raciais entre ns, e as oportunidades so iguais para brancos e negros. Aponta-se par'a o carter hipcrita da formulao, uma vez que o mito se baseia na afirmao de que a ordem social aberta a todos igualmente, forjando:.se a crena de que existe um paralelismo entre a estrutu-:-ra social e a estrutura racial na sociedade brasileira.

    Outro aspecto da crtica diz respeito ao equvoco de se estabelecer uma ponte entre miscigenao e democratizao- o primeiro um fato biolgico e o outro um fato sociopoltico-, identificando-se como semelhantes dois proces-sos independentes entre si. Esse continuum falso permite que se deixe de lado a anlise do modo como se ordenou a populao descendente dos escravos e os mecanismos que impediram a mobilidade social vertical dela, criando-se urna estrutura social que discrimina grandes contingentes populacionais. O re-sultado desse descuido analtico elidir a escala de valores sobre a qual se assenta a discriminao e, portanto, a dominao. Em outras palavras, a partir da constatao da existncia de um gradiente de aceitao social- o indivduo mais aceito socialmente na medida em que se aproxima dos padres bran-cos, e menos, se prximo dos padres negros -, denuncia-se a falsidade do mito da democracia racial. E, a partir disso, estudam-se as conseqncias do mito na conscincia dos indivduos.

    DecotTeria desse processo uma tendncia, por parte da populao no-branca, de fuga realidade e conscincia tnica, por meio da aceita.o dos mitos que recobrem a discriminao. Ou seja, a identidade e a conscipcia tnica so escamoteadas e busca-se, por parte da populao negra, uma iden-tificao com os grupos brancos. Essa seria a nica forma pela qual se alcan-aria a integrao social e poder-se-ia aspirar mobilizao vertical. Assim, a

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  • ELIDE RUGAI BASTOS

    tese da democracia racial, tendo sido incorporada pelo conjunto da populao brasileira, funciona como cultura poltica que se configura em obstculo ao verdadeiro enfrentamento da questo racial no Brasil.

    Reco~ecendo que a crtica de grande peso, lembramos, no entanto, o sentido pioneiro de Casa-grande & senzala. Trata-se, ein vrios aspectos, de um livro inovador. Primeiramente, ao apresentar propostas que superam as ex-plicaes sociobiolgicas e aquelas fundadas no determinismo geogrfico, re-presenta uma inegvel ruptura com as explicaes anteriores e coloca em novo patamar analtico as interpretaes do Brasil. Nesse sentido, sua publicao re-presentou uma verdadeira revoluo nos estudos sociais no pas. Em segundo lugar, inova ao adotar o discurso sociolgico como cdigo competente para dar conta das questes sociais. Com isso, antecipa os trabalhos que sero produzi-dos nos novos cursos de cincias sociais- da Escola de Sociologia e Poltica, da Universidade de So Paulo, e da Universidade do Distrito Federal- fundados na dcada de 30. Percebe-se, no livro, o apelo sociologia no s para desmontar as argumentaes deterministas, como para apoiar a explicitao da nomencla-tura da sociedade e da cultura dos povos que compem a formao nacional. Por esse motivo, a denominao de Grande Esclarecedor, que conferida a Gilberto Freire por alguns dos crticos daquele momento, vem sempre acompa-nhada de sua qualificao como socilogo. Em terceiro lugar, trata-se de uma novidade nos estudos histricos e sociolgicos o emprego no s de fontes dife-rentes das convencionais, como j foi apontado anteriormente, mas de um mto-do ainda no utilizado nas reflexes sociolgicas no Brasil: o estudo do cotidiano .

    . A metodologia permitir ao autor transferir a anlise da formao nacional ao mbto privado e no ao das instituies pblicas, prtica usual nas anlises ante-riores. Novamente, o procedimento e suas conseqncias so objeto de crtica, pois Gilberto Freire estabeleceria um continuum entre a farm1ia e o Estado, no reconhecendo entre eles uma diferena de natureza. Mas trata-se de uma longa discusso que no abordaremos neste curto espao.

    Apontar apenas para trs aspectos indicados seria suficiente para a ca-racterizao de Casa-grande & senzala como um livro revolucionrio. Mas, alm disso, o autor rotiniza uma linguagem de vanguarda presente em apenas alguns textos literrios da dcada anterior, construindo frases com sabor e colorido, mostrando que a linguagem popular e a erudita podem coexistir sem atritos. verdade que isso s possvel graas elegncia que caracteriza a escritura de Gilberto Freire. Inmeros so os motivos que ancoram o resulta-do: Casa-grande & senzala no apenas um grande livro da sociologia bra-sileira, mas, sem dvida, um monumento da literatura nacional.

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