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Augusto Boal - catálogo CCBB 2015

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Catálogo da exposição sobre Ausgusto Boal no CCBB

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  • auGusToBOALatos DE uM pERCuRso

  • Centro Cultural Banco do Brasil

    Rio de Janeiro

    14 de janeiro a 16 de maro de 2015

    Ministrio da Cultura apresenta

    Banco do Brasil apresenta e patrocina

    auGusToBOALExposio Teatro Show Leituras Oficina

  • Ministrio da Cultura e Banco do Brasil apresentam

    Augusto Boal, retrospectiva sobre a vida e a obra do dramatur-

    go carioca, que atuou tambm como diretor, professor e ensas-

    ta. Complementando a homenagem, est tambm programada

    a realizao do espetculo Cancioneiro de Boal, com repertrio

    composto por msicas utilizadas em peas do autor, de uma de

    uma montagem com atores da Companhia do Lato, dirigida por

    Srgio de Carvalho, alm de oficina e leituras dramatizadas.

    Apaixonado pelo teatro desde cedo, Boal teve textos ence-

    nados no Brasil e no exterior. Criou o Teatro do Oprimido, m-

    todo composto de exerccios, jogos e tcnicas de interpretao,

    hoje estudadas em vrios lugares do mundo. Encarando a dra-

    maturgia como poderosa ferramenta de transformao, esteve

    frente do Teatro de Arena de So Paulo e participou de pro-

    jetos que abordavam os muitos problemas sociais e polticos

    do Pas. Com a represso instituda durante o perodo militar,

    chegou a ser preso e torturado, exilando-se por cerca de quinze

    anos. O acervo da exposio abrange seis dcadas de uma pro-

    duo engajada e reflexiva, que ocupa um lugar de destaque no

    panorama da arte dramtica brasileira.

    Com a realizao deste projeto, o Centro Cultural Banco do

    Brasil reafirma o seu apoio ao teatro nacional e o compromisso

    com o acesso democrtico cultura e com a formao de pblico.

    Centro Cultural Banco do Brasil

  • INDICE

    Cheguem mais perto! Ceclia Thumim Boal

    Arquivo Boal na UFRJ Priscila Matsunaga

    Laboratrio da prxis Srgio de Carvalho

    1953-1955

    Da Qumica ao Teatro Maria Slvia Betti

    1956-1963

    Laboratrios do Teatro de Arena Paula Chagas

    1964-1967

    Arte de esquerda no ps-64 Paulo Bio Toledo

    1968-1971

    Teatro poltico em tempos de represso

    Eduardo Campos Lima

    08

    10

    12

    14

    28

    48

    68

  • 86

    100

    116

    132

    147

    149

    156

    1972-1976

    Exlio na Amrica Latina Patrcia Freitas Santos

    1977-1985

    Teatro do Oprimido na Europa Clara de Andrade

    1986-1996

    Teatro popular ps-ditadura Geo Britto

    19972009

    Para uma esttica do oprimido Brbara Santos

    Cecilia Augusto Boal

    Sobre diferentes tempos da mesma guerra Julian Boal

    Sobre a publicao

  • ChEguEM MaIs pERto!

    Estamos aqui, reunidos, para contar quem foi Augusto Boal.

    Augusto gostava da me, gostava do mar, gostava das pessoas e

    gostava, acima de tudo, de pensar. Gostava de pensar e convidar

    todos e todas a pensar com ele. O seu teatro, o seu trabalho, a

    sua obra toda so um convite para pensar juntos, para pensar

    sempre. Para abrir olhos e ouvidos e no se deixar enganar, para

    no deixar de buscar alternativas. Augusto Boal nos deixou um

    importante legado do qual sou uma das depositrias. Agradeo

    a todos aqueles que me ajudam na sua preservao. Neste even-

    to queremos dar uma pequena mostra do que foi a sua intensa

    vida, seu trabalho e seus ideais de cidado e militante. Queremos

    dar uma imagem de seu trabalho no Teatro Arena de So Paulo

    onde com um grupo de jovens, com Flvio Imprio, Guarnieri,

    Vianinha, Paulo Jos, produziu novas formas para o teatro brasi-

    leiro. Do tempo do seu exilio, das suas viagens pelo mundo. Do

    desenvolvimento de seu mtodo chamado Teatro do Oprimido e

    das suas prticas. Da sua passagem pela cmara de Vereadores

    8

  • para a qual foi eleito pelo Partido dos Trabalhadores e onde criou

    o Teatro Legislativo. Sua vida foi uma sucesso impressionante

    de propostas criativas. Dela tentamos nos aproximar com respei-

    to e cuidado sabendo que nada poder traduzir e muito menos

    aprisionar sua impressionante energia, seu talento, inteligncia e

    generosidade. com essa atitude de respeito e admirao que o

    Instituto Augusto Boal promove este encontro de Boal com o Rio

    de Janeiro, cidade onde ele nasceu no ano de 1931 na Penha Cir-

    cular. Queremos agradecer o apoio e a ajuda do Centro Cultural

    Banco do Brasil, do Ministrio da Cultura, da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro, da Funarte e de tantos parceiros. E agora que

    tudo o que devia ser dito j foi dito, senhoras e senhores, meninos

    e meninas, cavalheiros e senhoritas, que se abra a exposio. Po-

    dem se aproximar, cheguem mais perto, bem perto (como Boal

    gostava de dizer). Mas ateno! Aproximem-se com muita delica-

    deza. O nosso espetculo est aberto de hoje at 16 de maro, dia

    em que, pela primeira vez, Augusto Boal encontrou a sua cidade.

    Ceclia Thumim Boal

    9

  • aRquIvo Boal Na uFRJ

    Priscila Matsunaga

    Desde 2011, quando o acervo Augusto Boal foi abrigado pela

    Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    uma equipe de professores e estudantes d corpo a um desejo

    partilhado com o Instituto Augusto Boal: depositado ali est no

    apenas um acervo pessoal de um de nossos maiores teatrlogos

    e sim um repertrio de possibilidades de pesquisa e prtica em

    teatro. Pretendemos que o acervo promova estudos e reflexes

    sobre o teatro brasileiro, de ontem e hoje. Do trabalho com os

    alunos de graduao e ps-graduao no estudo das peas e

    da teoria de Boal, passando por eventos para dar visibilidade ao

    acervo, como a Ocupao Boal realizada pela Casa da Cincia

    em 2012, tentativa de reelaborar a rede de colaborao entre

    criadores e investigadores latino-americanos como buscamos

    com o I Encontro latino-americano de teatro realizado em 2013,

    o material inspira atitudes e envolvimentos de ordem poltica

    e afetiva. Desse modo, a contribuio para esse evento que

    rene exposies, leituras dramatizadas, peas teatrais, oficinas,

    confirma o compromisso da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro com a memria artstica brasileira. Mas sabemos todos

    que a instituio se faz pelas mos de gente que trabalha. A

    contribuio da universidade para a realizao desse momento

    s foi possvel pelo apoio da profa. Eleonora Ziller, diretora da

    Faculdade de Letras e do professor Eduardo Coelho, responsvel

    pela catalogao do acervo (e a colaborao dos funcionrios da

    Biblioteca Jos de Alencar). O material que compe o catlogo

    foi coletado por Anita Ayres (UFRJ), rika Rocha (USP) e Patrcia

    Freitas (USP), e dirijo a elas meu especial agradecimento.

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  • laBoRatRIo Da pRxIs

    Srgio de Carvalho

    Em seu livro mais pessoal, Hamlet e o filho do padeiro, Au-gusto Boal se compara ao moo prncipe da Dinamarca: A trag-dia de Hamlet no ser ou no ser: ser e no ser. Hamlet os dois e s no sabe ser ele prprio. Sou especialista nessa dicotomia.

    Em A Esttica do Oprimido, ltimo livro que escreveu, o jogo da no-identidade reaparece. Boal fala sobre os ndios Pirah, de Roraima, que mudam de nome porque acreditam que o avanar da idade os transforma em outras pessoas: Mentiriam se guardassem os mesmos nomes: j no so o que foram.

    Boal foi aprendiz e mestre da dialtica, essa arte de conhecer o movimento das coisas, em relao ao movimento do prprio conhecimento. Era um artista interessado nas dinmicas da vida e na sua captura sempre impossvel. Sabia que o ser s no sendo, que o exame das contradies vivifica. Mas sabia tambm que a grande teoria deve se negar a si prpria como prxis, que as prticas definem o sentido do aprendizado, mesmo que o verde da rvore da vida precise do cinza da teoria para que suas linhas sejam visveis.

    Boal fez uma obra de recusas imobilizao. Por outro lado, procurou em cada etapa de seu desenvolvimento artstico fixar tcnicas, estabelecer snteses, organizar o trabalho prprio e o alheio, verificando os limites e riscos dessa atitude necessria.

    A utilizao dos chamados laboratrios teatrais para transmitir seu aprendizado ao grupo do Teatro de Arena, onde ingressou em 1956, recm chegado dos Estados Unidos, permaneceria na origem do Teatro do Oprimido, que se organiza nos anos 70 como um ensaio de transformao do real, um ensaio da Revoluo. O melhor teatro do Oprimido que se entende como laboratrio social realizado por grupos de pessoas que enfrentam sua condio de seres coisificados econmica

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  • e culturalmente. O exerccio da autonomia artstica surge como smbolo de uma participao poltica capaz de dialogar com uma histria social, orientada pela luta de classes. O critrio da ativao, portanto, no pode ser encontrado somente na obra (ou no fato simblico do espectador subir ao palco): a capacidade de uma ao conjunta daquele grupo em relao a sua condio histrica que define a fora poltica do ato simblico. Foi nessa perspectiva que Augusto Boal construiu o mais importante projeto da histria do teatro brasileiro.

    Este livro-catlogo procura dividir o trabalho artstico e poltico de Augusto Boal em fases para que algo de seu movimento interno e externo possa ser visualizado. Seguimos aqui a sugesto desse artista-qumico, que gostava de separar os elementos, sabendo ser essa interveno uma suspenso sempre algo abstrata que visa realizao do concreto. Que esse registro feito de testemunhos e fragmentos colhidos por gente animada com o conhecimento das coisas transmitido por Boal d tambm algum testemunho da sua impressionante alegria. S algum que conheceu de perto a nefasta e mortal Melancolia seria capaz de uma obra to avessa resignao e ao conformismo, voltada para a colaborao com o outro da histria.

    13

  • 1953 - 1955

    Da Qumica ao TeaTro

  • Da quMICa ao tEatRo

    Maria Slvia Betti

    Uma referncia que lera sobre o crtico John Gassner,

    grande especialista no campo da dramaturgia, chamou a

    ateno do jovem Augusto Boal na poca em que conclua sua

    graduao em Qumica, em 1952. Alm de ser um nome central

    na crtica, Gassner era professor da Universidade de Yale, e Boal,

    embora estivesse se formando qumico, desejava desenvolver-se

    como dramaturgo. Seu pai lhe havia prometido o custeio de um

    ano de estudos no exterior, e isso o levou a escrever ao crtico

    apresentando-se e pleiteando uma vaga sob sua tutela na rea

    de dramaturgia.

    A resposta afirmativa chegou algumas semanas depois

    com a ressalva de que Gassner havia acabado de transferir-se

    da Universidade de Yale, em New Haven (Connecticut), para

    a de Columbia, em Nova Iorque. Columbia era uma das mais

    prestigiadas e caras instituies acadmicas dos Estados Unidos,

    integrante da famosa Ivy League, Nova Iorque era o grande plo

    de inovao nas reas da encenao e da dramaturgia, e Gassner,

    por sua vez, havia sido convidado a integrar o corpo docente da

    School of Dramatic Arts de Columbia ministrando precisamente

    Creative Playwriting (Criao de Dramaturgia), a disciplina de

    maior interesse para Boal naquele momento.

    O perodo de estudos que assim se iniciou, em 1953, estendeu-

    se at julho de 1955. Um captulo inteiro da autobiografia que

    Boal escreveria muitos anos depois viria a ser dedicado ao relato

    de suas atividades no solo teatral novaiorquino nessa fase.

    Como tivesse acabado de se graduar em Qumica, Boal foi

    inscrito como estudante nessa rea, o que o obrigou a cursar

    alguns crditos nesse campo de estudos, mas no representou

    16

  • impedimento, dentro da estrutura curricular ali vigente, para

    que ele frequentasse as disciplinas desejadas no campo dos

    estudos teatrais.

    Diversos professores, ligados a campos especficos do teatro,

    marcaram a sua formao nesse perodo: Milton Smith, Maurice

    Valency, Norris Houghton e Theodore Apstein, todos ligados,

    de alguma forma, a aspectos prticos da dramaturgia e da

    encenao. Nenhum o marcou tanto, porm, como John Gassner.

    Alm de ter sido o principal mestre e interlocutor de Boal, Gassner

    foi, tambm, quem mediou os contatos que permitiram a Boal

    assistir ensaios e oficinas de interpretao no Actors Studio, o

    mais importante centro de preparao interpretativa de atores

    dos Estados Unidos, conhecido por sua peculiar abordagem das

    tcnicas interpretativas desenvolvidas por Stanislavski.

    As concepes de Stanislavski no eram desconhecidas de

    Boal antes de seus estudos em Nova Iorque, mas a experincia

    de observao de oficinas no Actors o levou a travar contato

    com a linha adotada por Lee Strasberg, fundamentada no uso

    de tcnicas como a da memria emotiva, a da interiorizao

    como fio condutor e a do se imaginrio. Tratava-se de um

    Stanislavski que o prprio Boal descreveria, mais tarde, como

    quase expressionista.

    Vrias dessas tcnicas viriam a ser aplicadas pelo prprio

    Boal em Ratos e Homens, a adaptao dramatrgica do romance

    de John Steinbeck que ele dirigiria no Teatro de Arena de So

    Paulo em 1956, pouco depois de voltar dos Estados Unidos, ca-

    racterizando um trabalho que, em suas prprias palavras, foi o

    primeiro estudo sistemtico de Stanislavski no contexto brasileiro.

    Foi com o trabalho de Boal como diretor, desse momento em

    diante, que o teatro norte-americano passaria a ser conhecido,

    no Brasil, nos seus trs campos constitutivos: o da escritura

    dramatrgica, cujo estudo Boal desenvolveu nos Seminrios do

    Arena, o da interpretao, com os exerccios stanislavskianos

    17

  • que criou nos Laboratrios de Interpretao a partir de sua

    experincia no Actors, e o do repertrio, com as montagens

    que dirigiu de Ratos e Homens, de John Steinbeck, de A Mulher

    do Outro, de Sidney Howard, ambas no Arena respectivamente

    em 1956 e 1957, e, algum tempo depois, de Um bonde chamado

    Desejo, de Tennessee Williams, que dirigiria no Teatro Oficina em

    1961. Essas trs peas apresentavam na prtica a ressonncia

    das concepes e do trabalho formativo de Gassner, que Boal

    incorporara em seu trabalho como diretor e como formador.

    De todos os contatos de Boal em Nova Iorque, durante

    este seu perodo de estudos, um dos mais expressivos foi com

    o dramaturgo e poeta negro Langston Hughes (1902-1967),

    que havia sido convidado para uma conferncia dentro de um

    programa de atividades culturais da Universidade. Boal levou

    a Hughes, nessa ocasio, uma carta que lhe fora dirigida pelo

    dramaturgo negro brasileiro Abdias do Nascimento, o fundador

    do Teatro Experimental do Negro, com quem trabalhara, no rio

    de Janeiro, pouco antes de viajar. O contato com Hughes em

    Nova Iorque lhe valeu, desse momento em diante, uma srie de

    convites no s para encontros (conversas de bar, em suas

    palavras) mas tambm para espetculos no Apollo Theatre, no

    bairro negro novaiorquino do Harlem (muito prximo do campus

    de Colmbia) , dedicado a espetculos musicais.

    Hughes havia lanado, em 1951, a antologia potica

    intitulada Montage of a Dream Deferred (Montagem de um

    Sonho Adiado) da qual fazia parte Harlem, poema que se

    tornaria um marco das lutas pela igualdade racial nos Estados

    Unidos, em consonncia com o apoio que o autor manifestaria,

    em meados dos anos 60, com a frente de luta dos Panteras

    Negras (Black Panther Party) e as lideranas revolucionrias do

    movimento.

    Boal cita vrios espetculos assistidos durante seu perodo

    de estudos em Nova Iorque, e dentre eles destaca Tea and

    18

  • Sympathy (Ch e Simpatia) , de Robert Anderson, e Cat on a

    Hot Tin Roof (Gata em Telhado de Zinco Quente), de Tennessee

    Williams, que estrearam na Broadway respectivamente em

    fevereiro e maro de 1955, ambas dirigidas por Elia Kazan.

    Com a intensificao de seus contatos no meio teatral

    novaiorquino, Boal passou a colaborar como correspondente

    no remunerado do jornal Correio Paulistano, escrevendo sobre

    teatro e publicando entrevistas com atores e diretores de grande

    projeo na poca, como o ator, diretor e produtor portoriquenho

    Jos Ferrer, o panamenho Jos Quintero, diretor do Circle in the

    Square (um pequeno teatro em arena na Washington Square,

    em Nova Iorque), responsvel por uma notvel remontagem de

    Summer and Smoke (O Anjo de Pedra), de Tennessee Williams,

    e a atriz Geraldine Page. Boal entrevistou, ainda, os diretores

    Stella Adler, Harold Clurman e Elia Kazan, ligados histria dos

    trabalhos stanislavskianos nos Estados Unidos, e tambm atores

    dos elencos de Tea and Sympathy (Ch e Simpatia), de Cat on

    Tin Hot tin Roof (Gata em Telhado de Zinco Quente), e bailarinas

    do musical Wish you were here, baseado em pea de Arthur

    Kober adaptada por Joshua Logan e com msica e letras de

    Harold Rome.

    No final de seu segundo e ltimo ano de estudos, Boal venceu

    um concurso de dramaturgia promovido pela Universidade de

    Colmbia com uma pea intitulada Martim Pescador. Como nem

    o tema (pescadores brasileiros) e nem o estilo naturalista foram

    considerados adequados para uma montagem no campus, seus

    colegas dispuseram-se a encenar a pea dentro do Writers

    Group, um ncleo de dramaturgia experimental do Brooklyn

    organizado em torno de uma pauta de estudos e leituras. Martim

    Pescador acabou sendo substituda por The Horse and the Saint,

    outra pea escrita por Boal, que contou com elenco formado

    pelos membros do grupo sob a direo dele prprio. Esta seria,

    como ele prprio frisou, a sua primeira direo.

    19

  • Os anos que assinalaram os Seminrio de Dramaturgia

    realizados no Teatro de Arena, no final dos anos 50, assinalaram

    tambm, paralelamente, o aporte do teatro de Bertolt Brecht no

    Brasil e da circulao de peas do dramaturgo alemo.

    Boal e o ncleo central de dramaturgos do Arena passariam

    a empenhar-se vigorosamente na construo de um teatro pico

    dotado de caractersticas bem diferentes das do teatro norte-

    americano com que Boal travara contato em Nova Iorque. E

    desse empenho resultaria uma vigorosa renovao dramatrgica

    e cnica, e seus frutos se multiplicariam amplamente at que

    o impacto do da ditadura militar, em 1964, viesse colocar diante

    deles cerceamentos de vrias ordens.

    O teatro que se escreveu e que se encenou no Brasil ao longo

    desse perodo possui estas duas facetas, dialtica e historicamente

    opostas: a da moderna dramaturgia estadunidense do segundo

    ps guerra, e a do pico brechtiano que ento comeava a ganhar

    suas primeiras edies e produes nacionais, como parte de

    um significativo movimento cultural da esquerda. O trabalho de

    Boal apresenta elementos importantes e instigantes para que

    todas estas perspectivas de dramaturgia e de encenao sejam

    correlacionadas sem que se perca de vista as ricas conexes que

    apresentaram. Com elas temos muito a aprender.

    CRoNologIa

    1950 Escreve alguns textos curtos inspirado em situaes da Penha: Maria Conga, Histrias do meu bairro e Martin Pescador. Alguns textos foram submetidos crtica de Nelson Rodrigues, de quem se aproximou durante o perodo em que cursou Engenharia Qumica na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    1953 Boal frequenta aulas na Columbia University of New York para especializar-se em plsticos e petrleo. Paralelamente realizou

    20

  • estudos em dramaturgia , com John Gassner. Seus professores foram: Milton Smith, Maurice Valency, Norris Houghton, Theodore Apsteins entre outros. Colaborou voluntariamente com o Correio Paulistano, entrevistando artistas em evidncia no cenrio nova-iorquino. Foi aceito como ouvinte em sesses do Actors Studio de Lee Strasberg.

    1954 Concludas as aulas em Qumica, Boal dedica-se integralmente ao teatro. Integra um grupo de dramaturgos, Writers Group, Brooklyn, ganha um concurso de peas em um ato na Columbia com Martim Pescador, o primeiro reconhecimento como dramaturgo.

    1955 Junto ao Writers Group encena duas peas de sua autoria,

    The house across the street e The horse and the saint. O elenco foi formado pelos dramaturgos do grupo, e os diretores, os autores. Em julho retorna ao Brasil.

    21

  • Augusto Boal em Nova Iorque, 1954.

    22

  • 23

  • Nos jornais de hoje saiu uma poro de coisa sobre o Brasil. (...) A outra reportagem foi sobre uma mensagem que o Luiz Carlos Prestes escreveu na imprensa popular. Que que houve a sobre isso? O jornal dizia que a mensagem era estimulando o povo a depor Getlio, a confiscar tudo que fosse americano, a reatar relaes com a Rssia etc. Tambm falava no aumento de salario mnimo de 1200 para 2400 cruzeiros e trazia tambm notcias sobre a greve que os bancrios ameaam fazer. O Brasil est ficando famoso...

    augusto Boal

    Rascunho de carta famlia. Nova Iorque, 03.01.1954.

    24

  • 25

  • a minha pea agora vai. Os ensaios j comearam. Eu estou dirigindo. O teatro, como eu j disse, um auditrio pequeno (feito um teatro de bolso) bem na rea da Broadway. A atriz que faz o papel central comeou em teatro em 1929, dois anos antes de eu nascer. A pea uma verso daquela coisa que voc viu. Por favor, procure esquecer o que voc viu o mais depressa possvel.

    augusto Boal

    Carta irm Ada. Nova Iorque, 12.05.1955.

    26

  • 27

  • 1955 - 1963

    LaboraTrios Do

    TeaTro De arena

  • laBoRatRIos Do tEatRo DE aRENa

    Paula Chagas

    O ano de 1956 marca a volta de Augusto Boal ao Brasil.

    Foi o crtico teatral Sbato Magaldi quem sugeriu ao diretor

    Jos Renato, fundador do Teatro de Arena, que chamasse Boal

    para dividir com ele a direo das peas do grupo. Um ano

    antes o Arena recebia os jovens integrantes do politizado Teatro

    Paulista do Estudante (TPE), entre eles Gianfrancesco Guarnieri

    e Vianinha, que pretendiam estudar teatro popular orientados

    por Ruggero Jacobbi.

    Boal vinha de uma experincia de aprendizado tcnico

    segundo o modelo artstico do playwriting norte-americano,

    essencialmente ligado ao drama (e suas formas crticas). Guarnieri

    e Vianinha traziam a vivncia no Partido Comunista e j procuravam

    uma arte de participao nos debates polticos da poca.

    Em sua primeira incurso como diretor no Teatro de Arena,

    j em 1956, Boal monta o drama social Ratos e Homens, do

    autor norte-americano John Steinbeck. Nos ensaios o texto

    era estudado na sua relao dialtica com a encenao, o que

    implicava experimentao por parte dos atores e do diretor na

    busca por uma representao realista, menos empostada. Veio

    da a principal motivao para a implementao do Laboratrio

    de Interpretao do Teatro de Arena. com o Laboratrio que

    nesse momento Boal assume uma atitude cientfica perante o

    teatro e passa a sistematizar sua prtica. Alm de exerccios

    desenvolvidos pelo diretor e atores com quem trabalhava,

    utilizavam-se tambm de alguns j realizados por outros grupos

    e autores, principalmente pelo russo Constantin Stanislavski,

    que eram continuamente reelaborados. O Laboratrio de

    Interpretao inaugura o encaminhamento metodolgico das

    30

  • pesquisas de Boal e do Arena. ali que, pela primeira vez no

    grupo, uma viso dialtica do trabalho artstico passa a ser

    praticada.

    Mas para que a pesquisa se aprofundasse, era necessria

    uma maior autonomia dos integrantes do Arena em relao

    dramaturgia. O Curso de Dramaturgia do Arena, qu e se inicia

    ainda em 1956, como uma formao complementar aos exerccios

    dos Laboratrios de Interpretao, nasce dessa necessidade

    de compreenso tcnica. Assim, so os prprios atores que

    propem a Boal que formule um curso em que divida com a

    equipe seu aprendizado tcnico em dramaturgia. desse modo

    que nasce o primeiro curso de dramaturgia do Arena, aberto ao

    pblico, e que, por conta do grande afluxo de interessados, ser

    repetido no ano seguinte. As aulas eram expositivas, seguidas

    de debates que se estendiam pesquisa laboratorial do grupo.

    Enquanto o Curso de Dramaturgia e o Laboratrio de

    Interpretao prosseguiam gerando uma pesquisa inovadora

    faltava atrelar as inovaes interpretativas a peas que tratassem

    de questes nacionais e populares. No ano de 1957 Boal inaugura

    sua trajetria como dramaturgo e encena, ele prprio, seu

    primeiro texto: Marido Magro, Mulher Chata. Era uma precria

    resposta inicial ao projeto de encenar um texto autoral capaz de

    tratar de temtica nacional na forma de comdia. Apesar de ter

    sido uma tentativa de um retrato brasileira, a pea de fato est

    bem longe de qualquer sentido crtico politizado. Ainda assim,

    de um ponto de vista cnico, incorporava o realismo laboratorial

    e um desejo de representao popular.

    levando adiante as orientaes de Boal sobre a dialtica

    dramtica no Curso de Dramaturgia e sobre a procura de uma

    gestualidade brasileira do Laboratrio de Interpretao que Gian-

    francesco Guarnieri escreve e Jos Renato encena a pea Eles No

    Usam Black Tie, tambm resultado de um processo partilhado, em

    que o texto era discutido com os outros integrantes durante sua

    31

  • produo. O impacto da pea deve muito a seu tema inovador:

    apresentava membros da classe operria como protagonistas.

    Surgia assim uma nova encenao brasileira, decorrente da pes-

    quisa laboratorial realizada h dois anos. Assumem, pela primeira

    vez, um projeto esttico totalizante, que une todas as reas das

    realizaes do grupo. Torna-se ainda mais forte a busca pela lin-

    guagem teatral genuinamente brasileira e pelo engajamento.

    A politizao crescente do grupo e a necessidade de

    interao dialtica entre dramaturgia e interpretao ensejou

    no mesmo ano a fundao do Seminrio de Dramaturgia, que

    organizado como um laboratrio de escrita era constitudo por

    encontros semanais de debates sobre escrita dramatrgica

    com vistas a estimular a produo, tendo como base o modelo

    metodolgico do grupo livre extra-acadmico que Boal conheceu

    nos Estados Unidos, em 1954: o Writers Group. Em torno dos

    integrantes do Seminrio parecia haver um consenso de que

    para se discutir teatro era agora necessrio se discutir tambm a

    realidade nacional. Essa tomada de posio vai alm dos temas.

    Influencia diretamente a feitura das peas que sero discutidas.

    Radicaliza-se o projeto de um teatro engajado socialmente, de

    sentido nacional-popular, que traz para dentro da sala de ensaio

    a discusso poltica e a reflexo sobre o momento social.

    No Seminrio de Dramaturgia, que durou at meados de

    1961, foram criadas sete peas, entre elas Revoluo na Amrica

    do Sul, de Boal. No mesmo ano o grupo passa por uma grande

    reformulao aps uma estada no Rio de Janeiro, onde apresenta

    parte de seu repertrio. Vianinha e Chico de Assis ficam na

    cidade e fundam o Centro Popular de Cultura (CPC) e Boal e

    os demais integrantes viajam para diferentes locais do pas

    fazendo parcerias no apenas com outros grupos teatrais, mas

    tambm com movimentos sociais como o Movimento Popular de

    Cultura (MCP), de Pernambuco. Alm disso, Boal institui outros

    Seminrios, como o do Sindicato de Metalrgicos de Santo

    32

  • Andr e escreve a pea Mutiro em Novo Sol, em parceria com

    o ator do Arena Nelson Xavier e os intelectuais Benedito Arajo,

    Hamilton Trevisan e Modesto Carone, que foi representada em

    um congresso de camponeses em Belo Horizonte e no Teatro de

    Cultura Popular, em Pernambuco.

    Ao mesmo tempo inauguram uma nova fase de pesquisa

    dramatrgica e de interpretao no Teatro de Arena: a da

    nacionalizao dos clssicos. Dentro desse novo projeto adaptam

    alguns clssicos da dramaturgia mundial, entre eles A Mandrgora,

    do autor italiano Nicolau Maquiavel e O Melhor Juiz, o Rei, do

    espanhol Lope de Vega. A ideia preponderante era mostrar que

    nenhuma arte universal se no for brasileira. E no que dizia

    respeito interpretao, afastam-se da ideia da procura de um

    corpo com gestualidade brasileira para alcanar uma interpretao

    social de amplo espectro. Essa fase da pesquisa do grupo dura

    at meados de 1964, quando o acirramento das tenses polticas

    e sociais no pas leva ao golpe civil militar que interrompe essas

    parcerias com os movimentos sociais que davam uma nova inflexo

    para a pesquisa laboratorial projetando-a para fora do teatro e

    mostrando cada vez mais sua fora nas ruas. A partir da ser

    necessrio reformular a maneira como a pesquisa e os projetos de

    Boal e do Teatro de Arena como um todo se intercambiam com

    a sociedade, o que levar a montagem de musicais como o show

    Opinio e as peas da fase do Arena Conta.

    CRoNologIa

    1956 Nelson Rodrigues indica Boal como tradutor para a Revista X-9. Atravs das tradues de romances policiais aprender a tcnica que o auxilia na escrita, anos mais tarde, da novela A deliciosa e sangrenta aventura latina de Jane Spitfire, espi

    e mulher sensual, sobre o golpe de Estado na Argentina. Por indicao de Sbato Magaldi, Boal integra, como diretor

    33

  • artstico junto a Jos Renato, o Teatro de Arena de So Paulo. Estreou como diretor em setembro com Ratos e Homens de John Steinbeck. Na encenao, busca a essncia de cada cena, o sentido das coisas que so ditas e no tanto a maneira de

    diz-las. A encenao volta-se para o ator e constitui a etapa realista do Teatro de Arena. Segundo Boal a melhor maneira de ensaiar seria, desde o primeiro dia, praticar Stanislavski. No foi sem alguma resistncia dos atores que Boal introduziu exerccios aprendidos no Actors Studio. O famoso Laboratrio de Interpretao contava, tambm, com exerccios criados pelo prprio Boal e posteriormente serviram de base para o livro Jogos para atores e no atores.

    1957 Estreia no Brasil como dramaturgo com a comdia Marido magro, mulher chata. Recebe elogios como autor cmico: a comicidade da pea no resulta de aproveitamento de anedotas,

    piadas ou ditos chistosos. Nasce com espantosa naturalidade da

    maneira de ser das personagens. Dirige Juno e o pavo de Sean OCasey e organiza um Curso de Dramaturgia aberto ao pblico.

    1958 O Teatro de Arena funda o Seminrio de Dramaturgia. Os convidados analisavam peas dos dramaturgos do Arena, como Boal e Vianinha, ou de convidados, como Jorge Andrade e Brulio Pedroso. Os textos eram submetidos a anlise esttica e poltica de, ao menos, dois relatores. Foi pelo Seminrio de Dramaturgia que os autores confrontaram-se com os problemas brasileiros, colocando em cena novos temas e personagens, instalando a etapa fotografia do Teatro de Arena iniciada pela encenao de Eles no usam black-tie de Gianfrancesco Guarnieri, com direo de Jos Renato.

    1959 Augusto Boal dirige Chapetuba Futebol Clube de Oduvaldo Viana Filho, Gente como a gente de Roberto Freire e A farsa da esposa perfeita de Edy Lima, textos analisados pelo Seminrio de Dramaturgia.

    1960 Realizao de vrias produes conjuntas entre o Teatro de Arena e o Teatro Oficina. Boal dirigiu, com o elenco do Oficina,

    34

  • A engrenagem de Jean Paul Sartre, adaptada em parceria com Jos Celso Martinez Correa. Neste mesmo ano dirigiu outras peas oriundas do Seminrio: Fogo Frio do ainda jornalista esportivo Benedito Ruy Barbosa e O testamento do cangaceiro de Francisco de Assis. Nesse ano, Jos Renato dirige Revoluo na Amrica do Sul.

    1961 Dirige Pintado de Alegre de Flvio Migliaccio. Para marcar uma diferena de encenao e de nuances dentro da etapa

    brasileira do Teatro de Arena (fotografia), Boal escreve: A comparao seja o caminho mais claro. Chapetuba F.C. uma pea seca, direta, objetiva. No movimento cnico, sua ideia central foi demonstrada por processos geomtricos. Pintado de Alegre, contrariamente, ditou uma encenao quase oposta. Seus personagens abandonam problemas fundamentais por motivos fteis, passando da intensa alegria ao total abandono. Estas caractersticas impressionistas do texto forneceram elementos bsicos da encenao. As marcaes procuram as curas, procuram os gestos inteis, so enriquecidas com o desnecessrio e o facultativo. Flvio Imprio multicoloriu os cenrios, acumulando detalhes.

    1962 Jos, do parto sepultura, de sua autoria, dirigida por Antonio Abujamra. Segundo Boal, Jos da Silva nasceu inspirado em Dom Quixote, com uma diferena fundamental: Quixote vivia anacronicamente, acreditando em valores passados, Jos acredita nos de hoje, falsos mas atuantes. O

    texto centra-se na hiprbole, no exagero e absurdo. Com o elenco do Arena, Boal dirige A Mandrgora de Maquiavel. Inicia-se a etapa nacionalizao dos clssicos. Em sua avaliao, a fase fotogrfica tinha a desvantagem em reiterar o bvio: queramos um teatro mais universal que, sem deixar de ser brasileiro, no se reduzisse s aparncias. Ainda nesse ano dirige O melhor juiz, o Rei de Lope de Vega.

    1963 Dirige O Novio de Martins Pena com o Teatro de Arena e Um bonde chamado desejo de Tenesse Williams com o Teatro Oficina.

    35

  • Chico de Assis em cena de

    Chapetuba Futebol Clube,

    1959, de Oduvaldo Vianna

    Filho. Direo de Augusto

    Boal.

    Chico de Assis, Milton

    Gonalves e Nelson Xavier

    em cena de Chapetuba

    Futebol Clube.

    36

  • Cena de Revoluo na Amrica do Sul, 1960. Texto de Augusto Boal, direo

    Jos Renato.

    Flvio Migliaccio como Jos da Silva em Revoluo na Amrica do Sul, 1960.

    37

  • Boal, como vo os ensaios de Lope de Vega? Espero que tenhas sucesso. Espero muito mesmo. No sei muito como vo as coisas a, mas pelo jornal verifico que houve um acelerado nas grandes montagens (...). O tempo passa e o Arena pode perder a vanguarda. Se que algum pode arremete-la. O que sei que o CPC da est muito ativado. Deixa esse teatro pequeno e burgus, Boal. Vamos fazer uma coisa grande! E continuar contribuindo para esse teatro subdesenvolvido.

    NlsoN xavIER

    Carta a Augusto Boal. Arraial do Bom Jesus,

    Pernambuco, 28.06.1962.

    38

  • 39

  • O documento mostra planos de trabalho dramatrgico de Boal, estabelecendo

    prazos de escrita para a finalizao de cada pea.

    40

  • Anotao de trabalho de Boal sobre dialtica no teatro, provavelmente de 1963.

    41

  • Dialtica das emoesExemplo de Romeu dialtico: ama Julieta, porm, esse amor cria seu prprio desamor.

    augusto Boal

    Anotao de trabalho sobre dialtica no teatro,

    provavelmente de 1963.

    42

  • 43

  • Para Augusto Boal, desejando que o xito no desgaste a sua natureza selvagem homenagem ao seu talento ameaado.

    NElsoN RoDRIguEs

    Dedicatria a Augusto Boal, outubro de 1956.

    44

  • 45

  • Equipe do Arena comemora o Prmio Saci, 1962.

    46

  • DEpoIMENto NLSON XAVIER

    Terico no sentido do descobridor

    O Boal era um dos nossos, ele no era o Boal que depois se

    tornaria: essa figura imensa. Ele tinha feito muito jovem um curso

    sobre teatro nos Estados Unidos, quando foi estudar qumica. E

    tentava, no Arena, transmitir as coisas que tinha aprendido l. Foi

    ele quem trouxe expresses como a emoo especfica da perso-

    nagem. Fazamos laboratrios de formao baseados em Stanis-

    laviski. Era um terreno timo, muito estimulante. Depois, quando o

    Jos Renato se afastou para trabalhar fora, o Boal deixou o teatro

    ainda mais nas nossas mos. E era to igualitria a nossa relao

    que ficamos dirigindo coletivamente o Arena. Dividamos tudo. A

    nossa relao se baseava na procura de uma prtica igualitria. E a

    gente discutia muito. Boal conversava com a gente de uma manei-

    ra para mim muito nova. Eu tambm estava estreando nisso. Tal-

    vez seja verdade que ns, Vianinha, Guarnieri, Chico, puxssemos

    o Boal para a esquerda. No meu caso, porque foi Pernambuco que

    me puxou quando entrei no Movimento de Cultura Popular. Eu me

    tornei comunista. Mas isso aconteceu tambm porque o Boal e o

    Viana me deram livros. E me inscrevi no partido comunista quan-

    do fui para Recife, em Pernambuco. O Boal pensava, sobretudo

    no conjunto do ato teatral, pensava muito em como desenvolver

    uma linguagem cnica e poltica. Para mim ele o grande terico.

    Terico no sentido de descobridor. A contribuio dele junto

    com a gente era de fazer do ato do teatro um produto da refle-

    xo, da busca e da pesquisa. Sem descuidar de querer fazer uma

    coisa popular mesmo. Queramos nos aproximar do homem da

    rua, imitar o sindicalista, o operrio, conhecer o povo.

    Depoimento de Nlson Xavier a Srgio de Carvalho para esta publicao.

    47

  • 1964 - 1967

    arTe De esQuerDa

    no ps-64

  • aRtE DE EsquERDa No ps-1964

    Paulo Bio Toledo

    Logo aps os tanques e fuzis tomarem conta da arena poltica

    no Brasil, o teatro e a cano protagonizaram uma das mais

    imediatas respostas no campo da cultura. O Show Opinio, no Rio

    de Janeiro, dirigido por Augusto Boal ainda em 1964 (e produzido

    pelo grupo liderado por Vianinha, Joo das Neves, Armando

    Costa, Ferreira Gullar e Paulo Pontes) foi o primeiro gesto de

    resistncia a reunir artistas ligados s tentativas de popularizao

    da arte no perodo anterior e msicos de vrios estratos sociais.

    Dizia em bom som: podem me prender/ podem me bater/ mas

    eu no mudo de opinio. O diretor parece ter percebido ali um

    frtil caminho de resistncia para o teatro. O sucesso do show

    enorme. Agremia toda uma frao social inconformada com o

    andamento da poltica. Seguindo esta trilha que Boal, junto com

    Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, e de volta ao Teatro de Arena

    de So Paulo, escreve e organiza Arena Conta Zumbi, um dos mais

    importantes acontecimentos teatrais do perodo.

    O musical estreou no dia 1 de maio de 1965, dia internacional

    dos trabalhadores e exatos um ano e um ms depois do Golpe

    de Estado de 1964. A histria da luta do Quilombo de Palmares

    foi matria-prima para uma tomada de posio ainda mais

    enftica diante da inflexo ditatorial nos rumos do pas. Assim

    como fora o Show Opinio no Rio de Janeiro em dezembro de

    1964, Zumbi se valeu da msica como elemento fundamental na

    composio cnica e marcou toda uma gerao com sua forma

    esttica de resistncia. Algumas das canes de Edu Lobo para

    o espetculo foram elevadas categoria de hinos de uma poca.

    O espetculo sobre a resistncia em Palmares apresentou uma

    cena nova e surpreendente. A histria era narrada e cantada por

    50

  • um coro, sem protagonismos como dito logo no incio da pea:

    Os atores tem mil caras/ fazem tudo neste conto/ desde preto at

    branco/ direitinho ponto por ponto. Assim, as figuras histricas

    representadas em Arena conta Zumbi eram interpretadas por

    vrios atores diferentes ao longo do musical, num primeiro esboo

    daquilo que Boal teorizaria em 1967 como o Sistema Coringa.

    Trata-se de um mtodo de representao no qual o que ficava em

    primeiro plano no eram as particularidades histricas do fato, mas

    a ao de contar este fato em cena e isso, nas palavras de Boal: de

    uma perspectiva terrena bem localizada no tempo e no espao: a

    perspectiva do Teatro de Arena, e de seus integrantes.

    Zumbi era um musical em que atores do Teatro de Arena

    contavam, em 1965, a histria de Palmares. Para isso, apoiavam-

    se na prpria materialidade da cena, no jogo coral entre os

    atores, no teatro como ato circunstancial. Tal estrutura propunha

    uma relao direta e objetiva para com o pblico, que era,

    afinal, o objeto indireto implcito do verbo contar empregado

    no ttulo: o Arena (sujeito) se apresentava para contar Zumbi ao

    pblico daquela apresentao. Transformava a particularidade

    histrica em comentrio presente e transformava o teatro

    numa gora de debate envolvendo o pblico e o grupo. Mais

    do que simples atualizao temtica, a presentificao do

    objeto histrico, neste caso, se realizava numa relao cnica

    pica e experimental, que fazia do momento da apresentao

    a sua fora. Um grande achado para o teatro do perodo.

    Apresentava-se a histria do maior Quilombo que j se viu

    no pas como se parte de uma luta que vence os tempos.

    Durante a trama via-se o companheirismo e a conscincia dos

    quilombolas como tradio de luta com a qual precisamos nos

    conectar. O entusiasmo da pea estava nesse coro que dizia:

    ns somos eles, eles so ns. Enquanto que, de outro lado,

    brancos exploradores, violentos, autoritrios e comensais do

    Capital em tudo se assemelhavam aos militares que tomavam

    51

  • o poder.

    Naquele primeiro momento ps-golpe, Boal foi um entusiasta

    deste caminho que nomear mais tarde de tendncia exortativa.

    Bem ou mal, este esprito orientou as peas que dirigiu ou

    escreveu at 1968 (fundamentalmente, Tempo de Guerra e Arena

    conta Bahia, de 1965 e Arena conta Tiradentes, de 1967). Ele sabia

    com quem estava falando, sabia que seu pblico era constitudo

    por certa juventude universitria inconformada com os rumos

    da poltica alm de setores mdios progressistas da sociedade.

    E a tentativa defendida pelo diretor era conscientemente a de

    realizar um gesto didtico que estabelecesse a unio entre

    palco e plateia na resistncia possvel. De fato, esta primeira

    produo cultural no teatro (na cano, no cinema etc.)

    marcada pela exortao de uma frao social especfica, ajudou

    a organizar em torno de si uma mentalidade que recusava a

    regresso ditatorial. Esses gestos de resistncia no campo da

    arte tiveram participao central na organizao de um novo e

    significativo corpo social, segundo Roberto Schwarz, capaz de

    dar fora material ideologia, fundamentalmente estudantil,

    crtico e disposto a sair s ruas (como de fato saram). E o que

    pareceu, no incio, mero devaneio de classe, foi ganhando fora

    real nos anos subsequentes a ponto de assustar os generais.

    Porm, a fora esttica do grito de resistncia lidava mal

    com a realidade da derrota. Tanto os negros de outrora quanto

    a esquerda pr-64 tinham assistido ao fracasso e interrupo

    violenta de seus sonhos. Mas Zumbi tentava fazer da percepo

    do fracasso uma conclamao vitria. A pea terminava, por

    exemplo, com os atores de joelhos no palco, negros aniquilados

    em Palmares, mas com os punhos erguidos, prontos pra luta.

    E as canes do espetculo reafirmavam, uma por uma, este

    procedimento paradoxal. Vivo num Tempo de Guerra, saltava da

    apresentao de um tempo sem sol, em guerra e digno de d, na

    letra, para tornar-se, ela mesma, com seu andamento acelerado,

    52

  • crescente densidade sonora, coros exortativos no refro, um canto

    de guerra, um hino de batalha. Em Zambi Morreu, que cantada

    em seguida, o par derrota/resistncia a fora do refro: Zambi

    morreu/ mas vai voltar/ em cada negrinho que chorar. Bem

    como na cano O Aoite bateu, cantada logo aps o assassinato

    de Ganga Zona e cujo refro reaparece no ltimo momento do

    espetculo: O aoite bateu, o aoite ensinou/ bateu tantas vezes

    que a gente cansou. Tambm a cano de Edu Lobo e Vinicius de

    Moraes que origina o espetculo, Zambi, tem algo desta potncia

    nascida da tragdia: Zambi morrendo, ei, ei Zambi (...) Ganga

    Zumba, ei, ei, vem a/ Ganga Zumba, tui, tui, tui, Zumbi.

    Este otimismo no desenvolvimento da luta, a despeito

    da acachapante derrota de 1964, alimentava quimeras e se

    desdobrava na sensao de que as peas produzidas no

    perodo eram claros avanos estticos e polticos com relao

    ao momento anterior, o que significava, no limite, acreditar que

    nada foi perdido com a inflexo de 64. Guarnieri numa entrevista

    anos mais tarde relembra o ambiente da montagem da pea

    e diz: a gente sentia necessidade de romper com o que fazia

    antes (...) era uma poca de euforia e alegria mesmo. Um tipo

    de formulao que, diga-se de passagem, no foi privilgio de

    um ou de outro, mas regra no campo da cultura de esquerda

    ps-64. E para um leigo em nossa histria, ao ouvir isso deve

    ser difcil acreditar que o pas vivia uma ditadura violenta e

    que no primeiro dia de Golpe as grandes experincias culturais

    de popularizao, como o Centro Popular de Cultura (CPC) e

    o Movimento de Cultura Popular (MCP) de Pernambuco (nas

    quais, bem ou mal, participaram estes mesmos artistas) foram

    duramente reprimidas e interrompidas.

    A verdade que sobrou muito pouco daquele momento

    pr-64 em que, segundo o crtico Roberto Schwarz a produo

    intelectual comeava a reorientar sua relao com as massas,

    experincias que tentaram desenvolver, no limite dos projetos,

    53

  • o direito de que todos sobretudo os mais pobres tivessem

    direito a produzir cultura e no apenas a consumi-la. O CPC e

    o MCP foram violentamente interrompidos nas primeiras horas

    da ditadura. No obstante, os artistas engajados nos crculos

    do inconformismo de classe mdia ps-Golpe, como o Teatro

    de Arena, puderam seguir produzindo espetculos nos quais

    davam-se combates imaginrios e vibrantes desigualdade,

    ditadura e onde no comparecia a sombra de um operrio.

    As contradies oriundas da se esparramam no perodo

    entre 1965 e 1968. Arena conta Tiradentes, de 1967, escrita

    por Boal e Guarnieri, torna-as ainda mais graves, quando, por

    exemplo, resolve criticar o suposto voluntarismo de elite que

    teria regido a luta poltica e cultural entre 1960 e 1964 ou quando

    a pea tenta retomar algo da empatia dramtica do naturalismo

    crtico um expediente regressivo, como bem mostrou a famosa

    crtica de Anatol Rosenfeld. Tambm boa parte da cano do

    perodo, que fora o elemento forte do primeiro teatro ps-

    64, passa a desenvolver-se autonomamente, dentro de uma

    categoria estranha e paradoxal chamada de cano de protesto

    que ao mesmo em que mostra a fora e o alcance da frao

    social resistente ditadura, vem para atender a um crescente

    segmento de mercado vido por consumir lembranas da

    revoluo que no houve.

    O momento torna-se um quebra-cabea de impasses,

    recuos e contradies. Mas, afinal, e novamente, o prprio

    Augusto Boal um dos primeiros a encar-las de maneira

    produtiva e, assim, deflagrar e enfrentar a crise no campo da

    cultura de esquerda. Em 1968, ele organiza a I Feira Paulista de

    Opinio em So Paulo, que mais do que um espetculo de teatro,

    era um ato artstico de enfrentamento, onde diversos artistas

    foram convidados a responder esteticamente a pergunta: que

    pensa voc do Brasil de hoje?.

    No programa do evento, em texto intitulado Que pensa

    54

  • voc da arte de esquerda?, Boal percebe que o entusiasmo da

    cultura naqueles anos era equivocado e desmedido, justamente

    pela impossibilidade de estabelecer trocas produtivas com

    os setores historicamente alijados da sociedade: o primeiro

    dever da esquerda o de incluir o povo como interlocutor do

    dilogo teatral. E avaliava: o mximo que se tem conseguido

    fazer incluir estudantes nas plateias. Percebia que o contato

    produtivo com as classes desfavorecidas tinha sido interrompido

    em 1964. E a sada no era a adeso crtica ao mercado ou o

    deslumbre com a contracultura, como alternativas derrota do

    nacional-popular. Boal, como tantas vezes, foi o primeiro artista

    do perodo a realizar uma crtica avanada da arte de seu tempo

    e a trabalhar pela possibilidade de um outro caminho.

    CRoNologIa

    1964 Aps 5 meses do golpe militar, dirige O Tartufo de Molire. Ensaiei Tar-tufo enquanto se organizava o texto de Opinio. Estreamos dia dois de

    setembro de 1964, evitando provocaes no dia sete!. Boal trabalhou na adaptao de O processo de Kafka: Nada mais parecido com o Brasil naqueles dias tenebrosos. No Rio de Janeiro, em dezembro, estreia o show Opinio, um dos mais importantes musicais polticos da histria do teatro brasileiro.

    1965 Arena conta Zumbi estreia em 1 de maio, texto de Boal e Guarnieri. Com Zumbi inicia-se a etapa dos musicais, que se caracterizou pela introduo de msicas brasileiras de importantes compositores. Nas palavras de Celso Frateschi: o cenrio era um grande tapete vermelho e os atores usavam cala Lee, que era muito caracterstico da classe

    mdia. No mitificava nenhum momento a ideia sobre a escravido.

    Isso o Brasil de hoje. Alm disso, em Zumbi que o Sistema Coringa experimentado; o personagem desempenhado por diversos atores de acordo com as circunstncias. Nesse mesmo ano dirige Arena canta Bahia e Tempo de Guerra.

    1966 Primeira viagem a Buenos Aires onde dirigiu O melhor juiz, o Rei de Lope de Vega. Nessa mesma viagem dirige A Mandrgora de Maquiavel na sala

    55

  • Planeta e d cursos. Conhece sua futura companheira, Ceclia Thumim.

    1967 Estreia Arena conta Tiradentes, escrita em parceira com Guarnieri. Aquilo que nasceu com Zumbi ganha sistematizao em Tiradentes para o estabelecimento de uma nova conveno teatral. Ao jogo em cena apresenta-se um novo personagem, o Coringa, com a funo de se opor ao Protagonista. A funo do protagonista causar empatia no pblico, ele desempenhado em chave naturalista; em Coriolano, por exemplo, pode ser um homem do povo. O Coringa polivalente: todas as possibilidades teatrais mgicas e oniscientes so a ele conferidas. Nesta nova conveno, regras dramticas so propostas. A pea apre-senta dedicatria, explicao, distribuio em episdios, comentrios do coro, entrevistas e a exortao.

    Cena de Opinio com

    Joo do Vale. Participavam

    tambm Maria Bethnia (que

    substituiu Nara Leo) e Z

    Keti. Espetculo de 1965 com

    roteiro de Armando Costa,

    Augusto Boal, Oduvaldo

    Vianna Filho e Paulo Pontes.

    Direo musical Dorival

    Caymmi Filho.

    Foto de divulgao de

    Opinio, Maria Bethnia.

    56

  • 57

  • Marlia Medalha e Dina Sfat em cena de Arena Conta Zumbi, 1965.

    Em Zumbi, Boal sistematiza o Coringa: nenhuma personagem propriedade

    privada de nenhum ator.

    58

  • Piti, Gilberto Gil, Gal

    Costa, Maria Betnia, Tom

    Z e Caetano Veloso em

    cenas de Arena Canta

    Bahia, 1965. Texto e

    direo Augusto Boal.

    Direo Musical Caetano

    Veloso e Gilberto Gil,

    com superviso Carlos

    Castilho.

    59

  • Cena de Inspetor Geral, 1966, de Nicolai Gogol. Direo de Augusto Boal.

    60

  • Cenas de Arena conta Tiradentes, 1967, de Augusto Boal e Gianfrancesco

    Guarnieri. Direo de Augusto Boal.

    61

  • O PROCESSO, de Joseph Kafka, adaptao de Augusto Boal, dispositivos cnicos simples, roupas modernas, muitos personagens podendo ser representados por 15 atores. Histria de um homem, Joseph K., que acusado, processado, condenado e executado sem jamais ter sido informado sobre os motivos da acusao.

    No documento do banco de peas do Teatro de Arena,

    Boal inclui sua adaptao de O Processo, de Kafka, escrita

    aps o golpe de 64. Sua inteno era convidar para o

    elenco pessoas que estivessem sendo perseguidas sem

    saber por qu.

    62

  • 63

  • No Sistema Coringa o personagem objeto-sujeito. Age primeiramente movido pela sua funo social, e sua ao apenas modificada e informada pelas suas caractersticas psicolgicas. Joaquim Silvrio dos Reis traiu a Inconfidncia Mineira porque era latifundirio, dono de muitos escravos e temia a abolio; secundariamente, Silvrio tambm era mau carter mesmo, sujeito mau.

    A mscara passa de ator em ator, devendo apresentar-se ao espectador como um verdadeiro jogo. Aqui a mscara do campons retirante passa por todo o grupo baiano. Os atores ficam parados e a mscara do retirante percorre todos atravs do palco, enquanto cantam.

    Sistema Coringa no Comportamento do Ator,

    caderno de difuso do mtodo produzido pelo

    Teatro de Arena.

    64

  • 65

  • Equipe do Teatro de Arena em excurso internacional apresentando Arena Conta Zumbi e

    Arena Conta Bolvar (censurada no Brasil), Nova Iorque, 1969.

    66

  • DEpoIMENto JOO DAS NEVES

    Augusto Boal tinha uma grandeza que sempre me

    comoveu muito. E essa estatura no era apenas artstica. Vinha

    de uma coerncia como ser humano: ele vivia o que dizia,

    agia de acordo com o que pregava. No toa que criou o

    Sistema Coringa e bem depois o Teatro do Oprimido. No

    tomou nenhuma atitude tendo em vista ser um revolucionrio.

    Ele era um revolucionrio porque essas atitudes existiam

    intrinsicamente nele. E assim que deve ser. tambm a minha

    vida de artista, eu no conseguiria fazer de outra maneira. A

    nossa opinio, a nossa arma, se realizam pelo teatro. com ele

    que podemos combater. Foi onde o Boal deu uma contribuio

    nica: seu trabalho em busca de uma modificao necessria

    veio atravs do teatro.

    Depoimento de Joo das Neves dado no evento Pompia Conta Boal, 2012.

    67

  • 1968 - 1971

    TeaTro poLTico em

    Tempos De represso

  • tEatRo poltICo EM tEMpos DE REpREsso

    Eduardo Campos Lima

    No fim da dcada de 1960, o Teatro de Arena de So

    Paulo, dirigido por Augusto Boal, buscava novos caminhos para

    prosseguir resistindo ao regime ditatorial instalado no Brasil com

    o golpe militar. Os canais tradicionais de trnsito com o pblico

    e de organizao da cultura fechavam-se progressivamente. Do

    ponto de vista poltico, a derrota de 1964 impusera um processo

    de profunda reconsiderao das tticas e dos mtodos do Partido

    Comunista Brasileiro (PCB), que at ali norteara a atuao da

    maior parte da esquerda. As dezenas de organizaes polticas

    que surgiram nos anos que se seguiram ao golpe tinham em

    comum, apesar de importantes discordncias tticas, a mesma

    urgncia em derrubar a Ditadura Militar e construir uma nova

    sociedade o que uma parcela delas julgava possvel alcanar

    com a luta armada.

    Para Boal, o estado de coisas naquele momento impossibilitava

    a continuidade do desenvolvimento artstico do Arena nos termos

    em que o trabalho vinha sendo feito. Era preciso a um s tempo

    empregar novas formas que dessem conta da conjuntura, propor

    modelos originais de articulao dos artistas de maneira a construir

    uma ofensiva cultural contra o regime e procurar instrumentos

    eficazes para alcanar as parcelas politicamente mais avanadas da

    sociedade. Com a Primeira Feira Paulista de Opinio concebida

    pelo dramaturgo Lauro Csar Muniz e assumida pelo Arena, sob

    direo geral de Augusto Boal , ocorria a tentativa inaugural de

    cumprir essas tarefas.

    A Feira reuniu os dramaturgos de mais destaque do Pas alm

    de compositores e artistas plsticos em uma mesma encenao

    contra a ditadura. A ideia era que, congregando artistas de tanto

    70

  • relevo, a censura no teria meios de impedir a apresentao.

    Mas os textos acabaram recebendo cortes em 43 pginas, de

    um total de 70, o que inviabilizava a montagem. A proibio

    exigiu que os artistas articulassem um pronto movimento de

    resistncia, que se estendeu amplamente pela categoria teatral

    paulistana. revelia da represso, os organizadores expunham

    ao pblico, em palcos cedidos momentaneamente por elencos

    que interrompiam suas peas para isso , a perseguio poltica

    que estavam sofrendo. Paralelamente, um grupo de advogados,

    capitaneados por Luiz Izrael Febrot, trabalhava pela liberao

    da Feira na Justia o que foi possvel obter alguns dias depois.

    Fortalecia-se assim uma frente cultural de amplo espectro,

    objetivo de Boal desde o comeo.

    Do ponto de vista artstico, a Primeira Feira Paulista de

    Opinio materializava os diferentes projetos esttico-polticos

    que eram propostos para o teatro naquele momento. Mas salta

    aos olhos mais fortemente o programa da luta armada, que

    perpassa a Feira em diversos nveis e que o foco central das

    peas de Gianfrancesco Guarnieri Animlia e do prprio Boal

    A Lua Pequena e a Caminhada Perigosa. Por um lado, ento, a

    Feira cumpriu com sucesso a tarefa de formar uma frente cultural,

    ainda que muito fugaz. Por outro, apontava para um horizonte de

    luta imediata. O descompasso espelhava os dilemas da esquerda

    brasileira naquele perodo.

    No fim de 1968, o Regime Militar fecharia violentamente

    as possibilidades de vinculao ampla de artistas, setores

    avanados da classe trabalhadora e organizaes de esquerda,

    decretando o Ato Institucional n 5. Ficava ntido que no restaria

    espao algum para a resistncia no teatro institucionalmente

    estabelecido e seria necessrio ocupar novos espaos. O

    movimento j era ensaiado nos anos anteriores pelos artistas

    mais atentos e pelos estudantes que restavam como ltimo

    movimento massivo organizado. Uma das decorrncias disso

    71

  • que o teatro comearia a ser decomposto em seus vrios

    elementos, ento recombinados e ajustados a novas funes.

    O texto de Boal na Feira Paulista de Opinio, que se baseava

    no dirio boliviano de Che Guevara, indicava, ainda antes do AI-

    5, um dos novos caminhos. Tratava-se de uma pequena obra

    agitativa, com longos trechos fundamentados unicamente

    no prprio texto do revolucionrio argentino, sem mediao

    dramatrgica. precisamente esse recurso que ocupar o centro

    da encenao em Teatro Jornal Primeira Edio. Do ponto de

    vista temtico, A Lua Pequena tambm demonstra que j se

    tomava cincia, no teatro brasileiro, de que a ditadura no era

    caso isolado e se inseria em uma totalidade latino-americana.

    Em 1970, um grupo de jovens artistas que haviam participado

    de um curso de teatro no Arena resolve continuar trabalhando em

    conjunto, no teatro, e pede indicao a Boal quanto s prximas

    atividades. Boal ento sugere a eles uma ideia que havia desenvol-

    vido com Oduvaldo Vianna Filho mas jamais concretizado no

    comeo da dcada de 1960: encenar notcias de jornal.

    Os atores (Dulce Muniz, Hlio Muniz, Celso Frateschi, Edson

    Santana, Elsio Brando e Denise Del Vecchio) trabalharam

    durante alguns meses no projeto, enquanto o elenco principal

    do Arena fazia uma turn internacional, apresentando Arena

    Conta Bolvar (pea que fecha a srie Arena Conta assumindo

    de maneira mais expressiva a necessidade de uma articulao

    latino-americana da resistncia ao imperialismo estadunidense

    no continente). Ao voltar, o trabalho de teatralizao de notcias

    j estava praticamente pronto e Boal sistematizou, a partir do

    que viu, nove tcnicas de Teatro Jornal.

    Teatro Jornal Primeira Edio era a apresentao objetiva

    das tcnicas pelo Curinga, cada uma delas exemplificadas pela

    encenao de determinada notcia. Como as reportagens j

    haviam sido publicadas, esperava-se que no fosse necessrio

    submeter a pea a novo processo de censura extremamente

    72

  • rigorosa, aps o AI-5. Tal era a artimanha de seus criadores, que

    conseguiram de fato liberar as apresentaes. Com a exposio

    didtica das tcnicas, seguida por um debate entre artistas e

    espectadores, instava-se o pblico a formar ele mesmo novos

    coletivos de Teatro Jornal. Dito e feito: aps alguns meses de

    apresentaes clandestinas e oficiais, formaram-se dezenas

    e dezenas de grupos de Teatro Jornal entre secundaristas,

    universitrios, grupos da Igreja e coletivos de bairro, sempre com

    auxlio inicial dos artistas.

    O Teatro Jornal, portanto, era a um s tempo uma nova

    forma, em que denncia e estimulao crtica arranjavam-se de

    modo inteiramente novo no teatro brasileiro; uma ferramenta de

    mobilizao poltica rpida e eficaz; e uma nova prtica teatral,

    que prescindia do edifcio do teatro, do palco e do pblico

    convencional. Abriam-se com ele os caminhos para um teatro

    horizontalista e participante.

    Pouco depois, enquanto ainda se formavam numerosos

    grupos de Teatro Jornal e o elenco principal do Arena reensaiava

    Bolvar, que seria apresentada no Festival Internacional de Teatro

    Universitrio de Nancy, na Frana, Boal foi preso por agentes da

    represso, sendo torturado e encarcerado por dois meses no

    Presdio Tiradentes, em So Paulo. Aps sua libertao, seguiu

    risca a advertncia do regime e partiu para o exlio, na Argentina.

    Com o agravamento das condies polticas, o Teatro de Arena

    resistiria apenas por mais alguns meses, sendo fechado em 1972.

    Mas Boal intensificou, no exlio, os dois eixos do trabalho de

    que participara na fase anterior. Nos EUA, organizaria uma nova

    Feira de Opinio, dessa vez latino-americana, reunindo trabalhos

    de autores de diversos pases do continente na igreja de Saint

    Clements, em Nova York. L apresentou Torquemada, pea que

    concebeu durante o perodo em que estava preso no Tiradentes

    e que retrata sua prpria tortura. Em Buenos Aires, cidade em

    que residiria at 1976, dirige o grupo El Machete e dedica-se

    73

  • a encenaes em espaos teatrais mas tambm desenvolve

    experimentos no-convencionais.

    Em sua autobiografia, Hamlet e o Filho do Padeiro, ele des-

    creve o episdio em que, acompanhado de um grupo de atores,

    realiza uma cena de Teatro Invisvel em um restaurante. A cena

    tratava de uma lei argentina, propositalmente pouco divulgada,

    que concedia a cidados pauprrimos o direito de comer de gra-

    a em restaurantes, desde que no bebessem vinho ou pedissem

    sobremesa. Valendo-se da lei, um ator come no restaurante e, ao

    sair, anuncia que no pretende pagar. Instala-se a confuso, diri-

    gida por outros atores presentes no estabelecimento.

    Essa foi a primeira entre tantas experincias que ele faria na

    Argentina e em outros pases latino-americanos. Em parte, Boal

    recupera os avanos do Centro Popular de Cultura, no perodo

    pr-golpe, e do prprio Arena. Alm disso, cria novas funes

    para formas tradicionalmente empregadas por militantes da

    esquerda revolucionria no teatro, desde o perodo da Revoluo

    Russa. Seus experimentos com Teatro Invisvel, Teatro Frum,

    Teatro Jornal e outras tantas metodologias se intensificariam a

    partir da, para depois serem reunidas em seu livro Teatro do

    Oprimido e Outras Poticas Polticas.

    CRoNologIa

    1968 Realizao da Primeira Feira Paulista de Opinio no Teatro Ruth Escobar,

    que estreou com mandado judicial. A proibio da Feira gerou um

    movimento de protesto dos artistas contra a censura praticada pelo

    governo militar. Reuniu textos de seis autores: O lder de Lauro Csar

    Muniz, O Sr. Doutor, de Brulio Pedrosa; Animlia, de Gianfrancesco

    Guarnieri; A receita, de Jorge Andrade; Verde que te quero verde, de

    Plinio Marcos; e A Lua pequena e a caminhada perigosa, de Augusto

    Boal. No mesmo ano Boal traduziu e dirigiu Mac Bird, de Barbara Garson.

    74

  • 1969 Boal escreve Bolivar, o lavrador do mar (Arena conta Bolivar). Aps

    a assinatura do Ato Institucional n 5, em 13 de dezembro de 1968,

    o Teatro do Arena excursionou pelos Estados Unidos, Mxico, Pere

    e Argentina, reapresentando Arena Conta Zumbi. O grupo encenou

    tambm Arena conta Bolivar, texto e direo de Augusto Boal,

    censurada no Brasil

    1970 Em setembro, de retorno ao Brasil, Augusto Boal montou o Teatro

    Jornal - 1 edio, espetculo que se caracterizava pela improvisao

    das notcias pelo elenco, com base na leitura dos principais jornais da

    poca. Nesse mesmo ano, Boal dirigiu A Resistivel Ascenso de Arturo

    Ui, texto de Bertolt Brecht, traduzido por Luiz de Lima e Hlio Bloch.

    1971 Em fevereiro, Boal foi preso e torturado. Exilou-se em Buenos Aires,

    onde residiu por cinco anos.

    Foto de divulgao da Primeira Feira Paulista de Opinio, 1968.

    75

  • 76

  • Ceclia Thumim em Primeira Feira Paulista de Opinio, 1968.

    Arena Conta Bolvar, 1970, texto e direo de Augusto Boal, s foi apresentada fora do Brasil.

    Nesta cena de ensaio vemos: Lima Duarte, Ceclia Thumim, Zez Mota, Fernando Peixoto,

    Isabel Ribeiro e Ben Silva.

    77

  • Bibi Vogel, Antonio Pedro e Gianfrancesco Guarnieri em cena de A Resistvel Ascenso

    de Arturo Ui, 1970, de Bertolt Brecht. Direo de Augusto Boal.

    78

  • Cena de A Resistvel Ascenso de Arturo Ui, 1970.

    79

  • Uma das tcnicas do Teatro Jornal

    AO PARALELA: a notcia lida por um ator ou emitida por um gravador enquanto sobre a cena se desenvolvem as aes que as explicam ou as criticam.

    Texto de difuso das tcnicas de Teatro Jornal na Frana,

    anos 70.

    80

  • 81

  • imagem TEATRO DEGOLADO

    Capa do programa da excurso do Arena pela Amrica Latina com Zumbi e

    Bolvar, 1969.

    82

  • DEpoIMENto CELSO FRATESCHI

    Teatro Jornal Primeira Edio

    No tnhamos noo da potncia que Boal extrairia

    daquela experincia absolutamente despretensiosa, realizada

    com aquele pequeno grupo de jovens atores, naquele espao

    minsculo na sobreloja do Teatro de Arena em So Paulo.

    Quando Boal citava o Teatro-Jornal como o incio e base do

    Teatro do Oprimido, sempre me enchia de orgulho e espanto.

    Escrever sobre esse trabalho me obriga a refletir sobre esse

    incio e talvez concluir o carter coletivo do fazer teatral e a

    eficcia artstica e poltica da arte teatral a partir daquilo que

    aparenta ser exatamente a sua fragilidade. O falar presencial

    para poucos de cada vez. Eu, Denise Del Vechio e Edson

    Santana, estvamos terminando o curso de teatro realizado

    pela diretora Heleni Guariba e pela atriz Ceclia Thumim. Tinha

    sido um ano muito intenso. A vida prematuramente deixara de

    ser uma brincadeira. Heleni iria ser presa e assassinada pela

    ditadura, (apesar de ser considerada desaparecida), Boal seria

    preso e exilado, eu mesmo j tinha experimentado a minha

    primeira priso, apesar de estar ainda distante dos meus

    dezoito anos. A violncia avanava com AI-5. Toda liderana

    estudantil havia sido presa no famoso congresso de Ibina, os

    tempos se turvavam para aqueles que no se identificavam

    com o estado de exceo que se implantara no pas. Eu fui

    enquadrado no decreto 477 ao ser expulso da minha querida

    escola na Vila Anastcio e impedido de continuar os meus

    estudos em escola pblica. Queramos continuar fazendo teatro

    no Arena. Estvamos preocupados com a orfandade que

    iramos passar a viver. Num dos encontros com Boal, ele tinha

    nos falado de uma experincia que ele queria ter feito antes

    83

  • da instituio da censura prvia: um jornal teatralizado. A idia

    nos pareceu instigante como exerccio de ator e nos permitiria

    continuar aplicando alguns ensinamentos da Ceclia e da Heleni.

    A construo de nossas cenas, portanto tinha que lidar com

    duas dificuldades: primeira a de transformar o fato jornalstico

    em matria teatral e segunda a de contrapor a realidade

    retratada com o retrato da realidade editado pela censura da

    ditadura. Nesse sentido priorizvamos matrias onde a forma

    com que se dava a sua publicao, j buscava esconder o

    estado de terror implantado no pas pelos militares. Assim, ao

    revelar um contedo mais prximo da realidade, revelvamos

    tambm a manipulao daquele contedo pela mdia.

    Criamos vrias tcnicas de teatralizao de notcias de jornal.

    Percebemos que a simples leitura de uma notcia em um

    espao inslito para o tema poderia possuir uma teatralidade,

    assim a leitura sobre a fome e a seca do nordeste num restaurante

    granfino ou mesmo no restaurante universitrio era eficiente

    e comunicava. Percebemos que se lidssemos com a edio

    das matrias cruzando notcias aparentemente contraditrias

    poderamos revelar as mentiras e o cinismo da grande imprensa

    censurada. Criamos muitas formas de transformar jornal em

    teatro e comeamos a apresentar para amigos e comeou a vir

    gente. Muita gente! Cada vez vinha mais gente. Isso comeou a

    chamar a ateno do Boal e do Guarnieri. Muitos dos que vinham

    nos assistir pediam nossa orientao para desenvolverem seus

    prprios grupos de teatro jornal.

    Boal veio conversar com a gente nos apontando uma

    possibilidade de trabalhar a organizao das pessoas em

    torno do grupo de teatro. Se transformssemos o jogo teatral

    num jogo de salo estaramos, de alguma maneira, driblando

    a censura ou respondendo censura. Esse foi o esprito com

    que Boal organizou o Teatro Jornal Primeira Edio, como uma

    aula de como jogar teatro com a mesma simplicidade que se

    84

  • joga futebol. Todo mundo joga futebol e conhece as regras, por

    isso quando vai assistir um jogo no estdio consegue assistir

    com qualidade um espetculo de futebol. Por que o teatro

    no popular? Porque as regras do teatro so muito restritas.

    Ento Boal props que a gente popularizasse as regras do jogo

    teatral. E o que a gente fez? Comeamos a formar grupos de

    estudantes. Em pouqussimo tempo tnhamos 40 grupos que

    eram nosso pblico fixo e que, de alguma maneira, faziam o

    Teatro Jornal em vrios lugares da cidade. No mais s nas

    universidades, mas tambm nos bairros. Grupos que acabavam

    se multiplicando, a ponto de voc perder a conta. A idia do

    Boal vingou. Por isso Boal considera o Teatro Jornal como o

    incio do Teatro do Oprimido, onde o teatro deixa a sala de

    espetculo e ganha outros espaos. Onde o pblico ganha a

    cena e a voz, onde o povo realiza o seu prprio teatro a partir

    de seu prprio ponto de vista.

    Edio do depoimento Teatro Jornal Primeira edio, publicado em

    Vintem, nmero 7, Companhia do Lato, 2009.

    85

  • 1972 - 1976

    exLio na amrica LaTina

  • ExlIo Na aMRICa latINa

    Patrcia Freitas Santos

    Nos cinco anos em que residiu em Buenos Aires, boa parte

    deles na calle Gurruchaga, Augusto Boal buscou dar continui-

    dade ao trabalho iniciado no Teatro de Arena, aliando uma pre-

    ocupao social e tica a pesquisas de formas correspondentes

    matria histrica. Mas as condies histricas e produtivas

    eram bem diferentes.

    Desde que deixou compulsoriamente o Brasil em 1971,

    logo aps um brutal sequestro seguido de priso e torturas, o

    teatrlogo iniciou uma longa jornada noite adentro por diversos

    pases da Amrica Latina. Trabalhou incansavelmente no sentido

    de no abandonar uma atuao teatral e poltica mesmo em

    face do contexto de dificuldades em que se encontrava no exlio.

    Boal torna-se assim sobretudo um maestro e um

    sistematizador da teorizao produzidas nos anos anteriores, no

    calor da hora do trabalho do Arena e das aulas na Escola de

    Arte Dramtica. No ser um maestro no sentido hierrquico

    do termo, mas pela simples e urgente tarefa de dialogar com

    os mais variados pblicos da poca, ainda que deparado com

    significativas barreiras geogrficas, ideolgicas e culturais. Suas

    intervenes em congressos, aulas pblicas, oficinas de teatro,

    cursos e debates em pases como Mxico, Peru, Venezuela, Cuba

    e Colmbia permitiram o intercmbio de propostas de atuao

    do artista na sociedade necessrio para a criao dos 9 livros

    que Boal escreve durante os anos de Buenos Aires.

    Tais escritos pretendiam lanar luz ao futuro por meio

    da reflexo e da autocrtica sobre os experimentos teatrais

    realizados at ento. Sua pungente e conhecida defesa do

    carter tautolgico da expresso teatro poltico, no to

    88

  • evidente naquele perodo, ilumina o percurso de estudo do

    autor ao longo de sua obra central, Teatro do Oprimido e Outras

    Poticas Polticas finalizada em 1973.

    Nesse livro central, Boal analisa padres da dramaturgia

    ocidental desde Aristteles at as formas de escrita realizadas

    nos anos 60. Procura debater padres da efetiva ligao possvel

    entre forma artstica e ideologia. Ao defender e legitimar o

    chamado teatro poltico ou instrumental, Boal no deixava

    de elucidar, como bom pensador dialtico, a importncia da

    dimenso temtica da forma: Mas, o teatro pode ser uma

    arma de liberao. Para isso necessrio criar formas teatrais

    correspondentes. necessrio transformar.

    A transformao dos meios de criao teatral, entretanto,

    no seria uma tarefa fcil. Uma tempestade se anunciava sobre

    o Cone Sul. A suposta branda ditadura de Lanusse (expresso

    um tanto paradoxal e bastante perversa, pois foi este mesmo

    general quem sistematizou a tortura no pas) no ocultado a

    intensa represso s manifestaes populares que ganhavam

    flego. O peronismo, para alm dos sindicatos, mobilizava

    majoritariamente a juventude argentina. Acreditava-se que uma

    via democrtica em torno de Pern poderia potencializar um

    processo de transio socialista.

    Naqueles dias, Boal lanava mo da ironia de um brasileiro

    que assistiu s runas de seus projetos polticos. Escrevia novas

    verses de peas j esboadas no Brasil. em Buenos Aires que

    Boal que finaliza e monta pela primeira vez O Grande Acordo

    Internacional do Tio Patinhas, obra que pretendia dialogar com

    o famigerado Gran Acuerdo de los Argentinos proposto por

    Lanusse. Utilizava basicamente um texto escrito e censurado no

    Brasil em 68. Tambm ao dirigir o grupo El Machete, do qual

    faziam parte Mauricio Kartun, Salo Pasik, Daniel Villarreal, Ruth

    Sonabend, Adolfo Reisin e Brbara Ramrez (desaparecida aps

    o golpe em 76), que Boal monta uma adaptao de Revoluo na

    89

  • Amrica do Sul com um ttulo no pouco curioso: Ay, Ay, no hay

    Cristo que aguante, no incio de 1973 na j extinta Sala Planeta.

    Boal procurava um trabalho teatral que aliasse a experincia

    histrica da fase anterior brasileira matria local de cada um

    dos pases pelos quais percorreu. Mas reconhecia a dificuldade:

    Eu no era argentino: estava em trnsito. Que peas escolher

    e para quem? Procurava o meu povo: no qualquer povo...Que

    poderia eu dizer aos argentinos, no sendo um deles?. Exilado,

    apartado de seus colegas, obrigado a encontrar meios de

    sobrevivncia, trava uma busca por sua prpria identidade: No

    me bastava espelho nem memria: precisava me ver em algum

    que me roubasse o nome, o Augusto Boal que eu pensava ser,

    que trazia colado ao rosto, s mos, ao peito. J no sabia quem

    eu era ou tinha sido.

    Era urgente adaptar-se s novas circunstncias. Destaca-

    se o carter autocrtico da maioria das produes artsticas e

    tericas de Boal naquele momento. Os erros e descaminhos

    da esquerda brasileira, principalmente da parcela vinculada

    ao Partido Comunista, e, mais ainda, a avaliao do trabalho

    cultural engajado (espcie de metonmia da revoluo esperada)

    potencializaram um desgaste da prpria categoria autoral.

    O artista, anteriormente privilegiado por sua posio central

    como porta-voz dos interesses do povo subjugado, verifica seu

    desalento ao perceber que sua funo torna-se similar ao apoio

    do mosquito ao elefante.

    A transformao social, portanto, deveria ser agora

    planejada cuidadosamente. E protagonizada pelas classes

    desfavorecidas. Ao intelectual e artista cabia conceder auxlio

    atravs do fornecimento de instrumentos necessrios para a

    vitria final do socialismo. inserido nesse zeitgeist que Boal

    escreve um grande nmero de obras em que relata histrias

    a ele contadas ao longo de suas viagens pela Amrica Latina.

    Utilizado como categoria de legitimao de um potente carter

    90

  • poltico, o relato popular surge em obras como Torquemada,

    Milagre no Brasil e Crnicas de Nuestra Amrica e, ainda que

    implicitamente, em As Mulheres de Atenas.

    Junta-se a isso a intensa insegurana e estado de alerta da

    esquerda em Buenos Aires que assistia a assassinatos, atentados

    e sequestros pela ala da extrema direita (Triple A), cujo caso

    paradigmtico o incndio ao Teatro Argentino na ocasio de

    estreia do espetculo Jesus Cristo Superstar em maro de 73.

    Faz-se necessrio, assim, a criao de uma nova teoria

    e prtica teatrais. Ele experimenta tcnicas como a do teatro

    invisvel, com o grupo El Machete. Retoma eo teatro-jornal com

    o El Equipo. A partir da Boal iniciar sua clebre sistematizao

    de tcnicas para a realizao do arsenal do Teatro do Oprimido.

    Por meio de obras como Exerccios para Atores e No-

    Atores, Tcnicas Latino-Americanas de Teatro Popular, Teatro do

    Oprimido e Outras Poticas Polticas, Boal conhecer grandes

    pblicos e grupos de teatro por todo continente. Ariel Dorfman,

    Roberto Fernndez Retamar, Miguel Torres, Atahualpa del

    Cioppo, Norman Briski, Oscar Castro, Liber Forti, entre outros so

    alguns que entraram em contato e dialogaram com o trabalho

    de Boal na poca. No h sombra de dvida de que a teoria foi

    impulsionada por uma ambio de multiplicar a prtica de teatro

    engajado, levando em conta seu poder de modificao coletiva do

    panorama poltico da Amrica Latina. O novo caminho conjugava

    o ceticismo gerado pela derrota da esquerda com a busca de

    participao nas insurgncias populares na Amrica Latina. Sua

    teoria organizada no perodo do exlio a partir do passado

    teatral no Arena buscou resolver o que na prtica estava ainda

    fora de alcance. No se contentou com a postura contemplativa

    do melanclico, muito menos com a introspeco e o fatalismo. A

    lucidez de seus escritos est no projeto de converter a experincia

    traumtica dos tempos sombrios em fora produtiva.

    91

  • CRoNologIa

    1972 Apresentao de Torquemada, sob sua direo, no New York University. Nesse mesmo ano, a pea foi encenada no Teatro La Mama, em Bogot, e no Teatro del Centro, em Buenos Aires. Trabalho em Buenos Aires com o grupo El Machete. Primeira sistematizao das Categorias de Teatro Popular, publicadas pela Editora CEPE, Buenos Aires.

    1973 Participao no Plano Alfin (Programa de Alfabetizao Integral) nas cidades de Lima e Chaclacayo.

    1974 Primeira edio no Brasil de Teatro do Oprimido e outras poticas polticas. Sistematizao da estrutura dialtica da interpretao.

    1975 Publicao de Tcnicas Latino americanas de teatro popular: uma revoluo copernicana ao contrrio.

    1976 Escreve as adaptaes de A tempestade William Shakespeare, com foco na figura do Caliban, como smbolo de resistncia do colonizados; e Mulheres de Atenas, uma adaptao de Lisstrata de Aristfanes, com msica de Chico Buarque. Muda-se para Lisboa, onde dirige o grupo recm-criado A Barraca.

    Cena de Torquemada, pea que

    Boal escreveu quando foi preso.

    Representada em Buenos Aires em

    1971-72.

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  • Cena de Torquemada, representada pelos alunos da New York University em 1971-72.

    93

  • Infelizmente, eu j assisti a muitas primaveras: primeiro foi a de Goulart, pouco antes de 64. Tnhamos a certeza de que as transformaes sociais j feitas eram absolutamente irreversveis. E foi aquele desastre que perdura at hoje. A ltima, foi a de Cmpora, aqui na Argentina, em 73. Nunca vi um povo to feliz (a no ser nas fotos que nos chegavam de Portugal). Tambm pouca vezes tenho visto um povo to revoltado, como o da Argentina hoje. Vi tambm a primavera chilena de Allente e hoje sinto nuseas quando, nessas viagens que fao, sou obrigado a fazer escala por alguns minutos no aeroporto de Santiago. Em todos os esses desastres existiu sempre uma constante: a desunio da esquerda.

    augusto Boal

    Carta Carlos Porto. Buenos Aires, 23.09.1973.

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  • 95

  • Trecho de carta de Boal sua me. Santiago, Chile, 25 janeiro de 1973.

    96

  • DEpoIMENto MAURCIO KARTUN

    Trabalhvamos sob o marco saudvel das posies claras

    Minha relao com Boal tem trs etapas: como artista,

    como professor e a terceira num nvel mais pessoal. Quando

    conheci Boal eu estava inquieto por muitas razes. Eu queria

    fazer um teatro que tivesse que ver com o que agitava minha

    gerao, uma gerao muito politizada, mas na qual o teatral

    no encontrava modelo. Porque o modelo sobre o qual

    trabalhava a esquerda naquele momento era de uma solenidade

    insuportvel. Em 1970 junto com um amigo trabalhei em

    Exposhow, um evento sobre o mundo do entretenimento. Uma

    noite descobrimos que faziam apresentaes de obras teatrais

    e que tinha um espetculo brasileiro, Arena Conta Zumbi. E

    aquilo literalmente ns arrebatou, samos dizendo: isto, isto

    que teatro politico, cantam, danam, riem, se divertem, o

    que transmitem tem alegria, tem verdade e latino-americano.

    O impulso foi to poderoso que duas semanas mais tarde dei

    por mim montando um elenco para montar um espetculo la

    Boal. O segundo contato foi alguns anos depois. Augusto tinha

    chegado em Buenos Aires em seu exilio e em 1972 ofereceu um

    curso de atuao. Preocupava-me a ideia que fosse de atuao

    porque como todo escritor eu morria de vergonha do palco.

    Uma tarde fui me inscrever de ouvinte. As primeiras classes

    foram de exerccios grupais, o que dava um certo anonimato.

    Mas depois Augusto props um exerccio individual e naquele

    momento estive a ponto de ir embora, porque a ideia de subir

    num palco me dava pnico. Mas a entendi uma coisa que

    logo na vida me deu alguns bons resultados: frente ao medo o

    melhor escapar para frente. Se eu fugisse ia ficar a vida inteira

    com uma sensao de vergonha, ento levantei a mo, me

    97

  • propus para o primeiro exerccio e assim o exorcizei. Augusto

    produziu o milagre e l estava eu atuando e entendendo enfim

    o que propunha. O que Boal me ensinou sem querer foi que a

    tcnica a gente entende no corpo, e no na cabea. O terceiro

    momento da aproximao foi trabalhar com ele. Ele montou

    um trabalho em Buenos Aires que se chamou Ay, Ay, ay, no

    hay Cristo que aguante no hay. A gente estreou em 1973, logo

    antes daquelas eleies em que ganhou Cmpora. As pessoas

    nas ruas fazendo uma campanha com uma fora de agitao

    enorme e com a esperana do iminente retorno a democracia.

    Augusto paralelamente comeou com alguns de ns a

    experimentar suas primeiras experincias de teatro na rua, nas

    filas, nos trens. Foi o momento do grupo Machete.

    Boal sempre manifestou aqui na Argentina um marxismo

    genrico, no podia se comprometer numa realidade politica e

    partidria cotidiana que no lhe correspondia pela sua prpria

    experincia histrica. Alm do mais, ele tinha sua opinio

    pessoal em relao ao peronismo as vezes critica e as

    vezes apoiando certas derivaes prxima a esquerda latino-

    americana , ne frente do grupo com o qual trabalhvamos

    abria o jogo. A gente agradecia sua posio genrica j que

    ele sabia separar sua prpria analise do que o grupo, enquanto

    teatro politico nacional e comprometido com o dia a dia,

    sentia que tinha que manifestar. Com ele se trabalhava sob o

    marco saudvel das posies claras, este lugar que tem tido

    tradicionalmente a esquerda como espao de debate e de

    brigas. E ramos gratos por isso.

    Com Boal apareceram pequenos grupos que trabalhavam

    tomando uma esttica desestruturante, que era sua marca

    registrada, interpeladora, pondo em questo absolutamente

    tudo. Deixou marcas indelveis na esttica e nos corpos dos

    criadores que tentvamos ento o teatro desde a ideologia.

    Sabamos que tinha uma semente, claro, o que a gente no

    98

  • podia imaginar era o tamanho da arvore. Eram tcnicas que

    Augusto propunha e nas quais a gente acreditava, mas que

    ainda no estavam institudas. ramos um grupo de 5 ou 6

    que estava se formando com suas propostas, continuamente

    provocados por ele para fazer outras coisas, procurando uma

    esttica para aquele Homem Novo. Imaginando uma arte

    latino-americana pensada, at que enfim, desde uma hiptese

    da esquerda. A gente vivia aquilo, adorava, mas no estava

    institucionalizado, era algo sustentado pelo carisma de algum

    que investigava simplesmente em como aproveitar o contexto

    de teatralidade criado pela prpria realidade.

    Depoimento recolhido por Cora Fairstein. Buenos Aires, 2012.

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  • 1977 - 1985

    TeaTro Do oprimiDo na europa

  • tEatRo Do opRIMIDo Na EuRopa

    Clara de Andrade

    Foi no ano de 1976 que Augusto Boal, exilado, adentrou pela

    primeira vez a terra natal de seus pais: Portugal. O dramaturgo

    partiu para Lisboa levando a esperana de poder transmitir as

    formas de teatro que criou e testemunhou durante os anos em

    que viveu na Amrica Latina. Enquanto o fascismo tomava conta

    do continente latino-americano, Portugal havia feito a Revoluo

    dos Cravos em abril de 1974 e deposto o governo autoritrio de

    Salazar. No entanto, passados apenas dois anos, a esperana

    revolucionria esvanecia, e a esquerda j no era mais to bem-

    vinda no pas. O teatrlogo diz ter encontrado os poticos

    cravos j secos e murchos, exalando apenas perfumes tristes e

    as memrias de uma revoluo.

    Neste contexto ps-Revoluo dos Cravos, Boal foi

    convidado a trabalhar como diretor artstico do grupo A Barraca,

    para o qual dirigiu: Barraca conta Tiradentes; Ao Quisto Chegou,

    uma colagem de autores portugueses; e Z do Telhado, de Hlder

    Costa e msica de Jos Afonso, autor da cano Grndola, vila

    morena, cone da Revoluo dos Cravos.

    Ao mesmo tempo, distante do Brasil j h cinco anos,

    recebia notcias de que a situao brasileira piorava cada vez

    mais. Foi em Lisboa, almoando em sua casa com Paulo