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Departamento de Artes e Design AS VANGUARDAS EUROPEIAS DO SÉCULO 20 E AS INFLUÊNCIAS DA SEMANA DE ARTE MODERNA NA ILUSTRAÇÃO DE LIVROS DE LITERATURA INFANTIL BRASILEIROS. Aluno: Roberta Calixto Orientador: Luiz Antônio Coelho Introdução As vanguardas artísticas europeias representam importante marco na história da arte. Sua principal característica foi a de buscar novas formas expressivas ou até romper com que se vinha fazendo até então nas artes. Sua grande aspiração ao novo, ao moderno, ao diferente fez dessas vanguardas uma parte grandiosa da história da arte, além de inspiradora para os outros países e determinante para mudar a forma de pensar e agir da sociedade a partir de então. A influência das vanguardas europeias chega ao Brasil no início do século XX e tem seu ápice na Semana de Arte Moderna de 1922. Vários artistas e intelectuais brasileiros, inebriados pelas tendências vanguardistas e os novos modos de se pensar a arte, começaram o desafio de transpor tais movimentos para as artes visuais do Brasil, e o fizeram de uma forma um pouco diferente. Começava uma busca por uma nova identidade brasileira. Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral foram os artistas mais expressivos desta fase e suas formas de representar o Brasil se consagraram e atravessaram gerações. Nos dias atuais podemos encontrar muito dos conceitos e das características de suas representações em livros infantis, sobretudo, naqueles que fazem associação com o tema “brasilidade”. Ao perceber essa semelhança de entre os livros e as pinturas, é possível traçar um paralelo entre temas, formas, cores e proporções, explicitando a importância das vanguardas para o Brasil, bem como, mostrando como uma forma de arte pode influenciar diretamente o olhar das pessoas sobre um povo. Objetivo Fazer uma análise da ilustração dos livros ilustrados infantis contemporâneos, comparando-os com as vanguardas artísticas e os novos conceitos trazidos por ela. Elaboração de um suporte visual para ilustrar essa pesquisa que será apresentada na conferência Children's Literature and European Avant-Garde, a realizar-se em Setembro na Suécia. Metodologia A primeira fase da metodologia consistiu no levantamento de textos teóricos sobre a estética vanguardista na Europa e no Brasil a partir das trocas efetuadas entre intelectuais e artistas europeus e brasileiros na primeira metade do século XX. A segunda fase compreendeu levantamento iconográfico tanto dos livros ilustrados quanto dos quadros dos mencionados artistas. As fontes consultadas fazem parte do acervo bibliográfico e mídia digital do Sítio da Leitura (mediateca) da Cátedra UNESCO de Leitura. A terceira fase compreendeu a análise

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AS VANGUARDAS EUROPEIAS DO SÉCULO 20 E AS INFLUÊNCIAS DA SEMANA DE ARTE MODERNA NA ILUSTRAÇÃO DE LIVROS DE

LITERATURA INFANTIL BRASILEIROS.

Aluno: Roberta Calixto Orientador: Luiz Antônio Coelho

Introdução As vanguardas artísticas europeias representam importante marco na história da arte. Sua principal característica foi a de buscar novas formas expressivas ou até romper com que se vinha fazendo até então nas artes. Sua grande aspiração ao novo, ao moderno, ao diferente fez dessas vanguardas uma parte grandiosa da história da arte, além de inspiradora para os outros países e determinante para mudar a forma de pensar e agir da sociedade a partir de então. A influência das vanguardas europeias chega ao Brasil no início do século XX e tem seu ápice na Semana de Arte Moderna de 1922. Vários artistas e intelectuais brasileiros, inebriados pelas tendências vanguardistas e os novos modos de se pensar a arte, começaram o desafio de transpor tais movimentos para as artes visuais do Brasil, e o fizeram de uma forma um pouco diferente. Começava uma busca por uma nova identidade brasileira. Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral foram os artistas mais expressivos desta fase e suas formas de representar o Brasil se consagraram e atravessaram gerações. Nos dias atuais podemos encontrar muito dos conceitos e das características de suas representações em livros infantis, sobretudo, naqueles que fazem associação com o tema “brasilidade”. Ao perceber essa semelhança de entre os livros e as pinturas, é possível traçar um paralelo entre temas, formas, cores e proporções, explicitando a importância das vanguardas para o Brasil, bem como, mostrando como uma forma de arte pode influenciar diretamente o olhar das pessoas sobre um povo.

Objetivo Fazer uma análise da ilustração dos livros ilustrados infantis contemporâneos, comparando-os com as vanguardas artísticas e os novos conceitos trazidos por ela. Elaboração de um suporte visual para ilustrar essa pesquisa que será apresentada na conferência Children's

Literature and European Avant-Garde, a realizar-se em Setembro na Suécia.

Metodologia A primeira fase da metodologia consistiu no levantamento de textos teóricos sobre a estética vanguardista na Europa e no Brasil a partir das trocas efetuadas entre intelectuais e artistas europeus e brasileiros na primeira metade do século XX. A segunda fase compreendeu levantamento iconográfico tanto dos livros ilustrados quanto dos quadros dos mencionados artistas. As fontes consultadas fazem parte do acervo bibliográfico e mídia digital do Sítio da

Leitura (mediateca) da Cátedra UNESCO de Leitura. A terceira fase compreendeu a análise

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formal comparativa entre essas imagens levantadas a fim de buscar afinidades entre elas. As semelhanças estudadas se dão em aspectos como tema, cor, forma, traço, enquadramento, relação figura e fundo, entre outros. As atividades acima resultaram em trabalho monográfico para o coordenador do projeto e orientador, que o apresentará, na condição de palestrante convidado, no Simpósio Children's Literature and European Avant-Garde, em setembro próximo, na Suécia. A próxima fase da pesquisa representará a publicação de obra sobre este trabalho pela Cátedra UNESCO de Leitura, somando este resultado a colaborações de pesquisas individuais de alunos de pós e docentes do Departamento de Artes & Design e de Letras.

Vanguardas europeias Vanguarda, no sentido literal da palavra, é o termo militar para uma seleta tropa de soldados que vai à frente de todas as demais, abrindo caminho. É por causa dessa desta tão importante função dentro do militarismo, que os movimentos que aconteceram nas primeiras décadas do século XX receberam o nome de ‘vanguardas artísticas’.

A expressão surgiu em 1860 na França, onde como forma de protesto, alguns artistas considerados ‘não- acadêmicos’ criaram um evento paralelo ao Salon de Paris, o Salon des refusés (Salão dos excluídos). A partir deste marco, o termo estendeu-se também aos movimentos formados posteriormente na Europa e que representaram uma nova forma de arte, totalmente voltada para a individualidade do artista, sendo esta a expressão máxima de sua subjetividade.

A experimentação estética também é uma característica muito forte dentro das vanguardas, que buscavam, acima de tudo, romper com costumes existentes na sociedade até aquele momento. Dentre os movimentos vanguardistas, destaca-se o futurismo, já que foi este movimento em especial que influenciou diretamente o discurso modernista brasileiro.

Contexto histórico O início do século XX foi marcado por uma reforma na sociedade como um todo. A Primeira Guerra Mundial destruiu a Europa e fez com que este continente, considerado o berço da civilização tivesse que repensar seu modo de viver.

O velho continente, destroçado, não suportava mais o estilo de vida anterior. A escassez começou a participar da vida de todos e se fazia necessária uma reconstrução dos países que haviam vindo abaixo após os conflitos. Mais do que isso, a sociedade européia, que antes mesmo da Guerra já alimentava um espírito de renovação, agora percebia quão importante era essa mudança. Nesse sentido a Revolução industrial, já bem forte na Europa, tornou-se ainda mais significativa e relevante. Com as novas máquinas era mais fácil e rápido produzir em quantidade os produtos para suprir à grande população que perdeu tudo na Guerra, ainda sim a destruição foi tão grande que houve grande demora para que todos pudessem se recompor.

A Belle Epoque, que caiu junto com a Guerra já não fazia mais sentido dentro daquele cenário caótico, e as formas de arte que se apresentavam associavam a ela, da mesma maneira

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perderam o significado. O momento era de introspecção, de olhar para si, de recolher os próprios cacos.

Outro marco importante, desta vez no campo tecnológico, é o advento da fotografia. Esta invenção causou um grande alvoroço, uma vez que sua forma de representar se aproximava muito mais do instante real e por sua vez da realidade que a pintura, forma mais comum de se fazê-lo até então.

Os pintores se sentiram ameaçados e pressionados a responder a pergunta: “o que difere a fotografia da pintura?”. Nesse momento foi que os valores do subjetivismo, que já vinha ganhando força desde o iluminismo, quando fora criado, passou a transbordar no cenário das artes.

Além de assumir o espaço bidimensional da tela, não mais se obrigando a retratar cenas realistas, posto que esta necessidade começasse a ser suprida pela fotografia, o olhar do artista passou a ser valorizado. A forma de entender o mundo de cada artista se traduzia em cores, formas, traços e temas que não precisavam ter nenhum compromisso com o real. A arte assumiu uma nova condição, onde o artista ganha o papel central. E com este papel, diante de todas circunstâncias e acontecimentos da Europa, ele começa a desenvolver um novo olhar sobre sociedade como um todo, os modos e as condições de vida.

As vanguardas européias surgiram e se fortaleceram nesse ambiente, um tanto quanto caótico, e talvez por isso, sua característica mais forte e comum a todas seja a crítica e a negação veemente de tudo que se refira ao passado, consequentemente fazendo uma exaltação exacerbada de tudo que se apresentava como o novo.

O Brasil por sua vez, ainda vive fortemente sua condição de país colonizado. Completamente dependente dos países europeus, dos quais o modo de viver era exaltado e copiado pela elite do país. O governo do país, que ainda vivia o regime café-com-leite, era comandado pelo então presidente Pereira Passos, que tinha a Europa, sobretudo a França como inspiradora, chegando a transformar a cidade do Rio de Janeiro, na época capital da cidade, em uma réplica de Paris.

Considerando que toda transformação social se dá de forma lenta e gradual, e se até mesmo a sociedade europeia ainda não havia assimilado tantas novidades que aconteciam em seu próprio território, aqui no Brasil ainda se vivia fortemente o art noveau, e as elites sonhavam com um estilo de vida que a essa altura já estava em decadência na no Velho Continente.

No Brasil, o governo do presidente Epitácio Pessoa começava a ser combatido pela própria elite cafeeira, posto que esse se recusasse a continuar apoiando os grandes fazendeiros, preferindo alimentar a indústria que começava a se formar no país. O número de revoltas que surgiram nessa época foi enorme e culminaria na revolução de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder.

E foi com essas grandes aspirações “afrancesadas” e que os grandes “coronéis do café”, mandavam seus filhos à Europa, esperando que retornassem mais “civilizados” com o

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requinte e a sofisticação que eram associados a tudo que vinha dos colonizadores. Mas suas expectativas em relação a essas viagens seriam frustradas pelas novidades europeias.

Modernismo no Brasil

“O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono consciente de princípios e de técnicas, foi uma revolta contra a inteligência nacional”. (Mário de Andrade, in: O movimento modernista, O Estado de São Paulo, 1942). Essa citação de Mário de Andrade resume bem o que o modernismo representou para o Brasil do início do século XX.

O movimento modernista no Brasil teve seu pontapé inicial em 1912, quando Oswald de Andrade volta de uma viagem a Europa, onde passou por países como França, Itália e Alemanha. Ele volta trazendo consigo as novidades do velho continente, a queda da Belle Époque e o novo discurso vanguardista que tomava conta do cenário intelectual e artístico europeu. Dentre todos os artistas com quem conversou, Oswald ficou particularmente contagiado pelo discurso de Felippo Marinetti, o idealizador do futurismo.

Nessa época vivíamos em um país dividido, com estilos de vida absolutamente destoantes. Se por um lado víamos as regiões norte, nordeste e centro-oeste pobres e abandonadas, que sobreviviam basicamente do comércio de commodities, víamos também as regiões sul e sudeste que iniciavam sua industrialização a todo vapor, sedes da intelectualidade e da aristocracia, onde se concentravam não só a maior parte do dinheiro, mas também o poder de governar o país que era alternado entre São Paulo e Minas Gerais.

E, foi precisamente no sudeste, mais especificamente no estado de São Paulo, que o modernismo começou a ganhar contornos e nuances. Os contornos e nuances de Anita Malfatti.

As duas exposições de Anita, em 1914 e 1917, respectivamente, foram ainda que não intencionalmente, a sintetização do discurso já inflamado de Oswald de Andrade. Suas formas, cores e texturas que pretendiam, sobretudo, questionar os cânones estéticos que legitimavam a obra e arte, escandalizaram a sociedade tradicionalista paulistana, acostumada ao academismo da arte romântica e parnasiana, vigentes até então

.

Fig. 1- Anita Malfatti, “A boba”, óleo sobre tela, 61x 50,5cm (1915-16).

Fig. 2- Anita Malfatti, “Uma estudante”. óleo s/ tela 76,5x60,5. (1915-16.)

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Anita e sua arte com inspirações nitidamente expressionistas e fauvistas, não só abriram espaço para a pintura no cenário artístico de São Paulo, que até então ignorava esta forma de arte, como reuniu em torno de si a juventude intelectual do país, através das vozes de Oswald e Mario de Andrade, que foram em sua defesa, já que esta recebeu duras críticas da imprensa do país que se mostrou chocada com a nova estética que se apresentava.

A reunião destes jovens intelectuais ganharia ainda mais força, quando a este grupo uniram-se o pintor Emiliano Di Cavalcanti e o escultor Victor Brecheret. Estes três artistas Anita, Victor e Di podem ser considerados a trinca estimuladora de renovação das artes1 no Brasil, aqueles que alavancariam o movimento modernista.

A arte feita no Brasil até então, era apenas uma repetição vazia e copiada do modelo europeu-colonizador, e já não satisfazia os jovens artistas que estavam surgindo. Estes, mesmo que em sua maioria voltando do velho continente atônitos e inspirados pelo novo discurso estético por lá criado, sentiam-se incomodados com a artificialidade da arte nacional.

E se faltava brasilidade na arte brasileira, este foi o impulso inicial para o modernistas lançarem à terra suas sementes cujos frutos colhemos até os dias de hoje. Começaram, pois, uma série de questionamentos: como construir uma identidade nacional para o país através da arte? Como identificá-la com o povo que vive aqui?

Todo o processo de busca, desenvolvimento e consolidação estética destas respostas acabou culminando no evento mais célebre deste movimento artístico que se iniciava no Brasil.

A Semana de Arte Moderna

Realizada entre 11 e 18 de fevereiro de 1922, a Semana foi o resultado, literário e visual, desta busca dos artistas brasileiros por uma arte atualizada e nacional, cujas inspirações provem claramente de suas experiências com os movimentos vanguardistas europeus.

Nas palavras de Oswald de Andrade, dias antes da abertura da semana:

“E diante de ambos (Anita Malfatti e Di Cavalcanti), o público habituado ao

academismo vazio do Senhor Oscar Pereira e aos acasos lambuzados do Senhor

Bassi, pasmou à espera, talvez, de que lhes dissessem os caminhos novos que traziam

os dois perturbadores artistas.”

Se o objetivo da Semana era chocar, ele foi atingido com plenitude. E aconteceu numa bem-sucedida conjunção de fatores, a começar pela cidade onde se apresentou. Segundo o próprio Mario de Andrade, se ela tivesse acontecido no Rio de Janeiro, seria apenas mais um evento perdido entre tantos outros na efervescente capital. Sua realização na cidade de São Paulo, fortemente ruralista e conservadora foi o primeiro acerto da Semana.

1 In: AMARAL, Aracy. ARTES PLÁSTICAS NA SEMANA DE 22.

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O local escolhido também não ficou atrás. O Teatro Municipal, local onde se realizavam os grandes concertos e se reuniam os mais poderosos e influentes de São Paulo, causou um choque ainda maior em seus expectadores. Toda a sociedade paulistana ficou perturbada com aquela nova forma de arte, que unia os artistas por seus ideais de renovação destrutiva.

Mas, mais importante que arte apresentada na semana, é o legado que ela nos deixou na forma de princípios, tais como a permanente pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e estabilização de uma consciência criadora nacional coletiva.

Estes princípios, que começaram a ser plantados por Oswald de Andrade e Anita Malfatti, germinaram durante a Semana de Arte Moderna, e posteriormente viriam a dar muitos frutos, que colhemos até os dias atuais.

A estética na Semana

Apesar de não serem consideradas tão avançadas e refinadas quanto as experimentações artísticas que vinham se desenvolvendo na Europa, o modernismo brasileiro pode se equiparar ao europeu por seu caráter revolucionário, e nesse sentido, talvez até superá-lo, haja visto o impacto gerado nas gerações que se seguiram.

Dentro da parte reservada à pintura estavam incluídos também pastéis, óleos, colagens, gravuras e desenhos. Todos eles, apesar de diferentes entre si, revelavam uma forma de arte inédita no país, que tinham como características principais: a cor descompromissada com a realidade, o traço/pincelada rasgada e sem direção definida, entrosamento e valorização do primeiro e segundo planos, dramaticidade de estilos, planos de figura simplificados e uma aparente despreocupação com as noções de proporção.

Mais do que a semelhança estética entre as obras apresentadas havia uma forte unidade no discurso dos artistas, cujas pretensões, assim como os artistas europeus, eram questionar a sociedade brasileira e o modelo de vida artificialmente europeizado que vivíamos, e que em nada combinava com o nosso clima e nosso povo.

A brasilidade de Tarsila e a segunda fase do modernismo

Se a princípio a ausência de uma arte legitimamente brasileira foi o input inicial para o movimento modernista no Brasil, esta questão somente seria aprofundada, num momento posterior à Semana, cuja principal representante seria arte vibrante de Tarsila do Amaral.

Tarsila não participou da Semana de Arte, pois estava viajando pela Europa enquanto ocorria o evento, mas sua arte foi a primeira a descer às raízes brasileiras para enfim tornar o Brasil não só um impulso, mas um objetivo a ser representado pelos modernos. Esse objetivo tornou-se ainda mais claro em 1924, quando Oswald de Andrade lança o manifesto Pau-Brasil.

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A partir de então podemos notar que, elevando a brasilidade a um status de objetivo, o modernismo começou a abandonar um pouco o espírito da Semana, de chocar a partir da quebra de princípios e técnicas acadêmicas, e passou a levar o povo brasileiro para dentro das telas.

Nesse momento, talvez o mais rico e mais representativo do modernismo brasileiro, que já se apresenta em sua segunda fase, o Brasil começou a ser retratado com uma intensidade que não se havia visto antes. As cenas parnasianas e européias, o classicismo de outrora, deu lugar a cenários e figuras genuinamente brasileiros: negros, mulatos, pescadores, carnavais passaram a ser temas das pinturas de Di, Anita, Tarsila e muitos outros.

Se antes os contrastes de cor nas telas modernistas eram chocantes, mas ainda um pouco velados, Tarsila quebra essa característica quando volta para o Brasil, e descobre em Minas Gerais as cores que sempre quis usar em seus quadros, foi então que as cores vibrantes começaram a se tornar marca registrada da artista e do Brasil. O azul puríssimo, o rosa violáceo, o amarelo vivo e o verde cantante, todos juntos na mesma tela, mostrando o que havia de mais brasileiro no Brasil: seus cenários e sua gente.

Fig. 3- Tarsila do Amaral. “Sol Poente” (1929) | Fig. 4. Tarsila do Amaral. “O Ovo ou Urutu”. Óleo sobre tela, 60,5 x 72,5 cm (1928)

A segunda fase do modernismo no Brasil foi sem dúvidas a mais rica no sentido de criar e questionar a brasilidade. Nesse momento o modernismo passou a influenciar não só a estética do país, alcançando outros setores.

Entre os anos de 1924 e 1945, o pensamento modernista se entranhou na sociedade começando a influenciar até mesmo a política. Assim como na Europa, o modernismo no Brasil não era um movimento unificado. Se o objetivo era o mesmo, os caminhos que levavam a ele eram diferentes.

Foi assim que surgiram duas “escolas de pensamento” dentro do modernismo: o Movimento do Verde-Amarelo (posteriormente Grupo da Anta) e o Movimento Pau-Brasil (posteriormente, Movimento Antropofágico).

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O primeiro foi uma resposta ao Movimento Pau-Brasil e surgiu em 1926, formado por Plínio Salgado, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo. Sua proposta era a criação de um nacionalismo ufanista e primitivista. Eles acreditavam que os únicos mais próximos da brasilidade eram os índios, já que estes eram os únicos que já viviam aqui antes do país ser descoberto. Dentro do campo político fundaram em 1932 o integralismo, movimento de extrema direita com afeições ao movimento fascista.

O segundo, mais importante para esta pesquisa, surgiu com o manifesto homônimo escrito por Oswald de Andrade em 1924, e propunha uma literatura vinculada à realidade brasileira, deixando de lado a erudição e todos os arcaísmos comuns à época, passando a uma escrita mais próxima do “português falado”:

“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela,

sob o azul cabralino, são fatos estéticos”. (ANDRADE,Oswald de. Manifesto Pau-Brasil)

Aderido por Mário de Andrade, Raul Bopp, Alcântara Machado e Tarsila do Amaral. Dentro de sua proposta, buscavam obras que valorizassem o Brasil, seus costumes, seu povo, suas paisagens. Num momento posterior, com a formação do Integralismo por Plínio Salgado, aconteceu uma radicalização das ideias do Movimento Pau Brasil, nomeado Movimento Antropofágico. Inspirado pelo quadro “Abaporu” de Tarsila do Amaral, Oswald escreve um novo manifesto, que propunha “devorar” a cultura estrangeira e transformá-la em uma nova forma de arte, legitimamente brasileira. Em oposição aos ideais, inclusive políticos, de Plínio e companhia, tinham afinidades com comunismo.

O livro infantil no Brasil

No Brasil, a literatura infantil só chega em 1808, mas assim como a arte produzida no Brasil, eram precárias e não passavam de traduções das edições européias. A solidificação da produção de livros produzidos para o público brasileiro só acontece às voltas da proclamação da República brasileira, no fim do século XIX, ainda sim seguem por muitos anos com ilustrações rebuscadas, que remontam a arte européia dessa época.

E foi precisamente na época do surgimento e fortalecimento do modernismo brasileiro, entre as décadas de 1920-30, que a literatura infantil brasileira ganha força, graças aos investimentos e ao incentivo que essa área recebeu nesses anos. O nacionalismo que eclodiu com o novo movimento se refletia na grande quantidade de histórias “legitimamente brasileiras” para crianças. Temas como o folclore do país e os fatos históricos passaram a ganhar importância, acompanhado sempre de uma revalorização do campo, que além de se opor à cidade era sempre mostrada como um cenário inferior.

O pioneiro e maior representante da literatura infantil nessa época, e um dos mais notáveis até os dias atuais é Monteiro Lobato. Suas histórias misturavam histórias fantásticas e histórias que se passavam no “mundo real”, todas com as características acima descritas. Sua contribuição envolvia não só a produção literária, mas também o investimento na criação de

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novas editoras e sobretudo, a forma de pensar a literatura e o seu público de destino, que, segundo Lobato, poderia modificar a percepção dos leitores e emancipá-los.

Apesar da valorização do gênero e do aumento significativo de publicações destinadas a este público, quando fazemos referência à ilustração dos livros, pouco se observa de preocupação em relação à estética produzida para os mesmos. A ilustração para o gênero infantil era ainda considerada uma arte menor e os grandes ilustradores dedicavam-se, sobretudo, a fazer seu trabalho para o público adulto nas revistas e jornais que circulavam.

A estética do livro infantil

Analisando os livros infantis produzidos no Brasil podemos perceber como aos poucos os ilustradores foram se apropriando da estética modernista. Assim como todos os demais processos descritos anteriormente, foi de forma gradual que os livros infantis adotaram tais tipos de ilustração.

As primeiras ilustrações encontradas que se encaixavam nessa pesquisa começam numa fase bastante posterior ao início do modernismo, já no fim da década de 70, ainda sim, de forma tímida. Entretanto, não se pode deixar de destacar alguns pontos importantes que influenciaram no tipo de ilustração produzida.

Além da resistência dos primeiros ilustradores, acostumados a outra estética e da desvalorização da ilustração em relação ao texto, os livros infantis dessas décadas ainda tinham como destino um público mais velho e mais alfabetizado, portanto a quantidade de texto é bem superior, mais complexa e também a quantidade de ilustrações nos livros é bastante reduzida, muitas vezes limitando-se a ilustração de capa e uma ou outra ilustração nas aberturas de capítulo.

Fig. 5- A menina sem nome. Ilustrações:Vilma Pasqualini, 1983.

Fig. 6- O jardim de Caticó. Ilustrações: Elvira Vigna, 1981.

Outro fator determinante para os tipos de ilustração produzidos na época tem a ver com a tecnologia disponível. A indústria gráfica ainda era pouco desenvolvida, e os custos com impressão ainda eram relativamente altos, tornando a produção de um livro ilustrado muito alta, e por isso pouco interessante. Nessa fase podem se observar, não em pequena

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quantidade, livros impressos em duas cores, com ilustrações monocromáticas, mas que já revelavam traços modernos.

Fig. 7- A menina sem nome. Ilustrações:Vilma Pasqualini, 1983.

Fig. 8- Asa curta. Ilustrações: Sandra Abdalla, 1983.

O passar dos anos só fez aumentar o reconhecimento dado à literatura infantil, e também à importância da ilustração dentro desse contexto, que deixa de ser um mero atrativo ou um detalhe do livro, chegando a alcançar muitas vezes o status de elemento principal da narrativa de um livro.

Observa-se com o decorrer das décadas a preocupação crescente com a ilustração do livro que evoluíram de pequenos desenhos de abertura ou encerramento de capítulo até os livros de imagem contemporâneos que tem sido produzidos cada vez em maior quantidade.

Fazendo uma análise dos livros ilustrados produzidos no Brasil após o modernismo não faltaram referências aos artistas deste movimento, e não se pode deixar de notar o quanto tem crescido ao longo do tempo a escolha por essa estética, principalmente quando os livros tem temas que se relacionam com a identidade nacional, que começou a ser questionada com o modernismo.

Destacam-se a seguir alguns livros que apresentam uma relação íntima de formas, cores e temáticas em relação às obras dos Modernistas brasileiros:

Fig. 9 e 10- Em boca fechada não entra mosca. Ilustrações de Graça Lima, 1999.

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Fig. 11- Di Cavalcanti, Pescadores I. óleo sobe tela - 74 x 100 cm. (1949/50)

Ao comparar estas imagens é impossível não notar a semelhança entre o quadro de Di Cavalcanti e as ilustrações de Graça Lima. Em ambas as imagens podem ser notados a brasilidade dos temas apresentados, que são no caso de Di, profissões que já fazem parte da tradição nacional e, nas ilustrações de Graça, figuras bem representativas de nossa cultura, tal como ritmistas e baianas. Analisando formalmente a imagem podem-se observar figuras com formatos angulares de inspiração nitidamente cubista. No caso de Graça essa inspiração fica ainda mais nítida pela utilização de diversos planos sobrepostos, num jogo que ultrapassa a questão de figura e fundo, dada a quantidade de sobreposições encontradas.

Figs. 12 e 13- A Iara. Ilustrações de Caco Galhardo, 2002. Fig. 14- Tarsila do Amaral, Cartão Postal, 1928.

No caso acima temos a pintura de Tarsila do Amaral e as ilustrações de Caco Galhardo. As similaridades temáticas continuam presentes a cerca do tema nacionalista, onde aparecem a natureza brasileira para Tarsila e para Caco as lendas tradicionais do país.

Nesse caso, a inspiração europeia fica a cargo do pintor Gauguin. Em todas as imagens é possível perceber na representação tanto do cenário quanto dos personagens o uso de linhas sinuosas e cores bastante expressivas, e nesse caso específico, pode se notar até uma grande similaridade, não só na paleta de cores utilizada2, como até mesmo na proporção em que elas aparecem nas imagens.

2 As imagens referentes às ilustrações se encontram prejudicadas devido ao tamanho máximo de arquivo que

poderia ser apresentado.

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Fig. 15- Cena de rua. Ilustração: Ângela

Lago

Fig.16 – Anita Malfatti, A Mulher de

Cabelo Verde (1915/1916)

Além da semelhança evidente entre as duas imagens acima, podemos observar nestas imagens, especialmente na ilustração de Graça, a peculiaridade dos ângulos de enquadramento das imagens, que reforça ainda mais a expressão corporal da personagem, revelando assim uma grande inspiração no expressionismo alemão que pode ser percebido também pelo tipo de pincelada e pelo uso das cores.

Fig. 17 e 18- A primavera da lagarta. Ilustração: Marilda Castanha.

Fig. 19- Di Cavalcanti. Folia. óleo sobe tela - 34,5 x 24 cm. (1960)

Pode-se notar no quadro de Di inspirações nas obras de Miró pelo uso de suas formas abstratas e também pelo uso de hachuras e pontos utilizados para dar preenchimento e volume às formas, fato que pode também ser observado na ilustração de Graça Lima. Não podemos deixar de destacar também como apesar de abstratas as formas de Di, por serem bastante orgânicas lembram muito a natureza, reforçando os princípios modernistas da representação da natureza como forma de reforçar a identidade nacional, este fato o liga também diretamente às ilustrações apresentadas não só pela temática, mas com atentas observações, é possível também perceber a semelhança das formas encontradas no livro e na pintura.

Conclusão

A empreitada modernista no Brasil foi ambiciosa em seus objetivos e incansável em sua busca por respostas, mas mais importante que todas as suas criações foi a percepção que os artistas modernos tiveram sobre a importância e a influência do conteúdo que estavam produzindo, mostrando que a partir da arte é possível atingir a sociedade como um todo, formar e unificar um país e construir uma identidade nacional.

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Hoje em dia ninguém mais duvida que o modernismo atingiu seu objetivo de forma certeira, tanto que até os dias atuais o que se entende por brasilidade ainda é o discurso quase intacto dos modernistas da década de 1920. E não só no discurso, mas também em representações gráficas, a arte modernista ainda inspira muitos ilustradores em suas criações.

A importância que o livro infantil tem ganhado o longo dos anos e sua participação cada vez mais antecipada na vida das crianças também é um fator importante a ser observado, posto que, a referência estética é formada desde muito cedo na mente das crianças e o contato com esse tipo de ilustração faz com que a assimilação dessa forma de arte e desse conceito de brasilidade, associado com a mesma, seja inserido e consolidado na cabeça dos leitores, promovendo assim a perpetuação dos conceitos modernistas pelas próximas gerações.

A quantidade de livros que retratam a identidade cultural brasileira pela ótica modernista tem crescido de maneira significativa, e sobretudo neste ano, em que a Semana de Arte Moderna completa 90 anos de sua realização, ocorreu uma revitalização das ideias modernistas, o que deve incentivar ainda mais a produção de conteúdos relacionados ao tema.

Referências 1- AMARAL, Aracy. Artes plásticas na semana de 22. São Paulo: Bm&f, 1992 ANDRADE, Mario de. Conferência O movimento modernista. http://www.estadao.com.br/magazine/especial/modernismo/cap1/index.htm, em 28 de fevereiro de 2012.

2 - GOMES, Marisa e JOSÉ, Amilton. O modernismo heróico dos anos 20 e o regionalismo dos anos 30. www.seara.uneb.br/sumario/alunos/marisagomeseamiltonjose.pdf, em 28 de março de 2012.

3- ALBINO, Lia C P. A literatura infantil no Brasil: origem, tendências e ensino. www.litteratu.com/literatura_infantil.pdf, 25 de março de 2012.

4- MIGUEZ, F. Em boca fechada não entra mosca. Ilustrações de Graça Lima. São Paulo: Difusão Cultural do Livro, 1999.

5- NESTROVSKI,A. A Iara. Ilustrações de Caco Galhardo, org. Denyse Cantuária, Dênio Maués Vianna. Col. Histórias do Rio Moju: reconto de narrativas amazônicas. São Paulo: FTD, 2002.

6- LAGO, A.M.C. Cena de rua. Ilustrações da autora Belo Horizonte: RHJ, 1994.

7- ROCHA, R. A primavera da lagarta. Ilustrações de Marilda Castanha. Belo Horizonte: Formato Editorial, 1999.