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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa
Volume 1
Rui Jorge Narciso Boaventura
Doutoramento em Pr-Histria
2009
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa
Volume 1
Rui Jorge Narciso Boaventura
Doutoramento em Pr-Histria
Tese orientada pelo Professor Doutor Victor dos Santos Gonalves
2009
Resumo
As antas so uma das facetas visveis do fenmeno do Megalitismo da regio
de Lisboa, verificando-se este tambm em grutas naturais e artificiais, e tholoi.
Assim, este trabalho procurou integrar e compreender aquele tipo de sepulcro
especfico no mbito do fenmeno funerrio regional.
Quando avaliadas localmente, mas tambm com outras regies vizinhas, as
antas de Lisboa surgem em nmero bastante reduzido. Contudo, mais do que um
fraco impacto do Megalitismo desta regio, pelo contrrio, a sua construo parece
reforar a importncia do fenmeno para aquelas comunidades.
Os dados compilados permitiram situar cronologicamente as primeiras
utilizaes das antas de Lisboa essencialmente entre os meados e a segunda metade
do 4 milnio a.n.e., em momento aparentemente mais recente do que as primeiras
evidncias do fenmeno do Megalitismo, registadas em grutas naturais da regio.
Posteriormente, na primeira metade do 3 milnio a.n.e., estes sepulcros continuam a
ser usados, sem interregnos evidentes, mas com alteraes no esplio de
acompanhamento. Numa primeira fase, provavelmente at finais do 4 milnio, os
materiais depositados apresentavam um carcter utilitrio e tecnmico, no perodo
sequente, evidenciou-se o conjunto de artefactos ideotcnicos.
Alargando a abordagem cronolgica a outras regies peninsulares, os
resultados escrutinados parecem indicar perodo similar para as primeiras utilizaes
daqueles edifcios funerrios, com a sua generalizao durante a segunda metade do
4 milnio a.n.e..
Face possibilidade de anlise dos restos osteolgicos depositados nos
sepulcros estremenhos e, em concreto, das antas da regio de Lisboa, foi possvel
verificar a ausncia de qualquer aparente excluso de indivduos por sexo ou idade.
Inclusive, a anlise de paleodietas de alguns indivduos adultos evidenciou hbitos
alimentares semelhantes entre sexos. Assim, provvel que estas comunidades
valorizassem as suas linhagens, tendo as antas servido para o depsito final dos seus
elementos.
i
ii
Abstract
Antas are one of the visible facets of the Megalithism phenomenon in the
region of Lisbon as well as natural caves, rock-cut tombs and vaulted chamber tombs
(tholoi). This work seeks to integrate and understand this type of specific sepulchre
within the context of the funerary phenomenon in this area.
When evaluated locally, but also with other neighbouring regions, the antas of
Lisbon are represented by a drastically reduced number. However, more than just
suggesting a poor representation of the impact of Megalithism in this region, on the
contrary, its construction appears to reinforce the importance of this phenomenon for
those communities.
The data compiled here allows for a chronological reading of the first periods
of usage for the antas of Lisbon, dating to the middle and second half of the 4th
millennium BCE, a moment apparently more recent than the evidence of the
Megalithic phenomenon as registered in the natural caves in the region. Later on,
during the first half of the 3rd millennium BCE, these tombs continued in usage,
without evident interruption, but with alterations in burial assemblages. In the initial
stage, probably until the end of the 4th millennium, the materials deposited are
characterized as utilitarian and technomic in nature while in the subsequent period,
there is evidence of ideotechnic assemblages.
Widening the chronological reading to other areas of the peninsula, scrutinized
results appear to indicate a similar periods of first utilization in these types of
funerary structures, becoming widespread during the 2nd half of the 4th millennium
BCE.
Given the possibility of analyzing the osteological remains deposited in tombs
from the Estremadura, specifically in the antas from the region of Lisbon, it was
possible to verify that no individuals were excluded due to sex or age. Moreover, the
paleodietary analysis of some adult individuals demonstrated similar nutrition
standards between both sexes. Therefore, it is probable that these communities
valued its lineages with the antas and other types of tombs serving as the final resting
grounds for all of its members.
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 1 de 415
As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa
ndice
. Agradecimentos. 0. O quando, o como e o porqu 1. Megalitismo: delimitao de um conceito abrangente e de longa durao
1.1. Uma discriminao positiva: as antas da regio de Lisboa 2. Enquadramento geogrfico
2.1. Fisiografia da Baixa Estremadura 2.2. Rio Tejo, um palco fundamental da histria da regio
3. A investigao pr-histrica na regio de Lisboa 4. Sepulcros para repouso dos mortos e dos vivos
4.1. As antas da regio de Lisboa 4.1.1. O cluster de Belas
4.1.1.1. Pedra dos Mouros 4.1.1.2. A anta de Belas 4.1.1.3. Monte Abrao 4.1.1.4. Estria 4.1.1.5. Um espao necropolizado na primeira metade 3 milnio?
4.1.2. Os monumentos megalticos das imediaes do cluster de Belas 4.1.2.1. Carrascal 4.1.2.2. Pego Longo, megaltico, mas no sepulcral
4.1.3. O cluster de Trigache 4.1.3.1. Trigache 1 4.1.3.2. Trigache 2 4.1.3.3. Trigache 3 4.1.3.4. Trigache 4 4.1.3.5. Os rfos de Trigache 4.1.3.6. O espao necropolizado de Trigache
4.1.4. As antas entre os clusters de Belas e Trigache 4.1.4.1. Conchadas 4.1.4.2. Pedras Grandes e stio das Batalhas
4.1.4.2.1. Pedras Grandes 4.1.4.2.2. Stio das Batalhas
4.1.5. As antas isoladas de Loures 4.1.5.1. Alto da Toupeira 1 e 2 4.1.5.2. Casanhos 4.1.5.3. Carcavelos
4.1.6. Os sepulcros de Verdelha do Ruivo 4.1.6.1. Casal do Penedo 4.1.6.2. Monte Serves
4.1.7. Arruda 4.1.8. Pedras da Granja 4.1.9. Dados avulsos de possveis antas
4.2. A implantao e construo das antas de Lisboa 4.2.1. Tipologia das antas 4.2.2. A orientao prescrita
4.3. As outras solues sepulcrais 4.4. Poucas antas, muitos sepulcros?
5. O(s) esplio(s) funerrio(s) 5.1. Pedra lascada 5.2. Pedra polida 5.3. Pedra afeioada
p. 4
7
12 15 18 20 23 26 35 37 37 38 45 48 61 67 68 68 73 78 81 83 88 93 96 97 99 99
107 109 125 126 126 131 139 158 158 164 166 174 183 187 195 198 207 214 220 221 245 256
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 2 de 415
5.4. Cermicas 5.5. Utenslios em osso 5.6. As faunas das antas 5.7. Elementos de adorno 5.8. Artefactos e objectos votivos
6. Sepultantes e sepultados: uma avaliao possvel 6.1. As dificuldades das amostras antropolgicas disponveis 6.2. Inumaes primrias e/ou secundrias? 6.3. Os efectivos inumados 6.4. O sexo, a idade e a estatura dos sepultados 6.5. Patologias e leses traumticas 6.6. Um intrito diettico: o potencial das anlises isotpicas
7. Os lugares dos vivos: uma correlao difcil 8. Os tempos do Megalitismo da Baixa Estremadura
8.1. A cronologia absoluta das antas de Lisboa 8.2. Diacronia e sincronia dos outros espaos sepulcrais 8.3. As sincronias com os vivos: uma avaliao assimtrica? 8.4. O carvo e o osso: desfasamento cronolgico inter-regional, ou uma questo de
matria e contexto? 9. O eplogo de uma tradio mgico-religiosa: o fenmeno campaniforme 10. As antas da regio de Lisboa e o Megalitismo peninsular. . Referncias bibliogrficas . Referncias cartogrficas . Recursos arquivsticos consultados . Lista de figuras e quadros
258 263 264 266 269 282 282 285 293 299 304 314 324 328 334 338 350 352
364 366
372 412 412 412
ndice de anexos (volume 2) Anexo 1: Cartografia Anexo 2: Figuras Anexo 3: Dataes pelo radiocarbono de contextos funerrios do Megalitismo peninsular Anexo 4: Figuras gerais Anexo 5: Quadros gerais Anexo 6: Relatrios de Antropologia fsica Anexo 7: Relatrio de faunas Anexo 8: Apontamentos de J. L. Vasconcelos acerca da anta da Arruda
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 3 de 415
. Agradecimentos
O meu profundo e sincero agradecimento a diversas entidades, individuais e
colectivas, incontornvel, pois o seu apoio a diferentes nveis tornou possvel a
concretizao desta tese.
Ao professor Victor S. Gonalves pelo desafio e a confiana manifestada desde
o incio deste trabalho, bem como a cedncia de verbas para a realizao de algumas
dataes pelo radiocarbono.
Aos professores Joo C. Senna-Martinez, Joo L. Cardoso e Christopher
Tillquist pelas boas referncias acerca do meu projecto, permitindo a obteno da
bolsa de doutoramento da Fundao para a Cincia e Tecnologia
(SFRH/BD/17882/2004). Aquele apoio foi fundamental para o desenvolvimento de
algumas linhas de pesquisa, bem como novas oportunidades de conhecimento.
Aos presidentes da Cmara Municipal de Odivelas, Manuel Varges e Susana
Amador, bem como ao vereador Carlos Loureno, pela concesso da licena
necessria ao desenvolvimento da investigao. Este agradecimento expande-se aos
directores do departamento Sociocultural e chefes de Diviso, bem como colegas da
labuta patrimonial e cultural do municpio. Alis, a escavao e o restauro da anta de
Pedras Grandes deveu-se autorizao e vontade do executivo municipal.
Ao jri do Plano Nacional de Trabalhos Arqueolgicos do, lamentavelmente,
extinto Instituto Portugus de Arqueologia, pela aprovao de um projecto que
contribuiu em parte para a realizao de um programa de dataes pelo radiocarbono
de vrias antas de Lisboa.
Entre os colegas e funcionrios do ex-IPA e CIPA, encontrei sempre o maior
apoio possvel, especialmente de Cidlia Duarte, Marta Moreno, J. P. Ruas, David
Gonalves, Marina Arajo, Paulo Oliveira, Fernando Real, Filipa Neto, Simon
Davis, Dina Pinheiro, Fernando, Fernanda e demais amigos do conhecimento
arqueolgico.
A Julie Peteet, directora do Department of Anthropology da University of
Louisville (KY, USA), que ao longo dos anos apoiou o trabalhos arqueolgicos
desenvolvidos com estudantes daquela universidade e providenciou o meu acesso ao
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 4 de 415
fabuloso mundo das bibliotecas digitais, hoje recurso incontornvel e desejvel para
todos.
Outra bolsa fundamental veio do Archaeology of Portugal Award, por
intermdio do Archaeological Institute of America, que conduziu ao projecto maior
de anlises de paleodietas e mais algumas dataes. Os ensinamentos de Mary
Powell, Katina Lillios e John Hale acerca de como fazer boas candidaturas no foram
esquecidos e foram inestimveis na obteno daquele prmio.
A Antnio Monge Soares pelo seu profissionalismo e os ensinamentos acerca
do radiocarbono, dataes e calibraes, na perspectiva do utilizador, e ao Z
Martins, pelas noes bsicas de OxCal.
Ao Dr. Miguel Ramalho e a Jos Anacleto pela recepo sempre positiva das
pesquisas desenvolvidas no Museu Geolgico, lugar por vezes inspito de Inverno e
abrasador de Vero.
Ao director, Lus Raposo, e conservadora, Ana Isabel Santos, do Museu
Nacional de Arqueologia, mas tambm a tantos dos seus funcionrios que de vrias
formas ajudaram no desenvolvimento dos meus trabalhos, nomeadamente Carmo
Vale, Mathias Tissot, Lvia Coito, Adlia Antunes, Lusa Guerreiro e Carla Martinho.
A Florbela Estvo e ao executivo da Cmara Municipal de Loures pelo
acolhimento ao estudo da anta de Carcavelos, ainda hoje desenvolvido em parceria.
A Teresa Simes e Catarina Coelho, do Museu Municipal de S. M. Odrinhas,
bem como ao seu director, pelo acesso coleco de Pedras da Granja e todas as
facilidades prestadas.
A Carlos Pereira, Fernanda Sousa e Henrique Matias, pela excelncia dos
desenhos de materiais arqueolgicos.
A Maria Hillier pela colaborao de vrios anos que permitiu a concretizao
preliminar dos estudos dos restos osteolgicos da maioria das antas de Lisboa, bem
como o desenvolvimento, em colaborao com Mike Richards (Max Planck
Institute), de um projecto de anlises isotpicas para verificar paleodietas.
Aos estudantes dos programas de Portanta, que ao longo dos anos permitiram a
prossecuo dos trabalhos de escavao das antas de Pedras Grandes e Carcavelos,
em Lisboa, mas tambm de outras em Monforte do Alentejo, bem como do novo
conhecimento antropolgico dos fundos museolgicos.
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 5 de 415
A Cndido Marciano da Silva pelas visitas orientadas aos sepulcros de Lisboa.
A Ana Maria Silva e M. Teresa Ferreira pelos conselhos e lies
antropolgicos dados a um arquelogo, mero utilizador da antropologia, mas sempre
disposto a novos desafios interdisciplinares.
Ao Rui Mataloto pelas longussimas horas de discusso, extensas visitas de
terreno e partilha de ideias, nem sempre concordantes, mas sempre sob a mesma
paixo pelo Alentejo e pelo conhecimento arqueolgico e histrico das sociedades
que fizeram o que somos hoje. Um perdo Maria Joo pelo tempo tomado.
Aos meus pais, Antnio e Ftima, por tudo o que puderam e fizeram para
ajudar, tanto a mim como aos seus netos.
minha abelha Maia, obreira infatigvel na busca de solues para que fosse
possvel alcanar os objectivos estabelecidos, contrastando a minha fatalidade
portuguesa com a Can do attitude que em tempos remotos levaram outros
portugueses a lugares novos e fabulosos. Por outro lado pelas infindveis horas na
produo da base cartogrfica da regio.
Aos meus filhos, mais do que agradecer a sua pacincia com um pai ausente,
ainda que presente fisicamente, votos de felizes jornadas, para as quais este trabalho
possa contribuir com uma pequena janela de conhecimento e identidade deste
territrio beira mar plantado.
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 6 de 415
0. O quando, o como e o porqu.
Se as pessoas so o que so e sobretudo aquilo
que as circunstncias as deixam ser, as realizaes cientficas so-no em muito maior grau.
(Raposo, 1999, p. 11)
Quando, aps a concluso da licenciatura em 1993, ponderava acerca da minha
vida profissional e cientfica, j o bichinho do Megalitismo, que me atingira durante
a minha formao e nas campanhas de escavaes no Alto Alentejo, se tinha
entranhado. Assim, apesar das minhas razes alfacinhas, ainda que com algumas
costelas alto alentejanas, aconteceu naturalmente a definio de uma rea de estudo
na regio de Monforte e a tentativa de abordagem sistemtica no s dos sepulcros
megalticos, usualmente conhecidos por antas ou dlmenes, mas tambm das
ocupaes dos seus construtores e utilizadores, atribuveis aos 4 e 3 milnios a.n.e.
(ou a.C. para outros autores). Da resultou a minha tese de mestrado acerca do
povoado do Pombal e necrpoles putativamente correlacionadas (Boaventura, 2001).
Tendo esse trabalho suscitado mais interrogaes do que respostas, considerei
imperativo a continuao desse projecto regional, pelo que delineei um programa de
trabalhos com o intuito de aprofundar a compreenso do fenmeno do Megalitismo
daquela regio, atravs de vrias intervenes no cluster de Rabuje (Boaventura,
1999-00, 2000 e 2006), mas tambm num mbito mais alargado, inclusive
procurando perceber melhor as relaes com as regies vizinhas, nomeadamente a
Estremadura portuguesa e a Extremadura espanhola.
Quis o Fado, se acreditasse nele, que na sequncia de diversos episdios da
minha vida profissional, retornasse a Lisboa em 2002, deparando-me com algumas
dificuldades para alcanar no curto e mdio prazo a inteno delineada atrs.
Contudo, esse projecto mantinha uma questo de fundo de mbito peninsular: um
melhor conhecimento histrico e social das sociedades construtoras dos sepulcros
megalticos e das suas prticas funerrias.
Quando o professor Victor dos Santos Gonalves lanou o desafio para
reavaliar as construes ortostticas funerrias da regio de Lisboa confesso que,
sentindo-me ento um arquelogo de sequeiro, no me considerei apto a tal
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 7 de 415
empreendimento. No meu curto percurso de formao e investigao tinha aprendido
o quo importante conhecermos razoavelmente bem a regio que estudamos,
correndo srios riscos de leituras enviesadas se tal no fosse alcanado. No caso
proposto, tal desiderato implicava conhecer e entender uma fisiografia distinta
agravado pelo alucinante ritmo de mudana da paisagem resultante do crescimento
tentacular de Lisboa (Gonalves, 1995, p. 27). Todavia, e em oposio regio
alentejana que estudava, a Estremadura tinha sido alvo de inmeros estudos e
publicaes, por vezes desequilibrados quanto ao seu mbito e profundidade, mas
que possibilitavam uma sistematizao bastante enriquecida, ainda que mais
complexa.
No mbito do desafio lanado procedi ao reinventrio e anlise dos esplios
recolhidos, no s de objectos, utenslios e artefactos, mas tambm diligenciei os
estudos dos restos osteolgicos humanos e faunsticos, graas colaborao com
outros investigadores referidos ao longo deste trabalho. Por outro lado, procurando
novos dados, realizei as intervenes possveis em duas antas, uma delas tambm em
colaborao.
O estudo dos restos humanos permitiu a concretizao de um programa-ensaio
de dataes pelo radiocarbono de utilizaes daqueles sepulcros, apenas limitado
pela disponibilidade financeira, bem como, um projecto em colaborao, de anlise
das paleodietas e possveis indcios de mobilidade dos indivduos sepultados.
Como se poder verificar ao longo deste trabalho, a maior parte dos esplios
estudados era j conhecida desde o sculo XIX, resultado das primeiras exploraes
em sepulcros da regio de Lisboa (Ribeiro, 1880). Outros conjuntos foram exumados
dcadas mais tarde (Vaultier e Zbyszewski, 1951; Leisner, Zbyszewski e Ferreira,
1969). Em ambos os casos, porque a maioria desse esplio foi recolhido por
funcionrios dos Servios Geolgicos de Portugal, actualmente Laboratrio Nacional
de Energia e Geologia (LNEG, ex-INETI), no Museu Geolgico que este se
encontra depositado.
V. S. Gonalves (1995, p. 275) referiu-se ao Museu Geolgico como uma
verdadeira Mina, ainda que fosse um excelente lugar para aplicar a teoria do
caos. De facto, para boa parte das coleces ali estudadas foi necessrio uma
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 8 de 415
revalidao da provenincia das peas e objectos arqueolgicos, felizmente com um
elevado grau de sucesso.
Se as coleces recolhidas no sculo XIX apresentavam, normalmente, num
grupo significativo de peas, inclusive osteolgicas, uma etiqueta com a respectiva
provenincia, aquelas recuperadas nas dcadas de 50 a 70, raramente eram
etiquetadas ou marcadas individualmente, sendo apenas acompanhadas por diversas
etiquetas de carto indicando a sua provenincia. E, isso, seria suficiente, se o
sistema aberto de armazenagem, em vitrinas e tabuleiros, no tivesse
permitido/originado a mistura de coleces, dada a facilidade com que se podia
aceder e mexer nas peas. Ainda mais grave foi a soluo encontrada nos anos 90
durante a reorganizao de coleces (Brando, 1999), em que se optou por juntar as
coleces por topnimo de provenincia: no que se refere s antas, por exemplo,
todos os materiais dos quatro sepulcros de Trigache foram associados sob um s
cdigo (MG179), surgindo as etiquetas antigas com informao pertinente
agrupadas, j sem os objectos correspondentes (por vezes porque j se tinham
extraviado anteriormente e se considerou impossvel recuperar a provenincia
original); situao semelhante ocorreu com a anta de Casal do Penedo, a cavidade de
Verdelha dos Ruivos e o silo localizado na pedreira daquele local, que foram tambm
dispostos sob o mesmo cdigo (MG177) e a primeira das designaes.
Felizmente, a publicao relativamente exaustiva dos esplios, primeiro por C.
Ribeiro (1880) e depois por V. Leisner (1965) e em colaborao com O. V. Ferreira
(1959 e 1961; Leisner, Zbyszweski e Ferreira, 1969), permitiu re-identificar a
maioria dos artefactos e objectos. Alis no caso dos trabalhos do casal Leisner, tal
verificao foi ainda reforada pelos desenhos e fotos de materiais constantes no seu
arquivo (alguns no publicados), maioritariamente efectuados durante os anos 40, e
que permitiram por vezes uma melhor identificao. Outra alternativa, sobretudo no
caso dos esplios osteolgicos, baseou-se na distino da colorao dos sedimentos
associados, com resultados satisfatrios. Estas estratgias podero ser verificadas no
inventrio de materiais assim como nos captulos seguintes.
Apenas no caso de trs antas, as suas coleces encontravam-se noutros locais.
Assim, parte do esplio da anta de Pedras da Granja est depositada no Museu
Municipal de So Miguel de Odrinhas (Sintra), graas a aco diligente do
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 9 de 415
arquelogo J. L. Cardoso, desconhecendo-se o paradeiro do restante, ainda que
possamos ter uma ideia deste atravs do inventrio publicado (Zbyszweski et al.,
1977) durante o Vero de 2008 foi possvel verificar a existncia de trs
inumaes (pacotes de ossos humanos) desta anta em depsito no Museu
Geolgico, sob uma denominao equivocada. A anta da Arruda tem o seu esplio
guardado no Museu Nacional de Arqueologia, bem como o conjunto da anta de Belas
(de que apenas se pode especular uma provenincia especfica), tendo ambos os
conjuntos sofrido alguns percalos. Finalmente, no Museu Municipal da Quinta do
Conventinho (Loures), encontra-se depositado o esplio da anta de Carcavelos
recolhido ao longo de vrias campanhas por G. Marques, a que se juntou aquele
exumado nos ltimos anos por mim e colaboradores. Dessas primeiras campanhas
verificou-se alguma perda de informao, mas o saldo tambm foi positivo.
Com excepo das intervenes mais recentes, nomeadamente Pedras Grandes
e Carcavelos ou, ainda que com outro registo, Pedras da Granja e Casanhos, nas
restantes antas a localizao dos esplios bastante incerta, apesar de algumas
ntulas dos seus escavadores terem permitido uma abordagem microespacial, mesmo
que limitada.
Portanto, o trabalho agora em apreciao procurou reavaliar e enquadrar
cronolgica, social e culturalmente as antas de Lisboa no Megalitismo regional e
supra-regional, procurando verificar as suas caractersticas especficas, bem como
aquelas comuns a outros grupos.
Finalizando este intrito, resta apenas clarificar a terminologia usada para as
Eras e respectivas cronologias. Assim, invs da habitual designao de Era antes de
Cristo (a.C.) e depois de Cristo (d.C.) optou-se pela denominao de,
respectivamente, antes da nossa Era (a.n.e.) e Era comumou Era corrente
(e.c.). Esta escolha visa uma perspectiva secular adequada s minhas crenas
pessoais, de cidado laico e republicano, situao que outros autores, ainda que por
motivos no explcitos, parecem subscrever (Oosterbeek, 1994; Castro Martinez,
Lull e Ric, 1996; Morn e Parreira, 2004; Gonalves, 2005b e 2008a 2008b;
Gonalves e Sousa, 2006). Mas no outro lado do espectro de crenas grassa hoje
entre as vrias organizaes religiosas (crists e de outros credos) um esprito
ecumnico que tambm procura uma terminologia menos preconceituosa
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 10 de 415
(Cunningham e Starr, 1998; Riggs, 2003). Em consonncia com esta opo, ainda
que seguindo o esprito de rigor da proposta de nomenclatura apresentada no mbito
do Workshop sobre datao pelo radiocarbono, e aprovada no 1 Congresso de
Arqueologia Peninsular (Cabral, 1995), que por sua vez transmitia as recomendaes
discutidas na 12 Conferncia Internacional sobre Radiocarbono, em Trondheim,
1985 (Stuiver e Kra, 1986), em vez de Before Christ (BC) e Anno Domini (AD) as
datas calibradas sero apresentadas pela verso actualmente disponibilizada do
programa de calibrao OxCal 4.0.5 (Bronk Ramsey, 2001 e 2008), respectivamente,
Before Common Era (BCE) e Common Era ou Current Era (CE). Tambm, convir
realar que ao longo deste trabalho, exceptuando os casos devidamente assinalados,
todas as datas e seus intervalos de tempo estaro calibradas cal BCE/CE com uma
probabilidade de 2 sigmas (95,4%), resultante do programa de calibrao j
mencionado, OxCal 4.0.5 (Bronk Ramsey, 2001 e 2008), que utiliza as curvas de
calibrao IntCal04 (Reimer et al., 2004) e Marine04 (Hughen et al., 2004). Em
anexo constam as tabelas com as datas BP conhecidas dos sepulcros, por regio,
devidamente calibradas a 1 e 2 sigmas.
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 11 de 415
1. Megalitismo: delimitao de um conceito abrangente e de longa
durao.
A expresso Megalitismo tem vindo a ser utilizada com mltiplos significados,
pelo que importa aqui clarificar a sua abrangncia no mbito do presente trabalho.
Literalmente, e em sentido estrito, corresponde a um tipo de construo em que
se utilizam componentes ptreos de grande dimenso, megalticos (Joussaume, 1985,
Sherratt, 1995; Gonalves, 1999a, p. 137), podendo corresponder a elementos
aparentemente no funerrios, os menires, isolados ou agrupados, ou a edifcios
funerrios, normalmente designados, em Portugal e na restante Pennsula Ibrica, por
anta ou dlmen, objecto deste estudo. A investigao recente tem vindo a demonstrar
que aqueles dois elementos sero diacronicamente distintos, ainda que o primeiro
possa ter sido reutilizado por geraes sequentes ou integrado, nas prprias
construes do segundo (Calado, 2004, p. 201-202).
O Megalitismo tambm entendido como um complexo conjunto de
prescries mgico-religiosas relacionadas com a morte, e no apenas,
redutoramente, como um tipo de arquitectura funerria que ocorre no Ocidente
peninsular durante os 4 e 3 milnios a.n.e. (Gonalves, 1995, p. 27), mas tambm
verificvel na Europa das antigas sociedades camponesas (Gonalves, 1999a, p.
137; Sherratt, 1995). Contudo, esta quase expresso-idiomtica sobretudo utilizada
e compreensvel no mbito cientfico franco-ibrico, ainda que, actualmente, com
especificidades regionais reconhecidas.
No mundo acadmico anglo-saxo tal expresso pouco utilizada, definindo-se
aquelas prticas como mortuary practices associadas a chambered ou collective
tombs megalticas e de outros tipos (Renfrew, 1990; Scarre, 1996; Masset, 1997;
Bradley, 1998). A. Sherratt (1995) foi um dos poucos autores britnicos a discutir a
ideia de um Neolithic megalithism in Europe. Antes disso, C. Renfrew (1967)
recordava a expresso alem, algo pejorativa, Megalithismus para criticar vises
abrangentes mas limitadas apenas a algumas das caractersticas mais megalticas do
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 12 de 415
fenmeno, esquecendo a importncia das leituras dos contextos locais. Contudo,
reconhecia que a expresso espanhola Megalithismo (idntica expresso
portuguesa Megalitismo), no tinha o mesmo cariz negativo.
A obra colectiva dirigida por J. Guilaine (1999), Megalithismes, na senda de
R. Joussaume (1985), recorda-nos a faceta megaltica com especificidades regionais
e cronolgicas na Europa (sobretudo Frana e Pennsula Ibrica) e na Etipia, numa
diacronia bem mais recente. Alis, como foi referido atrs, A. Sherratt, uma
excepo britnica, tambm abordou o fenmeno como highly visible symbolism of
the living community, through the medium of monumental constructions for the
dead realando que Truly megalithic monuments formed part of a spectrum of
such constructions, which otherwise used earth, timber and smaller stones
(Sherratt, 1995, p. 247). No mesmo sentido, tambm A. Gallay (2006) parece discutir
Les Socits Mgalithiques, procurando pela via antropolgica enquadrar este
fenmeno como um reflexo scio-cultural.
Em Portugal, alguns autores tm procurado uma expresso mais adequada para
este complexo fenmeno. Assim, V. Gonalves (2003e, p. 263-265) admite o uso de
Megalitismo como sinnimo pobre e complemento de outra expresso, as
prticas funerrias do 4 e do 3 milnio, a que acrescentou posteriormente antigas
sociedades camponesas (Gonalves, 2005b) ou, talvez mais adequado, sociedades
agro-pastoris.
Portanto, para o mbito deste trabalho o conceito de Megalitismo entendido
no sentido amplo e supra-estrutural, relacionado com as prticas funerrias daquelas
comunidades agro-pastoris, genericamente limitadas aos 4 e 3 milnios a.n.e..
Assim, na regio da Estremadura, esses ritos funerrios so visveis em diferentes
espaos, nomeadamente em cavidades naturais e artificiais, antas e tholoi. Alis, V.
S. Gonalves (1978a e 1978b) havia j discutido o conceito de Megalitismo de
grutas como forma de enquadrar as deposies funerrias ali realizadas, em tudo
idnticas quelas encontradas em antas. Esta diversidade de solues estruturais
tambm parece ocorrer noutras regies da pennsula e fora dela (Leisner e Leisner,
1943 e 1959; Leisner, 1965; Briard, 1995; Bradley, 1998; Masset, 1997; Scarre,
1996; Mohen e Scarre, 2003; Cerrillo e Gonzalez, 2007; Dowd, 2008), com
significado sincrnico e diacrnico, podendo relevar-se, para alm do substrato
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 13 de 415
cultural, um certo grau de determinismo geogrfico nas oportunidades e escolhas que
as populaes de cada rea puderam concretizar nos seus contentores sepulcrais.
No que concerne o maior ou menor investimento num sepulcro, a utilizao de
uma cavidade natural (nem sempre prxima ou facilmente acessvel) ou a abertura de
uma fossa individual implicaria um esforo menor no curto prazo, ainda que
multiplicado pelos bitos ocorridos ao longo do tempo (Masset, 1997). Pelo
contrrio, a construo de um grande jazigo obrigaria a um investimento comunitrio
maior, mas aquele espao poderia servir vrias geraes de inumados (Masset,
1997).
Uma das caractersticas comuns do Megalitismo no espao geogrfico europeu
ocidental, independentemente das suas variaes regionais, parece ser a prtica
funerria colectiva. Nesse sentido, relembro a j referida expresso, collective
tombs para l do Canal da Mancha, reflectindo essa realidade. Mas l'essentiel, en
effet, n'est pas que le coutume de l'inhumation collective ait t transmise ou qu'elle
ait t invente, c'est le fait qu'elle a t reue" (Masset, 1997, p. 15), e dessa forma
apresentam-se como um bloco cultural genericamente homogneo.
Para alguns autores, contudo, a prtica funerria colectiva encontra-se atestada
j no 5 milnio a.n.e., nomeadamente na fachada atlntica francesa (Masset, 1997;
Chambon, 2003) ou no Sudeste espanhol, em Cerro Virtud (Montero e Ruz, 1996,
Montero et al., 1999), em momentos anteriores s construes megalticas, pelo que
ambos os fenmenos, colectivizao na morte e megalitismo, no devero ser
confundidos como um s. Por outro lado, situaes h, em que grandes sepulcros
monumentalizados tero sido utilizados, aparentemente, para deposio de um
indivduo ou de um pequeno grupo deles e, por outro lado, conjuntos numerosos de
indivduos foram sepultados em jazigos discretos, escavados no substrato ou
utilizando grutas naturais (Masset, 1997; Chambon, 2003). No caso das antas de
Lisboa e regies vizinhas o cruzamento de factores cronolgicos e geogrficos
deveras importante para um melhor entendimento dessas realidades, mas ser
efectuado noutro captulo.
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 14 de 415
1.1. Uma discriminao positiva: as antas da regio de Lisboa.
Les monuments mgalithiques classiques ne sont
en effet quune partie dun tout trs particulier: les espaces de la mort des anciennes socits paysannes. Il faut choisir ce quon doit viser : seulement les monuments dun type particulier ou lensemble articul des rites, des mythes, et des pratiques magico-religieuses qui les ont fait natre. Mon choix a toujours t la deuxime possibilit, mais jaccepte la dualit des critres, si on arrive la justifier (Gonalves, 2006, p. 498-499).
Como j foi referido atrs, na regio de Lisboa possvel verificar uma
diversidade de solues estruturais para a ltima residncia dos defuntos. Desses
vrios jazigos existem numerosas notcias, inclusive realizadas de forma mais ou
menos sistemtica (Ribeiro, 1880; Ferreira, 1959, Leisner, 1965). Nas ltimas
dcadas os conjuntos recolhidos, sobretudo em grutas naturais e artificiais (Cardoso,
1990 e 1995a e 1995b; Cardoso et al., 1992 e 2003; Gonalves, 2003e, 2005a e
2005b), e em tholoi (Gonalves, J. L. 1979a e 1979b; Cardoso et al., 1996;
Gonalves, 2003e) tm vindo a ser revistas e estudadas dentro de parmetros e
questionrios actuais. Contudo, as antas de Lisboa quedavam-se por tratar, apesar de
algumas terem sido escavadas h mais de cem anos nomeadamente Monte Abrao,
Estria, Pedra dos Mouros e Carrascal (Ribeiro, 1880) e serem constantemente
referidas, sobretudo pelos paralelos apontados para alguns artefactos nelas
recolhidos. Tornava-se, ento, importante rever e avaliar estas antas, discriminando-
as pelas suas caractersticas especficas: a sua feio ortosttica e megaltica.
Primeiramente considerou-se importante estabelecer os critrios estritos para
anta ou dlmen.
A utilizao do termo anta ser preferencial, mas significar exactamente o
mesmo que dlmen, quando usado. Na sua origem latina a palavra anta surge
associada s pilastras ou colunas na frontaria de um edifcio, [normalmente
templos], encravadas em parte na parede e colocadas aos lados das portas e,
posteriormente, referindo-se a espcie de marco de terra que se erguia diante de
castelos ou povoaes (Houaiss, Villar e Franco, 2005, p. 657). O perfil que muitos
destes sepulcros megalticos apresentavam (e apresentam) ainda cobertos, marcando
a paisagem ou, depois de despidos do seu manto tumular, assemelhando-se o seu
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 15 de 415
esqueleto ptreo a um portal, poder explicar a difuso e adopo daquele termo.
Outros termos de cariz popular, que denotam o reconhecimento destas estruturas na
paisagem, so referenciados por Vasconcelos (1897), inclusive com um certo tom
regional, como por exemplo arca e altar mais a norte, anta no centro-sul, ou
mamoa por todo o pas.
Segundo o mesmo dicionrio referido atrs (Houaiss, Villar e Franco, 2005, p.
3081), dlmen (dolmin ou dolmen) resultou de uma transcrio inexacta, feita pelo
arquelogo francs Latour dAuvergne, do crnico tolmen admitindo-se que ser
menos provvel a hiptese de uma formao directa, com base no breto tol, taol
mesa + mean, men pedra . Contudo, o termo divulgou-se e comum a admisso
da origem bret com aquele significado. Por sua vez, essa designao ter sido
adoptada em Portugal pelo meio acadmico, pelo menos desde o sculo XVIII
(Vasconcelos, 1897), provavelmente no intuito de normalizao e adequao ao
implantado e mais desenvolvido discurso cientfico europeu setentrional.
Actualmente, com o avano da investigao e a conscincia da complexidade do
fenmeno funerrio nas vrias regies, a designao dolmen usada de formas
dspares, tendo cado em desuso nas ilhas britnicas, normalmente limitada a Portal
Dolmen (Whitehouse, 1983, Barclay, 1997), ou ganhou novos significados por
exemplo em Frana, abrangendo as estruturas funerrias verdadeiramente
megalticas, aquelas parcial ou totalmente de pedra seca com cpula ou, inclusive,
aquelas construdas com madeira (Masset, 1997; Joussaume, 2004).
Se os elementos ortostticos e megalticos so parte essencial da definio de
anta, estes tambm se poderiam aplicar a alguns tholoi da Estremadura, bastando
recordar os elementos ptreos dos sepulcros do Monge (Ribeiro, 1880) ou da Tituaria
(Cardoso et al., 1996): as dimenses de alguns dos blocos utilizados na construo
das suas cpulas so semelhantes ou mesmo superiores quelas de antas,
nomeadamente de Monte Serves (North, Boaventura e Cardoso, 2005). Mas a tcnica
construtiva difere, sobretudo no tipo de planta e cobertura final, pelo que no sero
includos no grupo agora em discusso.
Aplica-se ento o termo anta, de uma forma genrica, ao monumento funerrio
constitudo por grandes pedras (esteios ou ortstatos) definindo uma cmara que
pode apresentar-se aproximadamente poligonal, mais ou menos alongada, coberta
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 16 de 415
por uma grande laje monoltica (chapu), ainda que naquelas mais alongadas se
tenha, talvez, recorrido a mais de uma laje. Podia ainda prolongar-se por um
corredor, tambm ortosttico, com extenses variveis e coberto por lajes menores
(lintis). Noutros casos a cmara surge sem qualquer corredor ou mesmo fechada,
apresentando dimenses ortostticas mais reduzidas, sendo apontadas como os
exemplares pioneiros desta nova forma arquitectnica de enterramento e,
frequentemente, designadas sepulturas protomegalticas (Silva e Soares, 2000). Os
esqueletos ptreos das antas seriam, em princpio, recobertos por terra e pedras
formando o tumulus ou mamoa, emergindo na paisagem, mais ou menos destacado,
como uma espcie de colina semi-esfrica.
Ao utilizar os critrios mencionados, o universo de sepulcros do tipo anta,
corresponde genericamente aos megalithgrber de V. Leisner (1965) ou aos
monumentos megalticos enunciados por O. V. Ferreira (1959) para a regio de
Lisboa, ainda que, em obra colectiva posterior, da qual participa este ltimo, se
admita que os sepulcros megalticos com cmaras alongadas no poderiam ser
considres comme vritables dolmens dans le sens commun du terme, pois
apresentariam caractersticas dos monumentos do Sudeste espanhol (Zbyszweski et
al., 1977). Contudo, julgo que aquelas especificidades tipolgicas, nem sempre
confirmadas no presente estudo, e que sero tratadas noutro captulo, no so
suficientes para relegar esses sepulcros como no-antas.
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 17 de 415
2. Enquadramento geogrfico.
As caractersticas geomorfolgicas, estabelecidas por H. Lautensach, do
Portugal Litoral Mdio e do Portugal Meridional (Alentejo), contrapem-se ao Alto
Portugal (Ribeiro, Lautensach e Daveau, 1991). Assim, a Cordilheira Central
delimita duas reas: o Norte e o Sul de Portugal, nesta ltima integrando-se o
Portugal Litoral Mdio e o Alentejo, a mais vasta e montona unidade natural do
nosso territrio (Ribeiro, 1998, p. 151).
Ao Portugal Litoral Mdio, segundo Barros Gomes secundado por Lautensach
(Ribeiro, Lautensach e Daveau, 1991), correspondem duas regies distintas: a Beira
Litoral, correspondendo ao Baixo Mondego, a norte e sul do rio homnimo, e
estendendo-se at Nazar; a segunda, o Centro Litoral. Esta ltima refere-se
essencialmente Estremadura, mas na qual possvel verificar duas realidades
fsicas contrastantes: uma correspondendo ao Macio Calcrio Estremenho, com
altimetrias entre os 400-600 metros, orientando-se de NNE para SSW, terminando na
Serra de Montejunto; a outra realidade, mais baixa, estendendo-se pela orla costeira
para sul at Arrbida (o outro macio calcrio), essencialmente uma superfcie de
eroso, com raros cabeos e alinhamentos de relevos, recortada pela aco
hidrogrfica fluvial e martima, apresentando por vezes vales encaixados (Ribeiro,
Lautensach e Daveau, 1991).
Contudo, estes contrastes no so suficientes para uma clivagem profunda com
o Portugal Meridional. Assim, O. Ribeiro (1998, p. 152) relembra-nos que a orla
martima entre o Tejo at quase ao Douro era designada, ainda no sculo XVI, por
Estremadura, era o sentimento de tudo o que aproxima as regies separadas pelo
baixo vale do Mondego (Ribeiro, 1998, p. 152). Alis seria a que o carvalho
alvarinho cede o lugar ao carvalho portugus, forma de transio para as espcies
de folha perene (Ribeiro, 1998, p. 152). Mas, para O. Ribeiro a Estremadura tem, de
facto, algo original nos macios calcrios onde se encontram belos exemplos de
todas as formas crsicas, os Macios Estremenho e da Arrbida (Ribeiro, 1998, p.
153).
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Fig. 1: Fisiografia da Estremadura e delimitao da rea em estudo
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 19 de 415
2.1. Fisiografia da Baixa Estremadura.
A regio de Lisboa, definida no mbito deste trabalho (Fig. 1, 1a e 23),
corresponde grosso modo designada Baixa Estremadura, contexto geogrfico j
utilizado por outros investigadores (por ex. Sousa, 1998; Cardoso, 2004). Abrange as
pennsulas de Lisboa e Setbal, limitando-se a norte pelas faldas da Serra de
Montejunto e a sul pela foz do rio Sado e a Serra da Arrbida. A nascente, o imenso
esturio do Tejo e a sua bacia terciria marca-lhe a fronteira, tal como a costa
atlntica o faz a poente. No caso presente o limite setentrional quedou-se pelas bacias
das ribeiras do Lizandro, Tranco e da Pipa, estas duas ltimas associadas ao mago
do manto basltico do Complexo vulcnico de Lisboa, que parece corresponder aos
limites daquela denominada por J. L. Gonalves (1979c) como Baixa pennsula de
Lisboa.
No mbito da Geologia de Cascais, M. Ramalho (2005) estipulou quatro
conjuntos de formaes geolgicas, cuja caracterizao poder, facilmente, estender-
se restante pennsula de Lisboa, bem como de Setbal, onde deveremos
acrescentar o macio da Arrbida (Fig. 22):
a. O conjunto dos calcrios, margas e arenitos do Jurssico Superior-Cretcico,
onde os nveis com uma composio carbonatada predominante, especialmente do
Cretcico inferior, estiveram na origem de fenmenos de carsificao de diversos
tipos lapis, dolinas e cavernas, muitas delas com presena arqueolgica. As
bancadas do Cretcico superior, com calcrios de rudistas e foraminferos, serviram
at hoje para extraco de rochas para a construo civil. Alguns daqueles leitos
geolgicos apresentam intercalaes de slex, que foram abundantemente
aproveitadas na pr-histria (Ramalho, 2005; Ramalho et al., 1993).
b. O Macio eruptivo de Sintra, sendo o relevo mais importante da regio,
apresenta um ncleo sientico com anis granticos e grabro-diorticos, surgindo
associados a numerosos files e a uma cintura de calcrios metamorfizados. Esta
intruso ter ocorrido entre 75 e 95 milhes de anos, j no final do Cretcico, sendo
exposto pela eroso h cerca de 40 milhes de anos, no Tercirio inferior (Ramalho,
2005, Ramalho et al., 1993).
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 20 de 415
c. O Complexo vulcnico de Lisboa resultou de actividade vulcnica h cerca
de 70 milhes de anos, no Cretcico final. Corresponde essencialmente a rochas
lvicas, resultantes de escoadas baslticas e depsitos vulcano-sedimentares tufos,
brechas e piroclastos. A decomposio daquelas rochas deu origem a solos
considerados hoje dos mais frteis do pas (Zbyszewski, 1964; Oliveira et al., 2000;
Ramalho, 2005).
Durante os episdios de instalao do Macio de Sintra e a actividade
vulcnica, no se registou actividade sedimentar significativa at formao das
rochas tercirias. Alguns desses depsitos geolgicos resultaram da eroso de relevos
pr-existentes, tendo resultado em conglomerados e calcrios argilosos e arenticos
(Martins, 2004; Ferreira, 2005b), e foram aproveitados na pr-histria para a
escavao de cavidades sepulcrais (Ramalho, 2005). Estas manchas geolgicas
situam-se maioritariamente na orla fluvial e costeira da pennsula de Lisboa, a norte-
nordeste da serra de Sintra e nas reas nascente e norte do macio da Arrbida da
pennsula de Setbal.
d. Finalmente, os depsitos quaternrios, correspondendo essencialmente a
fenmenos marinhos e fluviais, formaram vrias cascalheiras de calhaus e areias, por
vezes com os primeiros indcios de actividade humana (Ramalho, 2005; Zbyszweski,
1964). Boa parte dos depsitos mais recentes ocuparam o espao outrora preenchido
por guas estuarinas, a que me referirei abaixo.
De uma forma genialmente sucinta O. Ribeiro (1998, p. 154) ilustra as
consequncias da diversidade geomorfolgica da regio referida: () Nos
arredores de Lisboa, por exemplo, os barros baslticos do campos limpos e abertos
destinados cultura do cereal; os calcrios secundrios, charnecas abandonadas ao
mato e pasto; os calcrios tercirios cobrem-se de olivedo; as baixas argilosas, de
hortas regadas; o pinhal reveste as colinas de arenito improdutivo. No horizonte da
cidade, duas montanhas que se vem uma outra encerram a escala destas
combinaes: Sintra, envolta em nvoas e afofada de arvoredos frondosos, rica de
guas e de sombras musgosas, uma recorrncia do Norte; a Arrbida, nos campos
de calcrio, no soberbo matagal mediterrneo, na serenidade das guas onde a
serra se despenha quase a pique, um fragmento de riviera isolado beira do
Atlntico (Ribeiro, 1998, p. 154).
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 21 de 415
De facto, a morfologia da regio de Lisboa depende fundamentalmente de
uma grande variedade litolgica (os diferentes tipos de rochas em contacto oferecem
diferentes tipos de resistncia eroso) e da tectnica local (dobras e falhas) que
modelam colinas, interflvios de uma rica rede hidrogrfica. Os mantos baslticos,
alternantes com leitos de tufos e brechas vulcnicas, cobrem grande parte da regio
da capital, dando origem normalmente a solos muito frteis (Silva, 1983). E essa
situao parece j registar-se durante os 4 e 3 milnios a.n.e., resultando em solos
frteis, boa insolao, relevos suaves, abundncia de gua e uma rede hidrogrfica
regular, amenidade climtica e, ainda, a proximidade dos esturios do Tejo e do
Sado, domnios abundantes de recursos, facilmente explorveis ao longo do ano
(Cardoso, 2004, p. 21).
Por outro lado, a extraco de rochas (calcrios, mrmore, basalto, etc.), por
exemplo para o aqueduto das guas Livres ou a reconstruo de Lisboa ps-
terramoto 1755, originou, e ainda origina, crateras imensas na paisagem, o que afecta
a leitura do relevo em determinadas reas da regio. Inclusive, erradicando sepulcros,
como os de Trigache ou, mais tarde, os de Casal do Penedo.
Quanto aos solos da regio de Lisboa, se possvel presumir a sua riqueza,
referida atrs, a sujeio multissecular a uma presso antrpica massiva suscita srias
cautelas para anlises de pormenor. Alis, a pequena escala da cartografia disponvel
(1: 1 000 000) torna ainda mais vo tal desiderato.
Os dados paleo-ecolgicos, actualmente disponveis para a Baixa Estremadura
durante os 4 e 3 milnios a.n.e., so limitados, mas possvel extrapolar as suas
caractersticas gerais a partir de algumas curvas polnicas realizadas na pennsula de
Setbal e no Alentejo litoral (Queiroz, 1999; Queiroz e Mateus, 2004).
Assim, aquele perodo enquadra-se de forma genrica no Holocnico mdio,
fase B e C, num clima subhmido transitando para um mais seco, de carcter
mesomediterrnico, com formaes lenhosas de pinhal bravo (Pinus pinaster),
dominante nos interflvios, mas gradualmente substitudo por urzal alto (urze das
vassouras Erica scoparia) nas zonas de solos podzlicos. As matas marescentes
(Quercus faginea - carvalho cerquinho ou portugus) nas meia-encostas dos vales
vo sendo substitudas por carrascal esclerfilo (Quercus coccifera- carrasqueiro). O
zambujal (Olea europaea sylvestris) surge nas encostas secas e mais expostas, com
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 22 de 415
sub-bosque de Erica arbrea (urze branca), sobretudo nos litossolos da Arrbida, e
as baixas fluviais so dominadas por amiais (Alnus glutinosa e Frangula) e
salgueiros (Salix sp) (Queiroz, 1999, p. 228).
Outros estudos arqueobotnicos (carpolgicos e antracolgicos) produzidos
pontualmente para ocupaes pr-histricas da Estremadura, ainda que de
cronologias dspares (Queiroz e Leeuwaarden, 2001 e 2004; Hopf, 1981) do
segurana extrapolao proposta atrs. Assim, no povoado de So Pedro de
Caneferrim, no contexto montanhoso de Sintra, parece registar-se durante o Neoltico
antigo uma mata marescente de Quercus faginea de carcter mediterrnico, mas com
zonao de espcies, associadas a reas mais ridas ou mais hmidas, nomeadamente
mata decdua ribeirinha (Fraxinus angustifolia, Populus, Salix e Ulmus), charnecas e
matos rasteiros, podendo estas ltimas corresponder a impacto humano relacionado
com pastagens (Queiroz e Leeuwaarden, 2001). Mais para norte, no povoado de So
Mamede (Bombarral), em contextos dos 4 e 3 milnios a.n.e., foram recolhidos
elementos vegetais que parecem apontar para matagais esclerfilos de carcter
mediterrnico, semelhantes aos actuais, onde se encontram o medronheiro (Arbutus
unedo) o carrasco e a urze branca, parecendo a presena de giesta (Cytius striatus),
sugerir a existncia de charnecas em reas com maior impacto humano (Queiroz e
Leeuwaarden, 2004). Semelhante quadro tambm surge em redor do povoado do
Zambujal, Torres Vedras (Hopf, 1981), referindo-se a presena de pinheiro (Pinus
sp.), floresta de carvalhos (Quercus ilex - azinheira e Quercus suber sobreiro) nas
encostas e junto das margens fluviais o freixo (Fraxinus excelsior), o choupo
(Populus sp.) e o amieiro (Alnus sp.).
De facto, P. Queiroz (1999) reala para o perodo dos 4-3 milnios, no litoral
norte alentejano, um impacto humano acentuado que ter resultado na reduo do
coberto florestal dos interflvios e abertura dos ribeirinhos, ainda que mantendo-se
os bosques de encosta, bem como registando-se a expanso de matagais.
2.2. Rio Tejo, um palco fundamental para a histria da regio.
O Tejo um dos maiores rios da Pennsula Ibrica, quer em extenso, quer em
caudal. Nasce na Cordilheira Ibrica orientando o seu curso de este para oeste,
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 23 de 415
apenas virando para sudoeste perto de Constncia, onde absorve o rio Zzere
(Ribeiro, Lautensach e Daveau, 1988). Da em diante alarga-se pela bacia sedimentar
terciria, para apenas estreitar na sua foz, apertada pelas pennsulas de Lisboa e
Setbal, as duas metades da Baixa Estremadura (Fig. 1 e 1a).
A foz do Tejo rompe a continuidade da costa atlntica de forma peculiar,
resultando num dos raros portos de abrigo para a navegao, bem como, graas ao
seu prolongado esturio, numa via de penetrao navegvel da maior importncia
para os territrios interiores (Daveau, 1980, 1994 e 1995). A outra descontinuidade,
imediatamente a sul, do esturio do Sado, apesar de larga, fica limitada a este, pois o
caudal desse rio no atinge a pujana ou a extenso do primeiro.
Portanto, para alm de ser o palco da histria de Lisboa (Daveau, 1994), o
Tejo surge-nos tambm como o palco da histria das populaes da Baixa
Estremadura e dos territrios vizinhos, por ele banhados, do Centro-Sul de Portugal.
O emaranhado de relevos acidentados existentes a norte de Lisboa (Complexo
vulcnico de Lisboa e faldas da Serra de Montejunto), dificulta a circulao sul-
norte, pelo que o Tejo e os seus tributrios foram, at o aparecimento da ligao
ferroviria, o meio por onde circulavam para territrios interiores, maioritariamente,
pessoas e bens (Daveau, 1994). Recorde-se o caso particular do rio Tranco, que at
o sculo XIX, era a via preferencial para transporte de bens de, e para, as frteis
terras da regio de Loures (Daveau, 1994; Fragoso, 2001; Oliveira, et al., 2000). Ou
a importncia que a montante do rio, Santarm e, sobretudo, Tomar, assumiram para
a passagem dos Macios centrais (Daveau, 1994), mas tambm na fcil ligao ao
Alto e Mdio Alentejo. E se esta importncia histrico-geogrfica est
abundantemente documentada, tambm uma situao ainda mais optimizada ter
existido durante os 4 e 3 milnios a.n.e.
Segundo S. Daveau (1980 e 1994), na sequncia da transgresso flandriana, o
vale do Tejo, profundamente escavado durante o perodo glaciar do Wrm, viu-se
preenchido pelas guas de um mar cujo nvel subiu rapidamente (Fig. 1 e 24). Assim,
nos 4 e 3 milnios a.n.e. o esturio do Tejo apresentar-se-ia com guas salobras,
sentindo provavelmente o efeito das mars at rea de Constncia, cerca de 100
quilmetros para montante da foz do rio. Apesar de impactos e dimenses variveis,
essa transgresso aqutica tambm se fez sentir noutras bacias estuarinas,
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 24 de 415
nomeadamente no Sado e Mondego (Daveau, 1980; Senna-Martinez, 1990), bem
como naquelas que desaguavam directamente na orla costeira estremenha (Fig. 1 e
24). Foi alis com esta verificao, que se compreendeu melhor o enquadramento de
vrios povoados deste perodo, nomeadamente Vila Nova de So Pedro e Zambujal
(Daveau, 1980; Daveau e Gonalves, 1983-84; Hoffman, 1990; Hoffman e Schulz,
1994).
, portanto, no mbito da fisiografia e hidrografia expostas atrs, que as
populaes pr-histricas dos 4 e 3 milnios a.n.e. devero ser enquadradas,
verificando a forma como aproveitavam no seu quotidiano os recursos disponveis,
bem como isso poder ter influenciado as suas prticas funerrias.
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3. A investigao pr-histrica na regio de Lisboa.
Num tempo [sculo XIX] em que se discutia como organizar oficialmente os estudos da arqueologia em Portugal e como dar-lhe expresso museolgica () quem melhor se sucede () parecem ser homens que ao talento e saber acrescem fortuna pessoal e capacidade de aglutinar elites economicamente desafogadas e mentalmente empenhadas no progresso moral da nao (Ferreira, 1994, p. 76).
() uma realidade que (essa sim) se pode
considerar uma constante na actividade arqueolgica portuguesa: o choque de personalidades (Fabio, 1999, p. 109).
Os arquelogos, em Portugal, sempre tiveram
dificuldades em trabalhar desafogadamente e em fazer-se ouvir, mesmo aqueles que, supostamente, mais prximo se encontravam do poder poltico (Cardoso, 2002, p. 40-41).
A reflexo e o debate acerca da histria da investigao arqueolgica e,
especificamente, da Pr-histria em Portugal, receberam nas ltimas dcadas um
grande incremento. Vrios autores tm, com sucesso, analisado o desempenho de
indivduos e instituies nesse labor (Gonalves, 1980a e 1980b; Santos, 1980;
Fabio 1989 e 1999; Diniz e Gonalves 1993-94; Lillios, 1996 e 2008; Cardoso,
2002, 2008a, 2008b e 2008c; Martins, 2003, 2005 e 2007; Carneiro, 2005, Rocha,
2005; Coito, Cardoso e Martins, 2008; Boaventura, 2008; Boaventura e Langley, no
prelo). , pois, no mbito do presente trabalho, importante delinear e enquadrar os
processos polticos e socio-econmicos que, desde o sculo XIX, moldaram e
condicionaram as perguntas e as respostas que diversos investigadores efectuaram
acerca do perodo hoje associado ao Megalitismo e, como se propor, centrado nos 4
e 3 milnios a.n.e.. Enquadrado por esse esboo, tambm se analisar, com maior
detalhe nos captulos especficos dos respectivos sepulcros, os investigadores e os
trabalhos desenvolvidos por eles.
Apesar de se poder encontrar em sculos anteriores o interesse pelos vestgios
pr-histricos, nomeadamente as construes megalticas, parece unnime para
vrios autores que a segunda metade do sculo XIX e, sobretudo, o terceiro quartel
daquele, marcaram o nascimento de uma arqueologia pr-histrica em Portugal
(Fabio, 1989 e 1999; Diniz e Gonalves, 1993-94; Cardoso, 2002; Martins, 2003 e
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 26 de 415
2007; Rocha, 2005), culminando essa intensa actividade na realizao em Portugal,
com o patrocnio rgio, do IX Congresso Internacional de Antropologia e
Arqueologia Pr-Histricas (Santos, 1980, Gonalves, 1980b; Diniz e Gonalves,
1993-94). Este encontro consagrou o prestgio cientfico de alguns investigadores
portugueses, dentro e fora do pas, para o qual, mile Cartailhac (1880 e 1886) ter
sido um dos seus maiores arautos, sobretudo porque as suas publicaes em francs,
distribudas a partir de Frana, permitiram uma maior exposio da arqueologia pr-
histrica portuguesa perante a comunidade cientfica europeia e norte-americana.
Num contexto europeu de crescimento industrial, em que a procura de
potenciais recursos naturais se tornava urgente, depois de um pouco produtivo grupo
de trabalho chefiado por Charles Bonnet, criada a Comisso Geolgica do Reino
- 1857-1868 - encabeada por Carlos Ribeiro e Francisco Pereira da Costa (Santos,
1980; Cardoso, 2002; Leito, 2004; Carneiro, 2005). Num af sem precedente, o
primeiro, militar de formao e com maior capacidade para o trabalho de campo,
promoveu o registo da geologia (mas tambm de outros recursos naturais) do
territrio portugus graas ao seu esforo e do grupo de colectores, que instruiu.
Simultaneamente, deu ateno a diversos vestgios humanos, atribuveis a diversos
perodos da Pr-histria, em alguns casos escavando-os, noutros inventariando-os
para posteriores trabalhos. Esta faceta arqueolgica do trabalho da Comisso foi
reproduzida pelo seu assistente e sucessor, Joaquim Nery Delgado, tambm militar
de carreira, ainda que lhe dedicasse menor ateno aps a morte do seu mentor.
Destoava destes dois investigadores F. P. Costa, pouco propenso ao trabalho de
campanha, preferindo a actividade de gabinete para a anlise de fsseis e produo
dos seus escritos (Leito, 2004; Carneiro, 2005). Estes caracteres pessoais distintos
acabaram por originar posies profissionais antagnicas, levando extino breve,
mas dolosa, da Comisso Geolgica, em 1868, tendo parte da coleco dos
espcimes recolhidos (geolgicos e arqueolgicos) sido transferida para a Escola
Politcnica, onde leccionava F. P. Costa, aps a sua interveno junto do poder
instalado (Leito, 2004). No ano seguinte, na sequncia de mudana governamental,
a extinta Comisso recriada (ainda que s em 1870 iniciasse funes), agora
somente sob a direco de Carlos Ribeiro com a assistncia de J. N. Delgado, mas
denominada Seco dos Trabalhos Geolgicos (Leito, 2004; Carneiro, 2005).
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 27 de 415
Talvez para colmatar as perdas registadas em 1868, mas tambm porque se
tornara oportuno, no mbito da preparao do planeado Congresso Internacional de
1880, registou-se uma intensa actividade de escavao que perdurou at ao referido
encontro e doena e morte de Carlos Ribeiro, em 1882. Posterior e gradualmente, a
actividade arqueolgica decresce, embrenhando-se o novo director, J. N. Delgado,
em questes mais geolgicas (Carneiro, 2005). De facto, alm dos terraos tercirios
(Ribeiro, 1871 e 1873), da gruta da Cesareda (Delgado, 1867) e de parte dos
concheiros de Muge (Costa, 18651), genericamente enquadrveis no Paleoltico e
Mesoltico, a maioria das escavaes foi efectuada no mbito desta nova
Comisso. Assim, registaram-se novas intervenes, nos concheiros de Muge, bem
como em stios de habitat e de necrpole, anteriormente inventariados, sobretudo em
antas e grutas naturais e artificiais (Ribeiro, 1878, 1880 e 1884; Delgado, 1880,
1884, 1891a e 1891b). Por exemplo, na regio Lisboa, foram identificadas as antas
de Monte Abrao, Estria, Pedra dos Mouros, Carrascal, Pedras Grandes, Alto da
Toupeira 1, Batalhas, Casal do Penedo e Carcavelos que, com excepo das ltimas
trs, foram ento escavadas, pelo menos entre 1875 e 1878. Alm destas, realizaram-
se intervenes no tholos do Monge, nas grutas artificiais do Casal do Pardo
(Leisner, Zbyszweski e Ferreira, 1961; Soares, 2003) e Folha das Barradas
(sobretudo a recolha de informao e artefactos), bem como nas grutas naturais da
Cova da Raposa/Cova Grande e Cova do Biguino, do Moinho da Moura (associada
ao povoado de Leceia), da Ponte da Laje, de Porto Covo e de Poo Velho. No seu
conjunto quase todos os stios tiveram notcia publicada ou, pelo menos, os seus
materiais foram depositados no Museu Geolgico, no essencial, devidamente
etiquetados com a sua provenincia (por vezes cobrindo excessivamente as peas).
Este cuidado museolgico foi deveras importante, pois, por no ter sido continuado
em dcadas posteriores, so estas peas e as suas provenincias, mais fiveis do que
outras que deram entrada no ps Grande Guerra.
No que concerne a qualidade da actividade arqueolgica, os trabalhos de C.
Ribeiro e depois de J. N. Delgado apresentavam-se cientificamente rigorosos e
nalguns aspectos precursores, tendo em conta a poca e a precocidade destes. A
aplicao do mtodo estratigrfico na escavao de algumas das grutas-necrpole 1 Escavados por C. Ribeiro e abusivamente apresentados e publicados por F. P. Costa (1865; Leito, 2004).
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 28 de 415
evidente na gruta da Furninha (Delgado, 1884), bem como se verifica uma
sistematizao e comparao tipolgica dos materiais arqueolgicos recolhidos (por
exemplo Ribeiro, 1878 e 1880). Inclusive, C. Ribeiro (1880) procurou perscrutar nos
restos antropolgicos de alguns sepulcros, em particular de Monte Abrao e Folha
das Barradas, informao hoje comummente expectvel, como o nmero mnimo de
indivduos, a idade e o sexo algo entretanto relegado para um plano secundrio em
favor de avaliaes rcicas dos indvduos exumados em Portugal, seguindo a
tendncia europeia, perdurando at a dcada de 80 do sculo XX (Cunha, 2000).
Ainda associados aos trabalhos dos servios geolgicos h que registar algumas
abordagens multidisciplinares sobre materiais depositados no Museu, nomeadamente
por Francisco Oliveira e Paula (1884, 1886 e 1889), acerca das ossadas humanas
mesolticas e neolticas exumadas, e por Alfredo Bensade (1884 e 1889), sobre a
natureza mineralgica de artefactos lticos ou a constituio dos artefactos em cobre.
Alguns autores oitocentistas, menos interessados na investigao de campo,
produziram ainda algum trabalho sobre a Pr-Histria, nomeadamente Augusto
Simes (1878). Outros prosseguiram no campo outras abordagens, mais
independentes, como Sebastio Estcio da Veiga (Veiga, 1879 e 1886-91;
Gonalves, 1980a; Cardoso e Gradim, 2004), ou integrados na Real Associao dos
Architectos Civis e Archelogos Portugueses, como Joaquim Possidnio da Silva
(Martins, 2003 e 2005). Alis, este ltimo procedeu a vrias escavaes em sepulcros
megalticos, nomeadamente nas regies de vora e Elvas, ou no pretenso dlmen de
Adrenunes, Sintra, na dcada de 1850, onde no verificou qualquer evidncia
sepulcral (cit in Martins, 2003, p. 237). Contudo, manifestava em vrios escritos um
maior interesse pelo registo e salvaguarda daqueles monumentos, e menos pelo seu
teor cientfico (Martins, 2003, p. 240-241).
Apesar de variados trabalhos realizados em antas de vrios pontos do pas,
nomeadamente por C. Ribeiro, J. P. Silva, S. E. Veiga, curioso verificar que apenas
uma comunicao portuguesa acerca deste assunto foi proferida por Jos Caldas
(1884) no Congresso de 1880, tratando de antas da regio do Minho (Santos, 1980).
Ainda que a qualidade dos trabalhos produzidos seja variada, durante o perodo
tratado acima, possvel verificar que os investigadores portugueses de oitocentos
procuravam perceber as origens da Terra e da Humanidade, num contexto
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 29 de 415
eminentemente positivista e universalista, imagem dos seus congneres do mundo
ocidental, e que os investigadores dos servios geolgicos foram um claro exemplo.
Contudo, outros indivduos inclinavam-se decididamente para anlises mais locais e
regionais, mais preocupados com aspectos paleoetnolgicos, como era o caso de
Martins Sarmento, um dos participantes do Congresso de 1880 (Fabio, 1999).
Infelizmente, aquele breve desabrochar da disciplina arqueolgica em Portugal
no frutificou. No caso dos servios geolgicos, assistiu-se a um decrscimo de
interesse e de publicaes acerca da pr-histria, nomeadamente, com stios
escavados que se quedaram por publicar at meados do sculo XX, para o qual no
ser estranho a ausncia de discpulos interessados naquelas temticas ou com as
condies estruturais para as desenvolver. O trabalho de Estcio da Veiga acabou
absorvido pelo Museu Etnolgico (hoje MNA), sem concretizao do seu programa
arqueolgico.
Ainda assim, nos anos ps-Congresso, registou-se a influncia daqueles
investigadores sobre individualidades que se tornariam fulcrais nas dcadas
seguintes. A. Santos Rocha criava a Sociedade Arqueolgica da Figueira, surgia a
Sociedade Carlos Ribeiro no Porto e Jos Leite de Vasconcelos inclinava-se para a
busca da gnese portuguesa. Esta nova gerao acarinhava ento um novo paradigma
de investigao, definido como Paleoetnolgico (Fabio, 1999). De facto, a Pr-
histria parece interessar a estes investigadores apenas como meio para buscar as
origens da nacionalidade atravs da trade povo/lngua/nao, para a qual os estudos
antropolgicos, numa perspectiva rcica (Carrisso, 1909; Athayde, 1931 e 1933;
Bubner, 1979 e 1986; Silva, 2002; Cunha, 2000 e 2008), e arqueolgicos, acresciam
com os seus dados essenciais. Os vestgios materiais comprovariam a sucesso das
idades civilizacionais, colocando os primeiros ocupantes do territrio portugus em
igualdade com outros povos da Europa e da restante Pennsula Ibrica.
A actividade de J. L. Vasconcelos, no que respeita a regio de Lisboa,
reduzida pois este procurava compreender o todo nacional, viajando e colectando por
todo o territrio portugus. Mesmo assim, a escavao da anta da Arruda, em 1898,
revela que este investigador aplicava uma metodologia razovel e de alguma forma
standard para a poca. Ao analisar os apontamentos desta escavao e daquela
efectuada na anta da Comenda da Igreja 1 (Montemor-o-Novo), no mesmo ano
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 30 de 415
(Coito, Cardoso e Martins, 2008, p. 145), interessante verificar as semelhanas no
registo de escavao, bem como as anotaes acerca do que seria expectvel
encontrar e que no o foi. Mas os resultados resumiam-se e eram utilizados para
reforar o objectivo primordial: obter elementos para determinar relaes sociaes
ou ethnicas entre a tribu que ali estanciou e outras da Estremadura, mas de pontos
afastados daquelle local (O Sculo, 6/11/1898).
Entre os vrios protagonistas interessados pela nacionalidade, sem dvida J.
L. Vasconcelos quem, por mrito prprio, pela sua longevidade e pelo
enquadramento institucional que o Museu Etnolgico lhe dava, quem marca as
primeiras dcadas do sculo XX, apresentando-se com um projecto o museu da
nao (Fabio, 1999; Coito, Cardoso e Martins, 2008).
Manuel Heleno, um dos discpulos de J. L. Vasconcelos, inicialmente,
procurou no Megalitismo as eventuais origens da nacionalidade (Heleno, 1956;
Fabio, 1999; Cardoso, 2002; Rocha, 2005). Para tal, centrou a sua investigao nos
sepulcros do Alto e Mdio Alentejo (Heleno, 1956; Rocha, 2005). Contudo, para
tirar a contraprova das [suas] concluses e ver o problema na sua totalidade
(Heleno, 1956, p. 229) aquele estendeu as suas pesquisas a vrias grutas artificiais da
Estremadura, nomeadamente, em Casal do Tojal de Vila Ch e Batas, Amadora
(Heleno, 1933 e 1942b), na Ermegeira, Torres Vedras (Heleno, 1942a), Ribeira de
Crastos, Caldas da Rainha (Jordo e Mendes, ). Tambm, desenvolveu trabalhos em
algumas grutas naturais, procura duma estratigrafia (Heleno, 1956, p. 230),
incidindo ainda alguns esforos em stios de habitat, sobretudo na rea de Rio Maior.
O contributo de M. Heleno para a investigao do Megalitismo poder resumir-
se em dois tempos: um, resumido por Fernando de Almeida (197_) ao afirmar que
bastariam estes trabalhos para ser classificada de notvel a aco do Prof. Heleno
() se os materiais recolhidos () tivessem sido estudados e publicados; outro
tempo, presente, que v os esplios recolhidos e os apontamentos prdigos de M.
Heleno finalmente a serem estudados e publicados de forma compreensvel
(Cardoso, 2002; Rocha, 2005).
Entretanto, alm fronteiras, Hugo Obermaier (1919, 1920, 1924, 1925 e 1932),
na sequncia dos seus prprios estudos acerca do Megalitismo, numa perspectiva
pan-ibrica, contribuiu de forma directa para o interesse do casal Leisner (Georg e
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 31 de 415
Vera) por aquele fenmeno (Almeida, 1972; Dehn, 1990; Boaventura e Langley, no
prelo). Assim, suscitou-se dessa forma o imenso trabalho de inventariao
sistemtica do fenmeno megaltico peninsular, materializado nos volumes dos
Megalithgrber, o primeiro verdadeiro catlogo de estruturas e esplios associadas
ao Megalitismo, sobretudo antas (Leisner e Leisner, 1943, 1951 e 1959; Leisner,
1965; Leisner e Kalb, 1998), hoje obra incontornvel e fundamental para a
compreenso da cultura material de extensas regies peninsulares, nomeadamente da
Estremadura.
O prestgio internacional granjeado pelo trabalho do casal alemo facilitou
tambm a divulgao dos resultados peninsulares e das suas interpretaes junto de
alguns dos pr-historiadores mais creditados da Europa, nomeadamente, V. Gordon
Childe, Glyn Daniel e Stuart Pigott (Boaventura e Langley, no prelo), algo que
autores portugueses nem sempre conseguiam. Exemplo disso ser a defesa de uma
origem ocidental e peninsular do fenmeno megaltico, de alguma forma defendido
por J. L. Vasconcelos, A. S. Rocha e Estcio da Veiga (Cardoso, 2002), explicao
tambm adiantada P. Bosh Gimpera (1966), ainda que focada no noroeste peninsular.
Contudo, estas hipteses apenas obtm maior eco com a publicao dos trabalhos de
Reguengos de Monsaraz desenvolvidos pelo casal Leisner (1951 e 1959), como
parece transparecer no artigo de S. Piggot (1953 cit in Cardoso 2002), ou em cartas
de V. Gordon Childe para o casal Leisner (Boaventura e Langey, no prelo).
Simultaneamente, a actividade arqueolgica dos Servios Geolgicos de
Portugal sofre um novo incremento, aps o ingresso de G. Zbyszweski, nos finais
dos anos 30 (Cardoso, 1999-00a). Por sua iniciativa e da equipa que conseguiu
reunir, nomeadamente, em estreita e frutuosa colaborao com O. V. Ferreira, bem
como com um vasto leque de colaboradores (Cardoso, 1999-00a; 2008c e 2008d), as
actividades de prospeco geolgica levaram identificao e escavao de vrias
centenas de stios, muitos deles, de outra forma desaparecidos sem qualquer notcia.
nesse contexto, quando se intensifica a mecanizao da agricultura e a presso e
expanso urbanas, que muitos stios da regio de Lisboa so salvaguardados pela
escavao e registo mesmo que deficitrio, segundo padres do que se podia fazer
na poca e, mais ainda, dos actuais.
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 32 de 415
A colaborao entre O. V. Ferreira e o casal Leisner, mas sobretudo com Vera
Leisner, aps o falecimento de Georg Leisner, em 1958 (Boaventura e Langley, no
prelo) contriburam para o conhecimento de alguns dos sepulcros mais emblemticos
da Estremadura, nomeadamente Casanhos e Praia das Mas (Leisner e Ferreira,
1959, 1961 e 1963; Leisner, Zbyszweski e Ferreira, 1961 e 1969; Cardoso, 2002 e
2008d).
Se bem que o impacto das dataes pelo radiocarbono abalava o meio
arqueolgico europeu desde a dcada de 50, e sobretudo 60, em Portugal, apesar de
cedo se terem realizado algumas medies, as implicaes reais desses resultados
apenas se tornaram evidentes durante essa ltima dcada. O. V. Ferreira, um dos
primeiros investigadores em Portugal a promover a realizao de dataes absolutas
(Soares, 2008), e que cedo se apercebeu da antiguidade dos sepulcros megalticos,
alm do enquadramento histrico-culturalista, manteve paradoxalmente uma
perspectiva histrico-culturalista e indigenista/difusionista para o fenmeno do
megalitismo, at a dcada de 70, buscando modelos e paralelos no sul peninsular,
bem como no Egipto e outras regies mediterrnicas (veja-se por exemplo a obra de
sntese acerca da Pr-Histria de Portugal - Ferreira e Leito, s.d.).
Durante a dcada de 70, so ainda escavados por O. V. Ferreira e
colaboradores (Zbyszweski et al., 1977; Leito et al. 1984 e 1987; Cardoso et al.,
1996; North, Boaventura e Cardoso, 2005; Cardoso, 2008c), um conjunto de
sepulcros megalticos, alguns directamente implicados no presente trabalho como
Pedras da Granja e Verdelha dos Ruivos.
As mudanas polticas de 1974 tornaram possvel uma variedade abordagens
que se comeavam a esboar anteriormente (Gonalves, 1971; Arnaud e Gamito,
1972; Silva e Soares, 1981). Assim, a dcada de 80 regista, para alm da manuteno
de abordagens histrico-culturalistas, uma adeso e divulgao de novas correntes de
pensamento aplicadas ao estudo do Megalitismo, normalmente refutando ideias
difusionistas, adoptando concepes histrico-materialistas, indigenistas e
processualistas (Silva e Soares, 1974-77; Silva et al., 1986; Gonalves, 1978b;
Arnaud, 1978; Parreira, 1990; Jorge, 1990a e 1990b).
Simultaneamente, tambm neste perodo que a importncia da antropologia
fsica para as interpretaes arqueolgicas retoma as abordagens perdidas no sculo
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 33 de 415
XIX e menorizadas durante o sculo XX (Cunha, 2000; Lubell, 1988; Lubell e
Jackes, 1985; Jackes e Lubell, 1992). E, uma vez mais, surgem O. V. Ferreira e seus
colaboradores, nomeadamente Manuel Leito, como percursores dessas novidades,
procurando cruzar os conhecimentos antropolgicos e arqueolgicos, ao incentivar o
estudo da coleco osteolgica humana de Lugar do Canto (Leito et al., 1987) pelo
jovem mestrando Scott Rolston, entre 1979 e 1980, ento aluno de Angel Lawerence
(Ubleaker, 1990), e um dos pioneiros, junto com Douglas Ubelaker (1974), das
novas metodologias de anlise antropolgica do Smithsonian Institute.
Finalmente, nas ltimas dcadas, correntes variadas de pensamento, ps-
processualistas, originaram abordagens inovadoras, valorizando por vezes aspectos
menos considerados da investigao pr-histrica, nomeadamente o estudos de
Gnero.
Por outro lado, tambm nestes ltimos anos a informao disponvel aumentou
exponencialmente, por vezes facilitando a reviso, integrao e compreenso de
dados antigos, estes por vezes j sem informao completa dos seus contextos
originais.
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 34 de 415
4. Sepulcros para repouso dos mortos e dos vivos.
Fig. 2: Sepulcros da Estremadura e indicao de stios habitacionais, sobretudo da regio de
Lisboa.
Rui Boaventura As antas e o Megalitismo da regio de Lisboa 35 de 415
Legenda da figura 2: Sepulcros da Estremadura e indicao de stios habitacionais, sobretudo da regio de Lisboa.
1- Grutas de Pedreira do Sobral e Vale
do Freixo 2; 2- Grutas do Morgado, dos Morcegos,
da Nossa Senhora das Lapas, dos Ossos, do Cadaval e Penha da Moura;
3- Grutas da Buraca das Andorinhas e do Caldeiro;
4- Zurrague 1; 5- Buraco Roto 2; 6- Cova das Lapas; 7- Pragais; 8- Lapa do Mourao; 9- Buraca da Moura da Rexaldia; 10- Gruta do Cadoio; 11- Grutas do Cabeo da Ministra Alta,
Pena Velha, Mosqueiros Alta, Ervideira, Calatras Alta, Calatras Mdia e Casa da Gnia;
12- Ventas do Diabo; 13- Lapa da Modeira; 14- Algar do Picoto; 15- Nascente do Almonda e Lapa da
Bugalheira; 16- Ribeira Branca; 17- Lapas; 18- Gruta do Rio Seco; 19- Gruta do Vale do Touro; 20- Algar do Joo Ramos; 21- Gruta do Carvalhal de Turquel; 22- Casa da Moira do Cabeo de
Turquel; 23- Fontes Belas; 24- Gruta dos Ursos; 25- Gruta das Alcobertas; 26- Anta das Alcobertas; 27- Raposa; 28- Lugar do Canto; 29- Carrascos; 30- Algar dos Casais da Mureta; 31- Lapa da Galinha; 32- Gruta dos Casais do Arrife; 33- Algar do Barro; 34- Marmota; 35- Lapa do Saldanha; 36- Ribeira de Crastos; 37- Outeiro da Assenta; 38- Furadouro (Amoreira de bidos); 39- Malgasta; 40- Casa da Moura; 41- Cesareda; 42- Lapa Furada; 43- Outeiro de So Mamede; 44- Serra da Roupa;
45- Columbeira; 46- Gruta das Pulgas e Lapa do Suo; 47- Anta da Columbeira; 48- Grutas da Senhora da Luz 1 e 2; 49- Abrigo Grande das Bocas; 50- Buraca da Moura; 51- Furninha; 52- Paimogo 1 e 2; 53- Feteira; 54- Vila Nova de So Pedro; 55- Rochaforte 2; 56- Furadouro de Rochaforte; 57- Charco (Frnea); 58- Pragana; 59- Salv Rainha; 60- Algar do Bom Santo; 61- Furadouro; 62- Fontanhas; 63- Lapa da Rainha 1 e 2; 64- Ermegeira; 65- Quinta das Lapas 1 e 2; 66- Stio dos Malhes; 67- Ota; 68- Quinta do Vale das Lajes; 69- Paiol; 70- Bolores; 71- Abrigo da Carrasca; 72- Portucheira 1 e 2; 73- Frnea; 74- Penedo; 75- Charrino; 76- Cova da Moura; 77- Zambujal; 78- Serra da Vila e Barro; 79- Serra das Mutelas; 80- Cabeo da Arruda 1 e 3; 81- Cabeo da Arruda 2; 82- Pedra do Ouro; 83- Refugidos; 84- Castelo; 85- Arruda; 86- Pedra Furada; 87- Juromelo; 88- Tituaria; 89- Lameiro das Antas; 90- Moinho das Antas; 91- Fojo dos Morcegos; 92- Antas (Sintra); 93- Samarra e Pedranta; 94- Faio; 95- Penedo do Lexim; 96- Negrais (Fonte Figueira,
Barruncheiro e Pedraceiras); 97- Carcavelos; 98- Crasto de Ponte Lousa e Grutas do
Tufo e das Salamandras; 99- Gruta das Salemas e povoado do
Alto da Toupeira; 100- Alto da Toupeira 1 e 2; 101- Casanhos; 102- Lapa da Figueira; 103- Monte Serves;
104- Casal do Penedo e Verdelha dos Ruivos;
105- Moita Ladra; 106- Praia das Mas; 107- Vrzea; 108- Pedras da Granja; 109- Lameiras; 110- Folha das Barradas; 111- Cortegaa; 112- Vale de Lobos; 113- Cova da Raposa; 114- Olelas; 115- Correio-Mr; 116- Serra da Amoreira e Antas
(Loures); 117- Trigache 1 a 4; 118- Pedras Grandes e Batalhas; 119- Conchadas; 120- Pedreira do Campo; 121- Tojal de Vila Ch 1 a 4, e
Espargueira; 122- Povoado e sepulcro de Batas; 123- Pedra dos Mouros, Estria e Monte
Abrao; 124- Carrascal; 125- Agualva; 126- So Martinho 1 e 2; 127- Castanhais; 128- Bela Vista; 129- Monge; 130- Porto Covo; 131- Penha Verde; 132- Leceia e Moinho da Moura; 133- Monte do Castelo; 134- Grutas e povoado de Carnaxide; 135- Alto do Dafundo; 136- Ponte da Laje; 137- Antas (Oeiras); 138- Alapraia 1 a 4; 139- So Pedro do Estoril 1 e 2; 140- Parede; 141- Murtal; 142- Estoril; 143- Grutas de Poo Velho; 144- So Paulo 1 e 2; 145- Casal do Pardo 1 a 4; 146- Chibanes; 147- Rotura e Lapa da Rotura; 148- Pena; 149- Capuchos; 150- Sampaio; 151- Castelo de Sesimbra; 152- Forte do Cavalo A e B; 153- Lapa do Fumo e Pinheirinhos 1 e
2; 154- Lapas do Bugio e da Furada; 155- Lapa da Janela 1, Lapa 4 de Maio
e Lapa da Janela 3; 156- Azia; 157- Montes Claros. 158- Ponta da Passadeira.
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4.1. As antas da regio de Lisboa.
O nmero hoje conhecido de antas na regio de Lisboa limitado. De facto, o
seu cmputo ronda as duas dezenas. Como j foi referido atrs, tal situao poder
compreender-se num territrio sujeito presso antrpica que desde a pr-histria se
documenta, mas sobretudo durante os ltimos sculos, em que a atraco da capital
do reino, hoje repblica, conduziu a uma rpida ocupao e alterao da paisagem.
No entanto, julgo que esta fraca representatividade tambm poder ser explicada pelo
contexto sociocultural, que adiante tratarei.
Apesar de se poder lamentar que muitos destes stios tenham sido escavados
prematuramente, quando as tcnicas de escavao ainda no estavam to
desenvolvidas, h que, simultaneamente, felicitar as suas intervenes, pois em
muitos casos estes sepulcros teriam desaparecido sem qualquer notcia. Por outro
lado, a sua identificao granjeou-lhes algum destaque, o suficiente para alguns
serem classificados como monumentos de importncia cultural e da protegidos, o
que aconteceu, de facto, apesar de vicissitudes vrias e peculiares sofridas.
4.1.1. O cluster de Belas.
O cluster de Belas formado pelas antas de Pedra dos Mouros, Monte Abrao
e Estria, cada uma classificada como Monumento Nacional pelo Decreto de
16/6/1910, publicado no Dirio do Governo n 136 de 23 de Junho de 1910. um
dos poucos agrupamentos deste tipo de sepulcro conhecido na regio de Lisboa (Fig.
25), tendo sobrevivido, at agora, ao tempo e aos homens, mas sobretudo deficiente
gesto territorial e patrimonial das ltimas dcadas, o que outro autor melhor retratou
(Serro, 1998).
No momento em escrevo estas linhas, novas investidas assombram
definitivamente este conjunto, e com tristeza que verifico uma certa actualidade
num texto com quase vinte anos, produzido na sequncia de uma aco de
salvaguarda dos trs sepulcros:
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Em 1973, um projecto de urbanizao para o local, felizmente no
concretizado propunha mesmo que as antas servissem de centro a largos relvados
destinados ao embelezamento das construes envolventes.
Se a "descontextualizao paisagstica dos monumentos no se consumou
integralmente, realizaram-se contudo alteraes nefastas na sua envolvente. Foram
construdos edifcios nas imediaes de Pedra dos Mouros, desfigurando-lhe o
enquadramento e provocando a acumulao de detritos na sua rea. Uma pedreira
hoje inactiva "parou" a poucos metros da Anta de Monte Abrao. A Estria, a nica
que pela sua implantao topogrfica numa dobra do terreno (), regularmente
arada (Marques, Loureno e Ferreira, 1991).
As antas de Belas foram identificadas durante os primeiros levantamentos
geolgicos dos arredores de Lisboa, no sculo XIX, conduzidos por C. Ribeiro, e,
posteriormente, exploradas e publicadas por aquele (Ribeiro, 1880).
Localizam-se numa plataforma de calcrios cretcicos, cuja altitude ronda os
200-210 metros, apresentando-se aquelas bancadas ligeiramente inclinadas para
sudeste, cobertas do lado sul pelo manto basltico e recortadas no extremo norte por
files traquticos (Ribeiro, 1880: 5-6; Ramalho et al., 1993; SGP, 1991). Alis,
segundo C. Ribeiro, aquelas intruses contriburam para a alterao localizada dos
calcrios, o que foi aproveitado para a implantao das antas de Pedra dos Mouros e
Estria (Ribeiro, 1880).
Em redor deste conjunto surgiram lendas que poucos se lembraro
actualmente, perdurando apenas no texto impresso. A implantao da capela do
Senhor da Serra, ali prxima, poder ainda reflectir uma inteno de cristianizao
(Casa, Vargas e Oliveira, 1998) da plataforma necropolizada.
4.1.1.1. Pedra dos Mouros.
A anta de Pedra dos Mouros (CNS-11301) ter sido detectada por C. Ribeiro
em 1856, provavelmente durante os trabalhos de reconhecimento geolgico e
hidrolgico nos arredores de Lisboa (Leito, 2004; Carneiro, 2005), mas este s ter
tido oportunidade de proceder sua explorao em 1876, para a qual obteve a
autorizao e o apoio do proprietrio, o Marqus de Belas (Ribeiro, 1880).
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Entretanto, no mbito das suas descries dedicadas a Lisboa e seus arrabaldes,
publicadas no Archivo Pittoresco, I. V. Barbosa (1862 e 1863) descrevia a Quinta do
referido Marqus, referindo a estrutura posteriormente conhecida como Pedra dos
Mouros: No cimo dos montes, que orlam a parte plana da quinta pelo lado oeste,
avultam dois enormes penedos to singulares pelo feitio como pela disposio. So
duas grossas lages ponteagudas, collocadas a prumo uma ao p da outra, de modo
que fazem um ngulo, unido na base at um tero da altura. Dahi para cima
separam-se os rochedos por causa da sua frma pyramidal. Tem a base apenas
assente no terreno, tanto superficie, que parecem alli dispostas por mos humanas.
No se v mais penedo algum naquellas visinhanas. Ser isto uma curiosidade
natural, ou alguma construo anterior monarchia, que ficasse incompleta, ou de
que restem unicamente aquelles vestigios? A tradio popular pretende, j se sabe,
que seja obra dos mouros; e diz que lhes servia de atalaia (Barbosa, 1863, p. 185).
Associada a esta descrio, mas na pgina 192 da publicao, surge uma gravura
titulada Pened