26
Ana Raquel Portugal & Marcus Vinícius de Morais Hernán Cortés e Francisco Pizarro: História e Memórias 85 Dossiê: NAÇÕES E NACIONALISMOS NA AMÉRICA ESPANHOLA: HISTÓRIA, SOCIEDADE E CULTURA TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - Nº 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (versão eletrônica) HERNÁN CORTÉS E FRANCISCO PIZARRO: História e Memórias Ana Raquel Portugal Marcus Vinícius de Morais RESUMO: Este artigo tem como objetivo mostrar e entender de que modo as diferentes imagens e representações dos conquistadores espanhóis Hernán Cortés e Francisco Pizarro foram construídas ao longo do tempo, a partir de relatos e da historiografia. PALAVRAS-CHAVES: Espanha, América, Conquista, Cortés, Pizarro. ABSTRACT: This article‟s goal is to show and understand how the different images and representations of the Spanish conquerors Hernán Cortez and Francisco Pizarro were built throughout time from reports and from historiography. KEYWORDS: Spain, America, Conquest, Cortez, Pizarro. 1. Introdução Hernán Cortés e Francisco Pizarro certamente se tornaram os mais conhecidos protagonistas das expedições espanholas durante o período da expansão marítima. Conquistadores, estrategistas, heróis, manipuladores, sanguinários, piedosos, cruéis, amados ou odiados, muitos foram os adjetivos atribuídos a eles ao longo dos séculos. No entanto, as narrativas sobre suas proezas apresentam uma história igualmente particular. O modo como foram representados durante o tempo está totalmente vinculado às representações que foram feitas de seus atos, do modo como a historiografia leu as narrativas de viagens e das representações criadas a respeito da chamada conquista da América. Para analisar os escritos dos conquistadores, entender as representações que sobre eles foram construídas e a posterior confecção de suas respectivas memórias históricas, não se trata apenas de entender a história como verdade absoluta ou

Artigo Pizarro Publicado-libre (1)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo de Pizarro. Pensamento Social e Político da América Latina

Citation preview

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    85

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    HERNN CORTS E FRANCISCO PIZARRO: Histria e Memrias

    Ana Raquel Portugal

    Marcus Vincius de Morais

    RESUMO: Este artigo tem como objetivo mostrar e entender de que modo as diferentes imagens e representaes dos conquistadores espanhis Hernn Corts e Francisco Pizarro foram construdas ao longo do tempo, a partir de relatos e da historiografia. PALAVRAS-CHAVES: Espanha, Amrica, Conquista, Corts, Pizarro. ABSTRACT: This articles goal is to show and understand how the different images and representations of the Spanish conquerors Hernn Cortez and Francisco Pizarro were built throughout time from reports and from historiography. KEYWORDS: Spain, America, Conquest, Cortez, Pizarro.

    1. Introduo

    Hernn Corts e Francisco Pizarro certamente se tornaram os mais conhecidos

    protagonistas das expedies espanholas durante o perodo da expanso martima.

    Conquistadores, estrategistas, heris, manipuladores, sanguinrios, piedosos,

    cruis, amados ou odiados, muitos foram os adjetivos atribudos a eles ao longo dos

    sculos. No entanto, as narrativas sobre suas proezas apresentam uma histria

    igualmente particular. O modo como foram representados durante o tempo est

    totalmente vinculado s representaes que foram feitas de seus atos, do modo

    como a historiografia leu as narrativas de viagens e das representaes criadas a

    respeito da chamada conquista da Amrica.

    Para analisar os escritos dos conquistadores, entender as representaes que

    sobre eles foram construdas e a posterior confeco de suas respectivas memrias

    histricas, no se trata apenas de entender a histria como verdade absoluta ou

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    86

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    pensar o documento como janela aberta para a compreenso do passado, mas sim

    de ver e entender a histria como texto e construo de sentido, pois qualquer histria sempre a histria de algum, contada por algum, a partir de um ponto

    de vista parcial (APPLEBY, 1995, p. 11). O conceito de memria utilizado o mesmo trabalhado pelo historiador

    Jacques Le Goff em que a memria vista como a propriedade de conservar certas

    informaes, graas s quais as pessoas podem atualizar impresses ou

    informaes passadas, ou que representam como passadas, memria esta que

    confeccionada, construda, e que se relaciona com o perodo em que ela

    elaborada, como se as lembranas, em si, fossem, antes de tudo, episdios do

    passado (LE GOFF, 2000, p. 419).

    Diante disso, as figuras de Hernn Corts e Francisco Pizarro certamente

    foram lidas, vistas e revisitadas de diferentes formas ao longo do tempo, em

    diversos lugares e de acordo com os mais variados interesses e propsitos. As suas

    aes, os conflitos, as guerras e as suas mais mltiplas e contraditrias atitudes,

    ou seja, suas passagens pela histria da humanidade, tambm apresentam a sua

    prpria histria, o que significa dizer que impossvel saber onde est narrado o

    verdadeiro Corts ou o verdadeiro Pizarro. A representao, de um lado manifesta uma ausncia, o que supe uma clara distino entre o que representa e o que

    representado; de outro, a representao a exibio de uma presena, a

    apresentao pblica e simblica de uma coisa ou de uma pessoa (CHARTIER, 2002, p. 74).

    Nesse sentido, h muitos Corteses e diversos Pizarros, ou seja, existem muitas imagens diferentes a respeito dos conquistadores espanhis que quando

    analisadas mais de perto, tambm nos do informaes a respeito da poca em que

    cada uma delas foi construda. A partir de relatos, das crnicas de viagens e da

    historiografia tradicional possvel traar uma verdadeira genealogia das imagens

    criadas a respeito dos conquistadores: o essencial , portanto, compreender como os mesmos textos em formas impressas possivelmente diferentes podem ser diversamente apreendidos, manipulados, compreendidos (CHARTIER, 2002, p. 70). Dessa maneira, a verdadeira tarefa da Histria descrever os mecanismos pelas

    quais as pessoas foram constitudas como sujeitos e o historiador, desse modo,

    pode contribuir para se compreender de que maneira uma figura ou grupo foi historicamente construdo (POSTER, 1997, p. 11).

    2. Hernn Corts

    Hernn Corts nasceu num humilde povoado espanhol chamado Medelim, passou

    por Salamanca durante a juventude, tentou a sorte como escrivo e, com a ajuda de

    seus pais, lanou-se Amrica. Em 1519 foi escolhido pelo governador de Cuba,

    Diego Velsquez, para liderar e ser capito de um grupo formado por centenas de

    soldados para dar incio a um dos episdios mais violentos da histria da Amrica.

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    87

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    Corts e seus homens tinham como misso estabelecer contatos com alguns grupos

    indgenas e iniciar a explorao do continente americano.

    Aps partir de Cuba e chegar ao litoral, Corts atravs de intrpretes soube

    da existncia de outra regio, localizada mais ao interior da Amrica, que era

    dominada pelas cidades de Tenochtitln, Texcoco e Tlacopan, que formavam a

    chamada Confederao Mexica. Corts, por sua vez, foi para o interior do

    continente, com o intuito de se aproximar das sociedades indgenas, em busca de

    ouro, fiel ao monarca e em nome de Deus. A trilha do conquistador finalmente se

    iniciava.

    Entre 1519 e 1520, Cortez estabeleceu contatos com sociedades de idioma

    maia, no litoral de Vera Cruz para, em seguida, instituir alianas com as cidades de

    Cempoala e Tlaxcala, ambas rivais de Tenochtitln. Antes de entrar na capital

    mexica, Cortez e seus soldados ainda realizaram o famoso massacre de Cholula,

    passando pelos povoados de Xochimilco e Coyoacn at atingir o Mxico para o seu

    encontro com Montezuma.

    O primeiro contato, entre europeus e mexicas, foi amistoso, mas em pouco

    tempo os espanhis criariam as condies necessrias para se justificar uma guerra

    justa. Os europeus, auxiliados por milhares de indgenas, conseguiram cercar e

    sitiar a cidade de Tenochtitln e em pouco tempo Cuautehmoc, o ltimo governante

    da cidade de Tenochtitln, seria finalmente derrotado.

    A partir de 1521, Corts viveu anos de glria. Ele recebeu ttulos de nobreza

    e garantiu, junto ao rei, os mesmos privilgios aos seus filhos. Em sua honra foram

    celebradas festas e em seu nome missas foram rezadas. A conquista de

    Tenochtitln foi o choque e o encontro de dois continentes, de duas culturas,

    totalmente diversas, num grande exerccio de alteridade. A partir disso, um Novo

    Mundo seria construdo, no sendo mais possvel separar Corts da Amrica. A

    Histria os uniu para sempre.

    O domnio espanhol e a consequente colonizao certamente esto entre os

    acontecimentos que mais marcaram a histria do Novo Mundo (FLORESCANO,

    2001, p. 259). A partir desses episdios, uma nova forma de registrar as aes do

    homem, de se pensar o passado e imaginar o futuro, surgiu no continente

    americano. Essa tradio, contudo, foi seguida pela incluso de um novo

    protagonista do relato histrico: o conquistador europeu.

    As narrativas a respeito da Amrica e da invaso espanhola foram feitas a

    partir da lgica e do idioma europeus e a pena do conquistador se transformou em

    porta voz de verdades espanholas.

    Ao lado da invaso europeia caminhou a linguagem dos espanhis que

    comeou a nomear e a conferir novos significados natureza, aos homens e s

    culturas nativas (FLORESCANO, 2001, p. 260).

    Desse modo, o povo vitorioso militarmente se transformar tambm naquele

    que, por direito adquirido, ir contar de que jeito a conquista ocorreu, a partir de

    seu ponto de vista particular. Assim, os dirios, as crnicas e as memrias a

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    88

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    respeito das guerras e dos conflitos na Amrica, envolvendo espanhis e ndios, se

    transformaro, ao longo dos sculos, nas verses oficiais a respeito dos fatos.

    Dessa maneira, a conquista e a derrota militar dos ndios de Tenochtitln

    foram imediatamente seguidas pela reconstruo de sua memria histrica, por

    padres e cronistas militares. No entanto, no caso especfico de Corts, podemos

    pensar que sua memria foi construda no apenas aps a conquista de

    Tenochtitln, mas antes mesmo da queda da capital mexica, na medida em que

    suas cartas e seus relatos so feitos durante as campanhas militares e, portanto,

    antecedem o domnio espanhol. De qualquer modo, o protagonista efetivo foi,

    sucessivamente, a nao ganhadora de uma nova terra e de uma vasta humanidade

    pag, e os agentes dessa epopeia foram o conquistador, o frade evangelizador e os

    novos povoadores espanhis das terras descobertas.

    3. O Corts conquistador: Por Hrnn Corts

    Durante suas campanhas e viagens, Corts escreveu uma srie de cartas

    endereadas ao imperador Carlos V, as chamadas Cartas de Relao, e nelas deixou suas impresses a respeito dos indgenas, da Amrica e, principalmente, seus atos

    durante as guerras de conquista.

    A primeira imagem construda a respeito de Hernn Corts foi escrita por

    Hernn Corts, a partir de suas correspondncias endereadas ao monarca

    espanhol. A Corts interessava, sobretudo, o objetivo de sua empresa, as

    circunstncias tticas e os aspectos sociais e polticos que se relacionavam com sua

    conquista. Para o capito espanhol, era preciso descrever seus maiores feitos, em

    busca de reconhecimento real e isso ele fez at seus ltimos dias de vida. O fato de

    ter sido protagonista e testemunha ocular dos episdios que descreveu garante

    muito crdito narrativa de Corts.

    Nesse sentido, os relatos de viajantes sempre trazem a ideia de observador,

    do eu estive l e esse eu vi, do ponto de vista da enunciao, d crdito a um eu digo, na medida em que digo o que vi. O invisvel, para vocs, eu torno visvel atravs do meu discurso. Assim, o que se encontra em jogo a questo do visvel e

    do dizvel: eu vejo, eu digo e eu digo o que posso ver (HARTOG, 1999, p. 278). As

    cartas de Corts no so, portanto, o real, mas se constituem como representaes.

    Elas fazem parte de uma literatura prpria das crnicas de viagens, em que o

    principal objetivo enaltecer o seu protagonista, a partir de uma forma especfica, de adjetivos e narrao de feitos tambm prprios, voltadas para um pblico particular, estabelecendo e criando uma verdadeira comunidade de discurso em

    que essa representao de Corts ir circular (RESTALL, 2006, p. 135). Em suas correspondncias, o capito descreveu suas proezas, as grandes

    atitudes que foram tomadas, sua enorme coragem, bravura e, com isso, divulgou e

    construiu uma imagem bastante positiva a respeito de si. Evidentemente Corts

    tinha como objetivos mostrar-se um fiel sdito da coroa espanhola e aparecer nas

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    89

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    epstolas como verdadeiro cristo, ou seja, obediente e digno de confiana. Alm

    dessa postura, em nome do Estado e da Igreja Catlica, as Cartas de Relao fazem parte de um contexto em que as atitudes hericas do capito deveriam ser

    recompensadas com glrias e riquezas e, por isso, no foi toa que Corts as

    redigiu em primeira pessoa do singular.

    Dentro dessa mesma postura, o capito espanhol praticamente eliminou de

    suas narrativas as aes coletivas dos soldados, a importante participao do

    nufrago Jernimo de Aguilar e tambm da ndia intrprete Malinche, prisioneira

    entregue de presente aos espanhis assim que chegaram regio de Tabasco.

    Malinche sabia falar dois idiomas, o nuatle e o maia ao passo que Jernimo de

    Aguilar entendia o maia e o castelhano. Nesses primeiros contatos, portanto,

    ocorreu uma verdadeira traduo em cadeia. Corts falava em castelhano para

    Aguilar, que falava em maia para Malinche que, por sua vez, falava em nuatle para

    os mensageiros de Montezuma, ou seja, Aguilar e Malinche foram as vozes e os

    ouvidos de Corts em seus primeiros contatos, mas em suas cartas eles so

    silenciados, ficando fora da memria construda pelo capito sobre esses episdios,

    em nome do destaque dado para suas aes individuais:

    Em outra relao, meu excelentssimo Prncipe, disse vossa majestade as

    cidades e vilas que at ento para seu real servio eu tinha sujeitado e

    conquistado [...] E certifico a vossa majestade que farei Montezuma, preso

    ou morto, sdito da coroa real de vossa majestade (CORTS, 2000, p. 87).

    Esse primeiro Corts, que comeava a surgir dessas narrativas iniciais,

    dialogou com as concepes de escrita, histria e tempo do sculo XVI, assim como

    com as aspiraes pessoais do prprio capito espanhol. O que acontece do lado de

    fora do autor certamente influencia sua narrativa, mas as questes particulares tambm. De acordo com Dominick La Capra, em seu estudo sobre textos e

    construo da narrativa histrica,

    [...] o problema passa a ser o de repensar os conceitos de dentro e fora em relao com os processos de interao entre linguagem e mundo. Os

    processos textuais no podem se confinar dentro dos limites fsicos do

    livro. O prprio contexto ou mundo real igualmente textualizado (LA CAPRA, 1993, p. 240).

    Nas cartas de Corts possvel perceber, num primeiro momento, duas

    influncias narrativas que podem ser identificadas respectivamente com o mundo de fora e com o mundo de dentro do autor: a narrativa religiosa providencialista e a cavalheiresca, mesmo que as duas no possam ser separadas, pois ambas se

    constituem como parte integrante de uma mesma representao a respeito de

    Corts, ou seja, o cavaleiro cristo.

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    90

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    A ideia crist da histria tambm apoiou a expanso imperial do poder

    espanhol, colocando-lhe um sentido providencial, em que o destino dos domnios

    espanhis passava pelas vontades de Deus, que tudo ento faria para que esses

    propsitos se realizassem. Enfim, a vitria da Espanha se transformava na vitria

    do cristianismo e, assim, as atitudes de Corts na Amrica eram, no fundo, as

    vontades de Deus de como as coisas deveriam seguir. Vrios soldados e

    missionrios atuaram convencidos de que eram agentes da providncia divina e

    transmitiram em suas obras a certeza de que os sucessivos descobrimentos e

    conquistas eram parte de um plano dirigido a unificar todos os povos do mundo sob

    o manto da cristandade (FLORESCANO, 2001, p. 277). Em suas cartas, Corts

    deixa clara a vontade de Deus para que a campanha fosse um sucesso e, com isso,

    ele mesmo se colocava como o escolhido:

    E parece que o Esprito Santo me dera um aviso [...] Mas quis Nosso

    Senhor mostrar seu grande poder e misericrdia para conosco [...] e quis

    Deus que morresse uma pessoa deles que devia ser o principal (CORTS,

    2000, p. 95).

    Com isso, os soldados e os capites se tornavam os novos cruzados que

    tinham vindo derrotar o mais extenso dos reinos indgenas que eram, ento,

    associados aos infiis, aos muulmanos, resgatando todo o ideal de reconquista da

    Pennsula Ibrica. O conquistador Hernn Corts, assim, era o principal agente da

    histria hispano-crist (FLORESCANO, 2001, p. 283), a partir de uma histria

    recente, contada pelas primeiras crnicas. Diante disso, possvel identificar

    tambm a tradio das narrativas cavalheirescas, herdadas desde o perodo

    medieval. Em cartas e documentos de Hernn Corts possvel perceber o estilo e

    at mesmo ver passagens que fazem referncia direta a essas narrativas.

    Os romances cavaleirescos de aventura introduziram, num primeiro

    momento, um ideal novo, uma moral laica: a cortesia, as boas maneiras, o servio

    senhora, o amor corteso, que era naturalmente adltero, o desprezo pelo casamento e o desdm pelo cime. No entanto, aos poucos ocorreu uma

    cristianizao desses heris. Surgia a cavalaria celestial, a idealizao das

    Cruzadas, a histria santa da cavalaria. Apareceu, assim, o cavaleiro cristo que

    colocou a espada a servio do Estado e da cristandade que ameaada s rechaava

    os infiis graas bravura dos cavaleiros do Ocidente (LE GOFF, 2006, p. 197). Em

    seus registros, Corts narrou suas aventuras, seus amores, sua infidelidade

    amorosa, seus feitos que ora mostram piedade e que ora os transforma no cavaleiro

    impiedoso. De qualquer forma, sempre se constri, em sua narrativa, o cavaleiro

    herico, capaz de fazer tudo, de realizar os maiores atos, em nome de Deus e da

    coroa espanhola. No trecho abaixo, possvel perceber a valorizao da ao

    individual do conquistador, assim como seu mpeto de conquista e maquiavelismo:

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    91

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    Antes que os nativos pudessem se juntar, queimei seis pequenos povoados

    e prendi e levei para o acampamento quatrocentas pessoas, entre homens

    e mulheres, sem que me fizessem qualquer dano. (...) simplesmente fazia de conta que confiava em quem vinha me falar e usava a discrdia para

    subjug-los mais (CORTS, 2000, p. 95).

    Outro episdio narrado por Hernn Corts de modo herico foi o caso Pnfilo

    Narvaes. Diego Velsquez, governador de Cuba, estava empenhado em destruir as

    ambies de Corts e, por isso, uma expedio foi armada com o intuito de barrar o

    avano de Corts pelo interior da Amrica. A liderana da tropa coube ao capito

    Pnfilo Narvaes que chegou ao litoral de So Joo de Ula em maio de 1520. Corts

    foi rapidamente avisado de que soldados vindos de Cuba tentavam impedi-lo de

    continuar. O capito, em suas cartas, narrou toda as suas proezas durante os

    enfrentamentos contra os homens de Narvaes: uma forte chuva castigava a regio,

    ventos sopravam em meio aos granizos e ele, Corts, decidiu atacar depois da meia

    noite, em silncio e de surpresa. Os homens de Cortez colocaram fogo em diversos

    adoratrios, templos e prenderam Narvaes que, ao reagir, ficou cego de um olho.

    Alm das cartas de Hernn Corts, a obra do soldado cronista Bernal Daz

    Del Castilho, Historia verdadera de la conquista de la Nueva Espaa, tambm exaltou a figura do lder espanhol. Apesar de Bernal Daz tambm enaltecer a ao

    do grupo e dos soldados, ou seja, do coletivo, toda a narrativa foi centrada na figura

    de Corts, sendo que o tom de aventura cavalheiresca e crist permanece em toda a

    obra, reforando e ajudando a construir a representao herica a respeito dos

    espanhis.

    importante mencionar que a obra de Bernal Daz, a princpio, se colocou

    como o verdadeiro relato a respeito da conquista espanhola e que, nesse sentido,

    entre ele e Corts se travou uma batalha pela memria oficial a respeito do

    episdio. As cartas de relao do capito espanhol, nesse caso, de acordo com a

    viso de Bernal Daz, precisavam ser completadas, com detalhes, informaes

    precisas, com a valorizao das aes dos soldados, principalmente porque as suas

    memrias foram escritas em um perodo que Corts j tinha se envolvido em

    diversos atritos com a coroa espanhola.

    Esse cavaleiro cristo, cheio de valores e fidelidade, ou seja, o prprio Corts,

    se tornou a primeira imagem a respeito do capito espanhol. Sua bravura, coragem

    e inteligncia militar so aspectos de destaque no seu texto. Essa imagem do

    capito espanhol ser resgatada nas crnicas religiosas dos franciscanos, sobretudo

    nas obras Historia de Los Indios de la Nueva Espaa de 1540 e Historia Eclesiastica Indiana de 1596, respectivamente dos freis Torbio de Benavente, o Motolina e Gernimo de Mendieta.

    Para os religiosos, a chegada dos irmos menores ao Novo Mundo foi o

    equivalente sada do povo judeu do Egito: significava a derrota da idolatria e o

    incio da peregrinao em direo terra prometida. Nesse caso, tambm se faz

    uma associao direta entre Corts e Moiss e, assim, os grandes feitos do capito

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    92

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    espanhol so comparados s grandes narrativas do texto sagrado. Hernn Corts e

    suas manobras habilidosas se transformaram, a partir dos escritos religiosos, em

    parbolas bblicas. Corts era, ento, o enviado para libertar os astecas de sua

    servido ao demnio e conduzi-los, finalmente, terra prometida da Igreja Catlica.

    Corts, nessa primeira imagem, simbolizava esse mundo.

    4. A tradio Lascasiana e o outro Corts

    Alm da imagem de Corts como o heri da cristandade e da Espanha do sculo

    XVI, outra tradio tambm se formou nesse mesmo sculo. Aps os primeiros anos

    de colonizao, muitas denncias e queixas a respeito da ao espanhola na

    Amrica foram feitas, a partir de cartas, livros e discursos contrrios conquista, feitos em defesa aos ndios. A maior parte das acusaes se tratava de referncias

    violncia usada pelos conquistadores e aos maus tratos que os colonos lanavam

    sobre os indgenas.

    O frei dominicano Bartolom de Las Casas foi o maior representante de um novo grupo de homens que se colocou abertamente contra as prticas de Corts na

    Amrica. Sua obra mais conhecida foi certamente a Brevssima relao da destruio das ndias escrita em 1542 em que o religioso fez uma srie de denuncias a respeito da explorao e dos abusos dos encomenderos, afirmando que os crimes dos colonizadores seriam pagos com a condenao eterna no Inferno.

    A obra de Las Casas, assim como as cartas de Corts, est contida nas

    convenes e no estilo da poca, principalmente no que diz respeito ao uso de

    argumentos aristotlicos para convencer o leitor a respeito de sua defesa do mundo

    indgena. O dominicano certamente tinha interesses particulares nesse ataque aos

    conquistadores, j que sua experincia missionria na Amrica havia sido pequena

    e que, ele prprio, defendia um ndio que mal conhecia: o xito obtido atravs da forma com que elabora sua argumentao transforma-o em heri. No pelo que ele

    fez de generoso como missionrio, mas pela sua capacidade de nos comover (THEODORO, 1992, p. 90).

    Para isso, Las Casas utilizava argumentos religiosos para demonstrar os atos

    considerados errneos dos conquistadores europeus. Sua imagem sobre o indgena

    corresponde uma representao de dor e sofrimento, talvez porque estivesse mais

    preocupado em vencer os debates que logo travaria a respeito do tema. Alm disso,

    a imagem que constri sobre os conquistadores dialogava com toda a iconografia

    produzida na Europa sobre o tema, em que a violncia dos conquistadores parecia

    ser o nico ingrediente dessas narraes:

    Um espanhol desembainha a espada e imediatamente os outros cem fazem

    o mesmo, e comeam a estripar, rasgar e massacrar aquelas ovelhas e

    aqueles cordeiros, homens, mulheres, crianas e velhos que estavam

    sentados, tranquilamente, olhando espantados para os cavalos e para os

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    93

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    espanhis. Em pouco tempo no restaram sobreviventes de todos os ndios

    que ali se encontravam (LAS CASAS, 1986, p. 256).

    O frade declarou que Cristo era um libertador e, assim, o reino dos cus

    anunciado no Evangelho devia ser predicado com amor e esprito de convencimento

    e no com violncia ou escravido. Seguindo estas ideias, fez uma crtica aberta a

    respeito das formas de conquista e colonizao e atacou tambm os religiosos que

    haviam argumentado que a conquista armada era um passo necessrio entrada

    do Evangelho na Amrica. Nas palavras do frade, em uma de suas obras, Histria de las ndias, possvel perceber o tom de defesa e denncia:

    [...] e tendo experincia que em nenhuma parte podiam escapar dos

    espanhis, sofriam e morriam nas minas e nos outros trabalhos, quase

    como pasmados, insensveis e pusilnimes, degenerados e deixando-se

    morrer, calando desesperados, no vendo pessoas no mundo a quem

    pudessem queixar-se nem que delas tivesse piedade (LAS CASAS, 1986, p.

    206).

    O dominicano descreveu com drama as matanas coletivas dos ndios, a

    violao de mulheres, as epidemias, os assassinatos de centenas de chefes

    indgenas e, para isso, recorria a diversas cenas bblicas de cativeiro e escravido. O

    discurso lascasiano, em que o indgena era visto como vtima das atrocidades dos

    espanhis teria enorme repercusso na histria do continente americano e nele o

    indgena aparecia como fraco, indefeso, violentado pelo massacre europeu, pela

    crueldade e, sobretudo, pela cobia dos espanhis. No entanto, ao mesmo tempo

    em que defendeu os indgenas, Las Casas acabou reforando a ideia de

    superioridade espanhola, nas armas, nas tcnicas e criando o mito do indgena

    fraco, frgil, igualmente carente de ajuda externa o que fez perpetuar ainda mais a

    concepo de que o indgena necessitava de ajuda, como se fosse uma criana

    indefesa e de que o continente americano, vtima da cobia, vivia jorrando sangue e

    de veias abertas ao domnio estrangeiro.

    Ainda assim, as aes de Hernn Corts que haviam sido grandemente

    elogiadas pelos cronistas anteriores, como nas cartas do prprio Corts, e nas obras

    de Bernal Daz, Motolina e Mendieta, nos textos de Las Casas tomaram outra

    forma, pois mostravam um Corts tirano, sem escrpulos, ladro e assassino que

    mediante uma srie de crimes havia arrasado os ndios sem piedade.

    As denncias de Las Casas tiveram tamanha repercusso entre setores da

    Igreja e da intelectualidade europeias que na cidade de Valladolid entre 1550 e

    1551, ocorreu um famoso debate tico e filosfico a respeito da conquista e da

    presena espanhola na Amrica, travado entre Bartolom de Las Casas e o

    humanista Juan Gines de Seplveda.

    Para sua defesa, Seplveda utilizou as obras dos primeiros cronistas das

    ndias, particularmente o texto de Gonalo Fernandes de Oviedo e sua obra Histria

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    94

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    geral e natural das ndias de 1535, para demonstrar a superioridade da civilizao espanhola sobre as culturas americanas, para valorizar a ao de Corts e para

    reduzir os ndios categoria de selvagens.

    Las Casas, por outro lado, fez uma fervorosa defesa dos indgenas, baseado

    em argumentos religiosos. De qualquer forma, essas duas imagens a respeito da

    conquista e de Corts marcariam as tradies seguintes. Corts era por um lado o

    conquistador herico, representante da cultura europeia, fiel sdito da coroa e da

    Igreja Catlica, ou seja, um verdadeiro cavaleiro. Mas por outro lado comeava a se

    tornar tambm o tirano, maquiavlico, dissimulado, violento, capaz de fazer de tudo

    para dominar, vencer e enriquecer (FLORESCANO, 2002).

    5. A tradio cientfica europeia do sculo XIX

    Esse tipo de viso, longe de ser uma inovao metodolgica, remete-se aos

    primeiros estudos realizados pela Histria acadmica do sculo XIX. Obviamente,

    quando falamos em tradio, h que se levar em considerao que as idias seguem

    um fluxo ininterrupto de mudanas, apropriaes e significaes. Do XIX aos dias

    de hoje, o cientificismo ganhou novas roupagens, novas cores e adereos,

    distanciando-se de seu ideal imperialista para adquirir tons de defesa da

    pluralidade (FERNANDES, 2003).

    Cercado de fontes consideradas oficiais e, mais importante, espanholas,

    somente um tipo de escrita era justificvel ao ofcio do historiador: a cientfica.

    Dentro dessa perspectiva de histria acadmica do sculo XIX, racional e detentora

    da verdade, destaca-se a obra do norte-americano William Prescott, The Conquest of Mexico de 1843. Tanto Prescott quanto Leopold Von Ranke, em seu famoso artigo As colnias americanas (RANKE, 1986), de 1880, analisaram as crnicas espanholas como fieis testemunhos da realidade, principalmente as cartas de

    Corts e as leram de acordo com os olhos do sculo XIX, imperialista, nacionalista,

    baseados em conceitos como os de raa, civilizao, barbrie e de superioridade

    biolgica.

    Os autores escreveram em um momento em que os estudos arqueolgicos

    na Amrica ainda no tinham se desenvolvido plenamente. Alm disso, o perodo foi

    marcado pela ideia de que as grandes potncias europeias, os imprios coloniais,

    levariam a civilizao para os confins do mundo, no verdadeiro fardo do homem

    branco, imortalizado no poema de Kipling.

    Desse modo, diferena e superioridade convivero harmoniosamente no

    clssico texto de Wiliam Prescott. Por um lado, h a figura do bom selvagem, dcil,

    repleto de qualidades, que , ao mesmo tempo, estranho e inferior. Por outro, existe

    o discurso da razo, da civilidade e da urbanizao como elementos julgadores e

    hierarquizadores. Lados opostos que se chocam, esta a marca do autor, visvel

    desde o princpio. Como ele mesmo diz: [...] instituies humanas quando no

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    95

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    conectadas com prosperidade e progresso, devem cair. [...] pela violncia interna [...]

    E quem lamentaria esta queda? (PRESCOTT, 1966, p. 87). A diferena na maneira de ver o mundo entre europeus e astecas se

    transfere para a eficcia e qualidade das armas e fica ainda mais ntida na

    habilidade tcnica e racional de Corts em comandar seus homens: os canhes

    vencero os tacapes. Na narrativa de Prescott, que ganha tons de aventuras

    europeias em mundo extico e distante, Corts certamente narrado como o heri

    da civilizao ocidental. Por isso, o autor narra cenas surpreendentes: Corts agarrou e arremessou um dos ndios sobre os muros com o seu prprio brao. A

    histria no improvvel, pois Corts era um homem de agilidade e fora incomum (PRESCOTT, 1966, p. 143). Aqui, vemos a superioridade da raa, em que

    biologicamente o capito espanhol no apenas mais hbil, mas, sobretudo, mais

    forte que os indgenas. Em outra passagem, possvel perceber a dualidade entre

    civilizao e barbrie. Os ndios so brbaros no apenas porque se defendem com

    armas menos desenvolvidas tecnicamente, de acordo com a viso do autor, mas

    porque so supersticiosos e acreditam no sobrenatural. Corts, astuto, tira proveito

    de tudo isso:

    Esta foi uma inquestionvel e certeira medida de Corts, para reforar este

    sentimento de superstio, tanto quanto possvel impressionar os nativos,

    de incio, com um saudvel medo dos poderes sobrenaturais dos espanhis

    (PRESCOTT, 1966, p. 125).

    E os corpos seminus dos nativos no ofereciam proteo, os espanhis

    cortavam com muita facilidade. Os cavalos, as armas de fogo e os

    armamentos dos espanhis eram tudo novidade [...] (PRESCOTT, 1966, p.

    97).

    Naturalmente, como Prescott escreveu muitos sculos aps os episdios da

    conquista, como leu as cartas de Corts sem questionar a fonte, mas sim a

    enxergando como verdade absoluta e de acordo com princpios prprios e do sculo

    XIX, sua viso altamente teleolgica. Corts, em sua obra, participa o tempo

    inteiro de todo o lento processo de conquista, fica sem dormir, no tem fome, sono

    ou cansao. O lder espanhol perfeito, audaz, corajoso, arrisca e suas decises,

    sempre pensadas e meticulosas, esto evidentemente corretas. Corts corajoso e

    Montezuma covarde; Corts racional e os ndios supersticiosos. A religio de um

    verdadeira, a dos outros era mentirosa. Os ndios se defendiam com magia,

    pressgios e apelando para os seus deuses, ao passo que os espanhis usavam

    armas, tcnicas, tticas, exrcito, canhes e inteligncia. De um lado, magia e

    superstio, do outro lado religio crist, cincia e racionalismo.

    Ainda dentro dessas posturas de inferioridade e superioridade racial,

    Prescott mostra que o prprio Montezuma sabia de sua fraqueza diante do exrcito

    cristo: Montezuma sabia que os espanhis eram mortais, mas de uma raa

    IgorHighlight

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    96

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    diferente, de fato, dos astecas, mais sbios e mais valentes (PRESCOTT, 1966, p. 128). Enfim, para o autor norte-americano, o motivo da derrota indgena foi a sua

    inferioridade frente civilizao europeia. Sua verso dos fatos trata mais do sculo

    XIX e de que modo as guerras eram vistas, do que do sculo XVI em si:

    A invulnerabilidade da armadura espanhola, suas espadas de material

    inigualvel e habilidade para us-las, lhes forneceram de as vantagens que

    excediam de longe os pontos da fora fsica e vantagem numrica

    (PRESCOTT, 1966, p. 144).

    No fim de sua obra, fazendo apologia marcha da civilizao rumo ao

    progresso, Prescott questiona se algum sentiria falta ou no de uma sociedade

    desprovida de cincia, assim como ele via a asteca. A guerra se justifica pelo avano

    da cincia.

    6. O Mxico e a Nao mestia: O Corts esquecido

    Durante o mesmo sculo XIX, a independncia do Mxico em 1810 e a construo

    do Estado Nacional na Amrica trouxeram de volta a antiga dualidade a respeito da

    imagem de Corts. As posturas conservadora e liberal, no momento de concepo

    do Estado mexicano, viam e enxergavam o futuro da Amrica de maneiras distintas

    e, portanto, se relacionavam com o passado da conquista de maneiras igualmente

    diferentes.

    Nos anos que se seguiram independncia 1810 e o nascimento da

    Repblica, a luta poltica entre liberais e conservadores transformou o passado

    colonial na poca do atraso da histria mexicana. Era preciso de qualquer forma romper com o passado colonial e, para isso, a independncia e, sobretudo, a

    Repblica, deveriam marcar um novo momento na histria.

    No entanto, no havia consenso a respeito de qual memria se ergueria para

    a recm-formada nao mexicana. As disputas polticas certamente ditavam os

    rumos dessa relao com o passado e, por isso, a reconstruo da memria esteve

    centrada nos embates entre duas opes. Os polticos liberais queriam edificar a

    nova nao sobre as antigas razes indgenas e os conservadores queriam se

    sustentar exclusivamente no passado das guerras de conquistas e da glria dos

    espanhis. Os liberais pareciam ser herdeiros dos escritos de Las Casas e os

    conservadores herdavam o discurso da crnica militar, enaltecendo as aes dos

    conquistadores.

    Independentemente de qual postura faria mais sucesso no momento de

    concepo do Estado mexicano do sculo XIX, os dois lados, liberal e conservador,

    partiam do princpio de que o Estado nacional, em vez de aceitar a diversidade da

    sociedade real, deveria uniformiz-la mediante uma legislao geral, uma

    administrao central e um poder nico. Mas as suas posturas de vnculo com a

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    97

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    reconstruo do passado teriam muitas dificuldades de lidar com a memria da

    nova nao, pois antes de serem propostas integradoras, elas assumiam carter

    extremista. O projeto de Estado da segunda metade do sculo XIX, portanto,

    imprimia na populao a necessidade de se criar a imagem de apenas um Mxico,

    nico e integrado.

    Porm, no era possvel lidar com a diviso radical das diferentes posturas de

    liberais e conservadores, j que no Mxico existiam milhares de pessoas que

    poderiam se sentir excludas dessa histria. Por isso, era vital encontrar outra

    maneira de se entender a histria mexicana e, com isso, rever a imagem de Corts,

    dos astecas, de modo que cada um dos dois lados fosse contemplado. Essa nova

    histria tinha que lidar com as diferenas e, por isso, comeou a se forjar um novo

    discurso, de uma nova nao mexicana, que seria ento mestia, e que marcharia

    rumo ao progresso.

    O segundo momento do governo de Porfrio Dias (1876 1911), chamado de porfiriato, foi o articulador para a construo de um Estado na Amrica Latina e esse mesmo perodo foi tambm o responsvel por criar uma narrativa do passado

    mexicano unificadora de identidade cultural compartilhada pelos diversos grupos

    sociais. Era preciso criar uma histria abarcadora de todas as pocas do passado

    mexicano, um relato integrador das diversas razes da nao. Isso se tornaria

    realidade na coleo enciclopdica Mxico atravs dos sculos, publicada em 1889. A partir disso, o Mxico no era mais branco e nem ndio, mas sim fruto da

    mestiagem de dois povos.

    Diante disso, a imagem de Corts passava a ocupar um espao intermedirio

    na histria do Mxico. A conquista espanhola era vista como um momento de dor

    para os mexicanos, por se tratar de um episdio violento, responsvel pela

    destruio de uma antiga e maravilhosa cultura, a dos astecas, mas ao mesmo

    tempo essa dor era a responsvel pelo nascimento do Mxico mestio, fruto da

    fuso entre espanhis e indgenas. Desse modo, Corts oscilava entre aquele que

    era o responsvel pela destruio dos indgenas e aquele que era tambm o ponto

    de partida para a evoluo da nao mexicana.

    A Amrica, assim, era vista quase como uma mulher virgem que foi

    violentada pelo conquistador espanhol e que ali imps sua religio e suas leis. Mas

    dessa mesma violncia nasceria uma nao, o Mxico mestio e independente do

    sculo XIX. No entanto, Hernn Corts passava a ser, em parte, o pai dessa

    violncia e, portanto, se aproximava mais do esquecimento do que da eterna

    lembrana.

    7. Corts: Reflexo

    As representaes construdas a respeito de Hernn Corts esto situadas entre a

    valorizao do guerreiro, seja nas crnicas do sculo XVI ou na historiografia

    cientfica do sculo XIX e na associao entre Corts e o massacre, o genocdio e o

    IgorHighlight

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    98

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    aniquilamento, tanto na tradio lascasiana como na construo do estado mestio

    mexicano.

    A imagem do capito, principalmente no Mxico, lugar de ao efetiva de

    Corts, parece habitar em um silncio que se localiza exatamente entre a imagem

    da destruio dos antigos astecas e o nascimento de uma nova sociedade. Corts

    fica no espao vazio entre a ideia to difundida de derrota indgena e a criao do

    Mxico contemporneo. Ele no foi apenas o fim, mas o comeo. Poucos

    personagens histricos conseguiram reunir tantas contradies em torno de sua

    figura como Hernn Corts.

    Em outras regies da Mesoamrica, a imagem de Corts menos negativa,

    como por exemplo, na regio Maia do litoral de Iucat que ele nem mesmo chegou a

    visitar. Mas em relao ao Mxico, que se v e se enxerga como nao mestia

    desde o porfiriato, o silncio toma conta da imagem de Corts. Ele quase no

    lembrado, mas parece haver um esforo para se lembrar que Corts deve ser

    esquecido.

    No h monumentos em seu nome e o seu tmulo se localiza em lugar de

    difcil acesso, dentro de uma pequena igreja, discreto e quase imperceptvel, no

    aparecendo nem mesmo como ponto turstico a ser visitado, ao passo que a esttua

    de Cuautemoc, ltimo lder dos astecas, pode ser facilmente admirada em uma das

    principais avenidas da cidade com forte tradio e representao clssica. Corts,

    por outro lado, representa a dor, o nascimento sofrido, a morte do passado indgena

    e a gestao do mundo colonial. Essa memria cambiante de Corts pode ser

    exemplificada na enorme quantidade de vezes que os seus restos foram enterrados

    e desenterrados, ou seja, nas inmeras vezes em que se procurou um lugar fixo e

    eterno para Corts. Qual seria, ento, o lugar de Corts? Em que local e de que

    modo ele ser lembrado?

    Corts guarda grandes ambiguidades, mais do que a mdia de um lder. A praa das trs culturas, em Tlatelolco, apresenta uma verso dolorosa desta

    memria: ali tombou Cuautemoc, a 13 de agosto de 1521. O episdio foi definido

    no como uma vitria ou derrota, mas o doloroso nascimento de um povo mestio.

    Destaca-se a violncia e aparece a ambiguidade. Sem Corts o Mxico no existiria,

    no seria catlico, no falaria espanhol, no seria o pas que hoje, para o bem e

    para o mal. Diante de ns ainda paira a esfinge cortesiana, insinuando decifrao ou aniquilamento (KARNAL, 2011, p.237).

    8. Francisco Pizarro

    A dificuldade de analisar a vida de Francisco Pizarro, cujos relatos biogrficos1

    foram redigidos por familiares, soldados2, companheiros de aventuras, mas nunca

    1 Nesta parte do artigo no temos a pretenso de fazer propriamente uma biografia de Francisco Pizarro, e sim,

    uma sinttica apresentao de alguns dados sobre sua vida e principalmente, sobre sua participao na conquista do territrio que hoje conhecemos por Peru. Faremos um breve ensaio historiogrfico sobre as diversas representaes a ele atribudas desde o sculo XVI. Para realizarmos uma biografia teramos que avanar bem

    IgorHighlight

    IgorHighlight

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    99

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    por ele como no caso de Hernn Cortez, bastante grande. Mesmo assim, ele foi

    bastante cuidadoso em suas escolhas e confiou apenas aos mais prximos a

    redao das histrias de que foi protagonista e da documentao oficial.

    Nascido em Trujillo de Extremadura Espanha em 14783, Francisco Pizarro teve uma infncia humilde, o que o levou a tentar a sorte na Amrica em

    1502 na expedio do frei Nicols de Ovando, o novo governador de La Espaola.

    Participou de diversas viagens Tierra Firme4 e foi companheiro de Vasco Nez de Balboa na jornada que terminaria no descobrimento do Mar del Sur em 1513, onde

    teve as primeiras notcias sobre o Tahuantinsuyu5. Pizarro tinha uns 50 anos e era um dos homens mais ricos do Panam quando se associou a Diego de Almagro e ao

    clrigo Hernando de Luque6 para fazer trs viagens em busca do Levante, ou seja,

    os territrios que ficavam ao sul do Panam.

    A primeira foi feita em 1524, mas diante de vrias dificuldades s

    conseguiram chegar ao norte da Colmbia e regressaram s proximidades do

    Panam. Na segunda viagem em 1526, conseguiram confirmar a existncia do

    domnio Inca, porm passaram por graves problemas, fome, doenas, ataques de

    tribos indgenas e dos 300 homens que haviam sado do Panam, grande parte

    tinha perecido, o que levou a um episdio famoso na histria da conquista. Estando

    na Ilha do Gallo com seus homens, Pizarro perguntou quem o acompanharia para o

    sul, lugar da riqueza, e treze homens se apresentaram e ficaram assim conhecidos

    como os Trece de la Fama. A terceira viagem iniciou-se em 1531 com mais de 180 homens, uns 30 cavalos e trs navios. A presena dos cavalos denota, segundo

    Lavall, que o objetivo da expedio j no era apenas explorar o Peru, mas

    conquist-lo militarmente, tanto que a artilharia tambm havia sido reforada

    (LAVALL, 2005, p. 80).

    Aps terem fundado a primeira cidade espanhola no Peru, San Miguel de

    Tangarar, prosseguiram para Cajamarca chegando l em 15 de novembro de 1532.

    mais, pois conforme Teresa Malatian, para tal tarefa seria necessrio do pesquisador um cuidado que de resto no se distancia daquele que devido a qualquer outro tipo de discurso histrico, e que caracteriza a disciplina histrica: a compreenso, a aproximao do personagem at a impregnao como ponto de saturao, ideal para que se possa escrever sobre ele, o trabalho crtico sobre testemunhos diferentes e contraditrios, para que se amplie o enfoque analtico e se possam alcanar tanto aspectos desconhecidos de sua vida como ultrapassar sua opacidade para seus contemporneos e mais prximos. In: A biografia e a histria. Cadernos CEDEM. Ano 1, n.1, jan. 2008, p.25. 2 Cabe lembrar aqui o estudo de James Lockhart, que alerta para o fato de serem poucos os conquistadores que

    podemos chamar de soldados nesse perodo, visto que apenas alguns tiveram experincias que podem ser equiparadas a atividades militares. In: Los de Cajamarca: un estudio social y biogrfico de los primeros conquistadores del Per. Lima: Milla Batres, 1986, v. 1, p. 35. 3 A respeito da data de nascimento de Francisco Pizarro h dvidas, mas um de seus principais bigrafos, Jos

    Antonio del Busto Duthurburu, tambm considera 1478 como a mais provvel. Ver: BUSTO DUTHURBURU, Jos Antonio del. Pizarro. Lima: Ed. Cope, 2001, 2.v. 4 Como era conhecido o continente na poca.

    5 Nome em quchua do territrio dominado pelos Incas. Tahua significa quatro em quchua e suyu regio; ntin

    simboliza unio; poderamos ento traduzir Tahuantinsuyu como as Quatro Regies Unidas. 6 Capitulacion entre el gobernador de Panama, el P. Hernando de Luque, Francisco Pizarro y Diego de Almagro,

    Panam, 20 de mayo de 1524. AGI. Justicia, 1042. N2, R1. Documento publicado em: LOHMANN VILLENA, Op. cit.,1986, p.22.

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    100

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    O Inca Atahualpa encontrava-se em um acampamento nos arredores de Cajamarca

    e por isso, Pizarro enviou Hernando de Soto acompanhado de 24 homens e achando

    ser mais prudente aumentar o contingente, enviou tambm a seu irmo, Hernando,

    com mais homens. O plano de Pizarro era repetir a estratgia aplicada por Hernn

    Corts e capturar o chefe do Tahuantinsuyu, o que aconteceu no dia seguinte, visto que Atahualpa foi convidado pelos espanhis a voltar a Cajamarca e aproveitando-

    se dos limites da praa principal da cidade, Pizarro o aprisionou.

    Atahualpa em sua priso viveu uma espcie de liberdade vigiada, pois com

    ele ficaram suas mulheres, servidores e os espanhis proporcionavam-lhe diverso

    para que no se entristecesse. Um dia, resolveu oferecer a Pizarro grande

    quantidade de ouro por sua liberdade (ARMAS MEDINA, 1954, p. 22). Segundo o

    testemunho de Diego Cayo Inga, Atahualpa ao perceber que no o soltariam mesmo

    depois de o resgate ser pago, ofereceu ao rei seis milhes de pesos para que fosse

    exilado na Espanha. Pizarro no atendeu seu pedido e o sentenciou morte para

    que ningum soubesse a quantidade de ouro e prata que lhes entregara para

    recobrar sua liberdade7. Queimaram os cabelos do Inca e logo o amarraram a um

    poste e o garrotearam. O corpo ficou exposto at o dia seguinte e quando a notcia

    se espalhou vrios servidores e mulheres se suicidaram. Manuel de Mendiburu

    conta que o funeral foi celebrado com a participao de Pizarro e seus oficiais, todos

    com sinais de luto e muito pesar, grande farsa praticada pelos conquistadores

    sempre que tiravam a vida a um inimigo (MENDIBURU, 1934, p. 81).

    Com a morte do Inca, os espanhis partem para conquistar Cuzco, capital do

    Tahuantinsuyu. Nesse momento, os espanhis passaram a contar com trs

    assentamentos, San Miguel de Tangarar, Cajamarca e Cuzco, criando-se a

    necessidade de fundao de um local central. Pizarro fundou com essa finalidade a

    cidade de Jauja em 1534, situada no vale do rio Mantaro, exatamente um lugar

    eqidistante entre Cajamarca e Cuzco e que alm disso, estava localizado em lugar

    frtil e prspero. Jauja foi assim a primeira capital dos espanhis e tambm o local

    em que eles realmente se estabeleceram. Depois disso, em funo do

    descontentamento de alguns espanhis que tinham ndios encomendados na costa

    e precisavam estar perto de seus tributrios, Pizarro fundou a Ciudad de los Reyes,

    hoje Lima, em 18 de janeiro de 1535. Essa passou a ser capital porturia dos

    espanhis por estar localizada na zona costeira e facilitar o trnsito at o Istmo e ao

    oceano Atlntico.

    Em pouco tempo, Francisco Pizarro e Diego de Almagro j haviam conquistado

    e submetido os ndios, ocupando os locais mais importantes. A luta pelo poder se

    instalou entre os dois conquistadores e Almagro acabou executado. Trs anos

    depois, em 26 de junho de 1541, Pizarro foi morto por almagristas e enterrado

    numa Igreja chamada Los Naranjos e mais tarde, seu corpo foi transladado

    Catedral da Ciudad de los Reyes, atual Lima.

    7GUILLN GUILLN, Edmundo. El testimonio Inca de la conquista del Peru. Boletn del Instituto Francs de Estdios Andinos, VII, n3-4, p.39. Cpia do documento original encontra-se no AGI, Escribana de Cmera, Leg. 496A.

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    101

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    Nos quarenta anos que se seguiram conquista, o mundo indgena sofreu

    com as guerras e Manco Capac II, meio-irmo de Atahualpa, rebelou-se e

    estabeleceu a sede do novo Estado em Vilcabamba, de onde partiram os ataques

    contra os espanhis (KUBLER, 1963, p.343). Porm, os espanhis continuaram

    dominando e depois de fazerem desaparecer a redistribuio estatal, prolongaram

    as antigas formas de tributo, exigindo dos ndios no s trabalho, mas tambm

    produtos. O sculo XVI teve grande significado para a populao indgena, pois seu

    mundo social, poltico e religioso foi profundamente transformado.

    9. Crnicas e Historiografia da conquista dos Andes

    Ral Porras Barrenechea analisou grande parte das crnicas que trataram da

    histria do Peru. Segundo seus estudos, as crnicas da conquista foram a primeira

    histria peruana. A crnica castelhana, ao transplantar-se Amrica, trazia

    consigo uma essncia prpria e uma larga tradio. No primeiro momento,

    relataram as aventuras espanholas e depois passaram a tratar da histria dos

    povos por eles conquistados, baseando-se na tradio oral e em sistemas de

    memria (KUBLER, 1963, p. 7), como o caso dos documentos feitos a partir das

    informaes coletadas junto aos quipucamayocs, especialistas na decodificao dos quipus (HURTEAGA, 1920, p. 175).

    [...] los quipus fueron instrumentos contables complejos (registros de

    bienes, servicios, personas; sumas, restas, multiplicaciones, divisiones,

    medias aritmticas, clculo de proporciones; clasificaciones de mltiples

    niveles) (CHIRINOS RIVERA, 2010, p. 12).

    H pesquisadores que afirmam existir quipus narrativos, onde histrias dos Incas e inclusive pr-incaicas aparecem registradas. Richard Pietschmann,

    peruanista alemo, analisou a crnica de Sarmiento de Gamboa e chegou

    concluso que este utilizou informaes contidas em quipus histricos incas em comunho com a memria oral8.

    Foram muitos os cronistas que trataram da conquista do Peru e descreveram

    a aventura de Pizarro e seus homens por terras andinas baseando-se em suas

    prprias experincias, por vezes, registradas nos acampamentos, e nas fontes acima

    mencionadas. Entre os relatos mais conhecidos, podemos destacar os testemunhos

    de Francisco de Xerez, Hernando Pizarro, Cristbal de Mena, Juan Ruiz de Arce,

    Pedro Sancho de Hoz, Diego de Trujillo, Miguel de Estete, Pedro Pizarro e tambm

    as crnicas de Cieza de Leon, Agustn de Zrate e Garcilaso de la Vega, que

    8 SARMIENTO DE GAMBOA, Pedro. Segunda parte de la historia general llamada Indica... In:

    PIETSCHMANN, Richard (Ed.). Geschichte des Inkareiches von Pedro Sarmiento de Gamboa. Abhandlungen der Kniglichen Gesellschaft der Wissenschaften zu Gttingen, Philologisch-Historische Klasse, Neue Folge, vol. 6, no. 4. Weidmannsche Buchhandlung. Berlin, 1906 [1572].

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    102

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    abordam o mundo pr-hispnico e o perodo colonial inicial9. Gonzalo Fernndez de

    Oviedo em sua Historia general y natural de las ndias preparou uma sntese sobre a ao dos espanhis na Amrica, baseado em documentos e testemunhos orais,

    sendo que no caso dos Pizarro, sabe-se que nutria verdadeira averso a eles10.

    Elogios e crticas apareciam nessas obras, sendo que o principal objetivo era

    comunicar aos reis de Espanha os feitos desses homens desejosos de fazer jus s

    benesses da coroa espanhola.

    Algumas cartas da poca tambm fornecem dados importantes sobre as

    conquistas desses homens e diferentemente de outros documentos, estas permitem

    perceber sentimentos, medos, a luta diria pela sobrevivncia, visto que muitas

    vezes a busca por comida substitua em importncia a cobia por ouro (PORRAS

    BARRENECHEA, 1959, p. 64). Foram muitas as agruras sofridas por esses homens,

    que enfrentaram intempries climticas, cansao extremo e ataques de grupos

    indgenas hostis e apesar do xito militar que alcanaram em relao aos Incas, no

    predominaram sonhos de conquista e riquezas nas relaciones espanholas dos acontecimentos prvios a essa conquista, e sim, discursos de sofrimento corporal11.

    S aps a conquista os relatos retomam a vivacidade de um discurso

    providencialista herdado do imaginrio medieval.

    Hernando Pizarro escreveu um dos primeiros relatos da conquista em si, mas

    como se sabe, a carta que redigiu em 1533 foi copiada por Gonzalo Fernndez de

    Oviedo e sendo a nica cpia que se conservou, no se pode atestar sua fidelidade

    (PEASE, 2010, p. 71). As duas primeiras relaciones publicadas em Sevilha sobre os feitos de Pizarro e seus homens na regio andina foram as de Cristbal de Mena

    e Francisco de Xerez em 1534. O primeiro, autor de La conquista del Peru llamada la Nueva Castilla12, responsabilizou Pizarro pela execuo de Atahualpa e acusou os espanhis de cometerem vrias atrocidades, pois saiu insatisfeito de Cajamarca por

    se sentir lesado na diviso dos tesouros saqueados. J Francisco de Xerez,

    secretrio de Pizarro, na Verdadera relacin de la conquista del Peru13 descreveu minuciosamente a expedio empreendida e enalteceu os feitos de Pizarro e seus

    9 Ver tambm CARILLO ESPEJO, Francisco. Cartas y cronistas del descubrimiento y la conquista. Lima:

    Editorial Horizonte, 1987; LOCKHART, James. Op. cit., 1986, v.1 e 2; PORTUGAL, Ana Raquel. Mitos e fatos nas crnicas da conquista do Antigo Peru. Histria Unisinos. Vol. 14 N 2 - maio/agosto de 2010. 10

    No caso de Francisco Pizarro, o cronista Gonzalo Fernndez de Oviedo coloca que ele um ...hombre sin ninguna letra ni industria para gobernar. In: Historia General y Natural de las Indias, islas y tierra-firme del mar ocano. Madrid: Imprenta de la Real Academia de la Historia,1855, Tomo IV, p.144. Essa informao corroborada por Ral Porras-Barrenechea: El cronista Oviedo, vecino de Pizarro y apasionado y rencoroso enemigo... In: Pizarro. Lima: Editorial Pizarro, 1978, p.616. 11

    Heidi V. Scott em Ms all del texto: recuperando las influencias indgenas en las experiencias espaolas del Peru faz um estudo sobre as narrativas produzidas antes e aps a conquista do Tahuantinsuyu e mostra que a natureza foi o primeiro obstculo encontrado por esses homens e logo depois seus discursos estavam repletos de histrias de conquistas rpidas, mas o obstculo humano se tornou o centro dessas descries. In: DRINOT, Paulo, GAROFALO, Leo (Eds.). Ms all de la dominacin y la resistncia. Estdios de historia peruana, siglos XVI-XX. Lima: IEP. 2005. 12

    MENA, Cristobal. La conquista del Per llamada la Nueva Castilla. In: SALAS, Alberto M. Cronicas iniciales de la conquista del Peru. Buenos Aires: Editorial Plus Ultra, 1987. [1534]. 13

    XEREZ, Francisco. Verdadera relacin de la conquista del Per. Edio de Maria Concepcin Bravo Guerrera. Madrid: Histria 16, 1985. [1534].

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    103

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    familiares. Por representar a verso oficial dos fatos ateve-se a descrev-los

    conforme a solicitao de seu comandante e essa relacin uma das mais editadas at hoje. Pizarro contou com outros secretrios, como Pedro Sancho de

    Hoz, Antonio Picado, Pero Lpez de Cazalla e Cristbal Garca de Segura. Pedro

    Sancho foi quem substituiu Xerez e deu continuidade relacin que este escrevia, sendo que agora denominada Relacin para S.M. de lo sucedido en la conquista y pacificacin de estas provncias de la Nueva Castilla14. Nela relatou as atividades dos espanhis desde que saram de Cajamarca at seu estabelecimento em Cuzco,

    sendo mais uma verso oficial dos fatos.

    Esses primeiros relatos da conquista feitos na poca ou posteriormente

    mostram um Pizarro altivo, corajoso, de vontade inquebrantvel, a que nada deteve.

    Era homem de poucas palavras, mas convicto de seus objetivos e no retrocedeu ao

    ter que matar e mandar matar para alcanar o reconhecimento da coroa espanhola

    e riqueza. Apaixonado pela guerra era o primeiro a empunhar armas. Seus homens

    o temiam mais do que o admiravam, mas o consideravam um bom capito, corajoso

    e disposto a lev-los vitria ou a morrer com eles (MENA, 1987, p.84).

    Para Barrenechea, a biografia de Pizarro tem sido deformada e precisa ser

    revisada usando-se o testemunho dos cronistas do sculo XVI, sendo que o mais

    aconselhvel seria usar as crnicas dos soldados que o acompanharam

    [...] escritas unas a raz de los sucesos, y otras, aos ms tarde,

    rememorando las hazaas de su juventud. En unas predomina la pasin,

    en otras, la nostalgia (PORRAS BARRENECHEA, 1959, p.615).

    Os soldados que acompanharam Pizarro, como tratado acima, em sua grande

    maioria, produziram relaciones que elogiavam os feitos de seu comandante e deles prprios. Nessa mesma poca, outros cronistas no tiveram a mesma opinio a

    respeito de Francisco Pizarro. Alm de Oviedo, como j citado, Francisco Lpez de

    Gmara em sua Historia General de las ndias15 de 1552 criou a lenda de que Pizarro teria sido amamentado por uma porca e mais tarde teria criado esses

    animais na Espanha, depreciando sua imagem para enaltecer a de Cortez a quem

    admirava sobremaneira. Las Casas tambm no se mostrou favorvel a Pizarro,

    embora nunca tenha estado em terras peruanas. Na obra Historia general de los hechos de los castellanos en las islas y tierra firme del Mar Oceano (1601), mais conhecida como Dcadas, Antonio de Herrera y Tordesillas16, proporciona inmeras informaes sobre Pizarro, mas tambm expressou algumas opinies desfavorveis

    ao conquistador.

    Para contrapor as vises negativas sobre Francisco Pizarro, apareceu no

    sculo XVII na Espanha uma tendncia apologtica de defesa e enaltecimento de

    sua figura iniciada por Fernando Pizarro y Orellana na obra Varones ilustres del

    14 In: AROCENA, Luis A. La relacin de Pero Sancho. Buenos Aires: Plus Ultra, 1987.

    15 LPEZ DE GMARA, Francisco. Historia General de las Indias. Madrid: Espasa Calpe, 1922.

    16 HERRERA Y TORDESILLAS, Antonio de. Historia general de los hechos de los castellanos en las islas y

    tierra firme del Mar Oceano. Asuncin: Editorial Guarania, 1945.

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    104

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    Nuevo Mundo de 163917. Posteriormente, o poeta Manuel Jos Quintana escreveu Vida de Francisco Pizarro em 1830, considerada a primeira biografia completa do conquistador, baseado nas principais crnicas conhecidas naquele perodo e

    diversos outros documentos, tecendo elogios mais cautelosos e por vezes,

    reconhecendo dados desfavorveis a Pizarro18. No sculo XIX, Willian Prescott trabalhou as conquistas espanholas do

    Mxico e Peru (PRESCOTT, 1862, p.256) de forma pica e no caso de Francisco

    Pizarro, lhe conferiu caractersticas de perfdia e avareza. Sebastin Lorente

    esboou um olhar bem diferente sobre a conquista, mostrando que a mesma tratou-

    se de uma invaso e que as populaes locais rapidamente se deram conta de que

    os espanhis eram inimigos e no deuses como cogitaram no princpio (LORENTE,

    1861, p.107). Na mesma linha, Manuel de Mendiburu alertou para o fato de que os

    espanhis vieram Amrica para invadir y conquistar naciones inocentes y felices e:

    [...] consumada la usurpacin del territorio americano se establecieron

    extensas colonias a muy largas distancias de su metrpoli; la tributaron

    tesoros asombrosos, absorvidos luego en las guerras memorables del siglo

    XVI (MENDIBURU, 1934, p.1).

    No sculo XX, o tema voltou a suscitar interesse e surgiram muitas obras em que

    seus autores concentraram-se em esboar genealogias e biografias. Entre alguns

    desses, podemos destacar Rmulo Cuneo-Vidal, que elaborou extensa biografia de

    Pizarro e tambm descreveu a conquista e o perodo colonial peruano baseado em

    documentao indita e analisando a participao indgena de um modo inovador,

    no mais como meros espectadores nas guerras de conquista, mas como

    participantes ativos19. A obra de Ral Porras Barrenechea sobre Francisco Pizarro

    uma das mais importantes e completas, devido quantidade de documentos

    consultados, por vezes, documentos inditos, e tambm s anlises tecidas

    (PORRAS BARRENECHEA, 1959, p.657).

    Guillermo Lohmann Villena contribuiu com a organizao da documentao

    oficial produzida a mando da Francisco Pizarro, correspondente ao perodo de 1519

    a 1541. Cartas, disposies governativas, atas, contratos, documentos pessoais,

    testamentos, e tantos outros documentos significativos para ajudar a compor a

    biografia do conquistador (LOHMANN VILLENA, 1986).

    17 PIZARRO Y ORELLANA, Fernando. Varones ilustres del Nuevo Mundo: descubridores, conquistadores, y

    pacificadores del opulento, dilatado, y poderoso Imperio de las Indias Occidentales; sus Vidas, Virtud, Valor, Hazaas, y Claros Blasones; Con un discurso legal de la Obligacion que tienen los Reyes a premiar los servicios de sus Vassallos ; 6 en ellos, 6 en sus descendientes. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, 1639. 18

    QUINTANA, Manuel Jos. Vida de Francisco Pizarro. Madrid: Espasa-Calpe, 1959 [1830]. 19

    CUNEO-VIDAL, Rmulo. Obras completas. 2.ed. Lima: Grfica Morsom, 1978, Tomo 2, Vol. III: Vida del conquistador del Peru Don Francisco Pizarro.

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    105

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    Jos Antonio del Busto Duthurburu tambm realizou extensa obra sobre a

    biografia de Pizarro e os homens que o acompanharam e entre elas, destacamos

    Francisco Pizarro, dois volumes embasados em documentao coletada em arquivos de diversos pases (BUSTU DUTHURBURU, 2001). Outra importante contribuio

    a biografia da filha de Pizarro, Francisca, feita por Mara Rostworowski. Nesta

    pesquisa aparecem dados documentais sobre a colaborao que algumas tribos do

    Tahuantinsuyu prestaram aos espanhis para derrotar os Incas, bem como,

    anlises sobre os mecanismos da mestiagem inicial. Pizarro teve filhos com duas

    princesas incas, mas no se casou com elas e posteriormente levou seus filhos para

    serem educados por espanhis, na cultura que ele considerava superior

    (ROSTWOROWSKI DE DIEZ, 1989).

    James Lockhart em seu livro Los de Cajamarca tratou da conquista do Tahuantinsuyo e tambm da histria dos homens que participaram do episdio

    mais conhecido da histria andina, o aprisionamento do chefe Inca, Atahualpa

    (LOCKHART, 1986). uma anlise dos momentos anteriores conquista e tambm

    das caractersticas pessoais de cada membro dessa hoste, como o lugar de onde

    vieram, camada social, grau de instruo e outras informaes provenientes de

    vasta documentao por ele consultada.

    Estudos etnohistricos tm sido produzidos por diversos autores, como

    Nathan Wachtel20, Franklin Pease21, Waldemar Espinoza22, Edmundo Guilln

    Guilln23, Juan Jos Vega24 e a j citada Maria Rostworowski, entre outros. Esses

    estudos se caracterizam por procurar entender a participao do indgena no

    processo de conquista e ao longo do perodo colonial, sendo uma contribuio

    importante para compreender a relao entre espanhis e a populao nativa desde

    os primeiros anos de presena europia no Peru. Juan Jos Vega afirma que a

    conquista demorou 13 anos, sendo que a primeira fase foi a conquista de

    Cajamarca e o aprisionamento de Atahualpa e a segunda a luta contra Manco Inca,

    que chefiou a elite cuzquenha contra a dominao espanhola de 1536 a 1544.

    Utiliza as crnicas para mostrar que a resistncia indgena foi grande nesse perodo

    e que os espanhis tiveram a sorte de encontrar o Tahuantinsuyu dividido em uma

    guerra civil entre Atahualpa e Huascar, os dois irmos que disputavam o comando

    desse territrio. Mesmo depois do aprisionamento e morte do Inca Atahualpa, os

    incas continuaram resistindo e s em 1544 se pode considerar concluda a

    conquista espanhola (VEGA, 1992). No que diz respeito a Pizarro, ele considera que

    seu enaltecimento como grande conquistador e fundador de cidades se devem a um

    mal entendido hispanismo, que impera na historiografia peruana, visto que quem

    20 WACHTEL, Nathan. Los vencidos; los indios del Peru frente a la conquista espaola (1530-1570). Madrid:

    Alianza Editorial, 1976. 21

    PEASE, Franklin. Los ltimos incas del Cuzco. Lima: Ediciones P. L. Villanueva, 1972. 22

    ESPINOZA SORIANO, Waldemar. Los huancas aliados de la conquista. Tres informaciones inditas sobre la participacin indgena en la conquista del Peru. Anales Cientficos de la Universidad del Centro del Peru, 1: 9-407, Huancayo, 1971-1972. Posteriormente, publicou sobre o mesmo tema: La destruccin del Imprio de los Incas. La rivalidad poltica y seorial de los curacazgos andinos. 3.ed. Lima: Amaru, 1981. 23

    GUILLN GUILLN, Edmundo. Versin inca de la conquista. Lima: Milla Batres, 1974. 24

    VEGA, Juan Jos. Los incas frente a Espaa. Las guerras de la resistncia, 1531-1544. Lima: Peisa, 1992.

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    106

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    realmente participou de 15 batalhas, fundou mais cidades, percorreu largos trechos

    do territrio peruano foi Diego de Almagro, que as verses oficiais apresentadas por

    Francisco Pizarro a Carlos V trataram de ocultar, como no caso das crnicas de

    seus secretrios Xerez e Sancho (VEJA, 1992, p.154).

    Dentre os estudos mais recentes, especificamente sobre Francisco Pizarro,

    sua parentela, a conquista e o perodo inicial da colonizao destacamos o trabalho

    de Rafael Varn Gabai, La ilusin del poder, no qual este se preocupou em ir alm dos aspectos religiosos, militares, polticos e culturais, procurando entender a

    motivao empresarial dos conquistadores. Mostrou ainda que o poder de Pizarro

    era fraco devido diviso existente entre os prprios conquistadores e tambm

    oposio por parte da Coroa em relao a alguns planos pizarristas. Heidi Scott em

    Ms all del texto: recuperando las influencias indgenas en las experincias del Peru, como o prprio ttulo indica, pesquisou a influncia nativa sobre a maneira como os espanhis perceberam e representaram os territrios americanos durante a

    conquista. Por ltimo, a biografia publicada por Bernand Lavall que traz

    informaes sobre toda a trajetria de Francisco Pizarro e seus irmos e mais do

    que isso, contribui para compreender as relaes entre a Coroa espanhola e os

    conquistadores.

    10. A retrica da mestiagem

    A histria dos conquistadores da Amrica suscita at hoje diversos embates

    retricos, visto que provocam reaes de orgulho e ressentimento. A partir do

    comeo do sculo XX, houve uma mudana no discurso devido necessidade de

    identificao de naes mestias25 e por isso, foram feitas esttuas de alguns desses

    conquistadores, mesmo que em alguns casos, tais obras tenham sido repudiadas.

    No Mxico, realmente no existe esttua e nenhum tipo de homenagem a Hernn

    Cortez, mas em outros pases foram erigidos monumentos a alguns conquistadores,

    como por exemplo, na Colmbia, Equador, Paraguai e tambm no Chile26. No caso

    peruano, no foi diferente. Rafael Varn nos mostra isso em seu artigo sobre a

    esttua eqestre de Pizarro, que desde que foi confeccionada e exposta em

    diferentes lugares da cidade de Lima, gerou lendas, revolta, discusses variadas,

    que fizeram com que a esttua passasse por diversos locais, encontrando-se hoje no

    Parque de la Muralla em lugar no to suntuoso quanto outros personagens

    histricos que podem ser encontrados nas praas de Lima. Mesmo assim, a adoo

    25 Vrios so os estudos sobre mestiagem na Amrica, mas destacamos Nathan Wachtel, Carmen Bernand e

    Serge Gruzinski como autores que contriburam com vrios estudos a respeito. 26

    Ver GUTIRREZ VIUALES, Rodrigo. Monumento conmemorativo y espacio pblico en Iberoamrica. Madrid: Ediciones Ctedra, 2004.

    IgorHighlight

    IgorHighlight

    IgorHighlight

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    107

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    por parte de algumas naes dos cones da conquista se deu em funo da

    necessidade de corroborar a idia de mestiagem. Sendo naes mestias, era

    necessrio o reconhecimento dos conquistadores como parte de suas razes e com a

    esttua de Pizarro no foi diferente (VARN GABAI, 2006, p.217). Como disse

    Armas Medina:

    [...] la sangre de don Francisco Pizarro termina dando sus frutos: el

    nacimiento de una nueva nacionalidad, dentro del mundo

    hispanoamericano, caracterizado por una misma cultura, una misma

    lengua y una misma f [...] (ARMAS MEDINA, 1954, p.29)

    Sebastin Lorente tambm finaliza sua obra com um discurso enaltecedor

    sobre a mescla de povos rivais, estes que solo estaban yuxtapuestos, adquieren la cohesion que con la unidad nacional va darles estabilidad y mdios de adelantos. Para ele, nasce assim a gerao Hispano-Peruana (LORENTE, 1861, p.497).

    A luta entre o Indigenismo e o Hispanismo, conforme Jos Antonio del Busto

    Duthurburu, no foi em vo. Graas a essa polaridade ideolgica hoje existe o

    Peruanismo, uma corrente equilibrada e produto do passado, que confere a Pizarro

    uma imagem histrica de reconhecimento pelo que fez e principalmente, mostra que

    foi depois de sua chegada que comeou a mestiagem racial e cultural dos

    peruanos (BUSTO DUTHURBURU, 2001, p.454).

    Esses discursos propiciaram a retomada de estudos sobre Francisco Pizarro

    e seus homens, procurando entend-los luz de seu tempo e usando de

    documentao diversificada encontrada em arquivos de diferentes pases. Pizarro foi

    tirado do ostracismo pela necessidade de entender o Peru de hoje, uma nao

    mestia que se orgulha de suas razes.

    Texto recebido em Janeiro de 2011.

    Aprovado para publicao em Maro de 2011.

    Sobre os Autores

    Ana Raquel Portugal Professora de Histria na UNESP/Franca e integrante do Conselho

    Diretor do Centro de Documentao e Apoio Pesquisa Histrica. Alm disso, Doutora em

    Histria pela Universidade Federal Fluminense (2003). Tem experincia na rea de Histria,

    com nfase em Histria da Amrica, atuando principalmente nos seguintes temas: povos

    indgenas, crnicas, jesutas, religiosidade andina e colonial, bruxaria, inquisio e

    extirpao de idolatrias. E-mail: [email protected]

    Marcus Vincius de Morais Mestre em Histria Cultural pela Universidade Estadual de

    Campinas (UNICAMP) e foi pesquisador da FAPES (Conselho Nacional de Pesquisa

    Cientfica). Autor de livros como Hernn Cortez (Contexto), Eles formaram o Brasil

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    108

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    (Contexto) e de diversos artigos sobre cultura, conquista da Amrica e crnicas de viagens

    na Amrica Latina (sculos XV e XVI). E-mail: [email protected]

    REFERNCIAS:

    APPLEBY, Joyce; HUNT, Lynn; JACOB, Margaret. Telling the truth about history. Norton & Company, 1995.

    ARMAS MEDINA, Fernando de. Pizarro. Madrid: Publicaciones Espaolas, 1954.

    AROCENA, Luis A. La relacin de Pero Sancho. Buenos Aires: Plus Ultra, 1987.

    BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou o ofcio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

    CASTILLO, Bernal Daz. Historia Verdadera de la conquista de la Nueva Espaa. Madrid: Espasa, 1997.

    CHARTIER, Roger. O mundo como representao. In: beira da falsia: a Histria entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2002.

    CHIRINOS RIVERA, Andrs. Quipus del Tahuantinsuyu. Curacas, Incas y su saber matemtico em el siglo XVI. Lima: Editorial Commentarios, 2010.

    CORTES, Hernn. Cartas de Relacin. Madrid: Dastin, 2000.

    CORTES, Hernn. Cartas de Relacin. Madrid: Dastin, 2000.

    CUNEO-VIDAL, Rmulo. Obras completas. 2.ed. Lima: Grfica Morsom, 1978, Tomo 2, Vol. III: Vida del conquistador del Peru Don Francisco Pizarro.

    DRINOT, Paulo, GAROFALO, Leo (Eds.). Ms all de la dominacin y la resistncia. Estdios de historia peruana, siglos XVI-XX. Lima: IEP. 2005.

    DUTHURBURU, Jos Antonio del. Pizarro. Lima: Ed. Cope, 2001, 2.v.

    FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira & MORAIS, Marcus Vincius de. Renovao da Histria da Amrica. In. Histria na sala de aula. So Paulo: Contexto, 2003. FLORESCANO, Enrique (organizador). Espelho Mexicano. Mxico: FCE, 2002.

    FLORESCANO, Enrique. Memoria Mexicana. Mxico: Taurus, 2001.

    GOBINEAU, J.A. Essai sur Iingalit ds races humaines. Ouvres. Paris: Gallimard-Pliade, 1983.

    GUILLN, GUILLN, Edmundo. El testimonio Inca de la conquista del Peru. Boletn del Instituto Francs de Estdios Andinos, VII, n3-4, p.39. Cpia do documento original encontra-se no AGI, Escribana de Cmera, Leg. 496A.

    GUILLN GUILLN, Edmundo. Versin inca de la conquista. Lima: Milla Batres, 1974.

    GUTIRREZ VIUALES, Rodrigo. Monumento conmemorativo y espacio pblico en Iberoamrica. Madrid: Ediciones Ctedra, 2004.

    HARTOG, Franois. O espelho de Herdoto ensaio sobre a representao do outro. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

    HERRERA Y TORDESILLAS, Antonio de. Historia general de los hechos de los castellanos en las islas y tierra firme del Mar Oceano. Asuncin: Editorial Guarania, 1945.

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    109

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    KARNAL, Leandro. Posfcio. In.: MORAIS, Marcus Vincius de. Hernn Cortez. So Paulo: Contexto, 2011.

    KUBLER, George. The quechua in the colonial world. In: STEWARD, H. Julian. Handbook of South American Indians. New York: Cooper Square Publishers INC, 1963.

    LA CAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language. Cornell University, 1993.

    LAS CASAS, Bartolomeu. Historia de las Indias. Edio de Augustn Millares Carlo. Mxico: FCE, 1986..

    LAVALL, Bernard. Francisco Pizarro. Biografa de una conquista. Lima: IFEA/EF/IRA/IEP, 2005.

    LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio temtico do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006. pp.197-198, volume I.

    LOHMANN VILLENA, Guillermo. Francisco Pizarro: Testimonio; documentos oficiales, cartas e escritos vrios. Madrid: CSIC, 1986.

    LPEZ DE GMARA, Francisco. Historia General de las Indias. Madrid: Espasa Calpe, 1922.

    LORENTE, Sebastin. Historia de la conquista del Peru. Lima: [Impr. Arbieu], 1861, p.107.

    MENA, Cristobal. La conquista del Per llamada la Nueva Castilla. In: SALAS, Alberto M. Cronicas iniciales de la conquista del Peru. Buenos Aires: Editorial Plus Ultra, 1987. [1534].

    MENDIBURU, Manuel de. Diccionario Historico Biografico del Peru. Lima: Libreria e Imprenta Gil, 1934, Tomo IX.

    MENDIBURU, Manuel de. Diccionario Histrico-Biogrfico del Per. Lima: Imprenta Enrique Palacios, 1931, Tomo I, p.1 e 3. PEASE, Franklin. Las crnicas y los Andes. Lima: FCE, 2010.

    PEASE, Franklin. Los ltimos incas del Cuzco. Lima: Ediciones P. L. Villanueva, 1972.

    PORRAS BARRENECHEA, Ral. Cartas del Per. (1524-1543). Lima: Edicin de la Sociedad de los Biblifilos Peruanos, 1959.

    PORRAS BARRENECHEA, Ral. Los cronistas del Peru. Lima: Banco de Credito del Peru, 1986.

    POSTER, Mark. Cultural History and Postmodernity. New York: Columbia Press, 1997.

    PRESCOTT, William. The Conquest of Mexico. New York: Washington Press Books, 1966.p.87.

    PRESCOTT, Willian. History of the conquest of Peru, London: Routledge, 1862.

    QUINTANA, Manuel Jos. Vida de Francisco Pizarro. Madrid: Espasa-Calpe, 1959 [1830].

    RENAN, E. L instruction suprieure em France. In.: Ouvres completes. (volume 10). Calmann-Lvy, 1947.

    RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006.

  • Ana Raquel Portugal & Marcus Vincius de Morais Hernn Corts e Francisco Pizarro: Histria e Memrias

    110

    Dossi: NAES E NACIONALISMOS NA AMRICA ESPANHOLA: HISTRIA, SOCIEDADE E CULTURA

    TEMAS & MATIZES - Vol. 9 - N 18 SEGUNDO SEMESTRE DE 2010. pp. 85-110. ISSN: 1981-4682 (verso eletrnica)

    ROSTWOROWSKI DE DIEZ CANSECO, Mara. Doa Francisca Pizarro, uma ilustre mestiza, 1534-1598. Lima: IEP, 1989.

    THEODORO, Janice. Amrica Barroca: tema e variaes. So Paulo: Edusp, 1992.

    VARN GABAI, Rafael. La estatua de Francisco Pizarro en Lima. Historia e identidad nacional. Revista de ndias, 2006, vol.LXVI, n236

    VEGA, Juan Jos. Los incas frente a Espaa. Las guerras de la resistncia, 1531-1544. Lima: Peisa, 1992.

    WACHTEL, Nathan. Los vencidos; los indios del Peru frente a la conquista espaola (1530-1570). Madrid: Alianza Editorial, 1976.

    XEREZ, Francisco. Verdadera relacin de la conquista del Per. Edio de Maria Concepcin Bravo Guerrera. Madrid: Histria 16, 1985. [1534].