Arqueologia do Forte Orange - O Forte Holandês - Marcos Albuquerque

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Arqueologia do Forte OrangeO Forte HolandsMARCOS ALBUQUERQUE

Vista do Terrapleno em que se espera encontrar a entrada do forte holands. Nesta foto pode-se ainda observar o frontal do forte portugus a noventa graus com esta expectativa.

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o nmero anterior desta revista, tratamos da pesquisa arqueolgica realizada no Forte Orange, na Ilha de Itamarac, no Estado de Pernambuco. Naquele artigo tentamos demonstrar que o atual Forte Orange, que considerado de construo holandesa, de fato trata-se de uma fortificao de construo luso-brasileira e recebeu o nome de Fortaleza de Santa Cruz. Como, durante a ocupao holande-

sa, o perodo do governo de Mauricio de Nassau constituiu-se em um perodo ureo para a Colnia, no inconsciente coletivo fixou-se a imagem de que esse monumento era de construo holandesa, fato que ocorre com outros monumentos, sobretudo no nordeste do Brasil. Foi realizada uma ampla escavao arqueolgica no forte portugus, objetivando o entendimento do quotidiano dos seus ocupantes, queANO X / N 17

foi coordenada pelo Laboratrio de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco, em parceria com a Mowic Foundation, tendo o apoio do IPHAN/Brasil, da Embaixada da Holanda, da Superintendncia Regional do IPHAN/PE e do Governo do Estado de Pernambuco. Entretanto, alm da ocupao luso-brasileira, ou seja, a Fortaleza de Santa Cruz, esse ponto estratgico, situado na Barra do Canal de Santa Cruz, j tinha sido buscado pelos holandeses. A fortificao levantada em 1631, em carter de emergncia, fora possivelmente construda em madeira e terra, como se pode inferir pelas prticas descritas da construo de fortes no Recife, nos primeiros momentos da ocupao. Posteriormente, em 1633, sob o comando de Sigismund van Schoppe, o forte foi reformado, ou talvez ampliado, ou mesmo ainda teria sido substitudo por um outro forte que melhor pudesse defender aquela posio. Mas apenas em 1638, j sob a administrao de Maurcio de Nassau, o Forte Orange assume uma configurao bem mais prxima daquela divulgada no livro de Barleus, o chamado Castrum Auriacum. Esse novo forte holands no se manteve isolado. Com a consolidao do domnio, os holandeses instalaram em Itamarac um sistema de defesa que do lado sul integrava a Vila Schoppe, alm de outros redutos e um grande alojamento. O sistema era complementado com um fortim do lado norte, na Barra de Catuama. Dois pontos fortificados no continente integram ainda o sistema: um no local onde nas primeiras dcadas do sculo XVI haviam sido instalados os marcos divisrios das Capitanias de Pernambuco e Itamarac o Reduto dos Marcos e outro na passagem de Itapissuma. Na construo do Forte de Itamarac supervisionava as obras Tobias Commersteyn, queANO X / N 17 37

Nesta etapa da escavao no tnhamos a menor duvida que tnhamos encontrado a entrada do forte holands. As paredes inclinadas eram dois arrimos que balizavam a entrada do forte.

Observe-se nas duas plantas, a holandesa e a portuguesa, o registro das entradas de acesso. Observe-se ainda a presena da Casa de Plvora ao lado da entrada.

Na foto ao lado, estrutura da Casa de Plvora que se encontrava soterrada.

Detalhe da Casa de Plvora, observa-se a utilizao de tijolos de origem holandesa em sua construo.

Terrapleno onde se supunha a existncia da entrada do forte holands. Ao lado, inicio da escavao do terrapleno no qual se esperava vestgios da entrada do forte holands. Abaixo, todo o material retirado do terrapleno, varias toneladas de areia, submetido a um processo de peneiramento mecnico com o objetivo de se resgatar qualquer informao, seja do forte portugus, nos nveis superiores, ou do forte holands, na sua base.

contava com os servios de Cristvo lvares, engenheiro portugus. Um dos objetivos que balizaram a problemtica da pesquisa foi a identificao de vestgios comprobatrios da ocupao holandesa. Um estudo da iconografia disponvel possibilitou a identificao de alguns elementos contundentes com relao construo dos dois fortes, o holands e o luso-brasileiro: 1. Na construo holandesa, os quartis situados na praa de armas no se encontravam justapostos contramuralha. 2. Na construo luso-brasileira, ao contrario da holandesa, os quartis esto justapostos contramuralha, como na construo atual. 3. Na construo holandesa, a porta de acesso fortificao encontra-se voltada para o Canal de Santa Cruz. 4. Na construo luso-brasileira, a porta de acesso encontra-se voltada para o interior da ilha, ou seja, a 90 graus em relao porta holandesa. 5. Tanto na construo holandesa como na portuguesa, pode-se observar na iconografia a representao de uma casa de plvora. 6. Na planta do forte de construo holandesa, pode-se observar apenas a existncia de duas rampas de acesso ao terrapleno, enquanto nas plantas luso-brasileiras a Fortaleza de Santa Cruz apresenta quatro rampas que, partindo da praa de armas, permite o acesso tanto aos terraplenos como aos baluartes. 7. Com base na iconografia holandesa, o Forte Orange possua um hornaveque. Como ficou demonstrado no artigo anterior, que tratou da escavao do forte portugus, foi identificada parte da casa de plvora que se encontrava soterrada. Essa estrutura, que aparece tanto nas plantas holandesas como nas luso-brasileiras, constitui-se em um elemento fundamen38 ANO X / N 17

tal para a formulao de hipteses. Considerando-se que se sabia o posicionamento das portas dos dois fortes em relao ao Canal de Santa Cruz tendo sido localizada a casa de plvora do perodo luso-brasileiro e, ainda, que foi constatado que essa estrutura fora construda com tijolos de origem holandesa, foi possvel iniciar uma melhor formulao das hipteses, objetivando a localizao do forte holands. Foi realizada uma superposio virtual das plantas, pivoteando-as em torno da casa de plvora. Esse procedimento direcionou a pesquisa no sentido de se buscarem vestgios do forte holands a partir de elementos passveis de serem transformados em hipteses de trabalho. A casa de plvora havia sido encontrada na escavao anterior e coincidia nas duas plantas, a holandesa e a portuguesa, portanto constitua-se em um elemento de suma importncia para a continuidade dos trabalhos na busca de elementos do forte holands. Aps um maior detalhamento desse estudo iconogrfico, associado descoberta da casa de plvora, foi levantada a hiptese de que a porta do forte holands deveria ser encontrada sob oANO X / N 17

terrapleno voltado para o Canal de Santa Cruz, entre a muralha e a contramuralha do forte portugus. Teve inicio, ento, a escavao desse terrapleno, do qual foram retiradas vrias toneladas de areia que preenchia o terrapleno portugus. Todo esse material foi transportado para a praa de armas, onde foi submetido a um processo de peneiramento com o objetivo de ser resgatado qualquer vestgio que identificasse a cronologia ou procedncia dele. Aproximadamente no nvel da praia, ou seja, muito abaixo do parapeito do forte portugus, comeou a aparecer uma estrutura com uma inclinao aproximada de 45 graus, que poderia ser uma parede tombada, ou parte de uma construo holandesa, pois era constituda por tijolos holandeses argamassados com cal. Com o aprofundamento das escavaes constatou-se que se tratava realmente da porta de acesso do forte holands, que era constituda por dois arrimos com a inclinao de 45 graus, parte dos portais em cantaria e a soleira, tambm em pedra. Ao lado dessa estrutura foram encontrados vrios tijolos soltos, fruto do desmoronamento39

Dois tratores removeram a areia escavada no terrapleno. Enquanto esta operao tinha prosseguimento todas as quotas eram controlada por uma estao total.

Acima, nesta quota comeou a aparecer vestgios de uma construo elaborada com tijolos de origem holandesa. Ao lado, foram encontrados os dois portais da entrada do forte holands, em cantaria, a soleira da porta, e a parede construda pelos portugueses quando da ocupao do forte holands. Esta parede obliterava esta entrada enquanto os portugueses optaram por transitar por outra entrada, esta voltada para a Ilha e no mais para o Canal de Santa Cruz.

de uma abbada que constitua o trnsito, que dava acesso ao interior do forte. Parte das estruturas laterais do trnsito, que suportavam o teto abobadado, foram resgatadas durante a escavao. Todos esses tijolos apresentavam restos de argamassa de cal com espessuras diferentes nas suas extremidades, o que permitiu reconstituirse a curvatura da abbada. Os luso-brasileiros ocuparam o forte holands e ainda por alguns anos antes de construrem40

a Fortaleza de Santa Cruz. Ao contrrio dos holandeses, que sempre que possvel mantinham uma esquadra nas imediaes da fortificao, os portugueses optaram por estabelecer a entrada exatamente a 90 graus da holandesa, esta voltada para o interior da ilha. Durante o longo perodo dedicado construo da fortaleza, a antiga entrada holandesa foi fechada com uma parede de alvenaria. Nesse momento das escavaes, j se dispunha de mais elementos que remetiam construo holandesa: a casa de plvora e a porta do forte holands. A partir da j se puderam formular hipteses mais consistentes. Partiu-se ento para a localizao da muralha do forte holands. Com o avano das escavaes foi localizada, a 90 graus da porta de entrada, a muralha do forte holands e surgiam novas evidncias. Um pouco abaixo da parte superior dos vestgios do acesso ao forte holands, foi identificada parte da muralha, ou seja, a poro externa do forte, paralela ao Canal de Santa Cruz e perpendicular ao trnsito. A muralha era de terra, encimada por uma paliada. A sua constituio compunha-se de argila, areia, ramos vegetais e estacas de madeira. A areia utilizada em sua construo de origem local. A argila associada areia encontra-se nas proximidades, pois o local onde se situa o forte bordejado por elevaes do Grupo Barreiras, consequentemente, no haveria problema para a sua aquisio. Apenas os tijolos, ou parte deles, so de origem holandesa, que deveriam vir como lastro dos navios. A cal tambm era de origem local, pois a Ilha de Itamarac repousa sobre um manto de calcrio. comum na rea a presena de pequenos fornos para o fabrico de cal. A localizao da matria-prima constitui-se em uma preocupao constante na pesquisa arqueolgica. Muitas vezes so descritos uma igreja, um forte, ouANO X / N 17

at mesmo uma cidade, com base apenas em critrios da histria da arte, sendo, muitas vezes, negligenciada a origem da matria-prima utilizada em suas construes. A descoberta da muralha do forte holands trouxe muitas contribuies, alm de sua presena em si. Foi possvel entender a sua construo, em camadas superpostas, a sua composio, a sua forma trapezoidal e a paliada em sua poro superior. Alm dessas informaes, tornou-se possvel desmistificar a informao corrente entre vrios historiadores que afirmavam que os fortes de terra foram encamisados por uma muralha em sculos subsequentes sua construo. No caso particular do Forte Orange, podemos assegurar que a muralha holandesa ficou preservada no interior da muralha e da contramuralha da Fortaleza de Santa Cruz. Quando os portugueses ergueram a sua fortificao, aproveitaram a muralha holandesa como parte do preenchimento de seu terrapleno. Ou seja, no construram a sua muralha justapondo as pedras contra a muralha holandesa. A muralha holandesa se encontra solta entre a muralha e a contramuralha do forte portugus. O preenchimento portugus de seu terrapleno foi realizado com areia, sobre o topo da muralha holandesa. Com base nas evidncias acima explicitadas, foi estabelecida a hiptese de que o forte holands possua menor dimenso do que a Fortaleza de Santa Cruz, o que veio a ser comprovado ainda durante as escavaes arqueolgicas. O Forte Orange encontrava-se circunscrito no interior do polgono ocupado pela Fortaleza de Santa Cruz. Com base nessas premissas, teve continuidade a escavao da praa de armas, pois, se a hiptese estivesse correta, seria nessa rea que se encontrariam tanto os quartis holandeses como a fonte de gua que abastecia o forte. Nessa etapaANO X / N 17

da pesquisa, j com um maior nmero de evidncias do forte holands, ou seja, a casa de plvora, o trnsito e a muralha, tornou-se possvel a formulao de novas hipteses com um maior nvel de segurana. Procuraram, ento, evidncias dos quartis holandeses e em seguida de sua cacimba. Sempre que possvel a cacimba situa-se na praa de armas, em seu centro geomtrico, pois se posiciona equidistante de todas as dependncias da fortificao. Assim, ao ser constatado que o forte holands se encontrava circunscrito no traado do forte portugus, a cacimba deveria encontrar-se em local diferente da atual cacimba, de origem portuguesa, que se encontra no centro geomtrico do forte atual. Em vrios cortes, realizados na praa de armas do forte portugus, foram encontradas valas41

Detalhe do arrimo que balizava a entrada do forte holands. Sua construo foi realizada com a utilizao de tijolos de origem holandesa, argamassados com cal. Na foto no alto, pode-se observar os dois arrimos que balizavam a entrada do forte holands, a passagem obliterada pelos portugueses, e parte do transito que dava acesso ao interior do forte holands.

No interior do poo foi encontrado material arqueolgico do sculo correspondente a ocupao holandesa.

Em torno desta estrutura circular foi descoberto um piso de tijolos que facilitavam o acesso ao poo.

Arco em cantaria que encimava a entrada do transito da entrada do forte holands.

Junto ao arco em cantaria foram encontrados tijolos que provavelmente foram utilizados na elaborao da abobada de entrada do transito do forte holands.

Detalhe do piso de um dos quartis holandeses encontrado entre as valas dos alicerces. Provavelmente parte destes quartis foram utilizados por ocasio da ocupao portuguesa antes que estes construsse a Fortaleza de Santa Cruz.

trapezoidais que se repetiram em vrios cortes, denotando uma relao espacial entre elas. Ao se ligarem as valas, nos diferentes cortes, observouse que se tratava de uma estrutura intencionalmente aberta. Com o aprofundamento dos cortes, foram observadas pedras em todas as valas. No restava mais dvida de que se tratava das valas escavadas para a construo dos alicerces dos quartis holandeses. Essa descoberta desmistificou mais uma afirmativa corriqueira entre vrios historiadores, a de que os holandeses no haviam utilizado pedras em suas construes. Deve-se levar em considerao que, embora na Holanda no haja pedras e consequentemente tenham sido desenvolvidas vrias tcnicas construtivas alternativas, houve o contato com os construtores portugueses, que j se encontravam instalados na Colnia h mais de um sculo, com larga experincia em construo de pedras abundantes no Brasil, que foi absorvida pelos construtores holandeses. A ligao virtual de todas as pores das valas permitiu a superposio, tambm virtual, do seu traado sobre a planta de origem holandesa. O resultado comprovou a hiptese de que se tratava dos alicerces dos quartis holandeses. Tambm, no espao entre as valas, foram encontrados restos de piso, cuja quota completamente compatvel com as demais do forte holands. A partir de todos os elementos do forte holands, encontrados arqueologicamente e descritos em pargrafos anteriores, tornou-se possvel a formulao de mais uma hiptese dispondo de elementos irrefutveis. O poo holands deveria, em principio, encontrar-se na praa de armas, aproximadamente no centro geomtrico. Com o avano das escavaes foi encontrada uma estrutura circular, como um aro de barril. Como vrios barris j foram encontrados em outras escavaes, poderia tratar-se de mais uma pea de des42 ANO X / N 17

MARCOS ALBUQUERQUE natural de Recife Pernambuco. Coordenador do Laboratrio de Arqueologia da UFPE. Professor do Programa de Ps-Graduao em Arqueologia da UFPE. Pesquisador do CNPq. Doutor em Arqueologia Histrica e Membro da Academia de Historia Militar do Paraguay www.magmarqueologia.pro.br

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carte de lixo. Entretanto, ao se aprofundar a escavao, percebeu-se que em sua volta havia uma estrutura de tijolos que guarnecia todo o seu entorno, ou seja, uma estrutura compatvel com a proteo externa de uma cacimba. A partir desse momento, ficou devidamente claro que se tratava do poo do forte holands. Concluiu-se que os holandeses abriram as duas extremidades do barril, foram enterrando at o nvel do lenol e, em seguida, realizaram o tratamento com tijolos em sua volta. Essa tcnica assemelha-se utilizao de anis de concreto para a construo de cacimbas nos dias atuais. As laterais do barril, em madeira, ainda se encontram parcialmente preservadas pela gua. Ao se atingir o nvel do lenol, a sua gua foi analisada do ponto de vista qumico e apresentou qualidade de potabilidade compatvel com a preconizada pela Organizao Mundial de Sade, fato que de suma importncia para os ocupantes do forte, sobretudo em possvel poca de stio. Na base desse poo foi encontrado significativo material arqueolgico que ser abordado no prximo artigo que versar sobre todo o material arqueolgico encontrado na pesquisa. Tanto as estruturas do Forte Orange como as da Fortaleza de Santa Cruz se encontram cobertas de areia para evitar danos, at que haja uma restaurao, cujo projeto encontra-se em fase de elaborao e acompanhado por tcnicos da Superintendncia Regional do IPHAN/PE. Essa pesquisa arqueolgica produziu resultados de diferentes aspectos. Do ponto de vista cientifico, inegvel a sua contribuio, pois, alm de se estudar o quotidiano da Fortaleza de Santa Cruz, localizou-se o Forte Orange que se encontrava completamente soterrado. Do ponto de vista do entendimento, herana comum entre a Holanda, Portugal e Brasil, elucidou vrios aspectos obscuros e

permitiu uma aproximao multicultural de saberes e procederes, culminando com a visita ao canteiro de escavao da famlia real do Reino dos Pases Baixos o que favoreceu a assinatura de um termo de cooperao entre Brasil e Holanda. Mais uma pgina da rica Histria Militar do Brasil foi lida, contribuindo para a formao da cidadania, pois uma sociedade que no conhece seu passado no tem perspectiva de futuro. Aguardamos a concluso do projeto de restaurao, baseado nessa pesquisa, que permitir a abertura de uma janela do passado para as geraes do presente e do futuro.

Toda a escavao foi exaustivamente documentada. Nesta foto a utilizao de um elevador desenvolvido pelo Laboratrio de Arqueologia que permite o documentrio fotogrfico tanto em distancia maior como em planta, dado a sua versatilidade e mobilidade.