Areia Em Rolimã

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  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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     Areia em rolimãRafael Aquino

    Ilustrações

     Azul Araújo e Moreno Baêta 

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    Sumário

    Mistério sensível e impronunciável  05

    Natureza morta 07

    Bosque 09

    Membracidae 11

    Infância 13

    Tempo 14

    Caminhos 15

    Palavras 17

    Só 18

    Pixo 19

     Andes 20

    Siamês 21

    Mar e restinga 25O lodo e o jarro 27

    Rio 28

     Velho 29

    Guardar 30

    Facheio e sorriso 31

    Navalha 34

    Um poema 35Tolo 36

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    4

    Pequenos versos para retina 39

    Cinema 41

    Escuro fundo 42

    Respiração 43

     Árvore 44

    Festa 45

    Pendente 46Sonhos 47

    Horizonte 48

    Órgão 50

    Carne crescida 53

    Porfiria 57

    Erre 58

    Poema de agosto 61Cirurgia 64

    Marianjicas (um verso à lavoura arcaica) 66

    Delírio 68

    Tigres de papel 69

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    Mistério sensível e impronunciável

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    Natureza morta

    O livro se dobra à luz do sol.

     As folhas da amendoeira

    enrubescem ao seu calor.

     A pele acastanhae descasca.

     As grades de ferro,

    à intempérie,

    perdem seu verniz,

    sua tinta;

    se abrem em flor

    e sangram sua ferrugem.

    O plástico contorce,

    amarela,

    esfarela.

     A pedra fica tão dura

    que trinca.

     A lágrima seca.

    O suor mina.

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    O livro se dobra

    à luz do sol.

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    Bosque

    Potro xucro ao descampado,

    quem domina teu cabresto

    na cortina de tua crina.

     Ave solta entre os galhos,das pedras em tua garganta

    quais talham a lâmina do teu canto.

    De que te serve, negro escaravelho,

    o brilho de cera do teu casco

    ante a solidão do interior da armadura.

    Quantas das escamas sobre a pele escura,

    lagarto, cresceram em teu papo

    a partir do ato de rastejar.

     Andam para se entregar as lesmas,

    devagar, desenhando seu rastro, mas

    com que tinta escura a noite aquarela sua fuga.

     A árvore hercúlea, os fungos ornando as raízes,

    formigas vermelhas em seu caule e,

    no chão, as pretas em sua vida submersa.

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    Em meu quintal havia um mundo

    de águas passadas que ainda correm.

    Nas folhas das árvores pousei meus sonhos,

    quebra-cabeças nos tempos de muda.

    Entre os seixos na terra escondi meu pulso

    que se afoga nas poças dos dias de chuva.

    Quem se separa do bosque da infância?

     A minha criança usa o verde de seus musgos,

    o roxo das saúvas, os marrons dos barreiros.

     Árvores, fungos, cupins.

    Quem se separa do bosque da infância?

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    Membracidae 

    Fustigar finos galhos com as patas

    como afagando cobertas

    antes de ter as estações à cama;

    depor neles seus ovos.

    Cobri-los em renda branca,guardar as ninfas crescendo

    neste berço de viscos.

    Perder asas por crostas,

    entregá-las à áspera

    língua do tempo,

    sorver dela sua forma

    aprendendo a geometria

    na casca do visgueiro.

    Debulhar os grãos de seu casco,

    neles tingir vermelhos,

    amarelos de flores.

    Despistar com aquarelas

    os olhos da morte

    pousados sobre o curvo

    bico da rapina.

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    Pescar a beleza

    no adverso rio da existência.

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    13

    Infância

     A minha infância se perdeu em mim

    Não há fotografias

    Não há imagens

     Talvez uma mancha borrada em meus lábios

    Quando rio ou choroDecerto

    Diluiu-se no charco lodoso

    Que se assenta no oco de meus pés

    E

    Se o tempo é fugidio

    E atrás dele eu corro

    Invariavelmente

    Levanta-se em pó

    Numa nuvem

    E dana-se a ciscar-me os olhos

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    14

    Tempo

     Tudo transcorre em seu ritmo

    grave e denso.

    Uma pena flutua

    no leite da atmosfera,um mangangá

    nada no ar.

    O rio do tempo carrega seus sedimentos

    a seu próprio tempo.

    Sobre minha cabeça desce a mão das horas

    num afago que começa macio

    seguindo progressivamente opressivo

    até que me acostume.

     As ampulhetas escorrem seu fino concreto

    sobre minhas espáduas e,

    conduzindo seu curso no eixo de minha coluna,

    repousam a meus pés as suas certezas.

     Tenho com as setas dos relógios a cada esquina,

    e então sei que sou apenas um homem,

    nu, contra a rocha crua dos dias.

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    15

    Caminhos

     A contingência intransponível dos corpos.

    De tanto que expande, vaza,

    encontrando atalho nos poros.

     Volúvel,escapa por uma lágrima.

    Disforme,

    se espreme num grito.

     Volátil,

    transborda no suor da febre.

    Quem dera eu fosse poeta,

    seduzir o metabolismo das coisas,

    enganar a censura da física,

    um achador de caminhos.

    Mas eu te digo amor

    com tanta sede

    que não digo nada,

    te cuspo a cara

    com tanto ódio

    que soo ridículo.

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    16

    O barro tem mais palavras que eu,

    murmurando seu rico capim

    entre os paralelepípedos do calçamento.

     As formigas furam caminho pra seu verbo

    num canto de minha parede.

    E eu,cruzando a cidade em um coletivo,

    estou só

    em minha linguagem dura.

    com minha língua escassa

    armada em farrapos.

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    17

    Palavras

     As palavras são apartamentos pré-moldados

    pequenos demais para abarcar o peito e seu entorno.

    Peito é palavra

    que tropeça sem ar.

     A ponte que leva o peito à fala

    é um resistor que tudo talha.

    Palavras são beijos

    de peitos não correspondidos.

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    O homem está só,

    ilhado nos limites de sua pele,

    mudo no interior rígido

    de seus ossos que expõem apenas unhas e dentes.

    O músculo em sua ação se contrai;mesmo quando estoura e sangra,

    coagula seu silêncio indecifrável.

    O homem abraça,

    penetra,

    morde e arranha.

    Insinua um sentido e,

    num gesto vago,

    acredita ser compreendido.

    Mas sempre batem aos dentes,

    pele e coágulo,

    derramando sua sombra

    sobre o leito da palavra inútil.

    E o homem está só,

    preso a sua dor comum

    mas impronunciável.

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    19

    Pixo

    Meu peito é um pixo numa parede suja,

    estampando o rosto de uma metrópole-máquina.

    Ideograma violento rasgando a boca da paisagem.

    Língua impronunciável

    grafada em alturas impossíveis. Verbete guardado por bandos perdidos

    na indecifrável sujeira da noite.

    Meu peito é pixo.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    20

     Andes

     Andes, coluna da América,

    onde realmente inicia teu cérebro?,

    onde finalmente termina teu cóccix?

    Em que ponto crucial

    se invertem tuas massas:cinzentos por brancos?

     Andes,

     vértebra por vértebra,

    que peso tens segurado

    séculos a fio,

    coluna de Atlas

    a segurar horizontes.

    E apesar de tudo

    te manténs aqui

    de pé,

    erguido,

    rijo qual uma cordilheira.

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    21

    Siamês 

    às lagoas Mundaú e Manguaba;

    ao povo que a rodeia

    Duas irmãs siamesas

    quase velhas, 

    mãos dadas,

    passeiam junto ao mar,

    desaguadouro de seus reclames.

    Senhora dama:

    uma cabeça,

    dois corpos,

    uma mesma chama,

    uma mesma lama.

    De tua boca verte-se água

    e mágoa com cheiro de enxofre,

     vertem-se peixes

    e homens em suas canoas,

    derramam-se sonhos e ventos

    e por ela bebe o sal –  minério do tempo  –  

    que vai a beber toda lagoa.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    22

    Sobre teu leito se vergam todas as coisas:

    as árvores,

    os barcos,

    barracos,

    os braços,

    as fomes,

    seu nome e meu nome;

     verga-se o tempo em seu longo plano,

    nas rochas

    se convencendo de tua água

    e por ela se deixando sorver.

     Tudo em tua órbita entorta,

    e quem fugiria de tua visceral gravidade?

    Das flechas que em ti nadam,

    das veias que em ti falam,

    brecha-te o homem,

    os pés nas tuas margens;

    e na saga de sua vida,

    na sua busca te abre feridas

    que, antes de ti, habitando nele,

    já minguavam sangue.

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    23

    Cada veia tua

    que se expõe e sangra

    é também uma chaga aberta

    na margem do margeante,

    e não sabendo o que lhe atinge,

    o que fazer,resta-lhe só o grito

    disforme,

    homem, terceiro siamês errante.

    É por falta de mãos que te bate,

    é por falta de bocas que te come,

    é por falta de rumos,

    por falta de escolhas,

    que te escolhe como te escolhe.

    É por falta de versos que me envergo,

    senhora dama,

    uma cabeça,

    dois corpos,

    uma mesma chama,

    e corro-te à mão

    uma prece moldada na lama.

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    25

    Mar e restinga

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    26

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    27

    O lodo e o jarro

    Sou quem mexe com o lodo do fundo do teu jarro,

    sou teus pés entre os dedos melados de barro,

    sou tua febre terçã,

    tua sede pela manhã

    e a preguiça que se aninha nos teus braços.

    Sou os traços que não conténs quando gozas,

    o suspiro que não prendes se te tocas,

    sou das frutas a maçã,

    sou o canto da acauã

    que congela tua espinha

    e que gostas.

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    29

     Velho

    Eu estou ficando velho,

     velho e besta.

     Vendo beleza nas coisas mais tolas,

    nos riscos dos botões da sua roupaou numa planta que insiste em crescer

    na fresta de um muro antigo.

    Desenhando as curvas da sua orelha,

    o vão do seu ouvido.

    Não sei por que

    estou ficando velho e bobo.

     Vendo amor na cópula

    feroz dos bichos,

    ouvindo canções

    no zum do besouro. 

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    Guardar

    Há que se vigiar o amor

    a cada instante que soa;

    o dia, a noite, a rotina

    a tudo atordoa.

    Há que se vigiar quem se quer

    qual planta frágil na tempestade;

    antever cada insegurança,

    bem dosar a saudade.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    31

    Facheio e sorriso

    I

    É percutindo pulsos no casco da jangada

    que o pescador lança o peixe

    aos dedos trançados de sua redee assim o leva para casa.

    Para mim não há outros laços

    que não os teus braços

    e é o surdo do teu peito junto ao meu

    que me põe rendido.

    Se a noite é sem lua

    qualquer luz é um encanto

    que traz o peixe à flor d´água

    e ao encontro da faca.

    Para mim não há facho

    que não os teus olhos,

    nem lâmina que me atravesse

    que não o riso dos teus lábios.

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    II

    É teu largo sorriso

    que ocupa a sala,

    que penetra a cozinha

    e deixa teu gosto nos potes de temperos,

    entra nos corredores,

    se espalha nos quartos

    impregnando colchas,

    travesseiros e cobertores

     –  dirão que é teu cheiro,

    mas sei que foi a curva de tua boca

    que tomou minhas narinas

    quando cheguei em casa e tirei

    nosso lençol conjunto da mala  – ;

    é teu sorriso que me flecha o peito

    numa dor que procuro

    entre as folhas dos livros,

    os quadros das paredes.

    Nos filmes da televisão:

    minha dor e teus olhos;>

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    33

    nas canções do rádio:

    minha dor

    e a saudade.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    34

    Navalha

    Eu só tenho a oferecer

    a minha carne que falha,

    essa minha mão que cai,

    esse meu olho que pisca

     vez em quando.

     Vez em quando eu sou dragão

    e meu fogo em ti se espalha,

     vez em quando eu sou navalha

    correndo na tua mão.

     Vez em quando eu sou vulcão

    e meu corpo em ti se espalha,

     vez em quando eu sou navalha

    correndo da tua mão.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    35

    Um poema

    Nunca o verão pareceu tão frio

    e o azul do seu céu tão atonal.

     As arvores só respiram,

    não cantam,

    e reconheço o lagartoque pula no muro sem uma de suas patas

     –  ainda vive.

    O sol, esse astro

    que ao amanhecer

    nasce em cada coisa que brilha,

    neste dia de desvelamentos

    parece ter composto

    uma luz de velas tristes

     –  o mundo se compadece.

    Sento na calçada,

    escrevo um poema

    e aguardo que um novo dia nasça

    em outra estação,

    em outros tons,

    em outras patas.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    36

    Tolo

    Sou um tolo.

    Como a flor

    que veste suas pétalas

    esperando a abelhaé uma tola.

    Como o sanhaço

    no galho da mangueira

    bicando sua polpa amarela

    é um tolo.

    Como a pedra

    esperando que o tempo

    lentamente a dispa

    de si

    é uma tola.

    Sou tolo quando te espero,

    sou tolo quando te beijo,

    sou tolo, sobretudo,

    quando me entrego além do toque.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    37

     A gente sempre aposta

    nesse jogo perdido,

    blefando com o destino

    e seu baralho de cartas mal traçadas.

    Sou tolo como o tempo desfolhando calendários,

    como o vento bagunçando os teus cabelos,como o mar lambendo a areia da praia,

    tentando manter longe

    a teia de braços da restinga.

    Sou tolo como os carros

    que se movem com motores a explosão,

    ansiosos com o destino.

    Sou tolo e só o tempo

    pode afirmar com precisão.

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    39

    Pequenos versos para retina

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    41

    Cinema

    Sempre que tenho

    saudades do arrebol

    fecho os olhos

    e então o sol

    pinta minhas pálpebras de vermelho.

    Eis meu cinema em segredo.

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    43

    Respiração

     Todo o mar

    é um imenso pulmão:

    gasta o dia inteiro num sopro

    e corre a noite num fôlego.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    44

     Árvore

    Granada verde

    escapa do chão.

    Se espreguiça,

    grita,explode,

    tomando todo o ar.

    Desata,

    desenovela,

    lento,

    para que seu fogo

    brilhante,

    desatento,

    outras granadas

     venha espalhar no vento.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    45

    Festa

    Linda como um parque de diversões

    aportando numa cidade de interior,

    enchendo de sorrisos minha boca de criança,

    enredando meus olhos pela magia da dança.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    46

    Pendente

     Verso pendente

    chega na garganta,

    acena e não sai.

    Balança na cordabamba,

    é no fundo da gente

    que cai.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    47

    Sonhos

    Nuvens são tufos de sonho

     –  em São Paulo tufos cinzas de sonho e fumaça  – ;

    não à toa

    tolos aviões pisam em falsoao adentrar seus sítios.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    48

    Horizonte

    Em frente à longa

    linha que nos rodeia,

    ao grande círculo

    que à nossa vistatange,

    à grande língua

    que lambe, do mundo,

    a beira,

    subiram coqueiros,

    sobem concretos

    e hão de subir cordilheiras.

    Mas lá nos campos nus,

    lá de fronte ao mar,

    é lá

    que nos ocorre lembrar:

    algo te esconde

    mas nada te apaga

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    49

    borda do céu,

    lábio da abóbada.

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    50

    Órgão

    Sempre vi a América Latina

    na forma de um órgão:

    um fígado

    ou um pâncreas dilatado,um estômago

    afastado dos intestinos,

    um coração que enraíza.

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    Carne crescida

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    54

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    55

    "(...) os lábios quais dois calos, e as ilhargas

    como as asas dos pássaros convulsos,

     patas ungueadas, breves mas amargas,

    agarradas a si, de si expulsas (...)"

     Jorge de Lima

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    57

    Porfiria

    O norte da alma é um deserto

     vago e sombrio.

     Terreno de desassossego e arrepio.

     Vaga onde cruzam

    desejos

    e seus cabrestos,

    campo de pastar bestas.

    Porão de se esconder

    o cancro

    e outras porfirias.

     A porção de pele

    que foge à luz do dia.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    58

    Erre 

    Me nasceu um erre entre os dentes

    que tem me rasgado língua e gengiva,

    uma rasga-mortalha rompendo o céu da boca.

    Um erre que tem me dado um ruído ranzinza no juízoe me riscado rugas no rosto.

    Um erre qualquer,

    hora maiúsculo, hora cansado, diminuto,

    tem me aporrinhado a alma

    e me roído o corpo

    como remoendo a ideia que sou um rato,

    um rei sem roupas,

    um resto de rumo,

    uma rinha de ranços,

    um farrapo retinto.

     Algo como um rangido que nasce na polpa da língua.

    Uma íngua presente

    no oco dum vaso,

    um erre no aso.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    59

    Um erre que roça como um calo

    entre os pés de um varo.

    Um erro,

    um raro que arranha.

    Como a rua

    rangendo restos em bueiros.

    Um arroto que nasce

    esbarrando na rota.

    O estalo de um trote

    se o trote fosse só o estalo,

    sem a graça,

    só o ruído.

    O cupido dos vícios,

    os indícios do crime,

    o rastro que não se apaga.

     A paga de estar vivo,

    de ter que estar vivo,

    de matar o já dito

    e ditar o resto.

    Um erre.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    60

    O gê é um salto,

    o ele é um deslize macio,

    mas foi um erre,

    areia em rolimã,

    que nasceu entre meus dentes.

    Como eu não tivesse culpa alguma

    das letras que faço.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    61

    Poema de agosto

    O mês de agosto pousa no calendário

    e os cães não ladram a sua passagem.

    Observam cabisbaixo o cortejo do tempo

    com a resignação de quem não espera

    nada além de desagravo vindo da mão das horas.

    Dentro do quarto mal ventilado

    reina o calor de estufa

    de um fevereiro mal aguado.

     A falsa ilusão de chuva que traz o mormaço

    só alimenta os dentes da ansiedade,

    esse cão sempre presente

    roendo os pés da cama,

    desfolhando travesseiros

    e bebendo a insônia em largos tragos.

    Ronda na rua um vigia

    que nada guarda com seu sibilo estéril;

    o mal já não tem mais ouvidos

    pras minhas palavras>

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    62

     –  já não me concede a trégua fugaz

    com que gozavam os poetas

    no breve resguardo de seu parto – ,

    que espera conseguir esse homem ingênuo

    com sua música simplória?

    Do rastro de minha canetabrota a letra morta

    dos versos que nunca serão ditos,

    que nunca serão lidos.

    Não moverão exércitos sobre planícies,

    não quebrantarão o coração da musa idealizada,

    não molharão sequer a face

    do solitário que se esconde no quarto.

    O poema é carne morta sobre as folhas.

     A mesa posta,

    o desejo pingando sobre o piso.

    Escorre de uma xícara

    tombada entre os pratos.

    O peso de uma história de erros ecoa na sala

    e não serve

    sequer para a arte.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    63

    Que espera esse homem ingênuo

    que lhe diga a vida

    de sua língua implacável?

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    Cirurgia

    O que me impressiona numa cirurgia

    não é a possibilidade do corte,

    ação tão comum nos cruzamentos,

    no passo do metal e das pedras,

    ou no tecido que cansou da tensãoe como última decisão possível

    escolhe relaxar suas tranças.

    Nem é tampouco a junção das bordas.

     Tantos sobrevivem ao trauma

    e, no final, para esses

    esconder as vísceras

    é ato inevitável do tempo.

    Se fechar às cicatrizes.

    O que me impressiona em tudo

    é a hemostasia.

    Se abrir e se conter,

    segurar o sangue

    tendo já a pele aberta,

    não vazar-se fluido

    estando com tudo exposto,>

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    66

    Marianjicas (um verso à lavoura arcaica)

    Passam os anos e ainda sou quem aos cinco de idade no quintal de

    casa, nas minhas brincadeiras de provocar o mundo, espetava um

    fino graveto em um dos inúmeros buracos que eu encontrava no

    solo e ali o repousava, aguardando o tempo que cada mistério

    requer para ser revelado, e ao vê-lo finalmente mexer – 

      o talgraveto –  em seu movimento de quem pede "me puxa agora, vai, é

    chegada a hora"  –  foi surpresa o que senti na primeira vez que o

    fiz orientado por meu pai, ele já experiente no trato com as

    marianjicas; mas não posso dizer o mesmo das outras vezes em

    que o espanto tinha natureza mais de reflexo ou ato histriônico

    que propriamente daquele susto de se ver nu no novo que se

    desvela  –   descobria ali agarrado à extremidade da haste um

    pequeno verme bizarro de corpo amarelo pus e na cabeça uma

    grotesca coroa como quem guardasse um reinado e em sua boca

    duas lâminas, uma repousando ameaçadoramente sobre a outra, e

    ele ficava se debatendo em fúria lançado ao solo, longe de sua

    cova, tão bravo e naquele ambiente estrangeiro tão frágil e eu o

    cutucava sem saber que cutucava a mim em meus brinquedos, sem

    perceber que era o meu quintal, a minha terra que eram habitados

    por vermes. Depois de cansar de olhá-lo eu o devolvia a seu

    buraco onde ele com seu peristaltismo particular novamente se

    escondia. Eram vermes. Estavam sempre ali e eu nunca tive

    coragem de matar um sequer. Não sei se a palavra a se usar deveria

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    Delírio

    Me interessam os poros escritos nas estátuas de bronze

    ao seu brilho incandescente.

     As rugas nos rostos,

    as marcas da varíola,os calos nas mãos,

    a pele solta das frieiras

    nos pés enclausurados por botas.

    Me atrai o gosto no sal do suor

    e o cheiro acre de maracujá

    das cuecas esquecidas

    urinadas no fundo do cesto.

    Me impregna a vista

    o delírio dos loucos,

    sua raiva e furor

    contra o incontestável desconhecido.

    É sob esse filtro que reflito com paciência

    o destempero das faces,

    o amargor no timbre da fala,

    e as sobras das equações matemáticas.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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    Tigres de papel

    Desmontar castelos de areia

    na ponta de um cigarro,

    o beijo espremido

    do suco de limão,

    touceiras de fomes

    brotando na penumbra do quarto.

     As fileiras de medíocres

    e os altares das virtudes,

    tigres de papel

    enchendo o panorama.

    Sob nossos pés

    o grotão dos desajustados

    é a única coisa palpável

    na instabilidade dos passos.

    E ainda temos

    tantos anos pela frente.

  • 8/19/2019 Areia Em Rolimã

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