Ankersmit Historiografia e Pos Modernismo

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    Historiografia e ps-modernismo*

    F. R. Ankersmit

    Meu ponto de partida neste artigo a atual superproduo dentro denossa disciplina. Estamos familiarizados com a idia de que, den-tro de qualquer rea de historiografia que possamos imaginar, em qualquerespecializao, uma quantidade superabundante de artigos e livros pro-duzida anualmente, tornando conhec-los todos tarefa impossvel. Isto vlido at mesmo para as diferentes reas dentro de uma s especializao.A ttulo de ilustrao, darei um exemplo na rea de teoria poltica, com aqual estou bem familiarizado. Quem quisesse adentrar a filosofia polticade Hobbes, uns vinte anos atrs, precisava apenas de dois comentrios im-portantes sobre sua obra: os estudos de Watkins e de Warrrender. claroque havia outras obras, mas aps a leitura destes dois livros poder-se-ia estar

    razoavelmente bem situado. Porm, qualquer um que, em 1989, tenha acoragem de tentar dizer algo significativo a respeito de Hobbes ter de terlido uma pilha de vinte a vinte cinco estudos to cuidadosamente escritosquanto abrangentes; lhes pouparei enumer-los. Ainda mais, estes estudosso via de regra de to alta qualidade que no podemos nos dar ao luxo deno l-los.

    Existem dois aspectos desta superproduo no-intencional. Em pri-meiro lugar, a discusso sobre a obra de Hobbes torna-se uma discussosobre a interpretao da obra de Hobbes, em vez de ser uma discusso so-bre a obra em si. O texto original s vezes parece ser pouco mais do que aquase esquecida razo da guerra de interpretaes de hoje em dia. Em se-gundo lugar, por evidentemente prestar-se a mltiplas interpretaes, otexto original de Hobbes perdeu sua capacidade de funcionar como rbi-tro no debate dentro da Histria. Devido a tantas interpretaes, o textoem si tornou-se vago, uma aquarela na qual as linhas se fundem. Isto signi-

    fica que a ingnua crena de que o texto poderia oferecer uma soluo paranossos problemas de interpretao tornou-se to absurda quanto crer emsinalizao de rosa-dos-ventos. O resultado paradoxal desta situao que

    Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, pp. 113-135.

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    o texto em si no tem mais autoridade em uma interpretao e que nossentimos at compelidos a recomendar que nossos alunos no leiam

    Leviathan independentemente; mais fcil antes tentar encontrar um ca-minho atravs da selva das interpretaes. Resumindo no temos maistextos, mais passado, apenas interpretaes destes.

    Quando leio os artigos e revises que anunciam novos livros no Ti-mes Literary Supplement, no New York Review of Books ou nos jornaisespecializados que tm aumentado de quantidade a um passo alarmante,no duvido que as coisas so as mesmas em outras reas de historiografia.

    A situao que Nietzsche temia h mais de cem anos, a situao na qual ahistoriografia em si impede nossa viso do passado, parece ter se tornadorealidade. Esta enchente de literatura histrica nos d no somente umasensao de forte desalento, como tambm esta superproduo, inegavel-mente, tem algo de pouco civilizado. Associamos civilizao com, entreoutras coisas, um senso de moderao, um meio-termo entre o excesso e afalta. Porm, qualquer senso de moderao parece ter se perdido no nossoatual alcoolismo intelectual. Esta comparao com o alcoolismo tambmmuito justa porque o livro ou artigo mais recente sobre um tema qualquertambm pretende ser o mais novo drinkintelectual.

    Esta situao, claro, no novidade; portanto no foram poucas astentativas de assegurar algumas perspectivas tranqilizadoras de futuro paraos historiadores desanimados. O historiador holands Romein viu nestasuperproduo uma tendncia especializao e clamou por uma histriaterica que reverteria a pulverizao da nossa compreenso do passado cau-

    sada pela especializao. A histria terica nos elevaria a um ponto de vistamais largo, do qual poderamos vistoriar e trazer ordem ao caos causadopela superproduo e pela especializao.1 Porm o livro de Romein, divisorde guas entre duas eras, prova de que mais fcil dizer que fazer. Acimade tudo, o problema parece ser que neste nvel mais exaltado proposto porRomein, uma real integrao entre as especializaes ainda difcil de atin-gir. A historiografia integral leva enumerao antes do que integrao.

    Uma outra sada para o dilema apontada pela Escola dos Annales.

    Ela tem se debruado prioritariamente sobre a descoberta de outros obje-tos de pesquisa no passado; com esta estratgia efetivamente tem a chance

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    de novamente encontrar a Histria em estado puro. claro que este umalvio temporrio: dentro em breve, inumerveis historiadores, sejam elesfranceses ou no, se apropriaro desses temas e logo eles tambm estarocobertos por uma crosta espessa e opaca de interpretaes. Existe mais aser dito sobre quo engenhosa a Escola dos Annales em descobrir temasnovos e excitantes. No decorrer deste artigo voltarei ao tema.

    A questo crucial agora que atitude tomar quanto a essa superpro-duo de literatura histrica que est se espalhando qual um cncer portodas as suas reas. O desejo reacionrio pelo comportado ambiente da

    histria de cinqenta anos atrs to sem sentido quanto uma resignaodesalentada. Temos de compreender que no h retorno. J foi calculadoque hoje em dia h mais historiadores debruados sobre o passado do quea quantidade total de historiadores desde Herdoto at 1960. No preci-so dizer que impossvel proibir todos esses estudiosos de hoje em dia deproduzir novos livros e artigos. Tampouco ajudam reclamaes sobre a perdade um elo direto com o passado. Porm, o que realmente ajuda e tem sen-tido definirmos um novo e diferente elo com o passado, baseado em umreconhecimento total e honesto da posio em que nos encontramos comohistoriadores.

    Existe ainda outro motivo para buscarmos essa direo. A atual su-perproduo de literatura histrica pode realmente ser considerada mons-truosa se partirmos do ponto de vista tradicional sobre a misso e signifi-cado da historiografia. Esta, hoje em dia, j se libertou do seu casulo tradi-cional, terico e auto-regulador e est, portanto, precisando de novas rou-

    pagens. No para tentar ensinar ao historiador como realizar seu trabalhonem para desenvolver uma teoria Vom Nutzen und Nachteil der Historie frdas Leben. Quanto primeira parte deste ltimo enunciado, no h lugarfora da historiografia em si do qual possam ser retiradas regras para o m-todo de trabalho do historiador; se estes considerarem um dado significa-tivo, ento ele realmente significativo e ponto. Quanto segunda parte,no creio que a historiografia seja til ou que tenha alguma desvantagemreconhecvel. No quero com isso dizer que ela intil, mas sim que o

    questionamento quanto utilidade ou desvantagens da historiografia imprprio um erro de categoria, conforme a expresso de Ryle. A His-

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    tria e a conscincia histrica pertencem, junto com a poesia, literatura e

    pintura entre outros, cultura, e no se pode fazer perguntas significativasquanto utilidade da cultura. A cultura, da qual faz parte a historiografia, antes o pano de fundo do qual ou contra o qual podemos formar nossasopinies, por exemplo, quanto utilidade de certas formas de pesquisacientfica ou de certos objetivos polticos. Por esta razo a poltica e a cin-cia no fazem parte da cultura; se algo pode ser usado, ter desvantagens ouainda ser utilizado para manipular o mundo, este no parte da civiliza-o. A cultura e a histria definem formas de uso, mas no podem elas

    mesmas ser definidas em termos de utilidade. Pertencem aos domnios dospressupostos absolutos,2 tais como os define a terminologia de Colling-wood. Este tambm o porqu de a poltica no dever interferir na cultura.

    Portanto, se quisermos encontrar nova roupagens para a historiogra-fia, como considerado necessrio acima, o problema mais importante se-ria situ-la na civilizao atual, como um todo. Este problema no denatureza histrico-cultural ou interpretativa, e poderia ser comparado com

    o tipo de problema que nos colocamos quando consideramos o lugar ousignificado de determinado evento no curso de nossas vidas. Em geral, estranho que os historiadores e os filsofos da histria tenham prestadoto pouca ateno nos ltimos quarenta anos aos paralelos apresentadosentre o desenvolvimento da atual historiografia e o da literatura, crticaliterria resumindo, da civilizao. Aparentemente, o historiador nopercebeu ter nenhuma razo a mais que o qumico ou o astrnomo parasuspeitar da existncia desses paralelos.

    No pretendo aqui determinar o lugar da historiografia desta forma.Irei, ao invs disso, afastar-me ainda mais para certificar-me se a superpro-duo historiogrfica tem sua contrapartida em uma parte considervel dasociedade e civilizao atuais. Quem j no ouviu o clich de que vivemosem uma era de excesso de informao? No decorrer de toda essa teorizaosobre a informao que por vezes mais profunda que por outras dois dados importantes para este artigo se destacam. Em primeiro lugar,

    estranho que se fale freqentemente da informao como se fosse algo quasefsico. A informao flui, se move, se espalha, trocada, guarda-

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    da ou organizada. Lyotard fala do Estado como de um corpo que re-tm ou dispensa fluxos de informao.3 A informao parece ser um lqui-do de baixa viscosidade, somos inundados por ele e perigamos nos afogar.Em segundo lugar, quando falamos de informao, a prpria idia de in-formao assumiu um lugar conspcuo em relao ao contedo mesmo dessainformao. Essa relao era normalmente inversa. Tomemos como exem-plo uma alegao informando que Em 1984 Ronald Reagan foi eleitopresidente dos EUA. O enunciado informativo em si era encoberto pelosfatos que ele descrevia. Porm, na nossa atual forma de falar sobre infor-

    mao, a realidade sobre a qual versa a informao tende a ser relegada apano de fundo. A realidade a informao em si e no mais a realidade portrs desta informao. Isso d informao uma autonomia prpria, umasubstncia prpria. Assim como existem leis que descrevem o funciona-mento real das coisas, parece tambm poder haver um sistema cientficoque descreva o funcionamento deste lquido singular que chamamos in-formao. Gostaria tambm de agora dizer que, sob a perspectiva da teoriade Austin sobre o ato da fala, a informao poderia ser tanto consideradaatuante quanto no atuante. Esse sem dvidas um dos aspectos mais fas-cinantes do fenmeno da informao.4

    Ultimamente, muitos tm percebido essa mudana de atitude quan-to ao fenmeno da informao. Teorias tm sido propostas e os tericosenvolvidos tm, via de regra, feito renome. Neste contexto, comumentefalamos de ps-modernistas ou de ps-estruturalistas que so, compreen-sivelmente, contrastados com os modernistas e estruturalistas do passado

    recente. Em 1984, uma conferncia muito interessante em Utrecht dedi-cou-se ao ps-modernismo, mas qualquer um que tenha comparecido sexposies concordar que no fcil definir satisfatoriamente os concei-tos de ps-modernismo ou de ps-estruturalismo.5 Mesmo assim, poss-vel discernir suas linhas gerais, como o fez Jonathan Culler em um livrorecente.6 A cincia era o alfa e o mega dos modernistas e dos estruturalis-tas; estes a viam no somente como o mais importante produto mas con-comitantemente como o mximo produto da modernidade. Tal raciona-

    lismo cientfico no um problema para os ps-modernistas e ps-estru-turalistas; eles a vem como por fora ou por cima. Nem criticam nem re-

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    jeitam a cincia; no so irracionalistas, mas sim lhe demonstram a mesmaindiferena que observamos anteriormente nas atitudes de hoje em dia sobrea informao. No uma questo de metacrtica da pesquisa cientfica oudo mtodo cientfico como a conhecemos na filosofia da cincia. Esta l-tima permanece inerente ao cientificismo dos modernistas; os filsofos dacincia seguem as linhas de raciocnio dos cientistas e estudam seus cami-nhos, desde a descoberta de dados empricos at a teorizao. Para os ps-modernistas, tanto a filosofia da cincia quanto a prpria cincia formamo produto, o ponto de partida para suas reflexes. E os ps-modernistas

    tambm esto pouco interessados na questo sociolgica de como os cien-tistas pesquisadores reagem uns aos outros ou sobre como se relacionamcincia e sociedade. A ateno do ps-modernista no est focada nem napesquisa cientfica nem na maneira como a sociedade digere os resultadosdesta pesquisa cientfica, mas to-somente no funcionamento da cincia eda informao cientfica em si.

    Para o ps-modernismo, a cincia e a informao so objetos de estu-do independentes, que obedecem s suas prprias leis. A primeira regraprincipal da teoria da informao ps-moderna a lei que reza que a infor-mao se multiplica. Uma das caractersticas mais importantes da infor-mao que informao realmente importante nunca est no fim de suagenealogia, mas que a sua importncia reside realmente na posteridadeintelectual que ela outorga. A prpria historiografia uma excelente ilus-trao disto. As grandes obras da histria da historiografia, como as deTocqueville, Marx, Burckhardt, Weber, Huizinga ou Braudel tm provado

    ser os maiores estimulantes de uma nova onda de publicaes, em vez deconcluir uma genealogia de informao como se o problema em questotivesse sido definitivamente solucionado. Paradoxalmente, quanto maispoderosa e autoritria a interpretao, mais anlises ela suscita.7 Do pon-to de vista modernista, a forma pela qual justamente a informao maisinteressante gera ainda mais informao , obviamente, incompreensvel.Para estes, informao significativa exatamente aquela que pe fim sanlises; no conseguem explicar porque justamente o que pode ser discu-

    tido o fundamental para o progresso da cincia, por que, como dizBachelard, os fatos quepodem gerar discussoso os fatos reais.

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    importante, dentro do arcabouo deste artigo, ver com maioresdetalhes este ps-modernismo que acientfico antes de anticientfico. Emprimeiro lugar, ele pode nos ensinar o que deveramos compreender comohistoriografia ps-moderna e que, em segundo lugar, a historiografia sem-pre teve algo de ps-moderna. Um bom exemplo do critrio ps-modernode cincia a descontruo para usar o termo correto da causalida-de por Nietzsche, que muitos consideram ser um dos mais importantespilares do pensamento cientfico. Na terminologia da causalidade, a causa a origem e o efeito, o produto secundrio. Nietzsche ento demonstra

    que procuramos as causas apenas baseados em nossas observaes dos efei-tos e que, portanto, o efeito , de fato, o produto principal e a causa, osecundrio. Se o efeito o que causa que a causa seja uma causa, ento oefeito, no a causa, deve ser tratado como a origem.8 Quem discordardizendo que Nietzsche confundiu a ordem dos fatores respectivamente dapesquisa e da realidade no estar percebendo o cerne de sua linha de pen-samento, pois este precisamente o artificialismo da hierarquia tradicio-nal de causa e efeito. Nosso treinamento cientfico, por assim dizer, esta-bilizou-nos em uma aderncia a essa hierarquia tradicional, mas alm destetreinamento intelectual no h nada que nos obrigue a continuar dessaforma. O mesmo, se no mais ainda, pode ser dito da inverso desta hie-rarquia.

    Esta a maneira de se colocar os fatos no ps-modernismo. A cincia desestabilizada, colocada fora de seu prprio centro, a reversibilidadede padres de pensamento e de categorias de pensamento enfatizada, sem

    a sugesto de uma alternativa definida. uma forma de crtica desleal dacincia, um golpe abaixo da linha da cintura que talvez no seja justo, masque por esta mesma razo realmente atinge a cincia onde ela mais sens-vel. A racionalidade cientfica no aufgehoben de uma forma hegelianaem relao a uma outra coisa, nem verdade dizer que toda forma de visoevoca automaticamente a sua anttese; antes, o reconhecimento que todoponto de vista tem, alm de seu interior cientificamente aprovado, umexterior que no percebido pela cincia. Em seu Tractatus, Wittgenstein

    j havia sugerido algo similar para todas as linhas de pensamento vlidas.De fato, esta vem a ser a linha vlida de pensamento que almeja tornar-se

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    suprflua, o que portanto sempre uma viagem atravs do territrio dainverdade isto , a viagem desde o equvoco inicial at o insightcorreto.Conseqentemente, o que verdadeiro estar sempre maculado pelo queno verdadeiro.

    Uma concluso tanto lgica quanto ontolgica pode ser ligada a esteinsight; juntas elas do uma idia da natureza revolucionria do ps-mo-dernismo. Vamos primeiro analisar a lgica. Para o ps-modernista, ascertezas cientficas sobre as quais os modernistas sempre trabalharam sotodas como que variantes do paradoxo do mentiroso. Isto , o paradoxo

    do cretense que afirma que todos os cretenses so mentirosos; ou, paracoloc-lo mais sucintamente, o paradoxo do enunciado este enunciado falso, onde este enunciado um enunciado sobre si mesmo. claro quetodo o drama do ps-modernismo est contido no insightde que todosesses paradoxos podem ser vistos como insolveis. Aqui devemos lembrarque a soluo para o paradoxo do mentiroso que Russell, atravs de suateoria dos tipos e da distino entre predicados e predicados de predicados,props no Principia Mathematica, at hoje reconhecida como uma das

    mais fortes bases da lgica contempornea.9 A meta dos ps-modernistas, portanto, tirar o tapete debaixo dos ps do modernismo e da cincia.Tambm aqui a melhor ilustrao da tese ps-moderna providenciadapela historiografia. Interpretaes histricas do passado primeiramente setornam reconhecveis, primeiramente adquirem suas identidades atravsdo contraste com outras interpretaes; elas so o que so somente na basedo que no so. Qualquer um que conhea apenas uma interpretao, porexemplo, da Guerra Fria no conhece nenhuma interpretao deste fen-meno. Todo insighthistrico tem, portanto, intrinsecamente uma nature-za paradoxal.10 Sem dvida, Hayden White, em seu livroMetahistory omais revolucionrio em filosofia da histria nos ltimos vinte e cinco anos, estava pensado dessa mesma forma quando caracterizou toda historio-grafia como fundamentalmente irnica.11

    Vamos agora pensar em ontologia. Em sua desconstruo da hierar-quia de causa e efeito, Nietzsche opunha nossa maneira de falar da realida-

    de aos processos dentro da realidade em si. A distino atual entre lingua-gem e realidade perde ento sua raison dtre. A linguagem cientfica, par-ticularmente, no mais um espelho da natureza, mas uma parte do

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    inventrio da realidade, tanto quanto os objetos reais que a cincia estuda.A linguagem usada na cincia como uma coisa12 e, como defendeu HansBertens na Conferncia de Utrecht sobre ps-modernidade,13 coisas narealidade adquirem uma natureza semelhante linguagem. Mais uma vez,a historiografia apresenta a melhor ilustrao para tal. Como veremos dentroem breve, a linguagem histrica que apresenta a mesma opacidade queassociamos s coisas na realidade. Alm do que, tanto White como Ricoeur(a quem eu certamente no estou chamando de ps-modernista) gostamde dizer que a realidade passada deve ser vista como um texto formulado

    em lngua estrangeira, com as mesmas dimenses lxicas, gramaticais, sin-tticas e semnticas que qualquer texto.14 tambm caracterstico que oshistoriadores demonstrem em suas reflexes tericas uma tendncia acen-tuada de falar sobre a linguagem histrica como se esta fizesse parte da rea-lidade em si e vice-versa. Portanto, Marx falou da contradio entre forasprodutivas e relaes de produo como se estivesse discutindo afirmaessobre a realidade em vez de aspectos desta realidade. De forma similar, oshistoriadores freqentemente gostariam de ver esta mesma singularidade

    realizada para a linguagem histrica, como o so caracteristicamente osfenmenos histricos.15 Resumidamente, a resistncia latente e freqente-mente inconsciente dicotomia linguagem/histria que os historiadoressempre demonstraram teve sua origem no desconsiderado, mas ainda as-sim correto, insightdestes sobre a natureza fundamentalmente ps-modernade sua disciplina.

    Quando a dicotomia entre linguagem e realidade est sendo discuti-da, o estoicismo no estar longe. Pois no nos do ambas as linguagens doromancista e do historiador uma iluso de realidade, seja ela de fico ougenuna? Ainda mais importante, Gombrich j nos ensinou em vrios tex-tos que a obra de arte, isto , a linguagem do artista, no uma reproduomimtica da realidade, mas sim um seu substituto ou reposio.16 Lingua-gem e arte no se colocam em oposio realidade, mas so eles mesmosuma pseudo-realidade, portanto, encontram-se dentro da realidade. A bemdizer, Merrill, em sua brilhante genealogia do ps-modernismo, j demons-

    trou o quanto os ps-modernistas desde Nietzsche at (incluindo) Derridabuscam estender o esteticismo sobre todo os domnios de representaoda realidade.17

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    Este esteticismo tambm harmoniza-se com os insights recentementeadquiridos sobre a natureza da historiografia isto , o reconhecimentoda dimenso estilstica no texto histrico. Para os modernistas, o estilo eraantema ou, na melhor das hipteses, irrelevante. Citando uma palestrarecente de C. P. Bertels: o texto refinado, a demonstrao de estilo liter-rio, no acrescenta um timo de verdade nem pesquisa histrica nem aqualquer outra pesquisa histrica.18 O que importa o contedo; a ma-neira, o estilo com que este expresso, irrelevante. Porm, a partir de Quinee de Goodman, esta agradvel distino entre forma, ou estilo, e contedo

    no pode mais ser considerada como dada. A argumentao destes podeser resumida da seguinte forma: se vrios historiadores debruam-se sobrevrios aspectos do mesmo objeto de pesquisa, as subseqentes diferenasde contedo podem ser descritas como diferenas de estilo ao tratar-se desseobjeto de pesquisa. O que dito (...) pode ser uma maneira de falar sobreoutra coisa; por exemplo, escrever sobre as batalhas renascentistas ou sobreas artes renascentistas so maneiras diferentes de falar sobre a Renascen-a.19 Ou, nas palavras de Gay, maneira, estilo, implica tambm umadeciso quanto a contedo, material.20 E quando se pode distinguir en-tre estilo e contedo, podemos at mesmo atribuir ao estilo prioridade sobreo contedo, pois graas ao fato dos pontos de vista historiogrficos seremincomensurveis isto , que a natureza das diferenas de opinio em his-tria no podem ser satisfatoriamente definidas em termos de objetos deestudo nada podemos fazer alm de concentrarmo-nos no estilo incor-porado a cada ponto de vista histrico ou olhar sobre o passado, se quiser-

    mos garantir um progresso significativo do debate na Histria. O estilo, seno o contedo, o tema de tais debates. O contedo derivado do estilo.O reconhecimento da natureza esttica da historiografia pelo ps-

    modernismo pode ser descrito mais detalhadamente da seguinte forma. Nafilosofia analtica, existe o fenmeno do chamado contexto intensifica-do. Um exemplo o postulado Joo acredita quex, ou Joo espera que

    x, ondex representa uma alegao particular. A questo que em umcontexto intensificado como este,x nunca poder ser substitudo por ou-

    tra alegao, mesmo sendo esta equivalente ax, ou resultante direta deste.Afinal, no sabemos se Joo est de fato ciente das conseqncias de sua

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    crena ou esperana em x. possvel que Joo acredite que a gua estejafervendo, sem acreditar que a temperatura da gua de 100 graus cent-grados. Em outras palavras, a forma exata com que uma alegao formu-lada em um contexto intensificado um dos pr-requisitos para a verdadedesta alegao. A frase atrai, por assim dizer, ateno sobre si mesma. Por-tanto, a forma da alegao aqui certamente to importante quanto o con-tedo. Em um livro particularmente interessante, Danto demonstrou queesta natureza intensificada das alegaes e textos (pelo menos em sua maio-ria) mais patente na literatura: podemos perceb-lo (este elemento in-

    tensificado) talvez em nenhum lugar to claramente quanto nestes textosliterrios, onde alm de quaisquer fatos que o autor queira comunicar, eleou ela escolhe as palavrascom as quais quer comunic-los, e onde a inten-o literria do autor seria falha caso outras palavras fossem usadas.21 Poresta natureza intensificada, o texto literrio possui uma certa opacidade, acapacidade de atrair ateno para si, em vez de atrair ateno para umarealidade fictcia ou histrica por trs do texto. Esta uma caractersticaque o texto literrio tem em comum com a historiografia; pois a naturezado olhar sobre o passado apresentado em um texto de histria definidacom exatido pela linguagem usada pelo historiador em sua obra. Por cau-sa da relao entre o olhar historiogrfico e a linguagem usada pelo histo-riador para expressar este olhar uma relao que nunca entrecruza ocampo do passado a historiografia possui a mesma opacidade e dimen-so intensificada que a arte.

    A arte e a historiografia podem portanto ser contrastadas com a cin-

    cia. A linguagem cientfica tem ao menos a pretenso de ser transparente;se ela impede nossa viso da realidade, ter de ser refinada ou solucionada. verdade que alguns filsofos da cincia, tais como Mary Hesse, querematribuir mesmo cincias acima mencionadas qualidades estticas e liter-rias. Isto, claro, faria ainda mais plausveis as minhas idias sobre histo-riografia, porm vejo as diferenas entre as cincias exatas e a historiografiacomo mais do que apenas uma questo de nuances. Quando o insightemuma disciplina de natureza mais sinttica do que semntica como o

    nas cincias exatas , existe comparativamente menos espao para con-textos intensificados. Afinal, apenas do ponto de vista semntico poss-

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    vel indagar sobre a existncia ou no de sinonmia (que a questo maisimportante em contextos intensificados).

    Se concordarmos com o acima-mencionado, isto , com a aplicabi-lidade do insightps-moderno historiografia, gostaria de enunciar umasrie de concluses antes de terminar este artigo. Para o modernista, den-tro de sua noo cientfica de mundo, dentro da viso de histria que ini-cialmente todos aceitamos, evidncias so essencialmente evidncia de quealgo aconteceu no passado. O historiador modernista seguia uma linha deraciocnio que parte de suas fontes e evidncias at a descoberta de uma

    realidade histrica escondida por trs destas fontes. De outra forma, sob oolhar ps-modernista, as evidncias no apontam para o passado, mas simpara interpretaes do passado; pois para tanto que de fato usamos essasevidncias. Para expressar essa idia por meio de imagens: para o moder-nista, a evidncia um azulejo que ele levanta para ver o que est por bai-xo; para o ps-modernista, ela um azulejo sobre o qual ele pisa para che-gar a outros azulejos; horizontalmente em vez de verticalmente.

    Este no somente um insightsobre o que efetivamente acontece, mastambm um insightsobre o que se debruar no futuro. Esta sugesto podeser descrita como tornar a fonte histrica contempornea. As evidnciasno so como uma lupa para ver melhor o passado, mas assemelham-semais s pinceladas usadas pelo artista para produzir determinado efeito...Elas no remetem ao passado, mas sim levantam a questo do que o histo-riador pode ou no, aqui e agora, fazer. Georges Duby ilustra essa novaatitude para com as evidncias. Quando seu inteligente entrevistador Guy

    Lardreau lhe pergunta o que constitui para ele, Duby, a evidncia maisimportante, a resposta que esta pode ser encontrada no que no dito,no que uma determinada poca no diz a respeito de si mesma, donde suacomparao com a revelao de um negativo.22 Assim como o peixe nosabe que est nadando em gua, o que mais caracterstico, onipresenteem uma poca, no do conhecimento desta mesma poca. No revela-do at esta poca se concluir. O perfume de uma era s poder ser sentidoem outra era subseqente. Certamente, Hegel e Foucault j fizeram vrios

    comentrios interessantes a esse respeito. Contudo, a questo aqui a ob-servao de Duby de que a essncia do perodo determinada pelo

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    destinataire, para usar o termo dos ps-modernistas franceses, pelo histo-riador que precisa revelar aqui e agora este seu negativo de um perodo atra-vs do que no foi dito ou do que foi apenas sussurrado, ou ainda que foiexpresso em detalhes insignificantes. O historiador como o conoisseurquereconhece o artista no pelo que lhe caracterstico (portanto imitvel),mas sim pelo que, por assim dizer, espontaneamente lhe escapa. Le style,cest lhomme, e nosso estilo o lugar onde somos ns mesmos sem pen-sarmos sobre ns mesmos. Por essa razo to poucas pessoas ainda tm es-tilo nesta poca to narcisista. Resumindo, essa maneira sugerida por Duby

    de lidar com evidncias especial no porque aponte para algo que se es-conde por trs delas no passado, mas sim porque elas adquirem significa-do e importncia quando confrontadas com a mentalidade da era poste-rior, na qual vive e trabalha o historiador. A mentalidade de uma era reve-la-se apenas por contraste com um outro perodo; donde a direo em queesta evidncia aponta sofre uma rotao de noventa graus. Como to habi-tualmente acontece, isto, tambm, foi antecipado por Huizinga. Ao escre-ver sobre a sensao histrica, ele diz que este contato com o passado, que acompanhado por uma completa convico de verdade, de genuinidade,pode ser evocado por uma linha de uma crnica ou decreto, de uma gra-vura, ou por algumas estrofes de uma velha cano. No um elementointroduzido pelo escritor (no passado) atravs do uso de certas palavras (...)o leitor quem a traz ao encontro do autor, a sua resposta ao chamadodeste ltimo.23

    No surpreendente que Duby e Lardreau assinalem nesta conexo a

    relao entre a historiografia e a psicanlise.24

    Em ambas, o interesse recaisobre a interpretao, no sentido mais fundamental da palavra. Na histo-riografia, essa forma de lidar com vestgios do passado sugerida por Dubynos compele a no procurar por uma mquina inicialmente invisvel den-tro do passado em si que teria sido a causa desses vestgios ainda discernveisna superfcie. Da mesma forma, a psicanlise, apesar de nuances positivistasali encontradas pelo prprio Freud, na verdade um repertrio de estrat-gias de interpretao. Ela nos ensina a compreender o que o neurtico diz

    e no busca atrair ateno para os efeitos causais de uma quantidade dehomnculos elementares e indivisveis que habitam sua mente.25 Tanto o

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    psicanalista quanto o historiador tentam projetar um padro sobre os ves-tgios em vez de procurar por algo que estejapor trsdesses vestgios. Emambos os casos, a atividade interpretativa compreendida de forma estri-tamente nominalista; no existe nada na realidade histrica nem na menteneurtica que corresponda ao contedo das interpretaes.

    Existe ainda outro paralelo ainda mais interessante a ser feito com ainterpretao psicanaltica. evidente que a tese de Duby segundo a qualo historiador deve ater-se ao que no dito e ao que suprimido loucu-ras, inverdades e tabus, para utilizarmos os critrios de Foucault est

    obviamente relacionada ao mtodo de trabalho do psicanalista. Assim comosomos o que no somos, ou no queremos ser, de uma certa forma o pas-sado tambm o que no foi. Na psicanlise e na histria, o que suprimi-do se manifesta em detalhes pequenos e que parecem irrelevantes. Na psi-canlise, isso resulta no insightde que o homem no possui um ser ou es-sncia facilmente observvel, baseado no qual ele poderia ser compreendi-do, mas sim que o segredo da personalidade est no que apenas rara efugidiamente torna-se visvel por detrs do que normalmente exposto.Como o coloca Rorty, nossa personalidade antes uma colagem do queuma substncia: a habilidade de nos enxergarmos mais como um colagensidiossincrticas do que como substncias tem sido fator importante nahabilidade de descartarmos a idia de haver um verdadeiro eu, comparti-lhado entre todos humanos (...) Freud tornou o paradigma do autoconhe-cimento a descoberta de pequenos incidentes idiosincrticos antes do quea de uma essncia.26

    Este tambm o caso da historiografia, ao menos no que eu gostariade denominar histria ps-moderna (das mentalidades). Formulando issoda maneira paradoxal to cara aos ps-modernos: a essncia do passado no, ou no est, na essncia do passado. So as migalhas, os pequenos erros,os Fehlleistungen do passado, os raros momentos em que o passado se li-bera, que nos levam a descobrir o que nos realmente importante. Sus-peito que uma explicao ao menos parcial possa assim ser encontrada parao que Jrn Rsen chama de mudana de paradigma na atual historiogra-

    fia, a qual na sua opinio consiste principalmente em trocar umamakrohistorische Strukturen por uma microhistorische situationen und

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    Lebensverhltnisse, a qual seria o objeto de estudo do historiador.27 O quepresenciamos pode muito bem ser nada menos que o adeus definitivo, porenquanto, a todas as aspiraes existencialistas que vm dominando a his-toriografia atravs de toda sua existncia. Os historiadores vm buscandoalgo que pudessem rotular como a essncia do passado o princpio queregia o todo no passado (ou durante parte dele) e baseado no qual, conse-qentemente, tudo poderia ser compreendido. Atravs dos sculos, esteexistencialismo historiogrfico se manifestou de diversas formas diferen-tes. evidente que o existencialismo esteve conspicuamente presente nos

    vrios sistemas especulativos que nortearam o pensar do homem ocidentalsobre seu passado. O sistema teolgico Agostiniano de histria e suas va-riantes seculares,28 a idia de progresso, a f cega no progresso da cincia enas benesses que esta deveria acarretar, sempre foram a metanarrativa,usando a terminologia de Lyotard, atravs da qual no somente a historio-grafia como tambm outros aspectos fundamentais da civilizao foramlegitimados.29

    Depois veio o historicismo, o qual, com estranha inocncia,30 via aessncia do passado personificada em uma mistura curiosa de fatos e idias.A inocncia epistemolgica dessa doutrina historicista das idias histricasfoi possvel apenas em uma poca na qual a crena e a f na perceptibilidadeda essncia do passado eram to facilmente tomadas como dados que nin-gum se apercebia de sua prpria arrogncia ontolgica. A Histria Social,tal como discutida por Rsen, foi o ltimo elo nessa cadeia de vises exis-tencialistas da Histria. O tom triunfal sob o qual a Histria Social emer-

    giu, especialmente na Alemanha, a prova cabal da auto-superestima oti-mista desses historiadores, que acreditam ter finalmente encontrado a toprocurada chave que abrir todas as portas da Histria. Qualquer um queconhea a natureza essencialista dessa Histria Social e tambm a tradicio-nal inimizade entre o essencialismo e a Histria no poder deixar de per-ceber a natureza burlesca das pretenses dos historiadores sociais. Os pio-res modernistas, porm, ainda se encontram entre os filsofos da histria o que no surpreendente: estes ovacionam qualquer ostentao pseudo-

    cientfica com ainda mais gosto que os historiadores, quando julgam en-contrar nelas a confirmao de suas j gastas idias positivistas.

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    Gostaria de explicar melhor o movimento de conscincia histricaacima exposto por meio da seguinte imagem. Comparemos a Histria auma rvore. A tradio essencialista dentro da historiografia ocidental focoua ateno dos historiadores no tronco da rvore. O que era o caso, claro,dos sistemas especulativos; estes definiram, por assim dizer, a natureza e oformato desse tronco. O Historicismo e a Historiografia cientfica moder-nista, com sua ateno basicamente louvvel ao que de fato aconteceu nopassado e com sua falta de receptividade para com esquemas apriorsticos,situavam-se nos galhos da rvore. Mesmo assim, de sua posio mantinham

    a ateno ainda no tronco. Tal como seus predecessores especulativos, tan-to os historicistas como os protagonistas de uma assim chamada historio-grafia cientfica ainda guardavam a esperana e a pretenso de, em ltimaanlise, poder dizer algo sobre esse tronco afinal. As fortes ligaes entreessa assim chamada histria social cientfica e o marxismo so significati-vas neste contexto. A historiografia, desde o historicismo, seja formuladaatravs de terminologia ontolgica, epistemolgica ou metodolgica, vembuscando reconstruir essa linhagem essencialista que perpassa seu passadoou partes dele.

    Atravs da historiografia ps-modernista, encontrada especialmentena histria das mentalidades, uma ruptura feita, pela primeira vez, comessa tradio essencialista centenria e digo imediatamente, para evitarqualquerpathosou exagero, que aqui me refiro a tendncias e no a ruptu-ras radicais. A escolha recai no sobre o tronco nem sobre os galhos, e simsobre as folhas da rvore. Na viso ps-moderna da Histria, a meta no

    mais a integrao, sntese e totalidade; as migalhas histricas so o centrodas atenes. Tomemos como exemploMontaillou e outros livros escritossubseqentemente por Le Roy Ladurie; aMicrostoriede Ginzburg, o Sundayof Bouvines de Duby, ou oReturn of Martin Guerre de Natalie ZemonDavies. H quinze ou vinte anos atrs teramos nos perguntado com es-panto qual seria o porqu desse tipo de texto histrico, o que eles estariambuscando provar. E esta pergunta to bvia teria suscitado ento, comosempre tem sido, nosso desejo modernista de tentar descobrir como fun-

    ciona a mquina. Porm, no olhar antiessencialista e nominalista do ps-modernismo, esta pergunta perde seu significado. Se queremos, no

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    obstante, aderir ao essencialismo, podemos dizer que ele no est situadonem nos galhos nem no tronco e sim nas folhas da rvore da Histria.

    Isso me traz questo principal deste artigo. uma caracterstica dasfolhas que elas estejam apenas frouxamente ligadas arvore e que, com achegada do outono ou do inverno, sejam varridas pelo vento. Por vriasrazes, podemos presumir que o outono chegou para a historiografia oci-dental. Primeiramente, existe, claro, a natureza ps-moderna de nossostempos. Nosso antiessencialismo, ou, como tem sido mais popularmentechamado ultimamente, nosso antifundacionalismo diminuiu nosso com-

    promisso com a cincia e com a historiografia tradicionais. A nova posioda Europa no cenrio mundial a partir de 1945 um segundo indicadorimportante. A Histria desse apndice do continente da Eursia no maisa histria do mundo.31 O que gostaramos de conceber como o tronco darvore da Histria Ocidental tornou-se parte de uma floresta. Osmeta-rcitsque gostaramos de contar sobre a nossa histria, sobre o triunfo da Razo,sobre a luta gloriosa pela emancipao do proletariado dos trabalhadoresdo sculo XIX, so somente dados de importncia local, e portanto no

    so mais metanarrativas apropriadas. O vento glido que, de acordo comRomein, soprou por volta de 1900 simultaneamente no Ocidente e noOriente,3 2 finalmente acabou por varrer as folhas da nossa rvore da His-tria por volta da segunda metade deste sculo.

    O que a historiografia ocidental pode agora fazer recolher as folhasvarridas e estud-las independentemente de suas origens. Isto significa quenossa conscincia histrica foi, por assim dizer, virada de cabea para bai-xo. Ao colecionar as folhas do passado, tal como Le Roy Ladurie ou Ginz-burg, no mais importa qual era sua posio no passado, mas qual padropodemos formar a partir delas hoje, de que maneira este padro poderiaadaptar-se s outras formas de civilizao que existem atualmente. Desdeos dias de Goethe, Macaulay, Carlyle e Emerson, nos disse Rorty, umaforma de escrita vem evoluindo, a qual no nem a avaliao dos mritosrelativos das produes literrias, nem histria intelectual, nem filosofiada moral, nem epistemologia, nem profecia social e sim um amlgama de

    tudo isso, formando um novo gnero.33

    Ao comentar esta frase de Rorty,Culler sublinha a notvel indiferena quanto a origem e contexto, histri-cos ou no, to caracterstica dessa nova forma de escrita:

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    Os praticantes de algumas disciplinas particulares reclamam que textos queconsideram do seu gnero tm sido estudados fora da matriz disciplinar

    que lhes prpria: estudantes de teoria lem Freud sem se perguntar se apesquisa posterior em psicologia possa vir a ter discordado de seus postula-dos; lem Derrida sem possuir embasamento na tradio filosfica; lemMarx sem estudar descries alternativas de situaes econmicas e polticas.34

    O contexto histrico apropriado perdeu suas tradicionais importn-cia, funo e naturalidade como pano de fundo, no porque estejamos assimto vidos para assumir uma posio a-histrica ou que no exista o desejo

    de fazer justia ao curso da histria, mas porque nos desligamos destecontexto histrico.No me compreendam mal, no estou falando sobre uma candidatu-

    ra a uma nova forma de subjetividade, sobre a legitimao da imposio depadres contemporneos sobre o passado. Qualquer forma de legitimaodeve, na melhor das hipteses, ser deixada para os modernistas. A essnciado ps-moderno justamente que deveramos evitar apontar padresessencialistas no passado. Podemos, conseqentemente, ter dvidas quan-

    to significncia das recentes tentativas de insuflar vida nova ao antigo idealalemo deBildung para o bem da posio e reputao da historiografia...Ressuscitar o ideal deBildung, por outro lado, verdadeiramente uma re-ao significativa natureza mapeada de nossa civilizao atual. Onde, nopassado, a civilizao assemelhava-se mais a um indicador de direo quetrazia direcionamentos relativamente pouco ambguos de comportamen-to social e moral, hoje a civilizao atual no nos ensina aonde devemos ir,

    tal como um mapa, nem nos ensina, caso j tenhamos feito nossa escolha,qual o caminho mais curto ou o mais pitoresco. Realizarmos o ideal deBildung, no mximo, dar-nos-ia uma boa idia do caminho j percorrido.Este ideal a contrapartida cultural da famosa tese de Ernst Haeckel, deque o desenvolvimento do indivduo uma verso curta do desenvolvi-mento das espcies.Bildung a verso abreviada da Histria da Civiliza-o, na escala do indivduo particular, atravs da qual ele pode tornar-seum membro valioso e decente de nossa sociedade.

    Porm, dentro da conscincia histrica ps-moderna, essa repetioontolgica abreviada de nossa filognese no tem mais sentido. Os elos naevoluo dessa srie de contextos histricos da qual consiste nossa filognese

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    cultural esto quebrados. Tudo tornou-se contemporneo, com o notvelcorrelato, utilizando a expresso de Duby, de que tudo tornou-se tambmHistria. Quando a Histria reagrupada no presente, isso significa que opresente absorve o estigma do passado. Conseqentemente,Bildungrequero uso de um compasso que rejeitado pelo ps-moderno. No devemosnos moldar a ele e nem tampouco ao passado, mas sim aprender a utiliz-lo para jogar nosso jogo cultural. O que isto que dizer, em termos concre-tos, foi descrito por Rousseau visando o indivduo, singularizado, da se-guinte maneira em sua obraLes rveries du promeneur solitaire: existe um

    tat ou lme trouve une assiete assez solide pour sy reposer toute entire etrassemble l tout son tre, sans avoir besoin de rappeler le pass ni denjambersur lavenir; ou le temps ne soit rien pour elle, o le prsent dure toujourssans nanmoins marquer as dure et sans aucune trace de sucession. 35

    Rousseau diz, subseqentemente, que tal maneira de lidar com o tem-po cria um sentimento de total felicidade em nossas vidas um bonheursuffisant, parfait et plein, qui ne laisse dans lme aucun vide quelle sente

    besoin de remplir.36A histria assim no mais a reconstruo do que nos ocorreu nas

    diversas fases de nossas vidas, mas um jogo contnuo com a memria des-sas fases. A lembrana tem prioridade sobre o que lembrado. Algo simi-lar pode ser dito sobre a historiografia. A escavao selvagem, gananciosa edescontrolada do passado, inspirada pelo desejo da descoberta de uma rea-lidade passada e pela reconstruo cientfica desta, no mais a tarefainquestionvel do historiador. Faramos melhor se observssemos o resul-tado de 150 anos de escavao com maior ateno e nos perguntssemosmais freqentemente sobre o que significa o somatrio disto tudo. Che-gou o momento depensarsobre o passado, mais do que de investig-lo.

    Porm, na fase da historiografia que parece agora ter comeado, o sig-nificado mais importante que a reconstruo e a gnese; nela, o meta doshistoriadores descobrir o significado de uma quantidade de conflitos emnosso passado ao demonstrar sua contemporaneidade. Vejamos alguns

    exemplos. Um insightcomo o de Hegel sobre o conflito entre Scrates e acomunidade ateniense pode ser incompatvel com o que hoje se sabe sobre

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    Atenas de cerca de 400 a. C. sob mil pontos, mas mesmo assim no perdersua fora. Um segundo exemplo: o que Foulcault escreve sobre o estreitoelo entre o poder e o discurso que pretende alcanar a verdade, ou aindasobre a relao muito curiosa entre linguagem e realidade no sculo dezesseisfoi atacado com bases reais por diversos crticos o que no significa quesuas idias tenham perdido seu fascnio. No digo que a verdade histricae a confiabilidade no sejam importantes, nem que so obstculos no ca-minho de uma historiografia mais significativa. Pelo contrrio, exemploscomo os de Hegel e de Foucault nos mostram por isso os escolhi que

    a dimenso metafrica da historiografia mais poderosa que as dimensesfactuais ou literais. O fillogo Wilamowitz, que tenta refutar oDie Geburtder Tragdiede Nietzsche, faz o papel de algum que busca virar um vagode trem sozinho; a crtica de metforas com base em fatos uma atividadeto desprovida de sentido quanto de bom gosto. Apenas metforas po-dem refutar metforas.

    O que nos traz aos meus comentrios finais. Como venho sugerindo,existe razo para assumirmos que o nosso insightsobre o passado e nossarelao com ele sero, no futuro, de natureza metafrica e no literal. Oque quero dizer o seguinte: A frase literal esta mesa tem dois metros decomprimento dirige nossa ateno para um estado particular, fora da lin-guagem em si, que expresso por ela. J uma frase metafrica como ahistria uma rvore sem tronco para usar um exemplo bem adequa-do desloca o interesse para o que est acontecendo entre as meras pala-vras histria e rvore sem tronco. No olhar ps-moderno, o foco no

    est mais no passado em si, mas na incongruncia entre passado e presen-te, entre a linguagem que usamos para falar do passado e o passado em si.No h mais uma linha que perpassa a Histria que neutralize esta in-congruncia. Isso explica a ateno dada aos aparentemente incongruen-tes mas surpreendentes e, esperamos, talvez mesmo perturbadores detalhes queFreud, em sua obra Unheimliche, definiu como Was im verbogenen hattebleiben sollen und hervorgetreten ist.37 Resumindo, ateno a tudo que semsignificado e irrelevante exatamente para o ponto de vista da historiografia cien-

    tfica. Pois esses eventos incongruentes, Unheimliche, fazem justia incon-gruncia da linguagem do historiador em sua relao com o passado.

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    Tal como o ps-modernismo, a partir de Nietzsche e de Heidegger,vem criticando a assim chamada tradio logocntrica da filosofia desdeScrates e Plato, isto , a crena racionalista de que a Razo nos capacitara solucionar todos os segredos da realidade, a historiografia ps-modernatem tambm uma nostalgia natural pela histria pr-socrtica. A mais an-tiga historiografia dos gregos era pica; os gregos contavam uns aos outrosos feitos de seus ancestrais atravs de narrativas picas. As histrias quecontavam uns aos outros no eram mutuamente exclusivas, pois inspira-vam acima de tudo contemplao tica e esttica. Porque a guerra e os

    conflitos polticos estimularam uma conscincia social e poltica mais pro-funda e porque a palavra escrita tem uma tolerncia muito menor que atransmitida oralmente por divergncias, a uniformizao logocntrica dopassado foi introduzida por e tambm aps Hecataeus, Herdoto eTucdides.38 Assim, o jovem tronco da rvore do passado emergiu da terra.Certamente no quero sugerir que voltemos aos dias anteriores a Hecataeus.Aqui, tambm, temos uma questo de verdade metafrica mais que literal.O ps-moderno no rejeita a historiografia cientfica, mas somente chamaa ateno para o crculo vicioso modernista, que gostaria de nos fazer crerque nada existe fora dele. Fora dele, porm, esto todos os domnios dosignificado e propsito histricos.

    (Traduzido do original em ingls por Aline Lorena Tolosa)

    Notas

    *

    Originalmente publicado emHistory and Theory, v. 28, pp. 137-153, maio 1989.1 J. Romein, Het vergruisde beeld, e Theoretische geschiedenis, inHistorische Lijnenen Patronen (Amsterdam, 1971).

    2 R. G. Collingwood,An Essay on Metaphysics (Oxford, 1940).3 J. F. Lyotard,La Condition postmoderne (Paris, 1979), 15.4 A informao performativa, tem fora puramente elocucionria e perlocucionria,devido perda do elemento de constatao; a informao no performativa porque estsujeita s suas prprias leis e no s da intercomunicao humana a comunicao apenas parte da vida da informao.5 W. van Reijen, Postscriptum, inModernen versus Postmodernen, ed. W. Hudson andW van Reijen (Utrecht, 1986), 9-51; W. Hudson, The Question of PostmodernPhilosophy?, ibid., 51-91.

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    6 J. Culler, On Desconstruction: Theory and Criticism after Structuralism (Londres, 1985).7 Ibid., 90.8 Ibid., 88.9 J. van Heijenoort, Logical Paradoxes, in The Encyclopedia of Philosophy, ed. P. Edwards(London, 1967), 45-51.10 F. R. Ankersmit,Narrative Logic: A Semantic Analysis of the Historians Language (TheHague, 1983), 239, 240.11 H. White,Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth Century Europe(Baltimore, 1973), 37.12 F. R. Ankersmit, The Use of Language in the Writing of History, in Working with

    Language, ed. H. Coleman (Berlin, 1989).13 H Bertens, Het Talige van de Postmoderne Werkelijkheid em Modernen versuspostmodernen, 153-53. A posio de Bertens na realidade ainda modernista: sua tesede que a linguagem nunca poder representar o todo da realidade o leva a escolher umaposio dentro da polaridade entre linguagem e realidade, em vez de manter-se do lado defora, como seria o que requerido de um ps-modernista.14 White,Metahistory, 30; P. Ricoeur, The Model of the Text: Meaningfull ActionConsidered as a Text, in Interpretative Social Science, ed. P. Rabinow and W. Sullivan(London, 1979), 73.15 Von der Dunk,De Organisatie van het Verleden (Bussum, 1982); ver, por exemplo, 169,170, 344. 362, 369.16 E. H. Gombrich, Meditations on a Hobby Horse, or the Roots of Artistic Form, in

    Aesthetics Today, ed. P. J. Gudel (New York, 1980).17 A. Megill, Prophets of Extremity: Nietzsche, Heidegger, Foucault, Derrida (Berkeley, 1985);ver, especialmente, 2-20.18 C. P. Bertels, Stijl: Een Verkeerde Categorie in de Geschiedwetenschap, in Groniek89/90 (1984), 150.19

    N. Goodman, The Status of Style, in N. Goodman, Ways of Worldmaking(Hassocks,1978), 26.20 P. Gay, Style in History (London, 1974), 3.21 A. C. Danto, The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art(Cambridge,Mass., 1983), 188.22 G. Duby and G. Lardreau, Geschichte und Geschichtswissenschaft: Dialogue (Frankfurtam Main, 1982), 97, 98.23 J. Huizinga, De Taak der Cultuurgeschiedenis, inJ. Huizinga: Verzamelde Werken 7(Haarlem, 1950), 71, 72; italics mine.24 Duby and Lardreau, Geschichte, 98ff.

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    25 Este oLeitmotifem D. P. Spende,Narrative Truth and Historical Truth: Meaning andInterpretation in Psychoanalysis(New York, 1982).26 R. Rorty, Freud and Moral Reflection, 17. O autor deste artigo me deu uma fotocpia;infelizmente no possuo outras informaes sobre ele.27Programmaboek Congres Balans en Perspectief(Utrecht, 1986), 50.28 Isto, claro, se refere tese de K. Lwith em seuMeaning in History ( Chicago, 1970).29 Lyotard,La Condition postmoderne, 49-63.30 F. R. Ankersmit, De Chiastische Verhouding Tussen Literatuur en Geschiedenis, inSpektator(October, 1986), 101-20.31 Provas impressionantes da importncia rapidamente decrescente do passado europeu

    nos dada por M. Ferro,Hoe de Geschiedenis aan Kinderen Wordt Verteld(Weesp, 1985).32 J. Romein, Op het Breukvlak van Twee Eeuwen (Amsterdam, 1967), I, 35.33 Culler, On Deconstruction, 8.34 Ibid.35 J.-J. Rousseau,Les Rveries du promeneur solitaire (Paris, 1972), 101.36 Ibid.37 S. Freud, Das Unheimliche, in Sigmund Freud: Studienausgabe IV. PsychologischeSchriften ( Frankfurt, 1982), 264.

    38 Estou profundamente em dvida com a Sra. J. Krul-Blok por estes comentrios sobre aorigem da conscincia grega.