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1 Animação Disney (II): exagero metafórico Mário Sérgio Teodoro da Silva Junior Tem esses dois jovens peixes nadando juntos, e acontece de eles encontrarem um peixe mais velho nadando para o outro lado, que acena com a cabeça para eles e diz: “Bom dia, garotos, como está a água?”. E os dois jovens peixes continuam nadando um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta: “Que diabos é água?”.[...] O ponto central da história dos peixes é que as realidades mais óbvias, onipresentes e importantes são, geralmente, aquelas mais difíceis de ver e falar sobre. –DAVID FOSTER WALLACE Uma realidade onipresente no desenho animado é justamente o ato de animar, desenhar: “‘[...] A verdade por trás disso é: estamos no mercado de filmes, apenas os desenhamos ao invés de fotografá-los’ – Walt Disney” 1 (JOHNSTON; THOMAS, 1981, p.119). O trabalho de desenhar dos animadores da Disney, como já visto, inclui em suas premissas o conceito de exagerar (ibidem, p.65). Exagerar o traço, o movimento e, consequentemente, a ação, a cena, os caráteres... Mas tudo com muita prudência, evitando o exagero caricaturesco e deformado, sempre se apegando às leis da física dos movimentos e dos corpos, a fim de se obter um efeito mais realista. Logo, é de se esperar que a gênese do estilo Disney seja o exagero, que animar e exagerar sejam de natureza semelhante. Aliás, aquilo que se espera de um filme dessa espécie, mesmo que de outra empresa, ainda no gênero animação, são situações extremadas, que gerem o riso ou a admiração pela graciosidade do traço, mas que deixem claro que aquela ação só é possível dentro de um desenho animado. Como já visto anteriormente, uma faz funções que o recurso de exagero assume é a função cômica. Através da aceleração e desaceleração dos movimentos, da antecipação e do movimento repentino, produz-se um efeito ora de evidenciação de características desse movimento que são risíveis, ora de quebra de expectativas em relação a esse movimento. Mas existem ainda outras funções para o exagero, tendo em vista que se trata de um recurso, sem finalidade em si mesmo, senão a de salientar características. O efeito depende unicamente do uso que se faz do recurso, de como e quando, no filme, ele é aplicado. 1 “[...] The real thing behind this is: we are in the motion picture business, only we are drawing them instead of photographing them” – Walt Disney. Tradução minha.

Animação Disney II - Exagero metafórico

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Um estudo sobre o recurso do exagero com função metafórica em três filmes: A ESPADA ERA A LEI, 1963; ALADDIN, 1992; e POCAHONTAS, 1995.

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Animação Disney (II): exagero metafórico

Mário Sérgio Teodoro da Silva Junior

Tem esses dois jovens peixes nadando juntos, e acontece de eles encontrarem um peixe mais

velho nadando para o outro lado, que acena com a cabeça para eles e diz: “Bom dia,

garotos, como está a água?”. E os dois jovens peixes continuam nadando um pouco, até que

um deles olha para o outro e pergunta: “Que diabos é água?”.[...]

O ponto central da história dos peixes é que as realidades mais óbvias, onipresentes e

importantes são, geralmente, aquelas mais difíceis de ver e falar sobre.

–DAVID FOSTER WALLACE

Uma realidade onipresente no desenho animado é justamente o ato de animar,

desenhar: “‘[...] A verdade por trás disso é: estamos no mercado de filmes, apenas os

desenhamos ao invés de fotografá-los’ – Walt Disney”1 (JOHNSTON; THOMAS, 1981,

p.119). O trabalho de desenhar dos animadores da Disney, como já visto, inclui em suas

premissas o conceito de exagerar (ibidem, p.65). Exagerar o traço, o movimento e,

consequentemente, a ação, a cena, os caráteres... Mas tudo com muita prudência, evitando o

exagero caricaturesco e deformado, sempre se apegando às leis da física dos movimentos e

dos corpos, a fim de se obter um efeito mais realista.

Logo, é de se esperar que a gênese do estilo Disney seja o exagero, que animar e

exagerar sejam de natureza semelhante. Aliás, aquilo que se espera de um filme dessa espécie,

mesmo que de outra empresa, ainda no gênero animação, são situações extremadas, que

gerem o riso ou a admiração pela graciosidade do traço, mas que deixem claro que aquela

ação só é possível dentro de um desenho animado.

Como já visto anteriormente, uma faz funções que o recurso de exagero assume é a

função cômica. Através da aceleração e desaceleração dos movimentos, da antecipação e do

movimento repentino, produz-se um efeito ora de evidenciação de características desse

movimento que são risíveis, ora de quebra de expectativas em relação a esse movimento.

Mas existem ainda outras funções para o exagero, tendo em vista que se trata de um

recurso, sem finalidade em si mesmo, senão a de salientar características. O efeito depende

unicamente do uso que se faz do recurso, de como e quando, no filme, ele é aplicado.

1 “[...] The real thing behind this is: we are in the motion picture business, only we are drawing them instead of photographing them” – Walt Disney. Tradução minha.

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Uma dessas outras funções é em muito semelhante à metáfora. A metáfora altera o

estatuto simbólico do objeto que ela compara a outro (ou da ideia que ela compra a outra). O

exagero, nesse caso, alterará o estatuto físico de um objeto, ainda com o ideal de compará-lo a

outra dada situação. A seguir, serão apresentados exemplos tirados de três filmes selecionados

para comprovar essa teoria.

“Bagunça medieval”

A espada era a lei, dirigido por Wolfgang Reitherman, diretor também de títulos como

Mogli, Robin Hood e Aristogatas, foi lançado em 1963. É baseado na obra homônima (The

sword in the stone) de T. H. White. A história é sobre a jornada do jovem Wart até que ele se

torne o grande Rei Arthur, tirando a espada da pedra.

Wart vive com Sir Ector em seu castelo até que Merlin, um feiticeiro, encontra o

garoto que tem por volta de onze ou doze anos. Merlin sabe do futuro de Wart e deve ajudar

em sua educação para torná-lo rei. Entretanto, Wart pretende torna-se escudeiro de seu irmão

de criação, Kay, além de que, sempre está muito ocupado para a educação, porque trabalha no

castelo sempre limpando muita coisa, lavando muita coisa, tendo muita coisa por fazer...

O andamento do filme se dá com as lições de Merlin e Wart preocupando-se com um

grande torneiro de cavaleiros. Por fim, o garoto, em Londres, acidentalmente, tira a espada da

pedra e cumpre seu destino.

No que toca o exagero, é interessante observar uma dada característica desse filme.

Primeiramente, segue transcrita a canção de abertura do filme, que conta a história da espada

na pedra:

A lenda é cantada

De quando a Inglaterra era jovem

E cavaleiros eram corajosos e destemidos

O bom rei morreu

E ninguém decidia

Quem era legítimo herdeiro para o trono

Parecia que a nação

Seria despedaçada pela guerra

Ou salva por um milagre único

E esse milagre apareceu

Em Londres

A espada

Na pedra2. (REITHERMAN, 1963, min.2)

2 The legend is sung/Of when England was young/And knights were brave and bold/The good king had died/And no one could decide/Who was rightful heir to the throne/It seemed that the land

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Depois, a canção é sucedida por uma breve descrição em uma floresta sombria em que

um esquilo foge de seus predadores: “Era uma era sombria sem lei ou ordem. O homem vivia

com medo de seus semelhantes, porque, do mais forte, o fraco era a presa.”3 (Ibidem, min.3).

Por fim, a primeira personagem fala. Merlin: “– Uma era negra, sem dúvida! Era de

inconveniência. Sem encanamentos. Nem eletricidade. Sem nada. [...] Tudo complicado. Uma

grande bagunça medieval.”4 (Ibidem, min.4).

Disso, concluímos o ambiente em que o filme se passa: bagunçado, complicado, sem

ordem, sem lei. Um tanto quanto exagerado. E esse exagero é comunicado inclusive pela

imagem.

Na figura 1, temos o primeiro encontro entre Wart e Merlin na cabana do feiticeiro, e

notamos o excesso de objetos ao fundo. Mais tarde, quando ele faz as malas para a mudança

diminuindo esses objetos com magia, fica mais clara a grande bagunça que se estabelece.

Na figura 2, vemos o alojamento de Merlin no castelo de Sir Ector: os objetos ainda

estão lá, esparramados, “sem lei ou ordem”.

Na figura 3, Wart tem pilhas de louça para lavar. Merlin resolve isso com mágica, mas

a quantidade e disposição caótica desses pratos são incontestáveis.

Por fim, na figura 4, quadro 1, várias pessoas (como se fossem objetos) estão dispostas

ao redor de Wart, quando ele retira a espada da pedra. Nos quadros 2 e 3, vemos Wart já rei e

um grande átrio vazio. Os detalhes do fundo continuam minuciosos, como gosta a Disney,

mas os objetos já não estão mais lá, pois agora existe um rei, a ordem e a lei.

would be torn by war/Or saved by a miracle alone/And that miracle appeared/In London town/The sword/In the stone. Tradução minha. 3 This was a dark age without law and without order. Men lived in fear of one another for the stronger preyed upon the weak. Tradução minha. 4 A dark age, indeed! Age of inconvenience. No plumbing. No electricity. No nothing. [...] Everything complicated. One big medieval mess. Tradução minha.

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Figura 1: REITHERMAN, 1963, min.8-14.

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Figura 2: REITHERMAN, 1963, min.21.

Figura 3: REITHERMAN, 1963, min.39.

Figura 4: REITHERMAN, 1963, min.76-78.

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“Poderes cósmicos e fenomenais! – dentro de uma lampadazinha.”

Aladdin chegou aos cinemas em 1992. Dirigido por Rob Clements e John Musker,

conta o conto de fadas de Aladdin imerso na magia da Disney: um musical repleto de

comicidade e animação. Nessa versão, o jovem Aladdin é órfão e vive nas ruas com seu

amigo macaco, Abu, até que entra em sua vida a princesa Jasmine e o vizir real, Jafar.

Jafar procura Aladdin porque o rapaz era o único que poderia entrar na Caverna das

Maravilhas e pegar a lâmpada do gênio, objeto cobiçado pelo vizir, que busca o poder a

qualquer custo. Já Jasmine, numa fuga do palácio, onde se sentia “aprisionada”, sem poder

ver o mundo exterior, encontra o herói, um encontro que gera, inevitavelmente, na Disney, o

amor à primeira vista.

Jafar leva Aladdin para a caverna e o faz buscar a lâmpada, mas Aladdin acaba preso

lá e encontra o objeto ele mesmo. Convoca, então, o gênio. O gênio lhe realizará três desejos.

O primeiro desses é tornar o rapaz de rua um príncipe, para que ele possa se casar com

Jasmine. Aladdin se torna príncipe, mas Jafar rouba a lâmpada e o garoto perde,

consequentemente, o status. No fim, Aladdin derrota Jafar e reconquista a lâmpada,

conseguindo ficar com a princesa, mesmo não sendo mais príncipe, pois seu último desejo foi

libertar o Gênio.

E em torno desse processo de libertação das personagens de suas respectivas

“prisões” é que gira a história. O jovem preso às ruas que quer livrar-se delas; a princesa

presa ao palácio; o vizir preso ao seu cargo enfadonho e o Gênio preso à lâmpada: todos têm

em comum o desejo de liberdade. Todas as vidas vivem comprimidas em seus cárceres, têm

seu potencial suprimido pelas paredes que as separam de seus sonhos, são, como diz o gênio,

“poderes cósmicos e fenomenais dentro de uma lampadazinha”.

Tal princípio de compressão manifesta-se em outros momentos do filme através do

recurso do exagero, sobretudo, a compressão das palavras. Isto é, é muito recorrente, em

Aladdin, que as personagens falem muita coisa em pouco tempo, comprimam as palavras na

frase num movimento homológico à situação vivenciada pelas próprias personagens.

Um primeiro exemplo é na canção que apresenta Aladdin, One jump ahead. É uma

canção comum para os filmes da Disney, possui uma forte função narrativa de dar a entender

toda a realidade do jovem, das ruas de Agrabah, da vida dos menos afortunados, etc. Não

convém exemplificá-la aqui pelo fato dos textos escritos carecem de recursos auido-visuais...

Mas vale dizer que, em dado ponto, mais próximo do fim da canção, Aladdin, fugindo dos

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guardas, apressa a fala (o canto), acelerando o ritmo da música, comprimindo os versos em

espaços de tempo menores.

Algo semelhante ocorre na canção do Gênio, Friend like me, em que ora os versos

contêm muitas palavras, dando o efeito de compressão, ora o canto é acelerado. Outra canção,

Prince Ali, tem seu ritmo exagerado no fim. De um modo ou de outro, a ideia é justamente

das coisas serem maiores que o espaço em que estão condenadas a viver.

Algumas personagens falarão apressadamente normalmente, sem a desculpa da

canção. Abu, Iago – o papagaio – e o Gênio sempre falam muito, muitas vezes trocando

rapidamente o assunto da fala, agregando informações terceiras, aparentemente gratuitas.

E a canção, o espetáculo musical, mais recorrente a partir das produções do final da

década de 80 até os dias atuais, é um fonte de exagero na Disney e marca fortemente o gênero

dessa animação. Mas, em Aladdin, podemos entendê-lo como metáfora: o excesso de

elementos numa mesma cena, apertados (figuras 5 e 6). E todos eles vêm da magia do Gênio,

que, por sua vez, é um grande potencial acorrentado à escravidão da lâmpada, realidade

compartilhada com os elementos dessas cenas.

Figura 5: Friend like me (CLEMENTS; MUSKER, 1992, min.37-39.)

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Figura 6: Prince Ali (CLEMENTS; MUSKER, 1992, min.49-51.)

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A sutileza do exagero

Pocahontas foi lançado em 1995, dirigido por Mike Gabriel e Eric Goldberg. Conta

com Alan Menken na elaboração de sua trilha sonora, o mesmo compositor por trás de outros

grandes sucessos Disney da década de 90. Entretanto, é um filme diferente do que se via até

então em A Bela e a Fera, Rei Leão, e Aladdin, pois, enquanto estes continham um poderoso

apelo cômico realizado por certas personagens em dadas circunstâncias, Pocahontas é

majoritariamente sério e trágico. Uma história que não resulta necessariamente em um final

alegre.

A história se passa em 1607, numa exploração inglesa pelas terras americanas do

“Novo Mundo”. A exploração é comandada pelo governador Ratcliff, que pretende encontrar

ouro nessa nova terra, motivado pelas notícias de riquezas conquistadas ali pelos espanhóis. A

embarcação é liderada pelo capitão John Smith, que não ambiciona ouro, mas é movido pelo

seu espírito aventureiro e inquieto.

Ao chegarem ao litoral, são postas em movimento duas forças opositoras: a dos

ingleses que buscam o ouro a qualquer custo, e a dos índios nativos que lá estavam, que

defenderam suas terras dos invasores. Em meio a esse conflito, John Smith encontrará

Pocahontas, a filha do líder da tribo, Powhatan, e os dois se apaixonaram platônica e

incondicionalmente, como deve ser em uma boa história de amor Disney. É um amor

proibido, que vai contra interesses políticos, econômicos, éticos... Em um dos encontros

escondidos do casal, eles são flagrados por homens do acampamento inglês e Kocoum,

guerreiro mais forte dos índios destinado a se casar com Pocahontas.

Kocoum é morto por um dos companheiros do capitão Smith, que, por sua vez, é

aprisionado pelos nativos e condenado por essa morte. Pocahontas, heroicamente, impede a

condenação no fim do filme, mas John é forçado a voltar com o navio para a Europa onde

deverá receber cuidados médicos especiais.

E entre essa grande narrativa trágica e as parábolas cômicas desenvolvidas por um

conjunto menos de personagens (a saber, os dois animais amigos da protagonista – o

guaxinim Meeko e o beija-flor Flit – e o mordomo e o cachorro do Governador Ratcliff –

Wiggins e Percy) o exagero ocorrerá, com um objetivo e um ritmo próprio, bastante sutil,

mas, com certeza, onipresente e destacável.

Pocahontas conta com duas introduções antes que nos seja apresentada a protagonista.

A primeira apresenta a partida da expedição de Ratcliff de Londres para a América, seguida

de uma tempestade em alto mar.

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A segunda cena introdutória monstra a tribo de Pocahontas recebendo seu chefe que

volta de uma missão. A canção Steady as the beating drum, que completa a trilha da cena,

oferece a visão do modo de vida da tribo, “constante como a batida do tambor”, regular, sem

excessos, respeitando, assim, a natureza que a eles tudo provê.

Notamos a presença de dois pontos de vista distintos prestes a entrar em conflito: o de

Ratcliff e os ingleses, que buscam as “montanhas de ouro” protegidas por “índios

sanguinários”, e a dos nativos, da constância e do equilíbrio da vida. As cores das imagens,

perceberemos nos trechos selecionados, justifica essa antítese: o cinza, o azul e o marrom

(figura 1) seguido do rosa, do lilás e do anil (figura 2).

Mas composição imagética das cenas é bem equilibrada comparada a outros filmes da

Disney: as cores e as formas são demasiado condizentes com a realidade das coisas. Não

existem personagens realizando proezas que desafiam a física, apenas a vida que conhecemos

pintada na tela com bastante austeridade.

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Figura 7: A partida da nau do porto. Notamos como o retrato é realista, em tons e contornos sóbrios. (GABRIEL, GOLDBERG, 1995, min.0)

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Obviamente, a chegada dos ingleses provocará uma mudança no ritmo da tribo e no

ritmo da composição da imagem visto no começo do filme. Toda essa mudança começa com a

terceira canção, Just around the riverbend. Nesse ponto, Pocahontas encontra-se com seu pai

e ele lhe diz que ela deverá se casar com Kocoum, pois ele é o melhor marido que ela pode

ter, forte, estável, “sério” – como diz a própria protagonista. O chefe utiliza uma metáfora

para a vida da filha que envolve o percurso do rio. Ele diz:

Conforme o rio corta seu caminho, Mesmo que orgulhoso e forte Ele escolherá o curso mais liso E por isso os rios vivem tanto tempo. Eles são estáveis, Como a batida estável do tambor5 (Ibidem, min.11)

5 As the river cuts his path/ Though the river's proud and strong/He will choose the smoothest course/That's why rivers live so long/They're steady/As the steady beating drum. Tradução minha.

Figura 8: A chegada do chefe à aldeia. Novamente, muita austeridade na composição imagética. (Ibidem, min.5)

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Em seguida, Pocahontas deduz que mesmo o rio “não é tão estável assim”, e navega

por ele cantando a canção, que derruba a sobriedade e encontra o excesso. São os versos da

ode à vontade de Pocahontas, de sua fuga ao exagero.

O destino final de Pocahontas é consultar sua “avó” Willow. A questão é que, ao

chegar ao recinto da Avó Willow, a composição imagética muda. Os contornos não se

distorcem, não é costume da Disney fazê-lo aliás, mas as cores começam a significar mais

forte (figura 9).

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Mesmo que haja cores predominantes em todas as cenas (e isso se deve ao fato da

fotografia contar com bastante amplitude e abrangência, deixando muito céu, muita água, ou

outros elementos monocromáticos nas imagens), aqui notamos a predominância maciça do

azul, mesmo no tronco verde-azulado da árvore. Nos quadros 9 e 10, os pequenos animais são

pontos de cor muito viva, fluorescentes. Nos dois últimos quadros, as pequenas folhas em um

rosa, azul e faíscas dourado-vivo...

Figura 9: Pocahontas visita Avó Willow (Ibidem, min.14-17)

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As cores são exaltadas nessa cena, são exageradas. Do mesmo modo como Pocahontas

sai da batida estável do tambor da tribo e adentra nos desconhecidos da curva do rio, as cores

abandonam sua lógica anterior para desprenderem-se de seriedade.

Da mesma maneira, em outros momentos do filme, as cores saltarão aos olhos,

manifestando, através de seu exagero, os estados de espírito das personagens. O azul diz

respeito a momentos de espiritualidade e amor – nessa última cena exemplificada, a avó

Willow conta a Pocahontas a existência de espíritos da natureza que guiam seu caminho;

outras vezes, o azul profundo da noite ambienta os encontros românticos da índia com o

capitão Smith.

Outras cenas terão o vermelho, o alaranjado como fundo monocromático, dando a

ideia de ira. Um exemplo que opõe essas duas polaridades de cor é a cena da morte de

Kocoum (figura 10). O azul abraça o beijo do casal e o clima de paz, mas quando o índio

tenta matar Smith o vermelho começa, gradualmente, a ganhar brilho (quadros 20, 22, 24-29).

Percebemos também a ocorrência de cenas em que nenhuma cor brilha de fato, provando o

exagero da cor em oposição à sobriedade.

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Figura 10: GABRIEL; GOLDBER, 1995, min.56-57.

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Já quando os ingleses e os nativos marcham ao som da canção Savages, o

vermelho/laranja está mais saliente, mais irado, e bastante descompassado (figura 11). De

fato, o vermelho coincide com a aurora, assim como o azul, com a noite enluarada, de modo

que pode passar desapercebido, sutil, dissipando-se nos últimos quadro conforme os ânimos

se acalmam.

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Figura 11: GABRIEL; GOLDBERG, 1995, min.63-66.

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O exagero metafórico

Todos os elementos exagerados desses exemplos refletem, de alguma forma, temas

presentes na história dos filmes. Os objetos refletem a bagunça do reino sem rei; as palavras

refletem o aprisionamento das personagens; as cores refletem o descompassar da jornada de

Pocahontas e os estados de espírito das personagens.

São metáforas. É como se disséssemos que o reino está bagunçado como os objetos, as

personagens espremidas como as palavras e os ânimos e o ritmo estão descontrolados como as

cores. Mas, ao invés de se fazer a comparação em um nível unicamente simbólico, virtual,

faz-se no nível físico, visível, imagético. Nesse sentido, metáfora e exagero têm parentesco

quando este último assume tal função comparativa.

De qualquer modo, sobre o exagero, percebemos nele um recurso com finalidade

própria de dar clareza ao que é dito, de fazer a mensagem o mais entendível possível.

Quando se exagera o traço do movimento para comunicar uma piada, é graças à essa

hipérbole da animação que ela se faz plenamente entendível, fácil se ser apreendida

rapidamente. Isso diz respeito ao ritmo do desenho animado, e do cinema, em que não

podemos voltar alguns parágrafos atrás como num livro, devemos internalizar o que acontece

desde sua primeira aparição.

Da mesma maneira, o exagero metafórico, num nível mais complexo, tenta dar clareza

à mensagem, tornando possível, numa leitura um pouco mais atenta e adulta, a compreensão

do tema central do filme – percebe-se aí que nem tudo feito no desenho animado é destinado

às crianças, pelo contrário, trata-se de uma obra feita para dois públicos, com leituras

ingênuas e de lições morais e leituras mais apuradas.

Entretanto, não se deve pensar nesse uso do exagero como uma função alegórica, pois

eles alteram o plano físico da história. Os objetos, as palavras, as cores e o exagero dos

movimentos compõem a realidade ficcional dos filmes, compõem uma realidade subordinada

ao texto prevista para a leitura da criança e do adulto.

A questão é que, na animação, o exagero confere mais alma ao espaço, às

personagens, às ações, de tal maneira que não haveria outro nome para essa arte senão

animação. Animar é conferir ânimo, alma, dando vida ao que se imagina, fazendo que, na

ficção, a alma se sobreponha ao corpo e que a realidade imaginável confunda-se com a

realidade visível.

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Referências:

CLEMENTS, Rob; MUSKER, John. Aladdin. Walt Disney Feature Animation, 1992.

JOHNSTON, Ollie; THOMAS, Frank. The illusion of life – Disney Animation. Nova

Iorque: Disney Editions, 1981.

GABRIEL, Mike; GOLDBERG, Eric. Pocahontas. Walt Disney Feature Animation,

1995.

REITHERMAN; Wolfgang. The Sword in the stone. Walt Disney Productions, 1963.