André Barata - Sentidos de Liberdade

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    www.lusosofia.net

    SENTIDOS DELIBERDADE

    Andr Barata

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  • 3Sentidos de Liberdade

    ANDR BARATA

    UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR

  • 4Coleco - TA PRAGMATADireco: Jos Manuel Santos

    Design da Capa: Jorge BacelarDesenho da Capa: Lus NascimentoEdio e Execuo Grfica: Servios Grficos da Universidade da Beira InteriorTiragem: XXX exemplaresCovilh, 2007Depsito Legal N: XXXXXX/XXISBN-13: XXX-XXX-XXXX-XX-X

  • 5ndice

    Prefcio .............................................................................. 9

    I. Liberdade e Vontade Geral em J.-J. Rousseau

    O Contrato Social .......................................................... 17O Interesse Comum ....................................................... 24Vontade geral e vontade de todos .............................. 30O Condicionamento do Pacto ....................................... 33Actualidade em Rousseau ............................................. 42A cidadania ..................................................................... 46

    II. Isaiah Berlin, liberdade e democratismo

    Introduo ........................................................................ 53A reflexo berliniana sobre o conceito positivo deliberdade .......................................................................... 56Discusso da posio berliniana ................................... 63A pertinncia da anlise berliniana para o nosso contextoepocal ............................................................................... 80

    III. Livre-arbtrio e determinismo

    O problema ..................................................................... 87Argumentos incompatibilistas ........................................ 93O requisito da auto-determinao ................................ 95O requisito das possibilidades alternativas ............... 101Um falso problema. futuros contigentes ................... 105

  • 6IV. Agir por dever e tica formal

    Vontade bem formada e vontade boa ....................... 113O dever ......................................................................... 115Questes ligadas resoluo de dilemas ................. 125Deontologismo versus Consequencialismo ................ 134A questo da mentira .................................................. 142Limite tica kantiana ............................................... 148A ideia de liberdade .................................................... 156

    V. A alteridade como fundamento do agir por dever

    O campo da moralidade .............................................. 163Lvinas: Alteridade e liberdade ................................. 166O moral e o imoral .................................................... 181A liberdade originria e o mal .................................. 186A vida moral comum .................................................. 190

    VI. A construo da confiana - teoria dos jogos e tica

    Teoria dos jogos .......................................................... 201O dilema do prisioneiro .............................................. 206Verso iterada do dilema do prisioneiro .................. 212Contruo da confiana e tica ................................. 216Dever agencial e alteridade ........................................ 226Confiana e alteridade ................................................. 230

    VII. A liberdade ontolgica de J.-P. Sartre

    Conscincia e liberdade ............................................... 237Liberdade temporal, uma liberdade sentida .............. 243Escolher estar de m-f .......................................... 248

    BIBLIOGRAFIA ........................................................... 253

  • 7Chamamos livre o homem que fimpara si mesmo e no para os outros.

    Aristteles, Metafsica A 2, 982b

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  • 9Prefcio

    Falar de liberdade no falar de uma ideia s, masde mltiplas ideias que no so, com toda a certeza, ideiasdo mesmo. E se, em vez de ideias, se disser ideais, oproblema nada perde em complexidade h ideais deliberdade distintos, e tambm os h contraditrios oumesmo conflituais. parte outras razes, conflitos entreideais de liberdade tm participado historicamente dajustificao das crises da Modernidade. A liberdade movepovos, quer como ideal a perseguir quer como status asalvaguardar.

    Teoricamente, a importncia do conceito de liberda-de, caso se pudesse falar de um tal conceito, entenda-se como se de um s se tratasse, e caso essa importnciase deixasse medir assim, dada pelo valor fundacionalque desempenha, ou se disputa desempenhar, em contex-tos filosficos to variados como a tica, a Teoria Poltica,a Antropologia Filosfica. Alm disso, h uma to notvelquanto antiga questo em torno da metafsica da liberdade ao fim e ao cabo, perguntar-se-, pode haver liberdade?Ou talvez de forma menos atreita a escndalos que podea liberdade ser?

    Falar de liberdade , por certo, falar de umaplurivocidade. Tantas vozes, porm, arriscam nada signifi-

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    car para l da vozearia, o que faz com que em bocasmais entusiasmadas a palavra liberdade ganhe prstimomenos para usos do que para abusos. Por isso, no difcilser-se conduzido a equvocos ao se falar filosoficamentede liberdade. Para isto contribui ainda uma considervelpermeabilidade conceptual entre os diferentes camposdisciplinares onde o conceito de liberdade pregnante.A contrapartida facilmente enuncivel: o descrdito uma possibilidade recorrente em qualquer discurso sobrea liberdade.

    Os sete estudos que se apresentam aqui no visamintroduzir mais ordem ordem dos sentidos que a palavraliberdade assume filosoficamente. Nem visam inventariar,cartografar ou sistematizar a pluralidade de sentidosenunciveis. No h sequer pretenso exaustividade.Diversamente, a pretenso outra: dar conta de algunsapenas, ainda que particularmente relevantes, sentidos deliberdade os de Rousseau, Kant, Berlin, Sartre, Lvinas para, com eles, propor um itinerrio de reflexo e,sobretudo, devolver crdito possibilidade da liberdade,seja metafisicamente, seja enquanto conceito, se nofundacional pelo menos iniludvel na filosofia poltica, natica, na filosofia da aco.

    Posto isto, sumariam-se os sete estudos que aqui seapresentam. Os dois primeiros tiveram por ponto de partidaum breve seminrio de mestrado, prestado na Universi-dade da Beira Interior, em torno do problema da liberdadepoltica, mais em particular, da reivindicao da liberdadepoltica como fundamento ltimo da constituio legtimado poder poltico. Nesse sentido, so considerados doisautores e duas obras, dando conta de duas perspectivasemergentes em duas pocas diferentes, mas, a nosso ver,imensamente relevantes, apesar de todo o antagonismo queas recobre, para a actualidade que vivemos. Trata-se de

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    Do Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau e de DoisConceitos de Liberdade de Isaiah Berlin.

    O terceiro estudo respeita directamente ao problemada compatilidade entre livre-arbtrio e determinismo. Nele,expem-se as principais posies que so tradicionalmen-te reconhecidas a propsito do problema. Mas, no essen-cial, o propsito do estudo propor uma via, relativa-mente simples, de resposta ao problema. Curiosamente,interessar a esta via que aqui se prope a moldura tericaque rege o pensamento poltico de Rousseau. A curio-sidade prende-se, naturalmente, com a distncia temtica,mais aparente do que real a nosso ver, que separa aliberdade como conceito poltico do problema do livre-arbtrio. Detectar esta ressonncia confirmar apermeabilidade acima assinalada, e no para a corrigir,como se no houvesse familiaridade possvel entre ossentidos da liberdade, mas, diversamente, para dar indi-cao de um solo mais antigo, pouco visvel, pr-sentidode liberdade, ou ainda, o que se poderia denominar comoarqui-liberdade.

    Outra distncia ocupar-nos- no nosso quarto estudo.Se o livre-arbtrio releva da vontade que se diz livre, mastambm da vontade que pode ser bem ou mal formada,com isto, todavia, nada se elucida acerca da diferena entreuma vontade boa e uma vontade m. Por outras palavras,se h algum sentido tico ou moral de liberdade e claro que esse o caso para uma filosofia prtica comoa de Kant , no bastar seguramente obter uma teoriasatisfatria do livre-arbtrio para o esclarecer. Kant pro-pe, como sabido, a liberdade como autonomia, alis,ainda que com substanciais diferenas, na esteira deRousseau. A diferena entre livre-arbtrio e liberdade comoautonomia permite, sem absurdo, dizer que se livre deno se ser livre. Mas sendo-se assim moralmente livre,

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    haver que repensar o lugar do consequencialismo. A nossaproposta a de que esse lugar no se chame moral outica, mas qualquer coisa que est antes, menos distantede uma simples filosofia da aco do que daquelas.

    No entanto, a tica kantiana no est isenta deproblemas. De um lado, encontramos um problema defundamentao ou, ao menos, de completude que nosconduzir, no nosso quinto estudo, ao pensamento filo-sfico de Lvinas e figura, absolutamente central nesteautor, do outro. Veremos que a aparente contradio entreuma tica baseada na autonomia da liberdade e uma ticabaseada na heteronomia, ou seja, na revelao de umaalteridade que justifica a liberdade, se pode resolver pelomenos ser isso que proporemos numa tica que tendouma forma, muito semelhana do que Kant sustentara,no , porm, uma tica formal.

    O estudo subsequente procurar concluir no mesmosentido que o anterior, mas tomando um ponto de partidainteiramente distinto. Tratar-se- do problema da constru-o da confiana atravs de aplicao de modelos oriun-dos da teoria dos jogos. A partir da considerao doinfluente dilema do prisioneiro, e da discusso daracionalidade que lhe subjaz, reencontraremos tanto aautonomia de Kant como a heteronomia de Lvinas, ambastalvez mais bem conciliadas com as interaces humanasque se atestam empiricamente. Duas ideias permitiropensar, de acordo com expresso de Jean-Pierre Dupuy,um kantismo de rosto mais humano: a ideia de uma vidaque a aco por excelncia e a ideia de que nessamesma aco que fazemos prova da nossa liberdade.

    O ltimo estudo encontra-se com a filosofia de Sartre,talvez o ltimo grande pensador da liberdade, e corres-ponde a uma verso adaptada de uma comunicaoapresentada ao II Congresso Internacional da AFFEN

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    (Associao Portuguesa de Filosofia Fenomenolgica). Parao existencialista, a liberdade ontolgica, mas est longede equivaler a uma liberdade de ser; na verdade, umacondenao mais sofrida do que jubilada.

    A investigao que culminou neste livro fez-se nombito do IFP Instituto de Filosofia Prtica, Unidadede I&D (U738) reconhecida e financiada pela FCT Fundao para a Cincia e para a Tecnologia.

    Expresso, por fim, agradecimento aos muitos que meencorajaram a publicao deste livro. Mais em particular,cumpre-nos agradecer a Jos Manuel Santos pelo acolhi-mento a esta publicao, a Cristina Beckert pelo cuidadoque ps na derradeira leitura crtica destes estudos e, ainda,aos meus colegas Ana Leonor Santos e Jos Rosa porcomentrios e discusses que me acompanharam, e memotivaram, no esforo de compreender que sentidos tem,ou pode ter, a liberdade.

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    I. Liberdade e Vontade Geralem J.-J. Rousseau*

    __________________* Este estudo resultado de comunicao apresentada ao Colquio

    Guerra, Filosofia e Poltica, organizado por Rui Bertrand Romo, na Uni-versidade da Beira Interior em 2004.

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    O Contrato Social

    Logo nas primeiras linhas do seu Do Contrato Socialou Princpios do Direito Poltico1, Jean-Jacques Rousseau(1712-1778) esclarece o desgnio, ambicioso, a que se propecom esta obra. Diz-nos o autor: quero investigar se naordem civil pode existir alguma regra de administraolegtima e segura, tomando os homens tais como so, eas leis tais como podem ser.2 Tratar-se-ia, pois, de in-vestigar da possibilidade de uma regra de administrao,mas, note bene, sob o escrutnio de um duplo critrio asatisfazer por um lado, um critrio de legitimidade, questoem torno do bem fundado que possa estar um governo civile, antes disso, uma comunidade civil, uma civitas. Por outrolado, um critrio de segurana, mesmo confiana que oshomens possam depositar nessa regra de administrao.

    Este segundo critrio assume, desde cedo, importn-cia crucial no pensamento de Rousseau, imbricando-se noprimeiro de tal forma que s por esforo analtico sedistinguiro encontrar uma regra de administrao queconfira segurana em grande medida, para Rousseau,encontrar uma regra legtima. Neste sentido, no tantouma legitimidade o que Rousseau procura, como se para

    __________________1 Rousseau, 1762. (Doravante CS)2 Je veux chercher si dans lordre civil il peut y avoir quelque

    rgle dadministration lgitime et sre, en prenant les hommes telsquils sont, et les lois telles quelles peuvent tre (CS, l. I, cap. 1)

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    justificar um dado estado de coisas civil, um dado regimeinstalado; bem ao contrrio, procura encontrar um pactosocial, um regime civil que se adeqe a uma legitimidadefundadora, referencial ltimo, a saber, a salvaguarda dapessoa humana individual, da sua liberdade e dos seusbens, face fora comum do poder soberano.

    Dois momentos atestam esta inverso de forma clara.Em primeiro lugar, a contundncia com que o genebrino

    denuncia explicitamente a contradio entre o que diz sera natural condio livre do ser humano, por um lado, ea sua existncia actual efectiva, por outro. O homem nasceulivre, e por toda a parte ele est a ferros3 estas so aspalavras de Rousseau que, como nenhumas outras prova-velmente, mais repercutirem na histria poltica europeiadesde a Revoluo Francesa at s revolues socialistas.Tais palavras representam, na perspectiva de Rousseau, umestado de coisas que nenhum pacto, desejando-se legtimo,pode tolerar; donde, ser esta a causa occasionalis do esfororousseauniano para uma formulao indita de pacto social,mais sinal de transformao do que de simples legitimao.S com o sucesso de tal formulao, empresa a que Rousseause lana em Do Contrato Social, seria possvel transformaro estado de coisas que lhe coetneo e assegurar um governojusto que estabelea o facto pelo direito e no, como apontaRousseau aos seus predecessores mais influentes no pen-samento poltico, Hugo Grcio e Thomas Hobbes desig-nadamente, o direito pelo facto.4

    __________________3 Lhomme est n libre, et partout il est dans les fers. (CS, I, 1)4 Grotius nie que tout pouvoir humain soit tabli en faveur de

    ceux qui sont gouverns: Il cite lesclavage en exemple. Sa plus constantemanire de raisonner est dtablir toujours le droit par le fait. On pourraitemployer une mthode plus consquente, mais non pas plus favorableaux tyrans. Il est donc douteux, selon Grotius, si le genre humainappartient une centaine dhommes ou si cette centaine dhommesappartient au genre humain, et il parat dans tout son livre pencherpour le premier avis: cest aussi le sentiment de Hobbes. (CS, I, 2)

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    O segundo momento em que se atesta a inverso propostapor Rousseau -nos dado quando de forma muita expressa,demasiado para que a possamos ignorar, se obriga a si mesmoa pesquisar uma formulao de pacto social que se conformea uma moldura legtima do ponto de vista do direito natural,uma moldura que expe com as seguintes palavras:

    Encontrar uma forma de associao que defenda e protejade toda a fora comum a pessoa e os bens de cada associado,e pela qual cada um unindo-se a todos no obedea portantoseno a si prprio e permanea to livre quanto dantes.5

    Desta moldura, a que qualquer formulao de pactosocial se deveria ajustar, seguem-se duas consequnciasde relevo. Por um lado, estabelece terica mas rigorosa-mente a possibilidade de um conflito entre os particularese o poder comum, mais em concreto, o risco de a foracomum vir a subjugar a pessoa de cada cidado, almdos seus bens prprios, e, por outro, que nessa possibi-lidade de conflito reside justamente o problema crucial,questio crucis, a que o pacto social deve dar resposta sobpena de ser um pacto vo luz da lei natural.

    Ora, nestes termos, se a formulao que Rousseaupropor no deixa de nos fazer adivinhar, quer por in-suficincia quer mesmo por contradio argumentativa, apossibilidade de um conflito entre o individual e o colectivo,h que dizer, porm, que, longe de ser proposto porRousseau, como sucessivas recepes eivadas de criticismoa nosso ver precipitado lhe censuraram, tal conflito precisamente matria da denncia rousseauniana e a sua

    __________________5 Trouver une forme dassociation qui dfende et protge de

    toute la force commune la personne et les biens de chaque associ,et par laquelle chacun sunissant tous nobisse pourtant qu lui-mme et reste aussi libre quauparavant. (CS, I, 6)

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    possibilidade justamente o problema que se prope ul-trapassar. Rousseau nem sequer pecou por omisso: o queest em causa em Do Contrato Social o sacrifcio daliberdade individual ao poder soberano, regra do seu tempo,sacrifcio do particular fora comum; rejeio, pois, dointervencionismo do soberano sobre a vida dos particu-lares; pelo que achar em Rousseau o percursor da formademocrtica do totalitarismo, como, entre muitos outros,Heine6 e Hannah Arendt ou os nossos Antnio Srgio eCabral de Moncada7 fizeram, cada um sua maneira,parece-nos matria a escrutinar cuidadosamente. Faz-lo um dos objectivos a que nos propomos, designadamentepela discusso da distino muito clebre, mas nem porisso muito bem compreendida, entre Vontade geral evontade de todos.8

    __________________6 Do severo criticismo de Heinrich Heine face a Rousseau, e

    tambm face a Kant, Isaiah Berlin faz a seguinte descrio: H maisde um sculo atrs, o poeta alemo Heine alertava os franceses paraque no subestimassem o poder das ideias: os conceitos filosficosacalentados na tranquilidade do gabinete de um professor podem destruiruma civilizao. Referia-se Crtica da Razo Pura de Kant... edescrevia as palavras de Rousseau como a arma manchada de sangueque, nas mos de Robespierre, aniquilara o anterior regime. (Berlin,1958: 244)

    7 A respeito da democracia de Rousseau, afirma Cabral deMoncada Individualista ainda no seu ponto de partida e nos seuspressupostos racionais, sem dvida, ela totalitria e anti-liberal noseu ponto de chegada. Partindo da liberdade do homem e dos seusdireitos naturas originrios, o dogma da soberania do povo e o mitoda vontade geral acabam por tomar na construo do sistema adianteira sobre os outros elementos e por anular nela todos os vestgiosdo seu liberalismo. (Cabral de Moncada, 1953: 243-244)

    8 Esta indicao, contrariamente ao que se poderia comear porpensar, aponta para um objectivo rousseauniano muito mais ligadoao problema da aco governativa, ou, se se quiser, do exerccio dopoder, do que ao problema da constituio do poder. Poder-se- dizerque este segundo problema se subordina ao primeiro, o que, a bem

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    Esta mesma questo um manifesto sintoma daactualidade do pensamento do Rousseau, pois se h hojeteste maturidade das democracias ocidentais passar comcerteza pela capacidade de salvaguardar minorias do efeitode maiorias, imprimir condicionamentos que atendam aoprotesto da verdade, por mais difcil que seja determinaro estatuto desta em poltica, face ao acto sagrado dademocracia contempornea o voto. Fenmenos comoo eleitoralismo, o populismo, a convergncia imediata edesordenada de vontades, a demagogia, em suma, o queclassificaramos genericamente sob a categoria, de StuartMill, de tirania das maiorias so hoje efeitos contra osquais as democracias devem procurar solues. Expor estaactualidade de Rousseau, at pela sua feio contraditria, outro dos nossos objectivos.

    Por fim, como terceiro e ltimo objectivo, procura-remos articular, na esteira de Arendt, uma condio blicano cidado como garantia ltima contra a precariedadeda vontade geral rousseauniana, mas tambm, indo bemalm de Arendt, da prpria ideia de democracia.

    Que formulao apresenta, pois, Rousseau, para umpacto social que respeite a moldura que o direito naturalimpe, ou seja, um pacto capaz de realizar uma alternativaquer ao cenrio de destruio do homem no estadonatural, quer submisso sem limites, sem salvaguarda

    __________________dizer, plausvel no s em Rousseau como em Hobbes: diferentesentendimentos do que deve ser o exerccio do poder (ou seja, comose exerce e quem o exerce, e por fim os limites que o condicionam)estruturam diferentes modelos de constituio e legitimao do poder.Enquanto ao absolutismo, de cariz liberal, hobbesiano se fazcorresponder determinada constituio, ao regime particular deRousseau faz-se corresponder outro tipo de constituio e legitimaodo poder.

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    da liberdade, do cidado? Eis a conhecida frmula docontrato:

    Cada um de ns pe em comum a sua pessoa e todoo seu poder sob a suprema direco da vontade geral;e ns recebemos em corpo cada membro como parteindivisvel do todo.9

    A anlise deste contrato revela trs momentos con-secutivos: o da alienao da pessoa de cada um e dassuas posses; o da formao da vontade geral, pessoaabstracta que assume a soberania; e o da recuperao attulo legal de tudo aquilo que cada um havia alienado,sejam as suas posses seja a sua pessoa, dando a possede cada um lugar propriedade legal, isto , ao reco-nhecimento pelos outros e pela comunidade civil em geraldas suas posses. Por que razes, luz do pensamento deRousseau, podem estes trs momentos determinar umaassociao em que a pessoa e os bens de cada associadosejam protegidos da fora comum? Simplesmente porque,apesar da instituio de uma autoridade soberana, todosos sbditos permanecem to livres quanto dantes; a li-berdade natural converte-se eis o momento engenhosodo argumento de Rousseau numa liberdade civil, semnada perder; pelo contrrio, ganhando o reconhecimentodos outros que participam da mesma comunidade. Nose sacrifica, pois, a liberdade do cidado submisso aosbdito.

    Mas bastar de facto esta forma de associao, estepacto social, para que fique salvaguardada a liberdade dos

    __________________9 Chacun de nous met en commun sa personne et toute sa

    puissance sous la suprme direction de la volont gnrale; et nousrecevons en corps chaque membre comme partie indivisible du tout. (CS, I, 6)

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    cidados, os direitos que os assistem quanto posse debens, e tudo o mais de que dispunham naturalmente, faceaos perigos de sobreposio de uma fora comum? E, maislatamente, aos perigos de dissoluo do n social, da perdade uma posio de paz em troca de uma de guerra? Note-se que, para Rousseau, h um vnculo profundo entre estasduas questes a sobreposio da fora comum sobreos particulares representa, por si s, em termos queesclareceremos adiante, uma destituio da legitimidadedo pacto social, pelo que, nessas circunstncias, e facea ele, no ser menos ilegtima a posio de guerra civil.

    A nossa proposta de resposta a estas questes trplice:1. A frmula do pacto mostra-se claramente insufi-

    ciente. V-lo-emos a respeito da noo de interessecomum e da possibilidade de conflito entre estee o interesse particular. Donde, haver a necessidadede formular condicionamentos ao pacto.

    2. Os condicionamentos propostos por Rousseaumostrar-se-o, porm, contrrios, por vezes con-traditrios, com o desgnio que almejavam cum-prir. Veremos que assim com os condiciona-mentos da indivisibilidade e da inalienabilidadeda vontade geral. A consequncia mais bvia quedaqui se segue uma intolervel supresso dopluralismo poltico.

    3. Pese embora o que ficou dito, os mesmos con-dicionamentos, se lidos reflectidamente, expema nosso ver uma precariedade essencial aos re-gimes democrticos que, no limite, s encontraamparo na capacidade dos cidados em sustentar,no seu peito, uma fico comum a vontade geral.V-lo-emos, muito em particular, a partir dapreocupao rousseauniana com o conflito entrevontade geral e vontade de todos e com o estatutodo cidado.

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    O Interesse Comum

    Posto este trajecto, comearemos por explicitar a dis-tino entre interesses particulares e interesse comum. Talcomo Rousseau no-lo apresenta, o interesse comum emsubstncia da mesma natureza que o interesse particular, nosentido em que resulta to-s da abstraco do que, nosmltiplos interesses particulares da multido de vontadesindividuais envolvidas no acto do pacto, permanece comum.Assim, o interesse comum identifica-se com aqueles inte-resses que, alm de particulares, sucede serem comuns atodos as vontades contratantes. Por isso, de um ponto devista lgico, manifesto que o interesse comum no maisdo que o conjunto de interesses que resultam da intersecode todos os conjuntos de interesses particulares de todos osindivduos de uma comunidade. Obviamente, se o conjunto-interseco fosse nulo no seria possvel abstrair um interessecomum nem firmar uma Vontade Geral que o perseguisse.Sobre esta explicitao, Rousseau no se poderia ter expri-mido de modo mais inequvoco:

    (...) se a oposio dos interesses particulares tornounecessrio o estabelecimento das sociedades, foi o acordodesses mesmos interesses que a tornou possvel. o queh de comum entre esses diferentes interesses que formao lao social, e se no existe nenhum ponto no qualtodos os interesses se acordem, nenhuma sociedadepoderia existir. Ora, unicamente sobre esse interessecomum que a sociedade deve ser governada.10

    __________________10 si lopposition des intrts particuliers a rendu ncessaire

    ltablissement des socits, cest laccord de ces mmes intrts quila rendu possible. Cest ce quil y a de commun dans ces diffrentsintrts qui forme le lien social, et sil ny avait pas quelque pointdans lequel tous les intrts saccordent, nulle socit ne saurait exister.Or cest uniquement sur cet intrt commun que la socit doit tregouverne.. (CS, II, 1) (Itlico nosso)

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    Poder-se-ia concluir que, deste modo, o facto de,numa ou mais vontades, interesse comum e interesseparticular entrarem em conflito s se explicaria nos termosde um equvoco. Ou sucederia o interesse que passa porcomum no ser realmente interesse comum a todas asvontades individuais, ou sucederia o interesse particular,proclamado em certa ocasio por dada vontade, conflituarcom outros interesses dessa mesma vontade, interessesigualmente particulares quanto sua origem, e simples-mente comuns no sentido em que so partilhados pelasoutras vontades.

    Na verdade, porm, esta concluso no se sustm,pois os interesses particulares esto em constante trans-formao e, consequentemente, o interesse comum origi-nalmente contratado pode deixar de exprimir um interesseefectivamente comum a todas as vontades. No deveria,porm, o interesse comum, de acordo com a definio,transformar-se tambm ele de acordo com a dinmica dosnovos interesses particulares? Em parte sim, se a expres-so interesse comum continuar a significar o interesseque sucede ser comum s vontades que se submeteramao pacto. Contudo, a resposta tambm parcialmentenegativa e por uma razo, a nosso ver, importante: emboranada impea no contrato social que os pactuantes sejamvolveis e inconstantes quanto aos seus interesses par-ticulares, no o caso que sobre aquilo que pactuaram o interesse comum no seja razovel a exigncia deum compromisso de perseverana. Se contratar envolve,de algum modo, um acto de promessa acerca do objectode contrato, ou seja, um compromisso de estabilidade docontedo do interesse comum, ento, ter-se- que o in-teresse comum originalmente apurado pode, de facto,esvanecer-se no jogo de mudana das vontades particula-

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    res, ainda que permanea, de jure, exigvel face aocompromisso assumido pelo contrato. Quer isto dizer que no prprio interesse comum, mais do que num anta-gonismo com interesses particulares, que emerge a pos-sibilidade de conflito.

    Face a esta possibilidade de conflito, Rousseauprocura fixar um contedo do interesse comuminsusceptvel volubilidade, mesmo se generalizada, dosinteresses particulares. Isto significa, porm, que adefinio estritamente formal de interesse comum serevela insuficiente um interesse formalmente comumpode no ser um interesse realmente comum, que digagenuinamente respeito Vontade Geral. Necessrio ainda que nele esteja unicamente em causa o que verdadeiramente da ordem do bem-comum. Por aqui,percebe-se o alcance dos conceitos de interesse comume Vontade Geral em Rousseau. No so apenas noesformais, elegveis, mas dispem de uma materialidadeou ontologia prprias. claramente neste sentido queRousseau profere afirmaes como as de que a VontadeGeral, princpio da soberania, no se engana. Com isto,evidentemente no est a querer dizer que as maiorias,mesmo se unnimes, nunca se enganam e que as mi-norias, inversamente, esto sempre enganadas, pelo sim-ples facto de as primeiras serem maiorias e as segundasminorias. Bem pelo contrrio, Rousseau est a querersalvaguardar o bom senso quanto ao bem comum dosinevitveis enganos que o senso comum tendemaioritariamente a alimentar.

    J por outro lado, a Vontade Geral no poder en-ganar-se apenas significa que ela da ordem da rea-lidade, e assim por princpio verdadeira, e no da ordemdo discurso, esse sim ou verdadeiro ou falso. Comoqualquer outra realidade, a Vontade Geral poder ser

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    ilusria, aparente, enganadora, mas no falsa ou enga-nada.11

    notrio que, por aqui, novos problemas resultamdentro do pensamento de Rousseau, mas exactamente porpermitir que minorias iluminadas possam supor, no seualto critrio, que so melhores intrpretes da Vontade Geralque a massa maioritria. Quem conhea a realidade daVontade Geral, quem saiba dos seus meandros melhor doque os outros, ou lhes faa crer que assim , imagine-se uma elite revolucionria ver reconhecido, na medidaem que seja reconhecido aquele saber, o direito coeroa bem do interesse comum. A este propsito frequentesvezes lembrada a afirmao de Rousseau de que quemdesobedecer Vontade geral ser constrangido por todoo corpo social e que tal no tem outro significado senoo de o forar a ser livre.12

    Alm desta, outras dificuldades rapidamente fazemcom que Rousseau, permita-se a expresso, entre em terrenoescorregadio. Desde logo, a formulao do pacto noenvolve um outro em carne e osso, um segundo outorganteque se d a ver em pessoa, mas to-s uma abstraco,alm do mais, ficcionada, provavelmente por cada um sua maneira, como se fosse uma vontade. Assim, quem

    __________________11 Equvocos na interpretao destes pontos so muito comuns

    e arriscam a obter formulaes que s podem ser tomadas comocaricaturas do pensamento de Rousseau. Encontramos um exemplona Histria das Ideias Polticas de Freitas do Amaral onde, confun-dindo-se vontade geral e vontade da maioria, acaba-se atribuindo aesta o que respeita apenas quela A maioria nem sempre tem razo,dizia Locke, por isso necessrio limit-la; a maioria tem semprerazo, diz Rousseau, por isso no preciso limit-la. As minorias que esto enganadas, quem est em minoria nunca tem razo: porisso a soberania infalvel, a vontade geral traduz o interesse co-lectivo, exprime sempre o bem-comum. (Amaral, 1998: 50)

    12 Cf. CS, I, 8.

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    exige ao cidado que persevere no interesse comum a quese obrigou no ningum, nem um outro cidado, nemuma assembleia de cidados, mas algo cuja realidadesenciente est, porm, em toda a parte. E, no entanto, defacto, quem exigir e obrigar sero outros cidados, comos quais quem desobedece nenhum contrato houveracelebrado. Todos e qualquer um, em p de igualdade, estoem condies de denunciar um segundo e um terceiro,fazerem-se, digamos assim, ministros da verdade a res-peito do interesse particular de cada vontade, juzes daverdade e da falsidade do interesse comum a todas asvontades.

    Esta ambivalncia sobre quem pode exigir obedi-ncia torna-se tanto mais perniciosa quanto, como vimos,o interesse comum de facto pode ele mesmo se transfor-mar. E se Rousseau no nos d critrios pelos quaispossamos julgar da legitimidade do contedo do interessecomum originalmente contratado, menos nos d a respeitodo interesse comum transformado, das mediaes formaisque regulam a sua transformao. No limite, cruzando aindefinio em que Rousseau deixa as condies deobrigao dos cidados e a indefinio quanto aos pro-cedimentos de legitimao do prprio interesse comume sua transformao no difcil ser-se conduzido a talponto que quem no acompanhe a transformao correo risco de se tornar um desobediente, mesmo que cumpracom todo o zelo o interesse que havia contratado. E quemdesobedece s leis, quem as viola, cessa de ser membrodo Estado. A sua existncia e a do Estado tornam-seincompatveis. Entre ambos, a relao ser a mesma quea de inimigos em guerra.13 Em suma, nenhum interesseparticular e nenhuma vontade particular esto a salvo.

    __________________13 Cf. CS, II, 5.

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    Significar isto que Rousseau lanou as bases parao Terror e para a democracia totalitria? Seguindo ex-clusivamente a formulao do pacto, julgamos que sim.Mas, de forma alguma, o mesmo significa que os tenhalegitimado. Pelo menos duas boas razes sustentam estaconcluso. Primeiramente, a motivao e a moldura dopacto afirmam, por princpio, que se trata de proteger osparticulares da fora comum, no de os submeter a ela;em segundo lugar, a possibilidade de desvio totalitrio davontade de todos face vontade geral representada peloprprio Rousseau como um perigo que o preocupa e aque procura dar resposta.

    No obstante, e quanto primeira razo, j verifi-cmos como Rousseau, afinal, vem tolerar a sua contra-ditria em virtude da insuficiente formulao do pacto.Com efeito, ao deixar indeterminado o contedo dointeresse comum, bem como os termos em que neleencontra fundamento o direito coero, Rousseau pos-sibilitou e tornou mesmo natural que a questo dopoder, supostamente ligada promoo do interessecomum, se convertesse numa questo de poder sobre ointeresse comum. Assumida esta converso, j poucoimportar o interesse comum, mas simplesmente o inte-resse, obviamente particular, de quem o domina. Este ,alis, um trao caracterstico de certo colectivismo quefez a sua histria, sobretudo no Sc. XX, um pouco portodo o mundo, despromovendo o direito vontade indi-vidual sempre que contrariasse a vontade colectiva, talqual era representada e imposta por uma minoria.

    Talvez pela conscincia destas dificuldades relativa-mente ao interesse comum, Rousseau tenha sentido anecessidade de avanar com uma segunda razo, a saber,a distino algo voltil, mas absolutamente decisiva, entreVontade geral e vontade de todos. Com efeito, na

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    discusso desta distino que se joga no s a valia, emparticular, do projecto rousseauniano de direito poltico,mas tambm a condio, por assim dizer, intrinsecamenteprecria dos regimes que reconhecemos como democra-cias. No obstante, e uma vez mais, se por aqui se aclarao esforo de Rousseau em evitar o perigo totalitrio,veremos, porm, que nesse mesmo esforo que aindase encontrar evidentes concesses ao totalitarismo.

    Vontade geral e vontade de todos

    A distino entre estas duas vontades -nos dada soba seguinte formulao:

    H muitas vezes uma diferena entre a vontade de todose a vontade geral; esta s tem em vista o interesse comum,a outra tem em vista o interesse privado e apenas umasoma de vontades particulares: mas retirem destas mesmasvontades os mais e os menos que se destroem entre si,e restar como soma de diferenas a vontade geral14

    Fazendo uso dos conceitos de interseco e dereunio, poderamos ser tentados a distinguir a Vontadegeral da vontade de todos, tomando a primeira comoconstituda a partir do conjunto-interseco dos interessesindividuais, como vimos, e a segunda como constitudaa partir do conjunto-reunio dos mesmos interesses. Noentanto, uma tal caracterizao conduzir-nos-ia conside-

    __________________14 Il y a souvent bien de la diffrence entre la volont de tous

    et la volont gnrale; celle-ci ne regarde qu lintrt commun, lautreregarde lintrt priv, et nest quune somme de volonts particulires:mais tez de ces mmes volonts les plus et les moins qui sentre-dtruisent,reste pour somme des diffrences la volont gnrale. (CS, II, 3)

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    rao do contedo da Vontade geral como sendo partedo contedo da vontade de todos, o que no segue nema letra nem o esprito do texto rousseauniano. explcitonas palavras do genebrino que os contedos das duasvontades, a geral e a de todos, podem divergir; alis, orisco de divergirem mesmo objecto central da suapreocupao terico-poltica, pois tambm o risco defazer cessar o prprio pacto social.

    Perguntar-se-, ento, de que outro modo se podecaracterizar a vontade de todos em contraste com a Vontadegeral? A este propsito, uma nuance impe-se. Rousseauno afirma que a vontade de todos consista na soma dosinteresses particulares, mas, diversamente, na soma dasvontades particulares. Far realmente diferena esta di-ferena? Absolutamente, pois vontades particulares noexprimem necessariamente interesses particulares, nem, domesmo modo, interesses comuns; exprimem to-s inte-resses, podendo, contingentemente, dar-se o caso de nelasse discernir o que particular do que comum no interesseeleito. Por outras palavras, a vontade de todos origina-riamente diz respeito totalidade das vontades individuaise s derivadamente ao interesse que elas elegem.

    Nestes termos, a vontade de todos (bem como a damaioria) no est vinculada ao interesse comum, podendo,por isso, no o atender, sacrificando assim a Vontade geral;no limite, o prprio pacto. esse o caso que Rousseaunos descreve:

    Quando o n social comea a afrouxar e o Estado aenfraquecer, quando os interesses particulares comeama fazer-se sentir e as pequenas sociedades a influir nagrande, o interesse comum altera-se e encontra opositores,a unanimidade j no reina entre as vozes, a vontadegeral j no a vontade de todos, elevam-se contra-

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    dies, debates e a melhor opinio j no passa semdisputas15

    Invertendo o ngulo de abordagem, a Vontade geral,por no poder deixar de se actualizar atravs da expressodas vontades individuais, depende sempre da vontade detodos (ou, ao menos, da maioria), esperando nesta acapacidade de preservar a ateno no interesse comum.Mas justamente aqui que h uma situao de riscoinapagvel a possibilidade permanente dos indivduoselegerem outro interesse que no o comum, seja por seiludirem (e so muitas as estratgias de iluso em poltica)seja por esquecerem a sua condio de cidados, suspen-dendo o estado civil, como que regressando ao estado denatureza. Desta forma, a contingncia de uma dissensoentre a vontade de todos (ou da maioria) e a vontade geralno mais do que a contingncia de tudo aquilo que,pese embora a adeso macia que possa obter nocircunstancialismo da ocasio, ponha em causa o interessecomum e o prprio fundamento do contrato social. Nestesentido, a vontade de todos, quando desavinda da Vontadegeral, pode ser entendida como o nome rousseauniano parafenmenos como o populismo e a demagogia,exemplificveis nas democracias propagandsticas, com oseu particular volutear revolucionrio, mas tambm, a seumodo certo, nas nossas hodiernas democracias ociden-tais cada vez mais massificadas e mediacratizadas. Se

    __________________15 Mais quand le noeud social commence se relcher et lEtat

    saffaiblir, quand les intrts particuliers commencent se faire sentiret les petites socits influer sur la grande, lintrt commun saltreet trouve des opposants, lunanimit ne rgne plus dans les voix, lavolont gnrale nest plus la volont de tous, il slve descontradictions, des dbats, et le meilleur avis ne passe point sansdisputes. (CS, IV, 2 ; itlico nosso)

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    a tirania das maiorias pde conduzir aos totalitarismos defeio aparentemente democrtica, hoje j extintos, noser por isso que deixam de constituir uma ameaa, aliscrescente, s democracias que integramos. A nosso ver,com este conceito de vontade de todos, Rousseau deu contada perptua condio precria de uma Vontade geral assentena soberania popular. A condio da legitimidade daVontade geral est na assuno do perigo insupervel dasua reversibilidade. Com este conceito de vontade de todos,Rousseau ter identificado, arriscamos a generalizao, aprecariedade inerente ao regime democrtico.

    O Condicionamento do Pacto

    No obstante, face a esta constante precariedade enquadrada no facto de a Vontade geral s ser elegvelatravs de vontades particulares Rousseau procuraestabelecer um duplo condicionamento que salvaguardea perenidade do contrato social e estabilidade da Vontadegeral. Trata-se de uma ilegitimao do direito repre-sentao poltica, por um lado, e de uma ilegitimao dodireito associao poltica, por outro. Ambas so ile-gtimas, no juzo de Rousseau, porque anulam o prpriopacto social. Se este constitui uma Vontade geral enquantopessoa subjectiva, ainda que abstracta, ento tal vontadeno se pode alienar tal qual as vontades particulares,que, mesmo querendo, no podem renunciar sua liber-dade, a Vontade geral no pode renunciar a si mesma.Donde, a ilegitimao de uma vontade que se fizesserepresentar por outra. Alm disso, no pode dividir-se poiss por absurdo se poderia ser conduzido a conceber umapessoa que no fosse uma pessoa, subjectividade cons-tituda qua unidade individual. Donde, a ilegitimao de

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    uma vontade que se fragmentasse em vontades intermdias,resultado de associaes polticas.16

    Note-se que, a admitir este condicionamento pelanatureza subjectiva da Vontade geral, ele no pode serconsiderado um mero suplemento ad hoc ao pacto. condiode implementao do pacto. claro que esta essencializao,por assim dizer, do condicionamento faz parte do engenhode Rousseau em conferir-lhe tanta legitimidade quanta a quese conferir ao pacto propriamente dito. Mas no menosbvio que a argumentao de Rousseau neste ponto dependeestreitamente de uma caracterizao bastante discutvel danatureza da Vontade geral. Numa palavra, que a Vontadegeral enquanto expresso do interesse comum das vontadesparticulares se diga uma vontade em sentido literal e noapenas metafrico ponto que s muito arduamente, parano dizer nunca, seria sustentvel.

    Alis, Rousseau tenta, designadamente no que res-peita ao direito de associao poltica, uma outra argu-mentao bem menos insustentvel, ainda que, comoveremos, nem por isso legtima. Desta feita, tratar-se-de um argumento de cariz sociolgico. A partir da ideiade que o interesse comum ser tanto mais fielmenteexpresso quanto maior for a disperso dos interesses par-ticulares, Rousseau pronuncia-se pela inadmissibilidade deassociaes de cidados, cujas vontades constituiriam ummeio-termo entre a vontade particular de cada um e avontade geral da comunidade civil. Toda a associao

    __________________16 Alain Renaut sintetiza este condicionamento em virtude do

    carcter subjectivo da vontade geral nos seguintes termos: A sobe-rania, que no mais do que o exerccio da vontade geral, ficaa distinguir-se por duas caractersticas indispensveis constituiodo povo como subjectividade: ela nunca pode alienar-se (CS, II,1) e tambm no pode, pelas mesmas razes, dividir-se (CS, II, 2).(Renaut, 2000: 139)

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    dentro da comunidade significaria, a seu ver, um acto dediviso ou, pelo menos, um acto de enfraquecimento don social. Isto porque, se houvesse algo que institusseum interesse comum ao nvel de uma associao intermdia,tal entraria em competio, se no mesmo em conflito,com o interesse realmente comum a todos. A alegadailegitimidade do direito de associao poltica resulta, pois,do facto, presumido por Rousseau, de que tal poria emcausa o prprio pacto social.

    Para demonstrar este resultado, Rousseau retoma anoo, mesmo que metafrica, de uma Vontade geral. Vimosatrs que a vontade de todos era o que se elege porunanimidade, ao passo que a Vontade geral, por princpio,se definia pelo interesse comum, isto , pela abstracodo que comum na multiplicidade de interesses particularesdos cidados. Vimos tambm que nada nos garante quea Vontade Geral seja eleita, como nada nos garante queo interesse eleito seja, de facto, o interesse comum. Comoj dizia Francis Bacon noutro contexto, embora no tolongnquo do presente quanto poder parecer, ...mesmoque todos os homens ensandecessem continuaria a serperfeitamente possvel o acordo entre eles.17 Portanto, paraevitar os perigos de uma vontade de todos extraviada epara privilegiar as condies de elegibilidade da Vontadegeral, Rousseau expe-nos o seu argumento:

    Se, quando o povo suficientemente informado delibera,os cidados no tm nenhuma comunicao entre si, dogrande nmero de pequenas diferenas resultaria semprea vontade geral, e a deliberao seria sempre boa.18

    __________________17 Novum Organon, afor. 27.18 Si, quand le peuple suffisamment inform dlibre, les citoyens

    navaient aucune communication entre eux, du grand nombre de petitesdiffrences rsulterait toujours la volont gnrale, et la dlibrationserait toujours bonne. (CS, II, 3)

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    Note-se, desde j, que se Rousseau pensa, nestacomentadssima passagem, a Vontade Geral como resul-tado de um grande nmero de pequenas diferenas etambm, noutra passagem do mesmo captulo, comoresultado da soma de diferenas, tal no significa queesteja a contradizer a definio de princpio, ou sequera enunciar uma sua formulao alternativa. Apenas de-termina aquelas que julga serem as condies preferveispara uma eleio da vontade geral, entendida tal qual asua definio de princpio entende. No est em causao que ela seja, nem sequer como ela resulta, mas, muitoincisivamente, como resulta melhor. Novamente, umapequena diferena faz uma grande diferena uma coisa determinar os modos como dos interesses particulares,da dinmica societria que entre estes se surpreende, resultaum interesse comum; outra, bem diferente, um trabalhode engenharia sobre os interesses particulares que osconforme a uma tal disposio que deles resulte comoque por necessidade o interesse comum.

    Ora, esta via propugnada por Rousseau s pode sertomada como inaceitvel, pois com ela o condicionamentodesloca-se para o plano dos interesses particulares sobreos quais, porm, a esfera do poder poltico no deveriapoder exercer qualquer condicionamento. A haver con-dicionamento legtimo teria de se situar numa posio inpactum, nunca numa posio ante pactum. Com efeito,aqueles interesses particulares que se aglutinam em tornode associaes so temporalmente anteriores ao pacto.Supor o contrrio conduzir-nos-ia a uma concepo absurdado estado da natureza, de acordo com a qual nenhum tipode articulao entre interesses particulares seria possvel,desde os mais elementares como a sobrevivncia indivi-dual e da espcie, como todos os que resultam da or-ganizao societria de modos de vida, modos de produ-

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    o, etc. Mas esses mesmos interesses so tambmlogicamente anteriores formao do interesse comum;so a base, tanto quanto os interesses particulares indi-viduais, para a formao do interesse comum. Limit-los limitar irremediavelmente uma justa representao davontade geral. Mais do que isso destituir aquilo a quehoje continuamos a chamar Sociedade Civil. De facto, seRousseau visa garantir a elegibilidade da vontade gerallogo no espao dos interesses particulares, para a imporinibies formais iniciativa, designadamente iniciativade associao, no tolerando que haja outros interessesparticulares que no os desarticulados interesses de cadacidado por si, ento a sociedade civil, e as suaspossibilidades plurais de convivncia, o preo a pagar peloresgate da estabilidade da vontade geral e de perenidadedo contrato social. Ora, a simples pressuposio de quea comunidade, na sua vida econmica, no envolvesseassociaes constitudas em torno de interesses particu-lares , como vimos, totalmente infundada. Naturalmente,Rousseau sabe-o, o que no soube, digamos assim, foiprevenir-se de forar a realidade a estar de acordo comas melhores condies para que o pacto vingasse de formaperene. Em termos talvez excessivamente crus, Rousseau,no adaptando o pacto realidade, acabou condicionandoa realidade ao pacto19. O resultado evidente: Rousseau

    __________________19 Note-se que o prprio Rousseau ressalva, pese embora de

    uma forma inarticulada, um domnio que corresponde SociedadeCivil. que a Vontade Geral est duplamente limitada, interna eexternamente internamente, no sentido em que s pode legislarisonomicamente, i.e, legislando sempre num plano universal; exter-namente, no sentido em que s pode ter por objecto o interesse comum,excluindo-se necessariamente do domnio dos interesses particulares.Tal domnio vale bem como esboo de sociedade civil, mas no maisdo que isso uma sociedade civil que no se pode articular no chegaa ser realmente uma sociedade civil. Este carcter inarticulado do

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    s evita o sacrifcio da Vontade geral a uma vontade detodos totalitria, coarctando ao indivduo, aquele mesmoa quem prometia garantir a sua plena liberdade casopactuasse, todas as liberdades de associao a outro ououtros com vista promoo dos seus interesses, sejamnegcios seja o que for o que os mova. Na representaorousseauniana da civitas no haveria sociedades privadas,nem semi-pblicas; s haveria cidados homogneos e,depois, o Povo soberano, e igualmente homogneo.

    De qualquer modo, se as solues de Rousseau parao problema da precariedade da vontade geral no soaceitveis, tal no significa que o problema no seja elemesmo digno de ateno; menos pertinente, ainda, seriauma interpretao que supusesse que Rousseau visse nessaprecariedade alguma espcie de bem pblico, como sugereHannah Arendt no seu On Revolution - Rousseau insistiaem que seria absurdo para a vontade restringi-la no futuro,antecipando deste modo a forosa instabilidade... dosgovernos revolucionrios.20 Alis, a respeito do criticismode Hannah Arendt, estamos em crer que se trata de umadas mais envesgadas interpretaes do pensamento pol-tico de Rousseau a que se pode ler nas suas seguintespalavras em On Revolution:

    certo que nenhum estadista tem seguido Rousseau atesta concluso lgica No encontramos em parte

    __________________homem em estado de natureza prende-se obviamente com a antro-pologia desenvolvida por Rousseau nos seus dois Discursos de 1750e 1755. A, Rousseau defendia que a corrupo da bondade naturalhumana resultava da sua sociabilizao; dito de outro modo, no estadonatural, com a sua bondade, o homem seria um ser solitrio. Il mereste considrer et rapprocher les diffrens hazards qui ont puperfectionner la raison humaine, en dtriorant lespce, rendre untre mchant en le rendant sociable. (Rousseau, J.-J., 1755: 162)

    20 Arendt, 1963: 93.

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    alguma a hiptese de que o inimigo comum reside nocorao de todos. Contudo, diferente o que se passacom os revolucionrios e a tradio de revoluo. Nofoi apenas na Revoluo Francesa, mas em todas asrevolues, que o seu exemplo inspirou, que o interessecomum apareceu sob a forma do inimigo comum e ateoria do terror, de Robespierre a Lenine e a Estaline,pressupe que o interesse da totalidade deve de modoautomtico, e decerto permanente, ser hostil ao interesseparticular do cidado.21

    A objeco imediata e tripla: nem Rousseaupropugnou alguma vez pelo interesse da totalidade, queo tenha proporcionado sim, mas que o tenha proposto no(se h preocupao, em Do Contrato Social, em discernira Vontade de todos da vontade geral , como vimos,justamente para de algum modo condicionar aquela); nemem momento algum ser possvel encontrar em Rousseaualguma acepo do interesse comum pela qual este fosseo inimigo; nem sequer em circunstncia alguma Rousseaupensou o contrato social como configurando uma hosti-lidade, pelo menos automtica e/ou permanente, do in-teresse da totalidade, sequer do interesse comum, face aosinteresses particulares dos cidados. Tais afirmaesarendtianas, do ponto de vista de Rousseau, ilegitimariamo prprio pacto.

    Que o Terror se tenha inspirado na intransigenteafirmao rousseauniana do carcter popular da soberania,que o Terror se firmasse sobre o medo, a denncia e aameaa da guerra que a frmula do pacto social possi-bilitam, tal no elide o facto de que Rousseau procurou,com maior ou menor eficcia, ilegitim-lo. Se o risco daguerra foi fonte de unidade nacional no Terror, se o mesmo

    __________________21 Arendt, 1963: 96.

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    risco de guerra , como veremos adiante, segundo Arendt,fonte de conservao do n social em Rousseau, h, noentanto, uma diferena maximamente relevante a guerrapara o Terror visava exaltar a vontade de todos; a guerrapara Rousseau visava condicionar a mesma vontade detodos.

    No antes de encerrar este ponto, permitimo-nos aindadiscordar de uma outra interpretao, muito celebrada, deAlexis Philonenko, de acordo com a qual a tal soma deum grande nmero de pequenas diferenas de que resultaa Vontade Geral corresponderia a uma aplicao do clculoinfinitesimal22. certo que Philonenko expe fortes in-dcios de que Rousseau estaria familiarizado com este tipode clculo, mas tal, a confirmar-se, s serviria, a nossover, para vacilar sobre se Rousseau o tivera efectivamenteem conta aquando da exposio do que chammos con-dies preferveis para a eleio da Vontade Geral. queesse clculo faz-se sobre um contnuo, ao passo que aeleio da Vontade Geral se faz necessariamente sobreunidades discretas, a saber, as vontades individuais. Alis,tratando-se de apresentar um modelo de clculo para aeleio da Vontade Geral tal qual Rousseau a pensa, maisfacilmente, e de forma bastante mais adequada, encontr-

    __________________22 La mathmatique sur laquelle va sappuyer Rousseau est

    le calcul infinitsimal. (Philonenko, 1984 : 30)Mais em pormenor, explicita Philonenko : La constituition

    mathmatique de la volont gnrale est plus complexe. Rousseau luiassigne demble la tche dexprimir la totalit du corps politiqueet social et la caractrise comme somme des diffrences. Il prcisera : une somme de petites diffrences . Il propose judicieusement lesprincipes qui prsident cette laboration. Le premier est strictmentmathmatique. Parler des plus et des moins qui sentre-dtruisent est une allusion directe a procd de lerreur compense qui danslopration infinitsimale prend son sens dans la dfinition de dx etdy comme quantit auxiliaire. (Philonenko, 1984: 31)

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    lo-amos no clculo vectorial23. Com efeito, de acordo comeste possvel somar vectores num plano de coordenadas,descrevendo-se cada vector por um dado valor numrico,uma dada direco e um dado sentido. Assumindo queo valor (mdulo) seja o nmero de vontades, a direcoseja o interesse sobre o qual esse nmero de vontadestoma posio, e o sentido, por fim, seja a posio deaprovao ou desaprovao assumida por esse nmero devontades a respeito desse interesse, ento pode-se traduzirperfeitamente um conjunto de afirmaes de Rousseau:

    - Em primeiro lugar, muitos vectores ligeiramentediferentes, exprimindo diferenas de interesses,diferenas de opinio, tero por vector-soma umnico vector que, anulando as diferenas, exprimi-r, no entanto, um s interesse comum a todas asvontades somadas.

    - Em segundo lugar, associaes intermdias condu-zem a somas intermdias de que resultam vectores-

    __________________23 No se pretende com isto defender que Rousseau visasse

    expressamente uma matematizao da formao da vontade geral emtermos de lgebra de vectores. Esta s se desenvolveu, pelo menosde forma sistemtica, a partir do sc. XIX, muito posteriormente, pois,a CS e mesmo morte de Rousseau. Bem diversamente, pretende-se apenas chamar a ateno para o facto de haver aspectos do clculovectorial como a lei do paralelogramo para a adio de vectores que eram bem dominados no tempo de Rousseau. Alis, a lei doparalelogramo encontrava-se, j desde 1687, enunciada nos PrincipiaMathematica de Isaac Newton (Cf. Corolrio I dos PrincipiaMathematica), se no mesmo desde a Antiguidade. Ora, nestes termos razovel presumir que houvesse da parte de Rousseau uma con-siderao intuitiva dos interesses particulares das vontades como sede entidades vectoriais se tratassem, ainda que no conceptualmentetematizadas qua vectores. Julgamos que corrobora esta interpretaoo facto de a Vontade geral, contrariamente vontade de todos, noser uma grandeza escalar. Com efeito, para Rousseau no tanto onmero de vontades o que est em causa na formao da Vontadegeral, mas o interesse comum que as une.

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    soma com grandes valores i.e. que somam jmuitas vontades correndo-se o risco de no selevar a cabo a ltima soma, opondo-se o interesseparticular ligado a uma associao ao de outra,arriscando-se o conflito entre cada um dessesinteresses particulares e o interesse comum, ou seja,arriscando-se o prprio interesse comum e a pos-sibilidade de um conflito aberto entre interesses par-ticulares.

    Actualidade em Rousseau

    Enunciado o nosso criticismo face ao que denomi-nmos por trabalho de engenharia de Rousseau, convmsublinhar que no a ideia de uma engenharia o quenos motiva a objeco, mas, mais exactamente, o factode tal trabalho se fazer sobre aquilo que anterior aopacto quer de um ponto de vista lgico quer de um pontode vista temporal. A ilegitimidade rousseauniana consisteem ter feito o pacto transcender-se pelas condies quepassam por sua base de implementao. Ao contrrio dasconcepes de soberania tradicionais, seja em ordem danatural autoridade dos pais sobre os filhos, seja em ordemde uma autoridade divina, ambas assegurando atranscendncia do soberano face aos sbditos, Rousseauinverte a relao de transcendncia o estado natural,representado como estado inarticulado de interesses par-ticulares, que transcende o estado civil e a relao sbdito/soberano. Da ao totalitarismo , com efeito, apenas umpequeno passo que fica por dar.

    claro, pelo que vimos at agora, que Rousseau,na sua preocupao pela salvaguarda do contrato social,pe-se em posio de contradio com dois pilares dasnossas democracias ocidentais: o sistema representativo,

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    por um lado, e o regime de partidos polticos, por outro.Mas justamente sobre um dos problemas hodiernamentemais acutilantes do ponto de vista poltico que Rousseause mostra actual. Ao fim e ao cabo, o fenmeno de umavontade de todos divorciada da vontade geral correspondebem, j o observmos, a fenmenos, com a suapericulosidade, como o eleitoralismo, o demagogismo, opopulismo. Ou seja: interesses eleitos por vontades queno procedem ao devido escrutnio do que nelas in-teresse particular ou interesse comum, mesmo simplesconsiderao do que seja um interesse comum. Por outrolado, o fenmeno das associaes intermdias correspondebem a problemas, j muito tratados, de possvel dficedemocrtico como o rotativismo poltico, a antagonizaoentre representao poltica e participao poltica, ocorporativismo, em fim, o risco de uma crise das ins-tituies polticas, e da sua real representatividade.

    No significa isto que a democracia directapropugnada por Rousseau seja prefervel democraciarepresentativa alis, nem Rousseau considerou emmomento algum que a Frana, ou outra grande nao,pudesse ser regida por uma democracia directa; estariaa pensar, sobretudo, como afirma explicitamente, emcidades, a sua Genebra por exemplo. Significa antes quea salvaguarda da soberania popular condio da le-gitimidade do pacto. Por outras palavras: um regimepoltico que no seja democrtico no um regime legtimo luz do direito natural.

    Do mesmo modo, a interdio da fragmentao dointeresse comum em grandes interesses particulares emcompetio no prefervel ao regime partidrio. S queno inteiramente lquido que os nossos regimes parti-drios admitam ou devam, pelo menos, admitir o tipo deassociaes a que Rousseau se refere como no sendo

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    admissvel. Os partidos visam o interesse comum, asassociaes a que Rousseau se refere no. Neste sentido,julgamos no errar ao afirmar que mais do que o regimede partidos polticos das nossas democracias, os quais sno seriam admissveis se no visassem o interesse comum,sero regimes como a plutocracia, bem como a ditadurado proletariado, ou seja, regimes que privilegiam interes-ses sectoriais como o de uma classe econmica particular,o alvo mais preciso da rejeio rousseauniana. A esterespeito, o perigoso equvoco de Rousseau ter estado emter tomado todas as associaes, a um tempo, como polticase privadas, quando no teria sido ilegtimo censurar sassociaes polticas o privilgio de interesses particularese menos ainda censurar s associaes particulares algumtipo de privilgio poltico.

    Na verdade, todo o esforo rousseauniano residiuem ilegitimar o que quer que pudesse contrariar o prin-cpio, digamos assim, de uma formao no condicionadada vontade geral. Infortunadamente, Rousseau pretendeuassegurar o respeito por este princpio condicionandoilegitimamente a vida naturalmente plural das vontadesparticulares, numa palavra, condicionando a prpria na-tureza societria do homem.

    Genericamente, o nosso ponto consiste, pois, emdistinguir claramente o problema da elegibilidade daVontade geral, o que requer algum trabalho de condici-onamento formal do prprio pacto, do problema em tornodos condicionamentos concretos que Rousseau prope parabeneficiar a elegibilidade da Vontade Geral. Destes, a crticaest feita h muito; limitmo-nos a condens-la. Mas noresgatar o problema da elegibilidade da vontade geral,fazendo abstraco dos condicionamentos propostos porRousseau, seria, a nosso ver, perder de vista a clarapremonio do genebrino da tenso em que assenta

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    qualquer democracia digna desse nome, a saber, a tensoentre a necessidade, luz do esprito do pacto, de elegera Vontade Geral e o facto dessa eleio s se fazercontingentemente em funo da Vontade realmente eleita.

    Noutros termos, propomos que esta tenso sejapensada como uma triangulao que esquematizamos doseguinte modo:

    Por um lado, a correspondncia entre a soberaniapopular e a Vontade geral s apurada mediante a eleiode uma vontade que, porm, pode no coincidir com avontade geral. Por outro lado, a maior ou menor conver-gncia entre a vontade geral e vontade de todos funode um maior ou menor condicionamento da eleio davontade. No entanto, se este condicionamento promove,por um lado, a elegibilidade da Vontade geral, j por outro,atenua a expresso directa e autntica da soberania po-pular. Esta a tenso, pois, entre dois resultados, umdesejvel outro no, que decorrem de uma mesma neces-sidade de mediao quanto elegibilidade da vontade geral uma maior soberania popular como sufrgio univer-sal, directo e incondicionado portanto acarreta um maiorrisco de no se eleger a Vontade geral; uma maior garantia

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    de se eleger a Vontade Geral, implica um menor alcanceda soberania popular. Ren Schrer resume a tenso nostermos de um jogo do possvel e do impossvel, por umlado o povo como condio da possibilidade de um estadolivre e racional, por outro, a impossibilidade de umaexpresso perfeita da democracia.24

    A cidadania

    Contra a condio precria e reversvel das demo-cracias, risco perptuo de dissoluo do n social e deconflito real entre interesses, prefigurando a possibilidadeda guerra civil, Rousseau apresenta um derradeiro amparo tratar-se- de deslocar o conflito entre interesse par-ticular e interesse comum para o seio da prpriasubjectividade do cidado. O inimigo externo que forta-lece o n social, a guerra que torna o espao adentrofronteiras espao de solidariedade, esse, sugere HannahArendt, transfigura-se, com Rousseau, em inimigo interno.A guerra converte-se numa cena da interioridade de cadacidado. Essa a derradeira forma de mediao parasalvaguardar a convergncia entre Vontade Geral e avontade eleita, ou seja, para salvaguardar a mximaelegibilidade daquela. Dito de uma forma sinttica aguerra interior substitui a guerra externa na prevenoda guerra civil. Nos termos de Hannah Arendt:

    __________________24 Tout en situant dans le peuple la condition mme de possibilit

    dun tat rationnel et libre, il rvle lexistence au cur de la dmocratie,pour peu que lon veuille lexprimer dans son concept et sa perfection,dune impossibilit. Elle est prise dans un jeu du possible et delimpossible que lon peut aussi traduire comme ouvrant et occupantautour delle un espace utopique spcifique propre veiller et laisserse dployer la rflexion. (Cf. Schrer, Ren, 1997)

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    O seu problema foi saber onde des-cobrir um inimigo comum sem ser no terreno dos negciosestrangeiros, e a sua soluo foi a de que tal inimigoexistia no peito de cada cidado, ou seja, na vontadee interesse particulares.25

    Dir ainda:

    Na elaborao de Rousseau, a nao no precisa de esperarpor um inimigo para ameaar as suas fronteiras e se erguercomo um homem s dando origem union sacre;a unidade da nao garantida enquanto cada cidadotransportar dentro de si o inimigo pblico.26

    A precariedade da vontade geral face possibili-dade inultrapassvel de desagregao encontra, pois, umaderradeira forma de resgate transferindo-se para asubjectividade dos cidados. Agora so estes, ou seja,cada cidado na sua vida reflexiva, quem carrega o fardoda condio precria. Sabendo o cidado discernir ointeresse comum, sabendo conserv-lo numa vontadeperene, eis o critrio ltimo para uma salvaguarda daperenidade do prprio n social e da estabilidade davontade geral.

    Este critrio ltimo, derradeiro o prprio homemvestindo a pele de cidado prende-se com uma notvelconcepo do que , ou, mais precisamente, deva ser, oque hoje denominamos exerccio da cidanania.

    Perguntar-se-, porm, se no ser excessiva a con-fiana que Rousseau deposita nos homens enquanto ci-dados, i.e, enquanto sujeitos de vontade e sujeitos de razocapazes de discernir um interesse comum na amlgama

    __________________25 Arendt, 1963: 94.26 Arendt, 1963: 95.

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    dos seus interesses particulares. Naturalmente, poder-se-suspeitar do optimismo antropolgico de Rousseau. Exem-plos ficcionais colocam o problema o romance The Lordof Flies de William Golding coloca-o no plano da con-siderao do homem no estado de natureza, e o ainda recenteDogville, filme de Lars von Trier, coloca-o mesmo no quadrode um estado civil. Mas possvel matizar o problema,distinguindo o optimismo antropolgico de uma ingnuaconcepo benigna do homem. Mesmo no subscrevendoessa benignidade, dificilmente se poderia conciliar a ideiade uma soberania popular que eleja a Vontade geral e perfilheo interesse comum eixo crucial da ideia de democracia sem crer que o ltimo critrio, o homem cidado, nolimite, tomar a deciso certa. E o facto que j levamosuma longa histria de democracias modernas a queRousseau no assistiu que, sem terem elidido a suacondio precria, ainda assim, tm sabido escolher, comos devidos percalos, o interesse comum.

    Como que Rousseau justifica o seu optimismo? Aresposta reside no facto de a celebrao do pacto social,desse contrato de associao entre homens, envolver umatransformao radical, de natureza moral, em cada asso-ciado adoptando a identidade de cidado, o indivduoengrandece-se e enobrece-se a si mesmo, ou, como se podeler em Do Contrato Social:

    Esta passagem do estado de natureza ao estado civilproduz no homem uma transformao notvel, substi-tuindo na sua conduta a justia ao instinto, e dando ssuas aces a moralidade que dantes lhes faltava.27

    __________________27 Ce passage de ltat de nature ltat civil produit dans

    lhomme un changement trs remarquable, en substituant dans saconduite la justice linstinct, et donnant ses actions la moralitqui leur manquait auparavant. (CS, I, 8)

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    Esta transformao moral justamente um dos ele-mentos da caracterizao da cidadania. Como se ex-plica essa transformao? Por o cidado que exerce asua cidadania ter em mente o interesse comum, por sedistinguir do no cidado justamente realizando umapessoa abstracta de que participa. Naturalmente, trata-se de realizar uma fico. Mas essa fico, uma vezposta, uma realidade cuja seriedade s depende decada cidado que a ficciona, mas tambm nela cr. Domesmo modo que um sonho pode importar mais na vidade um homem que muita da realidade em que estimerso, a Vontade geral pode importar na formao davontade particular de cada um. Disso s depende adeciso de cada homem em ser, ou no, cidado ou,ao menos, crer s-lo.

    Mas ser que, para isto, realmente preciso im-portar a figura de um cidado em permanente estadode guerra consigo mesmo, como sugere Hannah Arendt?Ser, como nos diz a autora de On Revolution, que paratomar parte no corpo poltico da nao, cada cidadodeve erguer-se e manter-se em rebelio constante contrasi prprio28? Julgamos que no. certo que o cidadodeve estar pronto para se opor a si mesmo, mas s porum excesso, demasiado frequente nos comentriosarendtianos a Rousseau, seria possvel supor que essaoposio fosse permanente. J o dissemos, tal invali-daria prontamente o prprio pacto social quer na sualetra quer no seu esprito. O exerccio de cidadania queRousseau consagra o de um cidado que sustenta, noseu peito, uma boa convico crena justificada acercado bem de um artifcio ficcionado. Nisto, h como que

    __________________28 Arendt, 1963: 96.

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    uma fenomenologia em esboo.29 Que tal convico sejasusceptvel de crtica, essa a faceta de oposio paraa qual a cidadania deve estar disponvel; mas que talconvico no esteja permanentemente em questo, essa no s a condio para que se possa dizer que hrealmente uma convico, mas para que se possa dizerque h, de facto, comunidade civil. No estivssemosconvencidos, na ntima subjectividade de cada um, de quea temos e no a teramos.

    Se o fundamento do pacto social e da convivnciademocrtica reside nos homens que o celebram, no entanto,para que o mantenham, apesar da sua precariedade, ocritrio ltimo, necessrio mas no suficiente, que cadahomem saiba suster, no seu peito, a convico de que cidado.

    __________________29 Em La Conviction, Fernando Gil no s estabelece um vnculo

    entre vontade e soberania, no que designa por pensamento sobe-rano, como o encontra explicitamente instanciado na Vontade geralde Rousseau. E nesta instncia, como em outras de pensamentosoberano, requisito crucial, aponta Gil, o trabalho da crena Lepeuple naissant, la formule appartient Rousseau, ne saurait obiraux lois en vertu des avantages apports par le contrat social. Pourcela, il faudrait que leffet pt devenir la cause, que lesprit socialqui doit tre louvrage de linstituition prsidt linstituition mme.Aussi est-il besoin de croire une Rpublique encore irrele, il encombeau Lgislateur de transformer en croyance permanente la disposition reconnatre lutilit du pacte. Pour ce faire, le peuple doit croire ses talents de persuasion. Il faut aussi quil se sente en tat dechanger, pour ainsi dire, la nature humaine. (Gil, 2001: 171-2)

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    II. Isaiah Berlin,Liberdade e Democratismo*

    __________________* Este estudo resultado de comunicao apresentada s Jornadas

    Conceitos de Liberdade, organizadas por mim e por Maria Lusa Branco naUniversidade da Beira Interior em 2005.

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    Introduo

    A desconfiana face aos grandes projectos deracionalidade e, sobretudo, perante o modo como estespodem justificar, mesmo a pretexto de um desgniogeneroso, uma inaceitvel supresso da liberdade indivi-dual esse o aspecto fundamental do pensamento deIsaiah Berlin. Interpretada no contexto epocal em que surge,a reflexo berliniana no pode deixar de ser entendidacomo uma forma de interveno pblica contra a violnciaindesmentvel, embora sob a capa de uma retricademocratista e da liberdade, dos regimes colectivistas nosanos 50. Note-se que a sua clebre conferncia Doisconceitos de liberdade remonta a 1958, pleno perodode guerra fria. Pese embora este contexto, nem por issoseria justo rotular a reflexo berliniana como datada ou,de algum modo, inexpressiva para o nosso tempo.

    O esforo de Berlin reveste, no campo da Histriadas Ideias, a forma de uma severa crtica ao racionalismodos tempos modernos, particularmente no que respeita aco humana. Est nisto em causa tornar claro que nemsempre desejvel, sequer razovel, pelo menos no querespeita natureza humana, opor o verdadeiro ao falsoe decidir entre um e outro, sob pena de cairmos numateia repressiva suportada por uma injustificvel verdade

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    do humano. Tal qual o verdadeiro e o falso, tambm aideia de um determinismo nos assuntos humanos, e noseu palco mais amplo que a Histria, no s no encontraoutro fundamento alm de uma demasiado problemticaanalogia com o conhecimento das cincias naturais, como,alm disso, vem sobretudo suportar a mesma tendnciapara impor o monismo aco humana, o mesmo dizer,condicionar o pluralismo dos modos humanos de ser ea abertura do seu futuro. A este propsito, no ensaio Ainevitabilidade histrica (de 1954), Berlin afirma Nopretendo afirmar que o determinismo necessariamentefalso, mas to-s que no falamos nem pensamos comose pudesse ser verdadeiro.1 , pois, logo a maneira comofalamos e como pensamos, pouco importando se sobreum fundamento ilusrio, que estabelece a diferena deprincpio entre uma histria humana e a histria natural,entre pluralismo e monismo, entre liberdade e represso.

    Isto vale para a Histria, cuja abordagem terica,segundo Berlin, no pode ser encarada como trazendo emsi uma orientao incontornvel quando, do ponto de vistaprtico, no a encaramos dessa forma. Mas vale igual-mente para a crena humana na liberdade se a crenana liberdade (...) se trata de uma iluso necessria, toprofunda e arreigada que no sentida como tal.2 E valeainda para os objectivos humanos e para os valores quelhes subjazem.

    importante notar que a recusa de uma verdadehumana, de uma natureza humana que se pudesse dizerverdadeira, se faz, em Berlin, pela assuno de uma crenahumana que bem pode ser falsa. Berlin no descarta essapossibilidade; antes sobrepe a efectividade da crena ao

    __________________1 Berlin, 1954: 197.2 Berlin, 1954: 197-8.

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    seu valor de verdade. No que toca ao que o agir humano,seus valores e objectivos, importar mais a realidade dasnossas crenas, e a sua eventual necessidade, como se deuma iluso transcendental se tratasse, do que a questoda sua verdade. Noutros termos, como quando se afirmaque conseguimos ser cpticos relativamente a tais crenas,sem conseguirmos, porm, agir de acordo com essecepticismo. Por exemplo, posso pensar, com convico,que a liberdade ilusria, mas no razovel supor quepudesse agir em conformidade com essa convico.

    precisamente esta anulao da importncia daquesto da verdade ou falsidade das nossas crenas sobreo humano que desvia Berlin de uma posio que fossereconhecvel como cepticismo. Ao cptico importar aquesto da verdade das nossas crenas, designadamenteda possibilidade, ou no, de a determinar; a Berlin justamente este tipo de questes o que menos importar.Sobre a admisso da realidade de uma pluralidade decrenas, no importa distinguir, entre elas, as falsas e asverdadeiras. Basta a sua realidade como princpiolegitimador. Da a afirmao de um pluralismo que,demitida a questo da verdade, suscita o problema daconvivncia entre crenas, valores e objectivos plurais. Noservindo a verdade como critrio de discriminao, como,pois, assegurar tal convivncia? Esta a pergunta a queo pluralismo, uma vez estabelecida a sua bondade, deveprocurar dar resposta.

    Que este pluralismo no cepticismo, expe-no umadas citaes mais celebrizadas por Berlin:

    Compreender a validade relativa das nossas convicesdizia uma admirvel autor do nosso tempo [JosephSchumpeter, 1943. Capitalism, Socialism andDemocracy], e mesmo assim lutarmos por elas inaba-lavelmente o que distingue o homem civilizado do

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    brbaro. Pedir mais do que isto talvez uma profundae incurvel necessidade metafsica; mas permitir quedetermine a nossa actuao um sintoma de imaturidademoral e poltica igualmente profunda e mais perigosa.3

    No que respeita ao seu pensamento poltico, conhecido o posicionamento de Berlin relativamente acertos usos polticos do conceito de liberdade, muito emespecial usos por parte do democratismo entendido comocorrente que se filia no pensamento de Rousseau e emprogressivo contraste com os pensadores liberais, sobre-tudo os do Sc. XIX, como Constant, Tocqueville e Mill.

    Feita esta apresentao sumria, sero trs os objec-tivos a que nos propomos neste estudo:

    1. Reconhecer o alcance da crtica de Berlin a umaconcepo da liberdade como libertao por umaracionalidade coerciva.

    2. Limitar o alcance da crtica de Berlin aodemocratismo, em particular ao de Rousseau,quanto a um suposto menosprezo pelo problemado controlo do exerccio da soberania.

    3. Experimentar a pertinncia da anlise berlinianano nosso contexto epocal.

    A reflexo berliniana sobre o conceito positivo deliberdade

    Para Berlin, h duas tradies constitudas em tornoda interpretao do sentido da palavra liberdade.Reassumindo uma distino do liberalismo clssico,designadamente o de John Stuart Mill, so dois os con-ceitos de liberdade que Berlin expe:

    __________________3 Berlin, 1958: 295.

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    - Por liberdade positiva entende o ser livre paraagir, liberdade de cada um decidir do seu futuro,liberdade para agir com autonomia, isto , dando-se a si mesmo a sua prpria lei.

    - Por liberdade negativa entende o ser livre de seconformar ao que a esfera pblica visa impor,ressalvando um espao no pblico, insusceptvelde interferncia dos poderes pblicos.

    Ambas estas formas de encarar a liberdade, sepensadas em termos estritamente conceptuais, no pres-supem, entre elas, nenhuma contrariedade. Com efeito,a liberdade negativa poderia ser pensada como um limite liberdade positiva, de certo modo regulando o alcancedesta, mas de forma alguma suprimindo-a. J a liberdadepositiva poderia ser pensada como princpio de aco, porassim dizer, que visasse o incremento quer de maioresespaos de liberdade negativa quer, pura e simplesmente,da sua salvaguarda.

    Porm, de um ponto de vista histrico portanto,no conceptual sabido que ambos os conceitos deliberdade tenderam a divergir, disso resultando conflitosideolgicos evidentes no Sc. XX, dos quais Berlin foi,seguramente, testemunha privilegiada.

    Relativamente liberdade negativa, Berlin comea pordiscutir um argumento de John Stuart Mill a favor de umaliberdade que fosse exclusivamente negativa. Tal argumen-to de Stuart Mill toma por premissa a seguinte ideia Spoder haver progresso civilizacional numa sociedade soba condio de, nessa sociedade, os indivduos poderem disporde si mesmos no que, na sua conduta, apenas a eles disserrespeito. Por essa razo, diz-nos Berlin, haveria que con-cluir que a defesa da liberdade consiste na meta negativade evitar a interferncia..4

    __________________4 Berlin, 1958: 252.

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    Berlin, porm, no aceita a premissa do argumentode Stuart Mill, contestando-a com o facto histrico,evidencivel, de que regimes com escassa liberdade ne-gativa sustiveram, ainda assim, as caractersticas que Millassociou ideia de progresso civilizacional. Assim, noseria, a seu ver, crvel que a liberdade, designadamentea negativa, fosse realmente uma condio necessria parao desenvolvimento do gnio humano.5

    Pese embora esta crtica, quanto ao objectivo pro-priamente dito de Stuart Mill, Berlin manifesta uma claraconcordncia o risco de uma tirania das maiorias6 ,essencialmente, o mesmo risco do de qualquer outra tirania,a saber, o risco da supresso da liberdade negativa. ParaBerlin, tratar-se-, ento, em Dois conceitos de liber-dade de expor razes, necessariamente outras, para obteruma reformulao da posio de Stuart Mill. E f-lo ar-gumentando a favor da ideia de que a democracia irrelevante para a liberdade negativa.

    Com este propsito, Berlin comea por dissociar anoo de liberdade negativa do problema da fonte do

    __________________5 Berlin, 1958: 253.6 O conceito de tirania das maiorias proposto por Stuart Mill

    no seu On Liberty, cap. 1 The will of the people, moreover,practically means, the will of the most numerous or the most activepart of the people; the majority, or those who succeed in makingthemselves accepted as the majority; the people, consequently, maydesire to oppress a part of their number; and precautions are as muchneeded against this, as against any other abuse of power. The limitation,therefore, of the power of government over individuals, loses noneof its importance when the holders of power are regularly accountableto the community, that is, to the strongest party therein. This viewof things, recommending itself equally to the intelligence of thinkersand to the inclination of those important classes in European societyto whose real or supposed interests democracy is adverse, has hadno difficulty in establishing itself; and in political speculations thetyranny of the majority is now generally included among the evilsagainst which society requires to be on its guard.

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    poder. Naquela, o que est em causa, para Berlin, simplesmente o controlo do poder, ou seja, do seu exer-ccio, independentemente de qual seja a sua fonte, sejaesta democrtica, monrquica ou de qualquer outra na-tureza.

    De acordo com Berlin, tanto pode haver democraciascom muito pouca liberdade negativa, como regimesdespticos que concedem maiores liberdades individuais.

    Por esta razo, resulta inequvoco aos olhos de Berlinque, apesar de no o parecer, no existe nenhuma conexonecessria entre liberdade individual e regime democr-tico.7 Desta forma, Berlin no s assume que as ideiasde liberdade individual e soberania so manifestamentedistintas como assume ainda poderem competir uma coma outra. Assim, tratando-se de questionar o modo comosalvaguardar e consagrar a liberdade dos cidados, oproblema no estar em determinar quem exerce a sobe-rania, mas em determinar o alcance da soberania, e istoindependentemente de quem a exera.

    Para defender estas teses, Berlin apoia-se explicita-mente em Benjamin Constant, autor do influente contrasteentre liberdade dos Antigos e liberdade dos Moder-nos.8 Segundo este autor, a questo est em recusar aideia de soberania enquanto pensada como uma sobera-

    __________________7 Berlin, 1958 : 254.8 Berlin, 1958 : 254. Benjamin Constant ope liberdade dos

    Antigos, assente na ideia de participao no poder colectivo, aliberdade dos Modernos, pensada como liberdade individual. Ereconhecendo a primeira no pensamento de Rousseau e, em particular,na sua doutrina da Vontade Geral, demarca a segunda, a dos Mo-dernos, nos seguintes termos: Nous ne pouvons plus jouir de la libertdes anciens, qui se composait de la participation active et constanteau pouvoir collectif. Notre libert nous, doit se composer de lajouissance paisible de lindpendance prive. (Cf.. De la libert desanciens compare celle des modernes, 1819)

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    nia ilimitada. Nas suas palavras: No contra o braoque nos devemos rebelar, mas contra a arma. H pesosdemasiado pesados para a mo do homem.9

    Neste sentido, nota Berlin, Constant s poderiacontrapor-se a Rousseau e sua teoria da Vontade Geral,como detentora absoluta da soberania:

    Constant via em Rousseau o inimigo mais perigoso daliberdade individual, na medida em que declarara queAo entregar-me a todos, no me entrego a ningum.Constant no podia entender por que razo, mesmo queo soberano seja toda a gente, no vai oprimir um dosmembros do seu eu indivisvel, se assim decidir.10

    Se Berlin recusa, na esteira dos pensadores liberaisdo Sc. XIX, que haja uma conexo necessria entreliberdade negativa e regime democrtico, , porm, his-toricamente manifesta, para Berlin, uma relao entre odemocratismo e um outro conceito de liberdade opositivo. Resumindo-se o conceito negativo satisfaodo desejo de no-interferncia, j o positivo prender-se- com o desejo de auto-governo ou, ao menos, de par-ticipao na governao.

    Assim, claro que este segundo conceito remete paraa questo Quem me governa?, privilegiando, pois, oproblema da fonte do poder justamente o problema crucialpara o democratismo em detrimento do do seu controlo.E esta afinidade explica a aproximao entre liberdadepositiva e democratismo, muito em particular orousseauniano. Nos termos de Constant, bem como deBerlin, seria inaceitvel a posio de Rousseau de umaliberdade entendida como obedincia ao interesse comum.

    __________________9 Cf. Constant, Principes de Politique (1815).10 Berlin, 1958: 287.

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    Berlin fala mesmo em desaforo a respeito disso que seria,paradoxalmente, obrigar uma pessoa a ser livre. No limite,a liberdade de que fala Rousseau e a liberdade deque falam os liberais entram em conflito.

    Historicamente, mais em particular na prpria His-tria das Ideias, Berlin expe usos subjugadores do conceitopositivo de liberdade que vo muito alm de Jean-JacquesRousseau. Entre esses usos, pormenorizadamente descri-tos por Berlin, destaca-se aquele pelo qual a liberdadevem associada a um projecto de libertao pela razo. Trata-se de uma ideia reitora do racionalismo esclarecido, queBerlin faz remontar pelo menos a Espinosa e que resumeda seguinte forma:

    Aquilo que sabes, cuja necessidade compreendes anecessidade racional no podes querer que seja dife-rente, enquanto permaneceres racional.11

    Mais em concreto, Berlin dirige a sua ateno crticapara a doutrina de que o nico mtodo verdadeiro paraalcanar a liberdade , segundo nos dizem, o uso da razocrtica, da compreenso do que necessrio e do que contingente.12 Esta compreenso do que necessrio econtingente no que respeita s relaes polticas supeo reconhecimento de que haja, em poltica, verdadescomo na qumica ou na fsica. Se houver qualquer coisacomo verdades polticas, se tais verdades puderem serescrutinadas mediante um mtodo cientfico, ento, nohaver razes para que no se considere como necessriaa sua aceitao, mesmo legtima a sua aceitao por meioscoercivos. A propsito disto, Berlin refere vrios

    __________________11 Berlin, 1958: 266.12 Berlin, 1958: 265.

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    posicionamentos, dos quais destacamos dois particularmen-te evidentes. A posio de Fichte de que Ningumtem...direitos contra a razo13. E tambm a de AugusteComte, autor que perguntava por que razo, se o livrepensamento no permitido na qumica nem na biologia,o havemos de autorizar na moral e na poltica.14

    O tipo de atitude que Berlin discerne aqui deixa-se,em suma, caricaturar da seguinte forma:

    S a verdade libertadora e a nica maneira de euaprender a verdade fazendo cegamente hoje o que tu,que a conheces, me ordenas ou me coages a fazer, coma firme convico de que s assim alcanarei a tua visoclara e serei livre como tu.15

    A afirmao de verdades polticas, bem como aexpectativa de que haja uma identificao da razo coma liberdade tendo sido essas ideias associadas histori-camente ao conceito positivo de liberdade , conduzirama um uso poltico da liberdade tirnico e monista. Ouseja, sob a capa de uma libertao pela razo, o conceitode liberdade positiva autoriza, de facto e de jure, a repressosob a justificao de que a verdade liberta.

    Concluindo esta seco, recapitulemos o argumentocentral de Berlin a favor da liberdade negativa e dopluralismo, contra a ideia de uma libertao pela razo:

    1. No existe uma conexo necessria entre liberda-de negativa e regime democrtico (aquela prende-se com a questo do exerccio do poder, este no).

    2. Mas existe uma forte conexo entre democratismoe liberdade positiva (em virtude de partilharem omesmo problema, saber quem governa).

    __________________13 Citado por Berlin, 1958: 275.14 Berlin, 1958: 275.15 Berlin, 1958: 275.

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    3. Liberdade positiva e democratismo tenderam,historicamente, a assumir a forma de uma posioracionalista a de que a verdade liberta, mesmoaqueles que no a desejam por a ignorarem.

    4. Esta doutrina da libertao pela razo, com o seucarcter monista verdade h s uma e a suafora coerciva, contradiz o desgnio da liberdadenegativa.

    5. Logo, a salvaguarda das liberdades individuais face tirania da maioria requer um pluralismo incom-patvel com a doutrina da libertao pela razo.

    No que respeita ao democratismo promovido, se nomesmo inaugurado, por Rousseau, Berlin argumenta atra-vs dos seguintes passos:

    1. O democratismo rousseauniano sustenta umasoberania popular absoluta, ou seja, ilimitada.

    2. A salvaguarda da liberdade negativa implica alimitao da soberania.

    3. Assim, o facto de a soberania ser absoluta conflituacom a salvaguarda da liberdade negativa..

    4. Alm disso, a salvaguarda da liberdade negativa indiferente ao facto de a soberania ser, ou no,popular.

    5. Logo, o democratismo de Rousseau no s nogarante como ainda prejudica as condies parauma salvaguarda da liberdade negativa.

    6. Nestes termos, Rousseau substancia um pensamentopoltico coercivo no que respeita s liberdadesindividuais e, consequentemente, anti-liberal.

    Discusso da posio berliniana

    Para proceder discusso dos dois argumentos deBerlin, essencial comear por clarificar a diferena entre

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    o que so para o autor os enfoques democratista e liberal.Nesse sentido, assumiremos, na esteira de Berlin, o seguinteprincpio de distino: O democrata rejeita que o sobe-rano no seja o povo; o liberal rejeita que o soberanoseja absoluto.

    sobre esta assuno, j o expusemos atrs, que seapoia a te