of 44 /44
1 Anarquia e Movimento Anarquista Luigi Biondi - Doutorando em História na Unicamp [email protected] Quem quer que seja que ponha as mãos sobre mim, para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo Pierre-Joseph Proudhon Anarquismo (do grego antigo an-arke = contrário à autoridade) é o nome que se dá a uma teoria que prega uma sociedade sem governo, na qual se vive em harmonia, não por submissão à lei, nem por obediência à autoridade, mas por acordos livres estabelecidos entre os diferentes grupos de homens e mulheres, livremente constituídos por território ou profissão, para a produção, o consumo e para a satisfação da infinita variedade de necessidades e aspirações de um ser civilizado. Em uma sociedade anárquica as associações voluntárias que estarão presentes em todos os campos da atividade humana, adquirirão uma extensão maior, que substituirá o Estado em todas as suas funções. Elas constituirão uma rede composta por uma infinita variedade de grupos e de federações de todos os tipos e graus: locais, regionais, nacionais e internacionais, para todos os objetivos possíveis: produção, consumo e intercâmbio, comunicações, serviços sanitários, educação, proteção mútua, defesa do território, etc. mas também para satisfazer necessidades científicas, artísticas, literárias e de relações sociais. Numa sociedade como esta, organizada de forma anarquista, o homem não será limitado na sua capacidade de trabalho produtivo por um monopólio capitalista apoiado pelo Estado, nem se limitará por medo do castigo (a repressão policial), ou por obediência a entidade metafísica (a religião). O homem agirá seguindo a sua própria razão, podendo alcançar o desenvolvimento pleno de todas a suas potencialidades, intelectuais, artísticas e morais, sem ser obrigado a trabalhar para os monopolistas. Poderia assim alcançar a plena individualização que não é possível sob o sistema de individualismo capitalista atual, nem sob o sistema de socialismo de Estado coletivista. Os autores anarquistas consideram, além disso, que a sua concepção não é uma utopia, mas que é realizável: (...) o progresso da técnica moderna, que simplifica maravilhosamente a produção de todos os elementos ANARQUISMO E PEDAGOGIA LIBERTÁRIA Anarquia e Movimento Anarquista .................................. 01 O anarquismo hoje ...................................................... 06 Educação, ideologia e a construção do sujeito ................. 16 A Contribuição do Pensamento Pedagógico Libertário para a História da Educação Brasileira ........................... 21 Maurício Tragtenberg e a Pedagogia Libertária ................ 28 A delinqüência acadêmica ............................................ 34 Teses sobre Educação Liertária ..................................... 36 Pedagogia Libertária e Pedagogia Crítica ........................ 37 Seleção de textos feita por Prof. Donizete Soares

Anarquismo e pedagogia_libertaria

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Text of Anarquismo e pedagogia_libertaria

  • 1. 1 Anarquia e Movimento Anarquista Luigi Biondi - Doutorando em Histria na Unicamp [email protected] Quem quer que seja que ponha as mos sobre mim, para me governar, um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo Pierre-Joseph Proudhon Anarquismo (do grego antigo an-arke = contrrio autoridade) o nome que se d a uma teoria que prega uma sociedade sem governo, na qual se vive em harmonia, no por submisso lei, nem por obedincia autoridade, mas por acordos livres estabelecidos entre os diferentes grupos de homens e mulheres, livremente constitudos por territrio ou profisso, para a produo, o consumo e para a satisfao da infinita variedade de necessidades e aspiraes de um ser civilizado. Em uma sociedade anrquica as associaes voluntrias que estaro presentes em todos os campos da atividade humana, adquiriro uma extenso maior, que substituir o Estado em todas as suas funes. Elas constituiro uma rede composta por uma infinita variedade de grupos e de federaes de todos os tipos e graus: locais, regionais, nacionais e internacionais, para todos os objetivos possveis: produo, consumo e intercmbio, comunicaes, servios sanitrios, educao, proteo mtua, defesa do territrio, etc. mas tambm para satisfazer necessidades cientficas, artsticas, literrias e de relaes sociais. Numa sociedade como esta, organizada de forma anarquista, o homem no ser limitado na sua capacidade de trabalho produtivo por um monoplio capitalista apoiado pelo Estado, nem se limitar por medo do castigo (a represso policial), ou por obedincia a entidade metafsica (a religio). O homem agir seguindo a sua prpria razo, podendo alcanar o desenvolvimento pleno de todas a suas potencialidades, intelectuais, artsticas e morais, sem ser obrigado a trabalhar para os monopolistas. Poderia assim alcanar a plena individualizao que no possvel sob o sistema de individualismo capitalista atual, nem sob o sistema de socialismo de Estado coletivista. Os autores anarquistas consideram, alm disso, que a sua concepo no uma utopia, mas que realizvel: (...) o progresso da tcnica moderna, que simplifica maravilhosamente a produo de todos os elementos ANARQUISMO E PEDAGOGIA LIBERTRIA Anarquia e Movimento Anarquista .................................. 01 O anarquismo hoje ...................................................... 06 Educao, ideologia e a construo do sujeito ................. 16 A Contribuio do Pensamento Pedaggico Libertrio para a Histria da Educao Brasileira ........................... 21 Maurcio Tragtenberg e a Pedagogia Libertria ................ 28 A delinqncia acadmica ............................................ 34 Teses sobre Educao Liertria ..................................... 36 Pedagogia Libertria e Pedagogia Crtica ........................ 37 Seleo de textos feita por Prof. Donizete Soares

2. 2 necessrios para a vida, o crescente esprito de independncia e a rpida expanso da iniciativa livre e do livre pensamento em todos os campos de atividade (incluindo as que antigamente se acreditavam atributo exclusivo do Estado e da Igreja) reforaram a tendncia da sociedade humana ao no-governo. No que se refere s suas concepes econmicas, os anarquistas acreditam que o sistema de propriedade privada da terra e a produo capitalista que tem como objetivo o lucro, representam um monoplio que vai ao mesmo tempo contra os princpios de justia e contra os de utilidade. Os anarquistas consideram o sistema salarial e a produo capitalista um obstculo para o progresso. Porm, assinalam tambm que o Estado sempre foi, e continua sendo, o principal instrumento para que poucos proprietrios monopolizem a terra e para que os capitalistas se apropriem de um volume totalmente desproporcionado do excedente acumulado da produo. Os anarquistas, portanto, enquanto combatem o atual monoplio da terra e o capitalismo, combatem com a mesma energia o Estado, que o apoio principal do sistema. No combatem esta ou aquela forma de Estado, mas o Estado em si, tanto o monarquista quanto o republicano. Tendo sido sempre a organizao do Estado (na histria antiga como na moderna), o instrumento para assentar os monoplios das minorias dominantes, no pode ser utilizada para a destruio destes monoplios. Os anarquistas consideram, portanto, que entregar ao Estado todas as fontes principais da vida econmica (a terra, as minas, as ferrovias, os bancos, os seguros, etc.) assim como o controle de todos os ramos da indstria, alm de todas as funes que acumula j em suas mos (educao, religies apoiadas pelo Estado, defesa do territrio, etc.), significaria criar um novo instrumento de domnio. O capitalismo de Estado de tipo socialista s aumentaria os poderes da burocracia e do capitalismo. Ao contrrio, o verdadeiro progresso est na descentralizao, tanto territorial como funcional, no desenvolvimento do esprito local e da iniciativa pessoal e na federao livre do simples ao complexo, ao invs da hierarquia atual que vai do centro periferia. Os anarquistas, reconhecem que, como toda evoluo natural, a lenta evoluo da sociedade seguida s vezes pela evoluo acelerada chamada revoluo, e acreditam que a era das revolues ainda no se concluiu. Nos perodos de lenta evoluo, todavia, dever-se-ia reduzir os poderes do Estado formando organizaes em todos os vilarejos e cidades ou comunidades de grupos locais de produtores e consumidores, assim como federaes regionais ou internacionais destes grupos. Os anarquistas se opem, segundo os princpios expostos, a participar da organizao estatal atual e a apoi-la e infundir-lhe sangue novo. No pretendem constituir, e convidam os trabalhadores a no faz-lo, partidos polticos que concorram a eleies para parlamentos. Portanto, desde a fundao da Associao Internacional dos Trabalhadores (1864-1866), os anarquistas procuraram propagar suas idias diretamente nas organizaes operrias, e induzi-las a uma luta direta contra o capital, sem depositar f alguma na legislao parlamentar. Com estas palavras o revolucionrio russo Piotr Kropotkin (1842 1921), explicava em 1905 na Enciclopdia Britnica a teoria anrquica, os objetivos e a atuao do movimento anarquista, do qual ele era um dos maiores expoentes e tericos (a sua obra mais importante foi A Conquista do Po, considerada a obra anarquista mais lida entre os militantes). No mesmo perodo, em 1907, outro pensador e poltico anarquista, o italiano Errico Malatesta (1853-1932) explicava de forma semelhante, no folheto Anarchia, o que os anarquistas queriam, defendendo desta forma a idia anrquica, e criticando os que a consideravam somente um sinnimo de desordem: Anarquia uma palavra grega que significa literalmente "em governo", isto , o estado de um povo sem uma autoridade constituda. Antes que tal organizao comeasse a ser cogitada e desejada por toda uma classe de pensadores, ou se tornasse meta de um movimento, a palavra "anarquia" foi usada universalmente para designar desordem e confuso. (...) Tal interpretao se deve ao preconceito de que o governo uma necessidade na organizao da vida social. (...) Portanto, para nascer e viver na escravido, por ser descendente de escravos, quando comeou a pensar, o homem acreditava que a escravido era uma condio essencial vida. A liberdade parecia impossvel. Assim tambm o trabalhador foi forado, por sculos, a depender da boa vontade do patro para trabalhar, isto para obter po. Acostumou-se a ter sua prpria vida disposio daqueles que possussem a terra e o capital. (...) Se acrescentamos ao efeito natural do hbito a educao dada pelo seu patro, pelo padre, pelo professor, que ensinam que o patro e o governo so necessrios; se acrescentamos o juiz e o policial para pressionar aqueles que pensam de outra forma e tentam difundir suas opinies, entenderemos como o preconceito da utilidade e da necessidade do patro e do governo so estabelecidos. (...) Quando esta opinio mudar, e o pblico estiver convencido de que o governo desnecessrio e extremamente prejudicial, a palavra anarquia, justamente por significar sem governo, ser o mesmo que dizer "ordem natural, harmonia de necessidades e interesses de todos, liberdade total com solidariedade total". Os dois trechos evidenciam quais foram (e ainda hoje so) os fundamentos da teoria e do movimento anarquista: a) Comunismo: isto , gesto coletiva de todos os bens e abolio de todo tipo de propriedade (da terra, como capitalista industrial). Comunismo anarquista um sistema de socialismo sem governo; b) Antiestatalismo: abolio de todo tipo de Estado (incluindo o de tipo socialista), considerado como a coluna da explorao capitalista e de todas as desigualdades; c) Anti-clericalismo e atesmo: a Igreja, como o Estado, no somente o fruto das relaes de explorao capitalista, mas uma instituio que sustenta, apia e cria estas relaes; d) Revoluo: chegar-se- a sociedade comunista anrquica atravs das revolues; e) Ao Direta: a preparao da revoluo final que abolir o Estado e a propriedade atravs de insurreies, motins e greves gerais contra a explorao capitalista, contra o Estado e suas autoridades, e contra o poder da Igreja; f) Anti-parlamentarismo: pregando a revoluo e a ao direta, e sendo contrrios a todo tipo de hierarquia e ao Estado, os anarquistas so tambm contrrios formao de partidos que participem de eleies. Nunca poder existir um partido anarquista; g) Federao: a nova sociedade anrquica ser auto- organizada por grupos confederados entre eles, sem nenhuma hierarquia, no nvel local, regional, do local de trabalho e at formar uma grande federao internacional de todos os povos. O movimento anarquista em luta para chegar a uma sociedade anarquista tambm se auto-organizar em grupos de 3. 3 afinidade confederados, por serem contrrios luta partidria eleitoral; h) Liberdade Individual: o homem tem que ser livre e, portanto, prega-se a abolio de todo tipo de hierarquia na sociedade e a observao de um comportamento pelo qual os nicos limites da ao de cada um so a considerao em relao ao respeito da individualidade dos outros: a solidariedade entre indivduos iguais. Alm disso o indivduo deve se libertar de suas idias antigas e repressivas sobre as relaes de amor e as supersties religiosas. Conseqentemente os anarquistas so favorveis ao amor livre e a unies sentimentais baseadas somente no amor e no respeito mtuo e no no casamento. Embora nascidos paralelamente ao movimento marxista e socialista, e muitas vezes colaborando com este (com o qual os anarquistas tinham algo em comum, como o objetivo de chegar a uma sociedade comunista), os anarquistas tem algumas grandes diferenas em relao aos socialistas e comunistas, que nasceram das idias de Marx (1818-1883). Em primeiro lugar, o anarquismo no tem um nico grande terico (como foi Marx para o movimento socialista e comunista); em segundo lugar, os anarquistas no acreditam que sociedade futura comunista tenha que se chegar atravs de um perodo intermedirio chamado de ditadura do proletariado; em terceiro lugar eles destacam o papel do Estado na explorao capitalista, isto , acreditam que o estado burgus no uma expresso da economia burguesa e portanto do sistema de explorao capitalista, mas que o Estado tem um valor negativo em si prprio e que ao mesmo tempo causa e efeito da sociedade capitalista. Enfim, diferentemente do marxismo que considerava que a classe dos proletrios urbanos (os operrios) fosse a classe revolucionria, para os anarquistas no havia uma classe predestinada a fazer a revoluo: todos os explorados e excludos, fossem eles camponeses, artesos, ou operrios fariam a revoluo anrquica. O primeiro terico que utilizou a palavra anarquia, dando a ela um sentido positivo foi o francs Pierre- Joseph Proudhon (1809-1865), cujas obras mais importantes so: O que a propriedade?, A filosofia da misria, e O princpio federativo. Segundo ele, a propriedade era um furto, no era uma instituio legtima da sociedade, e baseava-se em um ato de violncia. Preconizava, portanto, uma sociedade futura, que ele chamara de anrquica, na qual a propriedade e seus maiores defensores, a Igreja e o Estado, teriam desaparecido, e os homens teriam se organizado espontaneamente para suprir as suas necessidades sem precisar de hierarquia, mas confederados em grupos de produtores organizados segundo regras mutualistas, isto de ajuda mtua. As idias de Proudhon encontraram um espao considervel entre muitos artesos e operrios franceses. Durante a Comuna de Paris (1871), por exemplo, os proudhonianos constituram a maioria dos artesos e operrios que apoiaram ou participaram diretamente do governo revolucionrio parisiense. Outro importante anarquista da poca foi Michail Bakunin (1814-1876) que no deixou uma obra terica fundamentando o anarquismo mas escreveu, todavia, uma infinidade de artigos em vrios jornais anarquistas, propagandeando o ideal anrquico de uma sociedade sem classes, sem Estado, sem religio e sem propriedade privada, gerida coletivamente no respeito mtuo. Bakunin foi o poltico anarquista mais ativo no sculo XIX. Ele nasceu na Rssia em 1814, mas viveu grande parte de sua vida participando e promovendo motins e revoltas em vrias outras partes da Europa, sobretudo na Frana e Itlia, at que morreu na Sua, em 1876. Em 1868 participou da recm fundada AIT - Associao Internacional dos Trabalhadores (tambm chamada de Primeira Internacional), da qual, todavia, expulso com o resto de seus seguidores anarquistas em 1872, no Congresso da AIT, em Haia, na Holanda. Isto porque, os anarquistas, entraram em choque com os socialistas marxistas (o prprio Marx e Engels tinham fundado a AIT, em 1864) por causa de suas idias em relao ao Estado e suas contrariedades a formar um nico partido operrio organizado hierarquicamente, alm de se recusarem a obedecer s decises da maioria socialista. Pregando a resistncia e oposio ao Estado e religio e a liberao total do indivduo, os anarquistas elaboraram uma pedagogia que pretendia libertar de fato o indivduo de suas crenas e comportamentos de submisso ao Estado, o capital e a igreja. Esta educao anarquista, que devia formar o homem novo, foi elaborada sobretudo baseando-se nas idias do educador espanhol Francisco Ferrer (1859-1909) que criou toda uma rede de escolas chamadas de Escolas Racionais ou Racionalistas, nas quais ensinava-se matrias cientficas e humanas seguindo os princpios democrticos e anti-clericais. Por causa desta sua atividade, Ferrer foi aprisionado e morto pelo Estado espanhol em 1909. Como j dissemos, o movimento anarquista se estruturou em grupos de afinidade. Isso significa que os anarquistas se juntavam entre eles em grupos organizados segundo afinidades, isto , seguindo interesses ou objetivos comuns, tendo assim grupos locais de propaganda, sindicais, educativos, recreativos de teatro, msica e at futebol (por exemplo, em 1917 havia um clube anarquista de futebol sediado em Santos, que disputava o campeonato paulista, cujo nome era Libertrio F. C.). Frequentemente, havia grupos que desenvolviam atividades as mais variadas. Os grupos eram federados a nvel nacional, formando as chamadas Federaes Libertrias ou Federaes Anarquistas, sendo as mais famosas e numerosas as da Espanha e Itlia. Estas organizaes no tinham uma estrutura de tipo partido mas agiam nacionalmente e, s vezes, internacionalmente, sem observar uma ordem estratgica ditada pelos lderes eleitos. Depois das assemblias, nas quais eram tomadas as decises democraticamente segundo o princpio da maioria e da minoria, esta no era obrigada, depois, a seguir as decises tomadas pela maioria. Em relao atividade sindical, os anarquistas seguiam comportamentos variados, sendo esta questo um dos problema de diviso no interior do movimento anarquista: a) Muitos, de fato, liderados por Malatesta, achavam que a participao nos sindicatos de ofcio ou de categoria deveria ser fundamental, mas todavia no podia substituir a ao dos anarquistas na sociedade como um todo: o sindicato era um lugar importante, mas no o nico, no qual os anarquistas deveriam intervir fazendo propaganda dos princpios anrquicos. Claramente, eles deveriam participar das greves, mas deveriam tender a transform-las em insurreies e revoltas gerais contra o Estado, sem se limitarem as greves parciais. Alm disso, os libertrios, ao recusarem todo tipo de hierarquia, eram contrrios organizao sindical, uma vez que quase todos os sindicatos se estruturavam em organizaes nas quais havia quem decidia e mandava e quem obedecia, ainda que seus lderes fossem eleitos democraticamente; b) Uma parte dos anarquistas, todavia, aderiu a uma tendncia chamada sindicalismo de ao direta ou sindicalismo revolucionrio que via a sociedade futura sendo organizada por grupos sindicais de produtores 4. 4 (operrios ou camponeses) e que pregava como meio de luta a greve geral. Neste caso, obviamente, estes anarquistas participavam das eleies internas necessrias organizao do sindicato, muitas vezes recebendo um salrio como presidentes ou conselheiros das ligas de ofcio. Embora criticados por outros anarquistas, eles achavam que os libertrios deveriam conquistar os sindicatos para lider-los segundo os princpios da anarquia e da greve geral, em contraposio aos socialistas, que lideravam na Europa e no mundo a maioria das confederaes sindicais. Os anarquistas que participaram desta viso sindicalista revolucionria foram tantos que muitas vezes esta tendncia de luta sindical foi chamada frequentemente (mas no corretamente) de anarco-sindicalismo. De fato, na Frana, o mais importante lder sindical e fundador do movimento sindical francs era um anarquista: Fernand Pelloutier (1867-1901). Tambm na Argentina, a principal central sindical do pas at os anos trinta do sculo XX, a FORA (Federacin Obrera Regional Argentina), era em grande parte controlada por militantes e lderes sindicais anarquistas. Em relao aos perodos anarquistas, a histria do movimento anarquista no mundo atravessou alguns perodos principais, durante os quais um aspecto de suas estratgias prevalecia sobre os outros, que todavia no desapareceram completamente: a) o perodo chamado Internacionalista (aproximadamente 1860-1880) durante o qual os anarquistas participaram (de 1868 a 1872) junto com os marxistas, da Associao Internacional dos Trabalhadores (AIT). Agiam sobretudo em pequenos grupos como vanguardas revolucionrias promovendo e participando de levantes e revoltas urbanas e tiveram um papel ativo na Frana na Comuna de Paris e na fundao das primeiras organizaes mutualistas e de classe segundo as idias proudhonianas; b) o perodo chamado Terrorista (aproximadamente 1880-1900) no qual prevaleceu dentro do movimento anarquista a corrente inidividualista ou stirneriana - do filsofo alemo Max Stirner (1806-1856) terico da libertao total do indivduo, que considerava eficaz o assassinato de expoentes do Estado como soberanos, presidentes da repblica, generais. Durante este perodo os anarquistas, em atos individuais, mataram vrios monarcas e presidentes, como por exemplo o rei da Itlia Humberto I, a imperatriz da ustria-Hungria, o presidente da repblica francesa Sadi-Carnot; c) o perodo das Organizaes (aproximadamente a partir de 1890) durante o qual o individualismo foi gradualmente abandonado e, dedicou-se sobretudo organizao e formao de grupos polticos anarquistas e participao em sindicatos; d) o perodo da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), durante estes anos, pela primeira vez, os anarquistas chegaram a participar do governo de uma nao, o que trouxe a eles vrios problemas, sendo que os libertrios reivindicavam a destruio total do Estado. Mas como a Espanha estava numa guerra civil, a Federao Anarquista Ibrica (FAI), participou ativamente da defesa da Repblica Espanhola contra os franquistas nacionalistas, porque ela contrastava o domnio religioso da Igreja Catlica e tinha destrudo o velho Estado monarquista antidemocrtico. Alm disso, os anarquistas esperavam transformar a Espanha numa repblica organizada segundo os princpios voluntaristas e libertrios do anarquismo. Neste perodo, alis, a principal central sindical espanhola era justamente a anarco-sindicalista CGT. O anarquismo se difundiu na Europa sobretudo depois da atividade de Bakunin e de Proudhon, que encontraram na Frana, na Espanha e na Itlia vrios seguidores. O movimento anarquista, que tinha ncleos, grupos, sindicatos e federaes em todos os pases da Europa, fixou-se sobretudo na Europa latina (Espanha, Itlia, Frana e Portugal), mas grupos consistentes existiam tambm na Holanda, Blgica, Suia e Rssia. Os historiadores acham que a maior difuso nestes pases deveu-se ao fato de que o anarquismo era uma teoria que expressava melhor a resistncia de artesos a se proletarizar nas cidades como operrios, e a perder sua independncia como trabalhadores autnomos. Alm disso, o anarquismo era o movimento que mais atuava contra o poder da igreja e que mais consideravam os camponeses como agentes revolucionrios. E dado que os pases da Europa do sul e a Rssia eram pases ainda pouco industrializados (portanto com uma camada muito ampla de trabalhadores urbanos artesos e com a maioria dos trabalhadores sendo camponeses) e eram pases onde a igreja catlica e a ortodoxa (na Rssia) tinham terras e poder poltico, o anarquismo se apresentava como um movimento mais prximo das exigncias de transformao da sociedade. A Frana tambm, embora fosse um pas industrializado, ainda contava com um nmero elevado de artesos e operrios especializados. Entre os integrantes mais importantes do anarquismo nestes pases destacamos, na Espanha, Buenaventura Durruti (1896-1936), na Itlia, Errico Malatesta (1853-1932), reconhecido por Kropoktin como a figura mais importante de todo o movimento anarquista internacional na primeira parte do sculo XX, Pietro Gori (que atuou na segunda metade do sculo XIX e incio do XX) e Luigi Fabbri (que atuou do final do sculo XIX at toda a primeira metade do sculo XX); na Frana, a professora Louise Michel (1830- 1905), que participou ativamente da Comuna de Paris e o sindicalista Pierre Monatte (que atuou aproximadamente entre final do sculo XIX e incio do XX). Todavia, o movimento anarquista teve uma certa expanso tambm entre os trabalhadores dos Estados Unidos. Neste pas, os anarquistas contaram com muitos militantes, entre os quais lembramos os Mrtires de Chicago, condenados a morte em 1887 por terem participado de uma greve na qual alguns policias foram mortos (este greve, que foi feita no dia Primerio de Maio, deu origem ao dia do trabalhador, para lembrar sempre dos que morreram, como os anarquistas mortos em 1887, para a obteno de condies de vida e de trabalho mais dignas); a feminista de origem judia lituana Emma Goldman (1869 1940); e os imigrantes italianos Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, mortos em 1927 na cadeira eltrica, injustamenteacusados de terem matado alguns policiais numa fbrica. Tambm na Amrica Latina o anarquismo teve uma difuso notvel, sendo considerado como a base fundadora do movimento operrio e de movimentos sociais (anticlericalismo, feminismo e novas pedagogias) em vrios pases sul-americanos, sobretudo no Brasil, na Argentina, Uruguai e Chile. Em grande parte, o anarquismo se difundiu a partir da dcada de 90 do sculo XIX na Amrica do Sul graas a imigrao de muitos trabalhadores vindos da Europa do sul, que contava com um nmero notvel de anarquistas. Todavia, as idias anarquistas tinham-se difundido tambm graas leitura de obras e jornais anarquistas que alguns intelectuais e profissionais liberais latino-americanos costumavam ler. Foi o caso, por exemplo, do escritor mineiro Avelino Fscolo (1864 1944) autor do romance social Vulces e da feminista Maria Lacerda de Moura (1887 - 1945), cuja primeira obra foi escrita em 1919. Ao mesmo tempo, muitos imigrantes no chegaram em seus novos pases americanos j como atuantes libertrios, mas passaram a integrar o movimento somente na Amrica do Sul. 5. 5 Tanto no Brasil como na Argentina e Uruguay, a maioria dos militantes anarquistas era de origem italiana: portanto, cidades que contavam com uma maioria de trabalhadores italianos, como Buenos Aires, Rosrio, Montevidu e So Paulo, tambm contavam com muitos grupos de anarquistas povenientes da Itlia. Mas muitos imigrantes de outros pases tambm integraram o movimento anarquista sul-americano, especialmente os espanhis e os portugueses (a maioria dos militantes anarquistas da cidade de Santos, por exemplo, que entre 1890 e 1940 era considerada a cidade com mais anarquistas no movimento operrio, eram espanhis ou portugueses). Portanto, foi no Estado de So Paulo, que mais se espalhou o movimento anarquista no Brasil, graas grande presena de artesos e operrios de origem italiana e espanhola, e parcialmente portuguesa. Os italianos, em particular, constituam cerca de 70% dos filiados aos vrios grupos anarquistas que surgiram entre 1895 e 1920 nas vrias cidades paulistas, a partir obviamente da capital. Os anarquistas italianos de So Paulo, inclusive, conseguiram editar um semanrio libertrio ininterruptamente de 1904 a 1914, com uma tiragem que chegou em alguns perodos a 5.000 cpias semanais: este jornal era o La Battaglia. Calcula-se que em 1909 existiam pelo menos seis grupos anarquistas de lngua italiana somente na cidade de So Paulo, alm dos grupos nos quais participavam indiferentemente imigrantes italianos, portugueses, espanhis e brasileiros natos. Tambm os sindicatos que nasceram em So Paulo nesta poca, eram compostos por muitos anarquistas seguidores das ideas de ao sindical direta: tanto na FOSP (Federao Operria de So Paulo), como na FOLS (Federao Operria Local de Santos) ou na Liga Operria de Campinas ou de Ribeiro Preto. Junto com estes grupos, quase todos de bairros ou sindicais, havia em So Paulo tambm as Escolas Modernas Libertrias que seguiam a pedagogia de Ferrer, como a escola do professor Joo Penteado (1877-1965). Havia inclusive um grupo formado somente por mulheres o Grupo das Jovens Idealistas, que tiveram um papel importante durante a grande greve geral de 1917. Todos os grupos anarquistas organizavam festas, bailes, encenaes de teatro e piqueniques populares, com o fim de arrecadar dinheiro para os grupos e jornais de propaganda, alm de permitir aos afiliados e aos simpatizantes de se socializarem nos bairros populares das cidades paulistas. Entre os militantes libertrios mais famosos deste incio de sculo XX em So Paulo contamos com os italianos Oreste Ristori, Gigi Damiani, Alessandro Cerchiai, Angelo Bandoni, Matilde Magrassi, os irmos Gattai (um deles, Francesco era o pai da Zlia Gattai, viva de Jorge Amado); com os portugueses Neno Vasco e Adelino Tavares de Pinho e com os espanhis Rodolfo Felipe, Florentino de Carvalho (cujo nome verdadeiro era Primitivo Raimundo Soares), e Antonia Soares. Mas, o mais famoso de todos foi com certeza Edgard Leuenroth (1881 - 1968), filho de alemes, que tomou parte de vrias greves e motins e publicou por dcadas o peridico anticlerical A Lanterna, no qual encontravam espao muitos dos anarquistas que escreviam em lngua portuguesa e que atuavam em So Paulo. Todavia, tambm no Rio de Janeiro houve atividade e militncia anarquistas importantes, tanto de imigrantes como de brasileiros natos (ainda que no tenha chegado aos nveis de So Paulo), graas presena de vrios grupos, dentre os quais, o mais importante, o Aliana Anarquista, alm da atuao fundamental de muitos anarquistas na Federao Operria do Rio de Janeiro. Anarquista carioca, foi tambm na sua juventude Astrojildo Pereira (1890 -1965), que nos anos 20 aderiu ao marxismo-leninismo e fundou no Brasil o Partido Comunista. Grupos libertrios surgiram tambm em Belo Horizonte e vrias cidade de sul de Minas, em Porto Alegre, Curitiba, Recife e Belm. O Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp, tem o melhor acervo na Amrica do Sul para estudar o movimento anarquista no Brasil, mas tambm na Argentina e Uruguai. Ao mesmo tempo, graas presena de muitos militantes libertrios imigrados, o acervo do AEL permite complementar a histria dos movimentos anarquistas de muitos pases como Itlia, Espanha e Portugal, sendo que muitos destes militantes voltaram sua terra depois de anos de atividade no Brasil. O AEL, de fato, contm um nmero imenso de peridicos libertrios brasileiros (microfilmados ou em original), tanto em lngua italiana como em lngua portuguesa entres os quais se destacam, para o perodo 1890-1920: O Amigo do Povo, A Plebe, A Lanterna, A Vida, La Battaglia, La Propaganda Libertaria, Alba Rossa, A Guerra Sociale outros nos quais a participao dos anarquistas foi notvel, como A Voz do Trabalhador, A Lucta Proletria, O Chapeleiro. Alm disso, o AEL guarda toda uma srie (tambm numerosssima) de opsculos, folhetos e livros anarquistas editados no Brasil em vrias lnguas, como em outros pases, em grande parte provenientes da vasta e importante biblioteca particular do militante brasileiro Edgard Leuenroth, o que permite traar um quadro amplo da atuao dos anarquistas em terras brasileiras. http://www.arquivo.ael.ifch.unicamp.br/textosdidaticos/ htm/luigi.htm 6. 6 O ANARQUISMO HOJE UMA REFLEXO SOBRE AS ALTERNATIVAS LIBERTRIAS "Somos, pois, anarquistas, porque queremos uma sociedade sem governo, uma organizao livre, indo do indivduo ao grupo, do grupo federao e confederao, com desprezo das barreiras e fronteiras, sendo a associao baseada sobre o livre acordo e naturalmente determinada e regulada pelas necessidades, aptides, idias e sentimentos dos indivduos. Neno Vasco 1. UMA REALIDADE SOMBRIA E CONTRADITRIA "O criado arrebatou ao amo seu chicote e se fustigou com ele para assim poder ser amo." Kafka Vivemos uma poca de profundas mudanas, da tecnologia s relaes sociais, da economia poltica. Transformaes que no tm, no entanto, qualquer sentido de superao do Sistema - de suas injustias e irracionalidades -, antes pelo contrrio, so condicionadas pelos seus interesses estratgicos de preservar a Ordem Reinante. A derrocada do socialismo de estado no Leste, uma dessas mudanas decisivas que marcaro a nossa poca. Um processo de auto-reforma iniciado pela oligarquia burocrtica, saiu do controle e acabou pulverizando um sistema estatista e autoritrio que alguns teimavam em chamar de socialista. Este acontecimento, inegavelmente positivo para os povos que se libertaram daquele sistema terrorista de dominao, no deixou de ser contudo, ao mesmo tempo, uma vitria de setores dessa mesma burocracia que conseguiram preservar seu poder. Mais uma vez, como tem ocorrido nas ltimas dcadas, os diferentes grupos das classes dominantes vo-se alternando no poder em resultado da exausto poltica ou da sua luta interna. Como no caso das ditaduras ibricas e dos governos militares latino-americanos, no foi a luta dos explorados e dominados que determinou as mudanas e o fim desses regimes. Quando o povo se apresentou no cenrio, foi para sufragar os novos sistemas de dominao, ou para ser usado como carne para canho em lutas fratricidas, como assistimos na Romnia, Gergia e Iugoslvia. Tambm a ideologia liberal saiu vitoriosa, pois a derrota simblica das idias de uma alternativa social, que estiveram presentes nos primrdios da Revoluo Sovitica, ser por muito tempo o tema central da propaganda capitalista e razo da descrena e desesperana de muitos dos que lutam contra este sistema. O socialismo autoritrio saiu do cenrio social derrotado, dando dessa forma a sua derradeira contribuio ao status quo; ao mesmo tempo que impulsionou a uniformizao e homogeneizao do sistema capitalista escala universal. Uma nova conjuntura assente na mundializao da diviso do trabalho e na segmentao do mundo - e de cada regio - em guetos de riqueza cercados de misria. Um panorama internacional, marcado por uma convergncia quase total entre os principais centros de poder em torno do Washington Consensus, e administrado pelos Sete Mais que usaro seus organismos internacionais: ONU, CEE, NATO, FMI, BIRD, como instrumentos de gesto, de polcia e companhia de seguros da Ordem Internacional. A instrumentalizao da ONU durante a Guerra do Golfo e nos diversos conflitos regionais dos ltimos anos; a manuteno e alargamento da NATO aps a dissoluo do Pacto de Varsvia; a recusa dos EUA de desmantelar o arsenal nuclear; bem como as pretenses hegemonistas da Alemanha dentro da CEE, so entre muitas outras manifestaes, demonstrativas desta nova rearticulao do Capitalismo Internacional sob comando de Washington. Neste contexto de restaurao, principalmente nas sociedades de consumo, massificadas e manipuladas por uma rede de propaganda e informao dirigida, as possibilidades de uma alternativa social, se afunilam. J que os valores libertrios da autonomia, da solidariedade, do livre pensamento e do autogoverno, so dificilmente inteligveis ou aceites pela maioria dos cidados amestrados, desamparados e perdidos num contexto social de individualizao e atomizao extrema. Tornando-se assim incapazes de qualquer reflexo crtica, afundados que esto no minimalismo tico e no cinismo pragmtico. O que exprime a maior vitria do sistema: a homogeinizao ideolgica e cultural das sociedades onde predominam o individualismo, a concorrncia e a esquizofrenia dionisaca para usar as palavras de Carlos Daz.* S os excludos dessa sociedade (e que no aspiram a se integrar no reino da sujeio conformista), ou os que nela no se reconhecem - uma pequena e desarticulada minoria - podem se identificar potencialmente com esses valores libertrios. Em termos objetivos essa a nossa margem de atuao nas sociedades do chamado Primeiro Mundo. Mesmo que saibamos que esse conformismo majoritrio cclico e pode ser abalado, quer por alteraes socio-econmicas, quer pelo aprofundamento gradual da crise civilizacional que vivemos. Outra a situao vivida nos pases do hemisfrio sul - com algumas semelhanas em alguns pases do Leste Europeu - onde a super-explorao, a no satisfao das necessidades bsicas e a flagrante desigualdade social, que se traduz num verdadeiro apartheid social, abrem espao para a continuidade de movimentos sociais anti-capitalistas mais amplos. Olhando ao nosso redor, no seria excesso de pessimismo afirmar que nunca como hoje, as foras do Estado e do Capitalismo foram to fortes e as tendncias libertrias da alternativa social, to fracas. No entanto, e apesar disso, persistem contradies e tenses fundamentais no sistema dominante, que se vo acumulando e adquirindo uma visibilidade at hoje nunca vista. A misria absoluta da maioria da populao mundial, que contrasta com a riqueza ostensiva e delapidatria de uma minoria; a marginalizao de jovens, desempregados e velhos nos pases ricos, que aponta os limites de assimilao do sistema; o desenvolvimento da tendncia de crescimento dos empregos informais e precrios; a desqualificao profissional, o aviltamento do trabalho e o desemprego estrutural, resultante da introduo da automao e das novas tecnologias e, por fim, a violncia e a criminalidade presentes em todas as grandes cidades, demostram a impossibilidade de solues no quadro do sistema capitalista. A natureza predatria da sociedade capitalista e sua iluso no crescimento infinito, s pode levar ao esgotamento de recursos, destruio do meio ambiente, reverso destrutivo desta forma de "progresso", que junto com a utilizao arbitrria e 7. 7 irracional das tecnologias, impe aos gestores da desordem industrial o uso instrumental de polticas de restries ambientalistas. nesse sentido que deve ser entendido a panacia do "desenvolvimento sustentvel" presente do discurso atual dos donos do Poder e em particular do Banco Mundial. Discurso ideolgico que, contudo no aponta uma soluo harmoniosa para o problema da pobreza, do desenvolvimento humano e da utilizao das tecnologias, questes centrais da nossa poca. O capitalismo pode sentir a necessidade de contabilizar os prejuzos ou as ameaas futuras, mas no pode assimilar os questionamentos radicais levantados por libertrios e ecologistas. Esses problemas s podem ser resolvidos no contexto de uma sociedade descentralizada e autogerida, capaz de criar e controlar formas tecnolgicas adequadas a um desenvolvimento integrado, auto-sustentado e solidrio. Nem o crescimento zero, nem o desenvolvimento sustentvel so possveis numa economia determinada pelo lucro e num mundo marcado pelo absurdo do consumismo e do desperdcio das sociedades ricas e pelas necessidades bsicas no satisfeitas das sociedades pobres. De Bopal e Chernobyl ao contrabando de plutnio, a sociedade industrial manifesta-se intrinsecamente desordenada e ameaadora para o futuro dos povos. Ao nvel poltico h uma tendncia generalizada para a restrio das liberdades e garantias conquistadas em outras pocas. O que se reflete diretamente no ordenamento jurdico, com a reintroduo de conceitos e prticas autoritrias e inquisitrias no direito penal e processual e com o desmantelamento dos direitos sociais e trabalhistas que as lutas operrias impuseram a partir do sculo XIX. A democracia representativa se esvazia face inexistncia de escolhas reais e transformao das eleies em simples competies de marketing, onde o resultado sempre incuo para as elites e burocracias dominantes. Uma crise de legitimidade que ampliada pela crescente burocratizao do Estado e pelo fato das decises econmicas e polticas mais importantes serem tomadas, tanto no nvel privado, como no nvel internacional, fora do chamado controle do Estado de Direito. O mesmo ocorrendo com a maioria das decises eufemisticamente chamadas de tcnicas e com aquelas que so tomadas no complexo de segurana, onde predomina o princpio do segredo. A corrupo, por sua vez, afirma-se como tendncia endmica do estado moderno, do Japo ao Brasil, da Venezuela a Espanha, Frana e Portugal, comprometendo as vrias correntes polticas com prticas fraudulentas e ilegais, sem que com isso seja afetada essencialmente a credibilidade que os cidados-espetadores tm em seus partidos. At porque h muito as oligarquias polticas da representao abdicaram de mascarar com a aritmtica do voto seu mandato eleitoral, como j demonstrou h muito tempo o anarquista ibrico Ricardo Mella *. A "lei do nmero" um falso instituto democrtico, tanto mais que at as maiorias eleitorais esto encolhendo a olhos vistos, sendo o governo efetivamente exercido por minorias, credenciadas minoritariamente nas chamadas eleies democrticas e o Poder por organizaes e instituies que esto longe do controle dos cidados. Mesmo face a esta realidade cada vez mais visvel no mundo contemporneo, a descrena na poltica, que se traduz no crescente abstencionismo em quase todos os pases, no contexto atual s serve para reforar o cinismo individualista do egocentrismo dominante: "cada um por si, e deus contra todos." Afirma-se assim a tendncia para um estatismo autoritrio de novo tipo, afastado do modelo de Estado de Direito clssico e mais ainda do Welfare State, um Estado j no mais preocupado com a participao e os direitos dos cidados. Mas to s em garantir as condies de produo, reproduo e movimento do Capital: um novo tipo de Estado-Polcia, que vem perdendo a sua dimenso nacional, para se tornar a repartio local de uma nova forma de Estado supranacional em gestao. Os fenmenos incontrolados da violncia e da guerra demonstram, de forma inequvoca, que nenhum Estado ou governo mundial poder administrar sociedades cindidas pela misria e injustia. A ruptura dos laos tradicionais da solidariedade social, agravada por uma cultura de concorrncia, s pode levar a uma guerra de todos contra todos, que se manifesta na indiferena perante os miserveis, no consumo generalizado de drogas, na violncia desesperada das grandes cidades, em guerras fratricidas como na Iugoslvia e nos genocdios de frica. As metrpoles - mesmo dos pases ricos - com seus bolses crescentes de miserveis e marginalizados tendem a constituir-se como um cenrio de violncia onde nenhum exrcito particular, ou condomnio das elites, desses que proliferam em Madri, Rio de Janeiro, ou Los Angeles, podero garantir uma existncia segura e despreocupada como a que as classes dominantes se habituaram a usufruir no passado. Neste panorama sombrio, o caminho que estamos a percorrer pode abrir, mesmo assim, novas possibilidades: o esvaziamento do sentido social do Estado e sua crise de legitimidade, pode facilitar a reaproximao dos movimentos sociais do pensamento e da prtica anti-estatista libertria. Tambm a derrocada do mito do socialismo de Estado, deixa em aberto o campo da alternativa real aos sistemas de dominao, onde se poder afirmar o socialismo libertrio. Com a derrota da estratgia leninista de tomada do poder, de utilizao do Estado para a criao de um "socialismo" por etapas, e da derrocada do mito da excelncia da economia centralmente planejada, que s gerou instabilidade, desigualdade e burocracia, a pertinncia dos valores anarquistas, do socialismo orgnico, federalista e descentralizado, torna-se ainda maior para os que no abdicam de pensar e lutar por uma alternativa ao que a est. O capitalismo que persiste como barbrie perdura ante uma contradio bsica do nosso tempo que pode ser resumida nas palavras de Marcuse: "A revoluo mais necessria, parece ser a mais improvvel." Improvvel porque somente fortes movimentos sociais autnomos e libertrios poderiam romper radicalmente a teia de um sistema repugnante que envolve todas as classes e grupos sociais. E hoje eles so minoritrios. A partir daqui, de uma realidade adversa mas contraditria, o anarquismo pode lutar por retomar o seu papel nos movimentos sociais - nos velhos e nos novos movimentos -, o que vai depender, pelo menos em grande parte, da vontade, lucidez, e ao, dos libertrios. Por mais que os idelogos do Poder e a corte de aclitos arrependidos, proclamem o fim da Histria, ela teima em afirmar que s morrer com o prprio homem. Mesmo que no possamos descartar a hiptese j um dia levantada por Mannheim de o mundo "estar entrando numa fase de aparncia esttica, uniforme e inflexvel." Mesmo assim o futuro ser sempre uma possibilidade em aberto onde os seres humanos, com todas as condicionantes culturais e materiais, podero realizar suas utopias. Para ns anarquistas, o socialismo libertrio, a comunidade orgnica da Humanidade, 8. 8 continua sendo um imperativo para a humanizao das sociedades. 2 O DECLNIO DO ANARQUISMO, ALGUMAS DE SUAS CAUSAS "Mas uma grande idia no pode germinar num s dia, por mais rpida que seja a elaborao e a difuso de idias durante os perodos revolucionrios." Piotr Kropotkin O declnio histrico do anarquismo tem sido ao longo de dcadas apresentado por seus opositores - em particular os marxistas - como uma decorrncia do processo histrico de transio de sociedades pr- capitalistas para o capitalismo, e de substituio dos artesos pelo proletariado industrial. Essa tese que tem como expoentes historiadores do tipo de Eric Hobsbawn dificilmente resiste a uma anlise mais detalhada. Apresentando-se sob o rtulo da cientificidade da histria e sua "neutralidade", mas logo denunciada pelos impulsos exegticos da dogmtica leninista de Hobsbawn sempre que se refere ao anarquismo, chegando s raias da m-f e de distoro da realidade histrica em vrios de suas obras*. Outros historiadores mais conhecedores do anarquismo como Rudolf de Jong ou Carlos da Fonseca j demonstraram como o movimento anarquista do sculo XX estava amplamente implantado entre os tralhadores industriais e nos principais centros operrios da poca: "Que Paris, Toulouse, Barcelona, Milo, Rio de Janeiro, So Paulo, Buenos Aires, Montevideo ou Tquio a ocupem lugares de grande importncia constitui a negao das razes rurais do movimento." ** Mas se para os pensadores liberais ou para os marxistas o declnio do anarquismo uma natural inevitabilidade histrica, para muitos anarquistas um incompreensvel acidente, nos dois casos tem ficado sistematicamente ocultas as razes que explicam tal declnio. Para compreendermos a situao atual do anarquismo, os principais problemas com que se confronta e as possibilidades que se abrem, teremos de rever sua fase de declnio, que se estendeu pelas dcadas de 20 e 30 e culminou com a derrota da Revoluo Libertria de 1939 na Espanha. A conjugao de mltiplos fatores adversos, que os anarquistas foram incapazes de entender ou de contornar na conjuntura poltica e social da poca, o que explica esse esvaziamento progressivo do movimento. a) Se existe uma causa que deva ser apontada em primeiro lugar essa a resultante das transformaes sofridas pelo capitalismo e pelo Estado, nessas primeiras dcadas do sculo. A intensificao das lutas operrias a partir de finais do sculo XIX, o espectro da Revoluo Social e as mudanas tecnolgicas e organizacionais levaram o Capital a iniciar uma poltica redistributiva nos pases industrializados, o que permitiu uma expanso do processo produtivo e acima de tudo a adeso dos trabalhadores ao sistema. O acesso ao consumo tornou- se assim o antdoto contra a revolta e foi um fator primordial para a adeso dos trabalhadores lgica normativa do capitalismo. O surgimento do Estado intervencionista, que se insere neste processo de mudanas estruturais - seja na sua verso corporativista-fascista, seja na de Estado de Direito Social -, levou ao reconhecimento dos direitos econmicos e sociais dos trabalhadores e a uma demarcao de limites ao capitalismo de livre concorrncia e livre explorao do sculo XIX. A educao e a sade pblica tornaram-se objetivos de Estado e os direitos trabalhista: descanso, frias, assistncia social e reforma, passaram a fazer parte das polticas de governo. O movimento operrio conseguiu impor algumas das suas reivindicaes histricas, mas a troco de uma sujeio ao Estado que se traduziu na institucionalizao dos conflitos laborais, atravs de regras de arbitragem ditadas por esse mesmo Estado. Os governos criaram um novo departamento da conciliao social: o Ministrio do Trabalho, que juntamente com tribunais e outros rgos especializados passaram a interferir nas lutas operrias, na tentativa de desarticular a ttica radical do confronto de classes aplicada pelo sindicalismo revolucionrio e pelo anarco-sindicalismo. O ordenamento jurdico passou a reconhecer como direitos as organizaes operrias, as reunies, as manifestaes e greves, mas deu-lhes um enquadramento legal que lhes retirava todo o potencial conflitivo. Em contrapartida a ao direta, a sabotagem, o boicote e a greve de solidariedade passaram a ser criminalizadas e reprimidas de forma ainda mais violenta, estabelecendo-se claramente o limite admissvel para o sindicalismo: a representao corporativa dos problemas operrios. Tambm o capital passou a aceitar o sindicalismo dentro desses limites, usando um duplo critrio negocial: ao fazer concesses s exigncias de sindicatos confiveis e reprimir as que tivessem uma dinmica radical. Os episdios do "pistoleirismo" capitalista nessa poca, da Espanha aos EUA, so por demais conhecidos. O sindicalismo que nascera como emanao da vontade de emancipao do movimento operrio, e sua forma auto-organizativa por excelncia, tornou-se a partir de ento um reflexo das intervenes - diretas e indiretas - do Estado e seu ordenamento jurdico. O direito trabalhista, a institucionalizao das negociaes sindicais, sujeitas a ardilosas anlises jurdicas e econmicas, favoreceram a burocratizao dos sindicatos e em muitos casos exigiram-na. S atravs da criao de estruturas administrativas e de assessoria de especialistas do acordo: advogados, economistas, socilogos e um sem nmero de funcionrios exteriores ao movimento operrio, poderiam os sindicatos enquadrar-se neste contexto negocial e nele obter vantagens. A tentao corporativista que nunca chegou a desaparecer do sindicalismo, mesmo nas fases em que se potenciavam mais as formas revolucionrias do confronto de classes , tendo inclusive originado em quase todos os pases histricas polmicas entre anarquistas e sindicalistas, tornavam-se agora preponderantes. * A combatividade dos sindicatos e dos militantes operrios, passava a no ter correspondncia direta com a eficcia na conquista de melhorias contratuais. Os mais eficazes passaram a ser os mais hbeis nas negociaes, o que normalmente se traduzia na cedncia sistemtica perante as imposies estratgicas do Capital. Estavam assim criadas as condies para a derrota do sindicalismo anarquista, que se sustentava na conscincia revolucionria, na ao direta e na auto- organizao. Tornava-se "impossvel" um sindicalismo onde no cabiam funcionrios e dirigentes profissionais e para quem - evocando a consigna do sindicalismo revolucionrio dos EUA da IWW - "trabalhadores e capitalistas no tm nada em comum". Neste panorama de conciliao, em que o Estado ganhava uma autonomia relativa em relao s classes 9. 9 dominantes, assumindo um rosto pacificador, independente, social, deixava de haver condies para a inteligibilidade do discurso anti-estatista dos anarquistas. A maioria dos trabalhadores comearam a ver o Estado como uma entidade beneficente que garantia a educao, a sade, a habitao e a velhice dos cidados e no mais como aparelho central de gesto da dominao. b) Uma segunda causa pode ser apontada: o aparecimento de ditaduras terroristas em vrias regies do mundo. Desde logo o nazi-fascismo e suas variantes ibricas, bem como os governos de ocupao resultantes da expanso alem. As ditaduras na Amrica Latina de Vargas e Pern e na Rssia dos burocratas comunistas. A represso desencadeada tornava impossvel a sobrevivncia do anarquismo como movimento amplo e aberto, principalmente das organizaes anarco- sindicalistas. O anarco-sindicalismo que foi a estratgia que abriu caminho influncia generalizada das idias anarquistas na maioria dos pases, no tinha condies de sobreviver em tal situao de represso. S um movimento estruturado clandestinamente baseado em grupos de afinidade poderia resistir. * Mas, mesmo nesse caso, a sobrevivncia dependeria a longo prazo de apoio externo, seja na forma de auxlio material, seja na de territrio de exlio e articulao. E os anarquistas jamais dispuseram de forma continuada dessas condies. ** A priso, morte e exlio de um nmero incalculvel de militantes, juntamente com a impossibilidade de manter a propaganda e interveno no movimento social, iria levar, em muitos pases, ao quase esvaziamento do movimento e a uma ruptura entre geraes. Quando se tornou possvel a rearticulao, os anarquistas estavam cindidos em duas geraes distanciadas por dcadas, que s com dificuldade se comunicavam e relacionavam. c) Finalmente a terceira causa teve a ver com a vitria na Revoluo Russa do leninismo e a subsequente criao dos partidos comunistas. Ao se tornar a estratgia da vitria sobre a burguesia - ou ao ser interpretado como tal - reintroduziu o marxismo com carisma revolucionrio no movimento operrio internacional. A iluso de que era esse o melhor, ou o mais eficiente, caminho para chegar ao socialismo, somado falta de informao sobre os rumos da revoluo sovitica, levou muitos anarquistas e outros trabalhadores ao leninismo. Uma adeso mais pragmtica que terica, que os fazia ver na sociedade russa uma concretizao das idias libertrias. E os empurrava criao de organizaes que misturavam na sua forma e no seu discurso os princpios anarquistas com um maximalismo ou leninismo incipiente. Em muitos pases os partidos comunistas nasceram de rupturas no seio da corrente social- democrata, mas em quase todos houve uma participao significativa de trabalhadores oriundos do anarco-sindicalismo. No caso de Portugal e do Brasil, os Partidos Comunistas foram uma criao de anarquistas. Esta atrao pelo leninismo viria a ser ainda maior entre os intelectuais anti-capitalistas que se deixaram conquistar pela idia de criar o socialismo a partir do Estado, uma manifestao de despotismo esclarecido, baseado na concepo de que o marxismo seria a "cincia" da transformao social; e que aos intelectuais estaria reservado um papel especial na vanguarda dirigente. Nascia assim o "socialismo dos intelectuais", to bem dissecado por Makhaiski. Mas foi no movimento operrio que as divises introduzidas pelas divergentes concepes de socialismo, teriam maiores conseqncias, j que diminuram a prpria capacidade de resistncia s ditaduras que se comeavam a instalar. Esta situao se agravou aps a adoo pelos comunistas de uma estratgia internacional definida pelo COMITERN e ISV de infiltrao e ciso dos sindicatos de orientao anarco-sindicalista. A ao insidiosa dos comunistas foi determinante para desarticular o anarco-sindicalismo e possibilitou-lhes a criao dos sindicatos atrelados, correias de transmisso do partido, j que para o leninismo era essa a funo instrumental das organizaes operrias. Com o agudizar da represso e, na medida em que os comunistas conseguiram sobreviver na clandestinidade, tornaram-se para muitos trabalhadores a nica fora capaz de articular as lutas operrias contra as ditaduras e o capitalismo. Soma-se a isso a maleabilidade ttica que os levava a no desprezar a luta pelas pequenas reivindicaes e a integrar conceitos conservadores e nacionalistas em seu discurso, o que se adequava a um movimento social em que se expandia o reformismo. Comeava assim a dar-se a hegemonia comunista nos meios operrios, processo que estava concludo nos finais da dcada de 40. A derrota da Revoluo em Espanha, foi o culminar desta tendncia e sua mais evidente demonstrao. Aquele que foi o mais avanado esboo de transformao social libertria, foi empalmado entre fascistas e estalinistas, ante a indiferena conivente dos Estados democrticos, na mais sinistra combinao de foras contra-revolucionrias de nossa poca. Essa seria a ltima grande mobilizao popular das idias anarquistas e a mais trgica das derrotas. O socialismo libertrio, que desde o sculo XIX tinha tido um dos seus basties na Pennsula Ibrica, era esmagado aps uma guerra civil que levaria morte e ao exlio milhes de militantes. Episdio da histria social contempornea que rene contraditoriamente os erros, os limites e as possibilidades criadoras do anarquismo. Nunca o anarquismo teve um papel to decisivo nas mudanas profundas de uma sociedade quanto na Revoluo Espanhola, mas tambm nunca ficou to prximo de se descaraterizar como alternativa s instituies estatizantes e burocrticas. A participao de alguns de seus mais conhecidos militantes no governo, mesmo no colhendo a adeso de parte do movimento, nem chegando a gerar um anarquismo poltico de feio maximalista, foi um colaboracionismo que deixou seqelas profundas no movimento libertrio.* Dessa experincia tambm no conseguiram os anarquistas extrair uma teoria e uma prtica adequada para lidar com o fenmeno do Estado e do Poder, nem desenvolverem a partir das realizaes construtivas da Revoluo - para empregar as palavras de Gaston Leval - uma alternativa de autogesto generalizada para as modernas sociedades complexas. Hoje, poderemos a partir destas mesmas causas que se combinaram para debilitar o movimento anarquista, entender as perspectivas abertas pela derrocada de dois mitos: o do Estado Socialista e o do Estado do Bem Estar Social. Agora, mais de cinqenta anos aps a Revoluo Espanhola de 1936, talvez os anarquistas possam refletir sobre todo esse perodo de esperanas e derrotas dos movimentos libertrios. Mesmo que hoje tenham desaparecido as causas fundamentais do declnio do anarquismo, isso ocorre numa fase em que o pensamento e a prtica libertria atingiram seu ponto mnimo e quando a homogeneizao ideolgica do sistema capitalista atingiu seu pice. Certamente por essa razo o desgaste do Estado e da representao poltica s tenha gerado um generalizado desinteresse cnico com os 10. 10 destinos da sociedade e no mais uma busca de uma alternativa ao existente. Essa descrena generalizada, contraditoriamente, pode representar o comeo de uma nova esperana: se no mais acreditamos no Estado e na democracia representativa, ento podemos nos auto-organizar e comear a imaginar formas de autogoverno para as sociedades. E a nos reencontramos com o velho desafio do anarquismo! 3. UMA POCA DE DESENCONTROS "Os bois passam debaixo da canga os cegos vo aonde a gente queira lev-los Mas o homem que nasce livre tem o seu prprio caminho..." Herbert Read A partir dos anos 40 o anarquismo tornou-se uma plida imagem do que fora no passado, no possuindo sequer j o vigor, a combatividade e a obstinao dos primeiros grupos que se formaram na dcada de 60, no sculo XIX. A fragilidade do movimento - que se prolonga at agora - manifesta-se na sua quase ausncia dos movimentos sociais, na sua incapacidade associativa e na reduzida influncia no pensamento crtico atual. Derrotado em Espanha, enfraquecido pelas mortes e prises, dividido pelas mgoas do exlio, o anarquismo perdeu a sua ltima grande referncia. Por todo o lado, na Europa e na Amrica, os movimentos sociais reapareciam enfeudados a populismos estatizantes ou atrelados estratgia comunista das "correias de transmisso", sendo meros instrumentos da poltica partidria. Gradualmente o anarquismo perdia a sua principal vitalidade das dcadas anteriores que lhe era dada pelos camponeses das diferentes comunidades do estado espanhol, pelos operrios de Barcelona, Rio de Janeiro, Buenos Aires, pelos ncleos libertrios da sia e pelos internacionalistas que corriam a Amrica e a Europa agitando as idias de uma sociedade sem Estado. Os grupos que persistiam em pases como Frana e Itlia era o que sobrava desse velho movimento proletrio e revolucionrio que tinha agitado a Europa nos ltimos cem anos, mas a sua incapacidade de penetrao nos movimentos sociais e entre a juventude era uma constatao evidente. Foi ento, que de forma imprevisvel, no final dos anos 60, irromperam novamente as idias libertrias, a partir de uma gerao quase sem contato com o movimento anarquista histrico. A crtica da sociedade industrial, a ecologia, o pacifismo e o comunitarismo nascidos no movimento contracultural da Amrica do Norte, desenvolveram-se em paralelo ao anti-capitalismo radical dos jovens estudantes e proletrios da Europa de 68. Os valores libertrios que os anarquistas tinham assumido no movimento social, ao longo de dcadas, emergiam novamente de forma criativa e espontnea. Esta nova gerao, ao se aproximar do velho movimento iria se confrontar com o problema da distncia que os separava dos militantes provindos das lutas dos anos 30, na sua quase totalidade operrios autodidatas. Seria complexa e difcil essa integrao: a viso do mundo, o discurso, a estratgia, a origem social - e at os comportamentos - eram distintos, dificultando que a experincia e a histria que esses velhos militantes representavam se somasse ao voluntarismo e criatividade das novas geraes. Passaram a coexistir dois movimentos paralelos, com suas publicaes e grupos claramente identificveis, que umas vezes se completavam, mas em outras conflitavam. Com o tempo acabaram por estabelecer alguns contatos, ligaes e colaboraes entre si, sem no entanto vencer definitivamente essa barreira que os separava. No era o resultado do envelhecimento ou dogmatismo dos velhos militantes como alguns afirmavam, mas to s a barreira inexorvel do tempo que afastava esses experimentados ativistas da realidade da prtica social; e que aos jovens impedia de apreender o conhecimento e a experincia que o movimento histrico havia acumulado. Os grupos surgidos a partir do comeo dos anos 70, iriam ainda ser marcados por uma fraqueza congnita, j que eram constitudos por estratos sociais que se definem por sua transitoriedade e descontinuidade: jovens e estudantes. No conseguindo superar o maior problema com que se debatia o anarquismo nas ltimas dcadas, o da sua implantao nos movimentos sociais. O anarquismo, ao contrrio do marxismo, no acredita na existncia de um sujeito histrico nico e predestinado, uma classe ou grupo social capaz de realizar, em funo de um destino histrico, a mudana social. As foras sociais que os libertrios consideravam mobilizveis para um projeto de mudana, eram mais vastas e plurais. Desde Bakunin e Kropotkin, sempre estiveram no centro do pensamento anarquista, ao lado do proletariado, os camponeses, todos os explorados e excludos, os marginais e jovens, mas enquanto pessoas concretas, sujeitos capazes de assumirem sua liberdade e se autodeterminarem historicamente.* No entanto, condio necessria para a concretizao de um projeto de transformao social, que esses sujeitos sejam parte de grupos e classes sociais com uma afinidade de interesses e com uma estabilidade e continuidade estrutural, que possibilitem formas de associao e de luta a prazos mais longos. O movimento anarquista s ter condies de retomar uma presena significativa nos movimentos sociais, se participar das suas lutas, principalmente as que nascem das condies bsicas de produo e da resistncia s relaes de dominao. J que as fbricas, os escritrios e os outros locais de trabalho dos assalariados, sero sempre - enquanto no existir a robotizao total da produo e prestao de servios - o centro das relaes fundamentais de dominao e, consequentemente, o ncleo potencial da resistncia ao capitalismo, onde pode germinar uma alternativa social. O anarquismo no conseguiu at hoje retomar sua relao histrica com os movimento sociais e, particularmente, com a luta operria. O renascimento do anarco-sindicalismo em Espanha, nos anos 70, foi um caso nico que resultou de uma longa histria do anarco-sindicalismo e da tradio libertria nesse pas. Mas mesmo a, no se traduziu numa recriao da estratgia anarco-sindicalista adaptando-a s profundas transformaes da economia e da prpria condio operria, que haviam sido decisivas para debilitar o movimento. Os problemas com que se tem debatido a CNT aps sua reconstruo em 1977 resultam em parte - j que temos de reconhecer que existiram tentativas de infiltrao e cerco por parte do Estado -, de duas causas: a primeira foi a incapacidade da CNT romper com o fantasma da histria e se abrir ao novo movimento libertrio que renascia nos anos 70, em Espanha; por outro lado do fato da estratgia anarco- sindicalista, como se definiu historicamente, no se mostrar operante numa sociedade em que o Capital e o Estado tinham passado por mutaes profundas. Esta constatao no significa aceitar como certa e inevitvel a teoria que o sindicalismo morreu ou , hoje, inevitavelmente integrador, e menos ainda, que no existe espao para uma estratgia autnoma de confronto anti-capitalista nas atuais relaes de 11. 11 trabalho. Embora tenhamos de reconhecer que essa margem se reduziu na maioria dos pases de capitalismo maduro, onde a conscincia da sujeio desapareceu perante a perspectiva de acesso ao consumo. E onde uma nova e radical diviso se cria no mundo do trabalho: a que nasce da oposio entre os garantidos e os excludos das relaes de produo. Mesmo assim a existncia de organizaes anarco- sindicalistas em Espanha, em Frana e na Sucia, e de diversos ncleos sindicalistas revolucionrios em outros pases, no deixam de ser um desafio que se mede pela distncia que vai desse sindicalismo autnomo ao sindicalismo atrelado, corporativista, e burocrtico.* Mesmo assim temos de reconhecer com lucidez os limites atuais da prtica sindical que tende a se desvirtuar na prtica negocial esse o drama da CGT em Espanha , ou a se encurralar na intransigncia do confronto, impedindo os ganhos imediatos, que so uma componente necessria dessa forma de organizao. Ao contrrio da viso simplista de alguns anarquistas, o sindicalismo burocrtico e corporativo predominante atualmente, no um produto da traio de dirigentes reformistas, mas a expresso do movimento operrio que aderiu aos valores e lgica do capitalismo. A burocracia sindical, tal como a burocracia poltica, s reflete a imagem dos movimentos sociais contemporneos. Esta reavaliao das relaes anarquismo X sindicalismo, e a definio de uma estratgia atual para a ao no mundo do trabalho no deixam de ser importantes, mesmo que, levando em considerao a situao atual na maioria dos pases, as perspectivas para os anarquistas so, quando muito, a de contribuir para a criao de ncleos de autonomia e auto- organizao nos locais de trabalho, aplicando as idias e tticas do anarco-sindicalismo adequadas a cada situao. Hoje o sindicalismo para ser revolucionrio, teria de se tornar mais abrangente, mesmo ao nvel reivindicativo, rompendo as amarras do reacionarismo corporativo. Alm das tradicionais lutas salariais, de reduo de horrio, de melhoria das condies de trabalho e contra o desemprego, teria de passar a intervir no redimensionamento do papel do trabalho e da funo do trabalhador. E, indo mais alm, atuar nas questes que envolvem o mundo do trabalho, como os transportes, habitao, urbanismo, consumo e qualidade de vida, j que so aspetos fundamentais, se partirmos de uma viso integrada das relaes de dominao e de suas conseqncias na existncia quotidiana dos assalariados.** O sindicalismo revolucionrio teria de retomar a tradio perdida de ser o espao de construo de relaes de afinidade e solidariedade e de criao de uma contracultura de resistncia. Rompendo a barreira contempornea estabelecida entre os trabalhadores garantidos e excludos, entre os que possuem trabalho precrio e trabalho seguro, criando formas de organizao e luta solidria junto com os desempregados e aposentados. As mudanas estruturais por que est passando a sociedade capitalista tem como uma de suas conseqncias mais importantes o declnio da coeso e conscincia dos trabalhadores, bem como a perda da identidade construda ao longo do sculo XIX e primeiras dcadas do nosso sculo. O Estado do Bem- Estar, a sociedade de consumo e as tecnologias de massificao, em particular o rdio e a televiso, podem ser apontadas como algumas das razes fundamentais para esta realidade que se manifesta de forma clara no primeiro mundo e j adquire os mesmos contornos nos pases do sul industrializados e urbanizados. Onde o espao comunitrio e da socializao d lugar realidade meditica da televiso omnipresente. Se num primeiro momento o sindicalismo e o anarquismo conseguiram se apropriar da tecnologia da imprensa e a partir dela construir uma cultura operria e libertria, o mesmo processo no ocorreu em relao rdio, televiso, vdeo e agora em relao informtica, que foram usados quase exclusivamente pelo sistema para unificar ideolgica e culturalmente toda a sociedade, destruindo as diferenas e neutralizando a resistncia cultural que se havia gerado a partir da crtica anti- capitalista. Essa estratgia teve um outro desdobramento, que foi o da fragmentao do espao coletivo quotidiano das classes dominadas, induzidas por essas mesmas tecnologias a se fecharem sob o espao individual e privado do lar. A reconstruo desse espao perdido da sociabilidade, da comunicao e da cultura dos "de baixo", possivelmente o maior desafio que um projeto libertrio ter de enfrentar. O anarco-sindicalismo, principal responsvel pela criao dessa cultura operria em muitos pases, foi um exemplo de criatividade dos operrios libertrios e de sua adaptao s necessidades de luta da poca em que surgiu. Foi tambm a aplicao concreta de estruturas auto-controlveis e auto-dirigidas sociedade industrial. Sua recriao atual, ter de afastar qualquer pretenso hegemonista ou de imitao saudosista e considerar que uma das estratgias possveis de luta anti- capitalista. Talvez a que maiores potencialidades ainda tem entre os setores sociais sujeitos as condies de trabalho violentas ou em regies do mundo onde o quotidiano de misria e explorao mantm desperto o instinto combativo dos assalariados. Mas no se pode perder de vista que toda a anlise social, centrada exclusivamente sobre as relaes de produo, no d conta de muitos problemas j levantados no passado e, menos ainda, dos que adquiriram maior importncia nos ltimos anos, atravs dos novos movimentos sociais, nascidos como resposta auto-organizativa a situaes e conflitos diferenciados. O anarquismo que j no passado se manifestava e agia nas mais diferentes reas, do anti-militarismo e pacifismo, ao naturismo, do esperanto s experincias educacionais, deveria estar especialmente atento s potencialidades libertrias destes novos movimentos. Mas, sem deixar de lhes apontar a principal limitao que a de assumirem uma viso fragmentada dos problemas estruturais da sociedade, perdendo a noo do todo social. Da organizao dos consumidores, ao ambientalismo, da ecologia ao feminismo, do anti-militarismo s prises, muitos so os objetivos e as formas de associao que potenciam a auto-organizao de diferentes setores da sociedade em defesa dos seus interesses e, certamente, em todos os casos pode haver uma proposta e uma presena libertria que potencie a articulao e globalizao de cada uma dessas lutas. A ecologia social e o anti-militarismo, pelas suas tradicionais afinidades com os valores libertrios, so reas onde a militncia anarquista mais se tem exprimido, mas tambm a as potencialidades so limitadas, se for perdido o sentido da estratgia global de ruptura.* No possvel construir uma alternativa social a partir do espao fragmentado da particularidade e da diferena, mas somente a partir da cooperao em torno de um projeto de mudana que una diferentes grupos e tendncias sociais. Caso contrrio acabaro engolidos - como temos assistido nos ltimos tempos - pelo movimento permanente de integrao, atravs do qual o sistema tende a recuperar em seu benefcio toda a crtica parcelar. Tambm as lutas relativas s liberdades se tem tornado mais comuns nos chamados pases democrticos, sendo 12. 12 decisivas para impedir a expanso do Estado autoritrio. Os anarquistas no se podem omitir com o incuo pretexto de que em muitas delas esto em causa apenas regras jurdicas, j que so estes espaos de liberdade que o movimento social imps ao Estado, como seus direitos que esto ameaados. As garantias penais e processuais, os direitos dos presos, o direito de asilo e de emigrao, so entre muitos outros, os que os Estados vm paulativamente eliminando ou reduzindo. A nossa crtica ao Estado se concretiza no estabelecimento de metas imediatas para a luta social nesta rea. Contrariamente a uma recusa abstrata ou a uma concepo doutrinria, devemos apoiar uma prtica radical anti-estatista, que em cada caso e situao se oponha expanso e hegemonia das relaes de Poder, e favorea a autonomia e a criao de espaos de liberdade a partir da prpria sociedade. Todas estas possibilidades, em aberto, para nossa interveno, esto condicionadas pela capacidade de nos articularmos e associarmos, j que s movimentos sociais organizados tm condies para transformar qualquer situao social. Nossa fragilidade organizativa: incapacidade de associao e coordenao em cada regio e mais ainda internacionalmente, so por demais evidentes para no serem vistas como um dos problemas chaves do que genericamente chamamos de movimento libertrio. No se solucionando isto, ser impossvel qualquer ativismo profcuo, qualquer resultado duradouro para a nossa militncia ou a transmisso de uma cultura libertria entre geraes. O processo de globalizao da sociedade industrial, est entrando num momento decisivo, onde o internacionalismo e a solidariedade dos povos o nico antdoto contra a xenofobia e a ghuetizao de um mundo repartido entre o desperdcio da abundncia, no Norte, e a mais absurda das misrias no Sul. Usando as palavras de Noam Chomsky : "o principal hoje que se a resistncia popular quiser ter alguma significncia, ter que ser internacional..., isto comea a ser compreendido e preciso que haja algum tipo de reao em escala internacional, um tipo de solidariedade transnacional entre pobres e trabalhadores". Por essa razo podemos afirmar que, de forma imediata, teremos de encarar a questo da associao, articulao e coordenao de nossas prticas. O que passa tambm pela clarificao do papel da organizao libertria, que , antes do mais, o de criao de um espao coletivo, livre e fraterno, onde se forjem novas relaes sociais e se viva de acordo com os valores da cultura libertria, como aconteceu no passado quando "os trabalhadores e os pobres no estavam nem de longe to isolados e nem submetidos ao monoplio ideolgico da mdia dos negcios."* Foi por isso que a esperana e a utopia se reproduziam nesses espaos libertados onde viviam os excludos. esta uma das funes que temos de recuperar para as associaes libertrias, ao mesmo tempo que se assumam como um ncleo de difuso das idias anarquistas e de articulao da luta de resistncia anti-capitalista. As formas concretas de associao podem ser diversas, das organizaes anarco-sindicalistas, s federaes de grupos de afinidade, das redes de informao, s associaes de ateneus e centros de cultura. O fundamental federalizar e coletivizar prticas e experincias isoladas, ampliando assim as possibilidades de interveno social. A ruptura com o isolamento e o individualismo do cidado-consumidor- espectador papel que o Sistema nos quer impor o passo mais decisivo no caminho da reconstruo do espao coletivo da alternativa social. S atravs de um associativismo libertrio que respeite a autonomia, singularidade e diferena entre cada indivduo ou grupo, mas que seja capaz de potencializar, acima de tudo, o que temos em comum, fundamento de qualquer relao de afinidade, solidariedade e apoio mtuo, poderemos criar uma dinmica nova no movimento e concretizarmos de imediato as formas organizacionais que propomos para a sociedade. Este o modelo reconhecido por qualquer anarquista, mas que tantas vezes negamos ao adotar posturas dogmticas e arrogantes, confrontos personalizados, criticismos inconseqentes, resultantes do descomprometimento com a tica anarquista. Essa tica que nos leva a exigir uma adequao dos meios aos fins um ponto importante da nossa crtica ao socialismo autoritrio deve assumir um papel central na militncia libertria, condicionando imperativamente nossa prtica social. Uma realidade em que esto presentes tenses permanentes, resultantes das presses do meio social, da introjeo dos valores dominantes e das limitaes pessoais, mas que ser sempre o critrio determinante para a avaliao da coerncia de cada um de ns. A tica anarquista e os valores libertrios tornam-se, assim, pontos da ruptura radical com as ideologias autoritrias, constituindo a mais profunda clivagem com o socialismo autoritrio. A rebeldia, a transformao social s podem ser um produto da vontade livre de sujeitos autodeterminados e solidrios vivendo dentro de uma dada realidade histrica e social. Jamais produto das condies materiais de produo. Essas sempre potenciaro a maximizao da alienao e da sujeio. Nenhum materialismo vulgar poder explicar Miguel Angiolillo. Um operrio italiano refugiado em Londres, que depois de conhecer os depoimentos de anarquistas espanhis vtimas de priso e tortura, decide em 1896, calma e pacientemente procurar o primeiro ministro de um pas estranho e o assassinar, morrendo no garrote aps realizar o que para si era imperativo pessoal de solidariedade. 4. DILEMAS DO ANARQUISMO CONTEMPORNEO "Uma sociedade que se auto-organiza sem autoridade, est sempre ao nosso alcance como uma semente debaixo da neve, enterrada pelo peso do Estado e sua burocracia..." Colin Ward Ao contrrio do que muitos gostariam, o anarquismo no uma espcie extica em extino; em todos os pases ele est presente na manifestao ruidosa na praa pblica ou na recusa silenciosa. Mas certamente poderemos afirmar que enquanto movimento com o mnimo de organicidade, o anarquismo desapareceu nos ltimos cinqenta anos. Existem coletivos, publicaes e associaes em muitos pases, mas no mais um movimento federalizado e internacionalista que se relacione de forma ativa e se afirme como alternativa social. A incapacidade organizativa, a reduzida atuao dos anarquistas nos movimentos sociais e a cristalizao terica, so essas as questes centrais que os libertrios tm de enfrentar nos tempos presentes. Existe uma relao direta entre estes dois aspectos j que, quer o pensamento individual, quer a elaborao de um conhecimento coletivo, esto ligados indissociavelmente participao da prxis de um grupo ou classe social. Como alguns libertrios gostam de afirmar "os anarquistas so tericos da sua prtica e prticos da sua teoria". em funo do agir sobre a realidade que qualquer teoria social se vai elaborando, 13. 13 enriquecendo e auto-corrigindo. Cada sucesso ou fracasso, impe uma reavaliao do nosso pensar. Esta relao primordial entre teoria e prtica, sempre existiu no movimento anarquista histrico, essa foi uma das razes porque no se constituiu uma intelligentzia especializada em pensar a mudana social, entre os libertrios. No marxismo essa ruptura gerou, na maioria dos casos, um pensamento essencialmente ideolgico e contemplativo, tipicamente acadmico e nesse sentido intil para o movimento anti-capitalista. Desde sua priso, na Saxonia Bakunin escreveu uma carta em que dizia: "Encontro-me agora no ponto zero, quero dizer que estou condenado condio de ser exclusivamente pensante, ou seja, no vivente." Se existe corrente socialista que assumiu a 11 Tese de Marx contra Feuerbach: "Os filsofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transform- lo" foram os libertrios. No anarquismo, os intelectuais do movimento sempre se assumiram mais como militantes do que como pensadores, sua radicalidade, e a opo pela coerncia impossibilitaram que o anarquista produzisse essa subespcie de tericos contempladores. Mesmo os que como intelectuais brilhantes como Kropotkin, Reclus ou Santillan acabaram no dispondo do tempo e meios que lhes possibilitassem procurar suas cadeiras em alguma biblioteca do exlio. Mas certamente difcil encontrar movimento social que tenha conseguido produzir tantos autodidatas crticos e pensadores quanto o anarquismo, usando a deliciosa expresso do historiador do anarquismo Edgar Rodrigues - tambm ele um autodidata - que movimento conseguiu produzir um "engraxate e intelectual" como Ossep Stefanovetch ucrniano anarquista que viveu no Brasil ? A prpria natureza heterodoxa do anarquismo impede a sua recuperao como mera ideologia, at porque desde Proudhon se recusava a construo de um sistema fechado e auto-suficiente: "Acolhamos, encoragemos todos os protestos, desonremos as excluses, todos os misticismos: no olhemos jamais uma questo como esgotada, e quando tivermos usado at ao nosso ltimo argumento, recomecemos, se for preciso, com eloquncia e ironia".* O que tambm o diferenciava daquela corrente que se proclamava do socialismo cientfico e que era uma manifestao da imensa arrogncia e dogmatismo intelectual. No entanto, na medida em que o anarquismo se foi afastando da realidade social, perdendo suas razes nos movimentos sociais, tambm ele se encaminhou para a cristalizao terica, que se traduziu no seu fechamento como pensamento doutrinrio, numa reflexo acadmica sem qualquer contedo de crtica social ou num niilismo chique para consumo de classe mdia. O anti-dogmatismo essencial do anarquismo tambm no justifica que nos possamos agarrar a algumas idias gerais e excluir o sentido da dvida sistemtica. Pelo contrrio, nos exige uma necessria recriao permanente, o que nos impe um aguado sentido autocrtico. A complexidade social atual, os problemas sociais e polticos que hoje temos de encarar e a ampliao permanente do conhecimento, deve-nos levar a novas elaboraes tericas e a novas estratgias de ao. No como forma de adaptao realidade - do tipo libertarista ps-moderno - mas sim como meio de responder necessidade de crtica dessa realidade. Conjugar o sentido utpico do anarquismo com a reflexo terica e uma prtica social, essencial para que o pensamento libertrio adquira uma dimenso social revolucionrio. Caso contrrio ficar reduzido a uma tica de comportamento ou a uma seita messinica sem qualquer condio de interao com os acontecimentos reais. Quanto s novas teorizaes que tm ocorrido nos ltimos anos, um pouco por todo o lado, na linha libertarista norte-americana de um Robert Nozick*, muito se afastou dos valores radicais do anarquismo para se aproximar do liberalismo, que no tem correspondncia com a realidade cnica do sistema dominante. Mais que um pensamento reformista - j que nem radicais so em suas exigncias de reforma -, um pensamento acomodado, incapaz de questionar profundamente a realidade e apostar na vontade e desejo utpico que sempre estiveram presentes nos movimentos sociais dos oprimidos. Ao contrrio do que apregoam os libertaristas, o pensamento anarquista clssico sobre o Estado e o Poder, mantm toda a sua pertinncia, e o conceito libertrio de uma comunidade autogovernada, descentralizada e federalizada mais atual que nunca. A intuio e lucidez na crtica do socialismo autoritrio e do Estado, foi confirmada pela histria dos regimes das burocracias vermelhas. O que no nos impede de reconhecer que as idias expostas por Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Malatesta e Landauer, entre outros, no tiveram os desenvolvimentos posteriores que se faziam necessrios. Muitas questes abertas pela experincia da Revoluo Sovitica e da Revoluo libertria em Espanha, bem como muitas outras surgidas com as mutaes ocorridas na sociedade industrial (das novas tecnologias, ecologia), esto em aberto. Uma teoria do Poder; uma concepo libertria de organizao; a anlise das formas de autogesto; os problemas de escala e da complexidade tecnolgica na sociedade contempornea; um entendimento dos mecanismos psicolgicos da agressividade e da dominao; as relaes de micropoder na famlia e nos grupos, um estudo das potencialidades libertadoras da robtica e da telemtica, so entre outros temas que precisam de ser aprofundados desde uma perspectiva libertria. Enquanto o anarquismo esteve no centro dos movimentos sociais e se afirmava como pensamento rebelde, manteve sua capacidade de atrao sobre uma intelectualidade desvinculada e crtica. At ao comeo do sculo conhecidos pensadores se interessavam pelas idias e as principais figuras do movimento como Kropotkin e Reclus, encontravam-se envolvidas nos grandes debates intelectuais da poca. Nos anos 20 ainda muitos pensadores da importncia de Buber, Lukcs e Benjamin estavam prximos de posies libertrias, o mesmo ocorrendo com muitos escritores e artistas.* Aps os anos 30, a atrao exercida pelo socialismo possvel abriu o caminho hegemonia do marxismo-leninismo nos meios intelectuais, passando o anarquismo a persistir como referncia s em alguns meios dissidentes: dos tericos do conselhismo, pacifistas, ou escritores como Pert, Breton, Orwell, Huxley e Camus. Um movimento inverso, embora minoritrio, haveria de ocorrer, quando a conscincia dos crimes cometidos pelas burocracias vermelhas, aproximou do anarquismo importantes intelectuais oriundos do marxismo, entre os quais Herbert Read, Daniel Gurin, Murray Bookchin, Noam Chomsky e Paul Goodman. Com eles o pensamento libertrio ganhou importantes contribuies em novas reas, da arte, educao, urbanismo e ecologia social. Mas foi s a partir dos anos 60, que assistimos a uma ruptura ampla dos intelectuais como o autoritarismo comunista, quer pelo conhecimento da realidade do estalinismo, quer pela influncia da exploso libertria ocorrida no final dessa dcada, s que essa ruptura haveria de tomar duas direes: de um lado uma 14. 14 maioria intelectual que adotou a postura acomodada de conivncia tcita ou adeso explcita ao capitalismo, sob o eufemismo de adeso aos valores democrticos; de outro, uma minoria que persistiu com uma posio crtica e autnoma, vindo vrios a se aproximar dos valores libertrios e da tradio anarquista, mesmo que em alguns casos tenham permanecido com posies oscilantes e contraditrias, j que por pruridos marxistas ou por preconceitos acadmicos, acabavam no reconhecendo explicitamente essa vinculao. Dos situacionistas, a Guattari, Bosquet e Castoriadis, a contribuio a um pensamento libertrio contemporneo ainda feita com preconceitos e mal entendidos em relao corrente social que mais pensou e lutou por esses valores. No est em causa a eliminao do sentido crtico sobre o prprio anarquismo, ou a identificao apriorstica do libertrio com aquele que se diz ser anarquista, mas certamente contraditrio se posicionar como libertrio e ostensivamente ignorar um pensamento e uma prtica social que se traduziram na histria contempornea, essencialmente, no movimento anarquista. Pelo contrrio, entre os anarquistas sempre houve uma procura permanente das fontes do pensamento libertrio, dos herticos do passado aos do presente, de Illich a Marcuse e Reich, uma posio aberta heterodoxia. Mesmo que em alguns casos tambm tenham ocorrido resistncias a essas crticas libertrias que no eram de matriz anarquista, como se por esse fato, fossem menos fundamentais para ns. Essa forma de preconceito, tambm leva ao dogmatismo e traduz-se na maioria dos casos, numa recusa de toda a produo terica que seja exterior ao movimento. Uma obstinada cegueira que impossibilita uma leitura proveitosa, por exemplo, do pensamento de raiz marxista, principalmente aquele elaborado por intelectuais anti-autoritrios. Esta intransigncia no leva em conta o que Kropotkin um dia caracterizou como a luta permanente de duas tendncias na histria e na sociedade: uma corrente autoritria e uma corrente libertria. E que esta ltima no pode ser reduzida a uma expresso pura, pelo contrrio produto de diferentes prticas e da reflexo contnua, e tantas vezes contraditria, em que cada grupo e indivduo, de forma cooperativa, vo acrescentando algo de novo, numa superao permanente de dvidas e dificuldades. Usando as palavras de Colin Ward: "a escolha entre as solues libertria e autoritria no consiste em uma luta catastrfica definitiva, mas em uma srie de compromissos atuais, muitos deles inconclusos, que ocorrem e ocorrero, ao largo de toda a histria". * No entanto, sintomtico a dificuldade do anarquismo absorver o novo pensamento libertrio. Tirando algumas excepes na Itlia, Frana e EUA, onde tem estado presente nos coletivos anarquistas assumindo, a uma contemporaniedade radical, em Espanha depois do perodo dinmico do fim dos anos 70, quando publicaes como a Bicicleta trouxeram esse novo rosto do pensamento libertrio, logo se voltou a um discurso carregado de fantasmas e saudades Esta cristalizao ideolgica do anarquismo, como teoria definida e acabada, leva a uma concepo sectria e religiosa Vctor Garcia, velho militante anarquista, colocou o dedo na ferida numa crtica cida ao ortodoxismo quando escreveu: "El anarquismo debe vigorizar-se y actualizar-se, condicin imprescindible si deseamos tener auditorio. El anarquismo organizado, en particular, ha sufrido una exagerada tirania por parte de vestales, exgetas y Torquemadas que no han permitido nunca el re-examen y la renovacin de unas tticas por miedo a que se resintieran los principios y las finalidades. Esta imposicin oficialista ortodoxa no ha permitido el airear nuestros recintos que se han llenado de teleraas mientras el mundo intelectual y la cincia continuaba una marcha vertiginosa que nos costar esfuerzos supremos si queremos darle alcance. Todo el que no se renueva, muere..." ** O anarquismo nasceu da dissidncia e da heterodoxia, em Godwin, Bakunin ou Malatesta no encontramos esse sectarismo e ortodoxia, essa tentao que no esteve de todo ausente em outras pocas, acabou sufocada pela diversidade e radicalidade heterodoxa. Anarquistas, sindicalistas, individualistas, pacifistas e insurreicionalistas, foram a expresso dessa pluralidade libertria que fizeram do anarquismo uma manifestao viva do pensamento anti-dogmtico. Estas so algumas das caractersticas que temos de preservar, sendo a tolerncia uma componente bsica do movimento anti- autoritrio, sem ela no possvel pensar qualquer forma de associativismo ou qualquer forma de renovao. 5. POSSIBILIDADES ATUAIS DE UMA AO LIBERTRIA "Os homens temem este desconhecido no qual entrariam se renunciassem atual ordem de vida conhecida. Sem dvida, bom temer o desconhecido, quando nossa situao conhecida boa e segura; mas este no o caso e sabemos sem margem de dvida, que estamos beira do abismo ." Liev Tolstoi Mesmo neste momento de maior arrogncia do sistema capitalista que se travestiu em sociedade democrtica, e s por esse nome quer ser conhecido, quando a ideologia do Poder e da Sujeio se escuta em todo o lado, no se descortinam argumentos a favor de um sistema essencialmente infame. Sua irracionalidade econmica e social por demais evidente. A pequena ilha de abundncia, cercada de pobreza, pode at ser o paraso, ou um pobre sucedneo, para os que a vivem. S que no passa disso, uma ilha que abastecida e financiada pelos que vivem fora dela. Uma multido de esfomeados, desesperados ou de conformados na misria que povoam as grandes regies do planeta. Como possvel falar de progresso, desenvolvimento e xito do gnero humano neste contexto, em que uma parte da Humanidade se dessolidariza da restante? Como admitir como poltica ou eticamente admissvel um sistema social que perpetua tal realidade ? Que Futuro aponta essa realidade ? Certamente no a ampliao da sociedade de consumo, escala universal, mesmo que se amplie a novas ilhas, no oceano do apartheid social. Os recursos escassos e a crise ecolgica provocada pela economia do lucro e do desperdcio, s permitem visualizar uma planificao autoritria escala mundial, com o controle rigoroso dos recursos, da destruio ambiental e da prpria populao.* Em resumo, um sistema ainda mais autoritrio e injusto. O contraponto a esse futuro ser sempre uma possibilidade, criada a partir da vontade, desejo e conscincia dos de baixo, dos excludos deste sistema, mas tambm de todos os estratos sociais para quem a Humanidade maior que o Estado, evocando as palavras de Martin Buber. Dos que tm conscincia que as opes so mais vastas e que o futuro e o mundo so criados pelos seres humanos e, como tal, sempre estaro abertos nossa ao criadora. 15. 15 Do ponto de vista do anarquismo, do movimento dos que recusam todas as formas de dominao, no podemos deixar de considerar uma prova da perenidade do inconformismo e da rebeldia, a persistncia do movimento e das idias nesta poca de restaurao e conformismo. O aparecimento de novos grupos no Leste europeu e em pases do Terceiro Mundo, bem como a aproximao de intelectuais dos princpios libertrios, sinalizam a pertinncia da reflexo anarquista sobre o poder, a dominao e o estado. Abrindo possibilidades para o ressurgir de um socialismo libertrio, orgnico e federalista. A prpria generalizao nas redes sociais de conceitos como autonomia