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Amores Urbanos – Robson Assis 1 Amores Urbanos Robson Assis Contos (2008 2009)

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Amores Urbanos – Robson Assis

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Amores Urbanos Robson Assis

Contos (2008 – 2009)

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Amores Urbanos – Robson Assis

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Estou tomando a última xícara de café da

madrugada de domingo para segunda. Seria

poético, se não fosse trágico. Num poço de

neurose sem fundo vivo meu último ano na casa

dos vinte. Aqui está um pouco de mim e do que

ouvi dizer sobre a vida. O que era pra ser um livro

de contos pra vender na rua, quando a situação

financeira melhorasse e eu pudesse bancar uma

gráfica. Estava apenas esperando o melhor

momento para publicar isso. Ainda não encontrei.

É tudo ficção até que alguém prove o contrário.

Robson Assis

[email protected]

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A Nova Ordem do Caos

ou "O dia em que João saiu de casa com uma 12 no punho"

Ele descia a rua a milhão. Estava impregnado em seus olhos, claro como as brasas do inferno. A vingança era

sua única sede. O ódio sua única verdade. Caminhava sobre as luzes dos postes e pessoas que devagar abriam

suas janelas para ver o que acontecia lá fora. Aquele barulho, aquela agitação. Quem será o fulano dessa vez?

Carregava consigo uma arma de pesado calibre numa das mãos, no outro, o corpo de um policial já

desfigurado de tanto apanhar. Ele não sabia onde tudo aquilo iria acabar, talvez ele nem quisesse que tudo

aquilo tivesse fim. Descia, acelerado, solitário e raivoso. Descia.

Cansado da polícia, cansado da ordem que os homens de farda colocavam no seu bairro, a ordem fajuta que

causava a morte de homens inocentes em detrimento de um grupo seleto de traficantes que sustentavam

estatísticas como a mortalidade infantil e os índices de criminalidade. Ao pensar nisto, suas veias do rosto

saltavam e pareciam linhas de trem furiosas que cortavam sua face de ponta a ponta. Suor, sangue, e dessa vez

sem lágrimas, pelo menos de sua parte.

Mais alguns metros à frente refletiu sobre o que estava fazendo. Parou, encostou num carro, largou a arma de

canto. Esqueceu por alguns momentos o motivo de toda a cena miserável que lhe rodeava. Pôs a mão no rosto,

para não mais enxergar a rua, nem a enxurrada de água que descia junto à guia. Ouviu barulho de carros,

música. Quatro garotos desciam devagar com um Fusca, tocando uma música qualquer indecente e festiva,

como as músicas de hoje o são. Colocou a mão sobre os ouvidos, não queria voltar. Olhou para a entrada

estreita da favela, onde tinha parado. Outros garotos fumavam algo escondido num canto e sussurravam com

medo. Largou seus braços, se livrou da água que batia violentamente contra sua face.

Abordou o Fusca. Os garotos estranharam, mas pararam o carro. Um deles apontou uma faca. Quando viu o

cano duplo, deixou cair o artefato entre os dedos. Abriu a porta de um dos lados. Disse um simples e furioso:

Saiam! Os quatro, possivelmente menores de idade corriam como ratos pelas frestas escuras da favela.

Olhou por dentro do carro. Viu que o som era de última geração, desses mais caros do que muitos daqueles

barracos de palafita que estava acostumado a ver. Deu o primeiro tiro. O capô do carro, aberto, também

condenava um alto-falante potente, destruído pelo segundo tiro. Soltou o freio de mão e deixou o carro descer.

A despeito da cena que premeditava - ver o dito descer até o fim da rua, passar o cruzamento e ter um fim

trágico, com sorte até explosivo - o automóvel desalinhado bateu no terceiro poste, após passar raspando um

Golf estacionado na frente de um bar fechado.

Deu um chute na cara do policial que carregava e prosseguiu.

Inventava orações hereges durante o trajeto: "Deus dos fortes e justos, me dá alívio na morte de meus

inimigos, me dá esperança na tragédia anunciada daqueles que querem o mal da humanidade. Me curvo

perante sua bondade e apelo para que não tenha pena de meus adversários e os deixe padecer no conforto do

esquecimento eterno. Pela morte cruel, indigna e pela putrefação das almas destes idiotas, Amém".

Faltava algo perto de 300 metros para acabar a ladeira, viu uma travessa escura, a qual já havia morado

quando menor, com seus pais. O lugar parecia uma ilha perdida no meio do inferno. Ali até gatos e cachorros

viviam em harmonia, velhos sentavam na rua até tarde. Viu uma criança que brincava na garagem de casa,

despreocupada, sem pensar em maldades alheias, como se estivesse vigiada por uma equipe de seguranças

treinados pela CIA. E o fato de haver gente no mundo preocupada com maldade e cercada 24 horas diárias por

homens armados e vidros blindados o trazia de volta à sua descomunal condição de monstro.

Ao olhar pra frente, o pesadelo se fez real. Cerca de oito viaturas fechavam a rua que tinha apenas aquela

saída. As travessas e ruazinhas não levavam ao mesmo local. Grande parte delas era sem saída. Um policial

fala em um megafone, pede para que se entregue. Ele para. Olha pra trás, vê algumas luzes acesas, janelas

entreabertas e olhos escondidos na escuridão daquela noite chuvosa. Olha para frente e larga o corpo por

alguns instantes.

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A essa altura o corpo do policial parecia criar um rastro de gosma no chão. Desistiu do corpo que encarava

como seu refém.

Correu para trás de um carro. Alguns policiais que já corriam na frente foram atigidos por seus primeiros tiros.

Os outros se seguravam atrás das portas de suas viaturas, com receio do maluco que tinha uma doze na mão.

Abriu pelo quebra-vento aquele Gol 91, desvirou o volante, respirou. Tirou da cintura a Automática que havia

levado. Soltou o freio de mão.

O carro descia fielmente alinhado, como esperava. Ele, atrás, corria, gritava e atirava nos policiais que

revidavam sobre o Gol, seu escudo.

A essa hora, ele já devia saber no que havia se metido. Foi quando tomou um tiro no ombro e provou seu

sangue pela primeira vez. Do cartucho de sua automática, saíram os tiros que derrubaram outros três policiais.

As baixas da corporação já eram tantas que ele já nem sentia seu tiro, satisfeito do que estava fazendo,

gargalhava sob um céu negro e pouco poético da periferia de São Paulo.

Um homem cansado não consegue esperar por um outro dia de sossego. Fizeram de sua vida uma merda, o

caos declarado, a guerra fria, ninguém se mexe, ninguém fala, ninguém se levanta. Era só mais um dia comum

para ele. Mas naquele dia o senso comum lhe disse que seus ossos não suportariam sequer mais um dia sem

poder provar a si mesmo a fragilidade do mundo e a força dos humanos comuns.

Seu pesadelo terminou com 16 tiros no peito e um corpo que definhava em outra cova num cemitério da

periferia paulistana. Os jornais do dia seguinte o entregavam como maluco. Alguns faziam referências a Serial

Killers, filmes sobre psicopatas. Michael Meyers, Conspiração, Sociopatia, palavras que não faltaram nos

periódicos daquela manhã cinzenta. Houve páginas de dedicação aos heróis que salvaram o mundo daquele

terrorista e homenagem com presença do prefeito da cidade, cavalaria e salva de tiros.

No outro dia de noite a biqueira pegava fogo, moleques continuavam a esmolar e furtar bolsas de tiazinhas

para sustentar seus vícios, fogos de artifício durante o dia todo diziam que a quebrada tava fervendo, o estoque

de entorpecentes na boca de fumo estava cheio. O contra-cheque da PM estava pronto, a parte deles feita.

Policiais cretinos rezavam de noite para que ninguém mais se revoltavasse contra a ordem que eles mesmos

estabeleceram.

Nosso João só queria justiça.

*

A Vida Continua

Péu caminha de lá pra cá no centro movimentado da cidade. É só passar pelo Anhangabaú ao entardecer,

naquele horário em que os office-boys se encontram com os vendedores de loja e carros escuros blindados

para vê-lo passar com um saco de cola na mão, se der sorte no dia, ele até dorme num lugar coberto, com seu

saquinho do lado, dividindo espaço com as baratas e o mau cheiro do centro velho de São Paulo.

Sangue nos olhos desde recém-nascido, Péu não é de deixar qualquer oportunidade passar batido. É dia de

show na Tiradentes, milhares de pessoas passam em direção ao local, portando garrafas de bebida, com os

mais diversos estilos e cores, malandragens e odores. Ele espera embaixo do viaduto.

Cinco garotos e uma garota passam na frente, se destacando dos outros três atrás. Péu cola na banca que

restou pra trás e dá a multa:

- Vai, boyzão, solta a moeda pra nós aí.

- E aí, mano, suave?

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Nunca haviam trocado idéia com ele nestas horas. Geralmente o "boyzão" se caga, dá duas notas de 10, o

relógio e sai andando. Péu fica surpreso com a idéia de um cara vir falar algo além de "calma, fica calmo, não

precisa machucar ninguém".

- Suave o que, tiozão? Solta o bagulho - Péu tenta outra vez intimidar

- Então, mano, a gente não tem dinheiro não, tio, tamo indo pro show lá que é de graça.

- É memo, e se achar?

- ô, truta, a gente veio lá do Jd. Elba na leste, tamo osso memo.

- Pode cre, mas e os moleque que passaram aí, tem nada também?

- Tem nada, mano, compramos a bebida e viemos.

- Pode cre, moleque, constou a idéia, vocês são pela ordem.

- Firmeza então.

- Mas aí, deixa um gole pra nós desse esquema aí?

Péu pega uma garrafa 600ml que trazia consigo e enche da bebida dos meninos. Os outros três, mais adeptos a

fazer amizades com alheios e anônimos, param pra conversar com Péu e abandonam o outro grupo que

esperava mais à frente, destacado. Contam de onde vieram, que eram trabalhadores e também suavam frio

com a polícia, mas por outro motivo, portavam entorpecentes e tapa da polícia de graça ninguém gostava.

O grupo caminha até um dos bancos do Vale e se sentam junto. Conversam, bebem, fumam e começam a dar

risada sobre os transeuntes e suas roupas esquisitas. Péu se sentia entre amigos, fato este que não sabia o que

era desde 1998, quando o destino lhe tirou de maneira trágica o Bequinha, amigo de infância que, anos depois,

ficou sabendo ser seu irmão de sangue por conta das peripécias de sua mãe.

Diz sobre como veio parar na rua para assaltar playboys desse jeito, conta sobre a outra vida que tinha quando

morava num barraco 2x2 na zona oeste e o que aconteceu quando incendiaram a favela em que morava, os

primeiros dias na rua, o sopão, a caminhada até o centro e a vida complicada e cruel de hoje.

Conta aos garotos a história de sua vida, desabafa toda sua raiva aos novos amigos. Logo terminam a garrafa

de conhaque bruta que lhes descia o estômago em rasgos absurdos pela garganta. Já relativamente bem

consigo mesmo por culpa da bebida, os garotos decidem ir embora para o show que ainda estava longe de

começar, mas iriam encontrar seus outros amigos. Se despedem de Péu, que os cumprimenta e agradece por

aquela meia hora em que estiveram perto e conseguiram o deixar com a mente distante de tudo o que vivia.

- Firmeza, Péu, demorou, mano, a gente se tromba ainda por aí, cola lá no show?!

- Que nada, boy. A vida continua por aqui, vou ficar no aguardo da vítima.

*

O Opala

Era outro dia como estas terças-feiras comuns. Renato tinha acabado de chegar do trabalho e estava a trocar

idéia com os seus, no bar do Maurinho, ali mesmo, na vila. Dizia algo sobre como a Veraneio Cinza tinha

passado quase tirando tinta de seu carro, com dois manos do lado de dentro. Imaginou em uma fração de

segundos como estavam se sentindo aqueles dois, talvez sardinhas enlatadas fossem melhor tratadas e

continuou a divagação sobre o que aconteceria se o carro amassasse.

- Imagina se rala... Mano, sei lá, na hora é foda, o sangue sobe, acho que vou atrás.

O Opalão era azul, com quase tudo original, a não ser o som que Tinho, como Renato era conhecido, havia

instalado pra "manter o peso da caranga", segundo ele próprio. Pintura metálica, subwoofer, módulo de seis

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canais, tela de DVD. Se orgulhava até hoje pelo carro estar no principal cartaz daquela oficina de Tuning do

centro da cidade.

Tinho era um aficcionado pelo carro. Vivia por ele, trabalhava e honrava todas as suas dívidas, exceto se um

acaso tornasse o veículo alvo da degradação do tempo. E todos os seis anos em que estava com o carro, jamais

deixara sequer a lâmpada da seta quebrada por mais de dois dias.

- Desce uma gelada que eu tô tenso, pede o malandro.

De praxe, sai por instantes do bar, liga o som e se serve de um copo. Estava tocando aquele programa de rádio

que todo mundo do bairro ouvia, então ele ajudava a transmitir aumentando o volume para que até as ruas

mais distantes da vila pudessem escutar. Volta balbuciando palavras das músicas de Tupac e gesticulava aos

amigos, como se fosse o próprio.

Três cervejas e Nelsinho dichavava a história do Corinthians por pelo menos 15 minutos. Dizia sobre como

ele foi parar na segunda divisão, a fraqueza da diretoria até a falta de firmeza da delegação. Tinho ouvia

comovido a história de seu time do coração e trocava poucas palavras com o malandro, de tanta atenção que

prestava ao que ouvia. Havia esquecido dos policiais, quando dois PM's entram pela porta:

- Vai, mão pra cima, filho da puta, mão pra cima, vagabundo!

A primeira frase do PM depois da geral e das perguntas-procedimento nos seis malandros que estavam no bar

foi: "de quem que é essa porra desse carro aqui fora?". Tinho levanta a mão e a cabeça, trêmulo, mas de certa

forma, acostumado com essa abordagem policial. Após vários gritos do PM, o primeiro tapa na cara. Tinho

novamente abaixa a cabeça e ouve, sem negar nada do que lhe era questionado.

O tempo foi passando, 20, 30 minutos e o policial "embarreirando", palavra com a qual ele contaria o fato na

sexta-feira, quando estivesse no rolê com seus parceiros. O fardado caminhava a passos curtos, com um

discurso sobre a moral e respeito, que onde eles moravam era um lixo e isso e aquilo, eram "todos

vagabundos" e mais. Às vezes parava na frente de um dos suspeitos-de-crime-algum e "pedia" para levantar a

cabeça, mandava outra sessão de descarrego de palavras chulas. Seguia o enquadro.

Chamou então os malandros pra fora do bar e pediu para que Maurinho "gentilmente" fechasse as portas

àquela hora. Encostados no muro, de braços pra trás, na rua relativamente vazia do boteco, os fulanos, entre

eles Tinho, escutavam mais asneiras do PM. "Puta porco insuportável" era o que rondava a mente de todos.

A Veraneio cinza estava parada, dois homens, um em pé e um de dentro do carro, faziam a contenção,

enquanto o vacilão do PM, já menos tenso, andou perto do Opala de Tinho e, sem querer esbarrou o cassetete

no retrovisor.

- Não, caral..! - Sai espontâneo o grito de Tinho

- Que foi, ladrão, você é maluco? - peita o policial, de encontro ao rapaz.

- Nada mano, é que...

- Mano? Você acha que tá falando com quem?

Algumas cacetadas e gemidos de dor fizeram um dos PM's na Veraneio levantar e ir ajudar o outro policial a

conter a ira. Uma daquelas cenas de filme em que os policias brincam de bom e mau.

Tinho ainda estava no chão quando o policial manda os outros irem embora correndo, "que aquele ali não ia

conseguir correr mesmo". Sentam o malandro de frente pro carro e quebram os dois retrovisores, lanternas

traseiras e furam o pneu do carro.

- Tá liberado, filho da puta.

O rapaz, sentado no chão da calçada fria da vila, vê seu carro destruído pelos verdadeiros vândalos da ordem

social. Além do estrago feito pela vistoria atrás de entorpecentes e armas, agora prejuízos concretos. Ele pega

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então, do chão, um caco de vidros caído de seu possante e joga na rua, em forma de lamentos. Pensou com

seus botões em como seria melhor se eles tivessem apenas ralado seu carro.

*

Os Primeiros Dias da Primavera

A garotinha segura uma pomba branca que tenta a todo custo escapar de suas mãos. Não entende o que é um

enterro, não entende que sua mãe está dentro daquele caixão e que jamais voltará. Morta em tiroteio entre

bandidos e policiais: lugar errado, hora errada, a história de suas vidas. O cemitério São Luis cheirava mal

como os outros lugares.

O padre discursa, sua família pequena chora exaustivamente ao lado do caixão, jogam flores, se negam a

acreditar. A vida é dura para quem nasce aqui. Um dia ela vai entender quando ver que existe gente de

verdade que tem aquele iate da novela, compra roupas em lojas mil vezes mais caras que o barraco em que ela

vive, às vezes mais caras que sua própria vida, é o que parece sugerir o mundo. A vida real falha com a gente.

Dois funcionários se encarregam de destinar o caixão ao seu devido buraco, vizinho de outros corpos e

histórias, algumas inocentes, outras tão culpadas quanto a própria morte. Seu pai joga uma flor e ajoelha, aos

prantos, a garotinha ainda não entende nada até que começam a jogar terra sobre o leito final de sua mãe.

Ela vai até perto e olha para o pai procurando explicação. As primeiras lágrimas saem de seus olhos como o

ácido sobre a rosa mais pura. Nunca havia pensado sobre a morte, sobre a existência ou a falta dela. Talvez a

vida fosse outra dali pra frente. A terra cobria cada vez mais o caixão de madeira de sua mãe. Chorava

insuportavelmente durante um sol negro de um dos primeiros dias da primavera.

Só então soltou sem jeito a pomba branca, que voou livre sobre o céu azul esperança do Parque Santo

Antônio.

*

Os Incautos do Centro Velho I

Na rua é tudo tão complicado. Pra domir, o de sempre. Cobertor que ganhei de meu tio Mané, em 2001.

Herança, por assim dizer. Eu devia ter uns 13 anos. Já perdi as contas. Não vejo muito futuro na minha frente.

Não sou o bacana que pensa em aplicar em fundos de investimento e levar a vida com a aposentadoria aos 60

anos. Eu não faço idéia do que significa investir. Mas tava na capa do jornal algo sobre isso. Leio sempre na

banca a maravilha do mundo em que não participo. Meu tio Mané sempre se revoltava: "Covardes", ele dizia

puto da vida. E ainda terminava "Neco, a gente é pobre, miserável, você sabe disso. Mas vou te contar, tem

dias que, mesmo na rua, não me sinto mais solitário do que era quando tinha uma vida média".

Nunca entendi direito as coisas que ele dizia. Morreu no frio. Mas não de frio. Acho que era novembro, o

shopping Light já estava com iluminação de natal. Terça-feira o pessoal daquela Kombi vinha dar sopa perto

do escadão do Viaduto do Chá. Lembro como se fosse um sonho estranho. Dessa vez vieram com eles um

pessoal diferente com uma câmera, uns seis deles. Um povo assustado, nem desceram da Kombi, sequer

abriram a porta. Seu Nelson veio conversar com a gente. Disse que eram de uma faculdade, estudavam

jornalismo, estavam fazendo uma reportagem sobre a distribuição de comida nas ruas.

De longe, e com a normal cara de insatisfeito, Mané ouvia tudo. A palavra "câmera", para ele era um trauma,

dizia. Eram todos uns mentirosos, falsos, hipócritas. Naquela época eu nem imaginava o que era ser hipócrita.

Anos depois fiquei sabendo que meu tio apareceu uma vez na televisão, quando foi espancado por um bando

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de bacanas em uma travessa da Paulista, três ou quatro anos antes de morrer. Os boys foram soltos, ele não

recebeu nem médico. Apareceu ao vivo, todo arrebentado em pleno meio-dia. Foi tido como derrotado pela

galera do Anhangabaú. Como se houvesse qualquer vencedor entre nós.

- Mas eles não vão falar nada comigo não, disse meu tio.

- Po, Mané, calma, eles são gente fina, vieram na boa, estão com a gente.

- É o cacete, vamo ver se alguém desce com câmera aqui, disse já gritando e apontando para a Van, poucos

metros à frente.

- Tá bom, deixa pra lá, eu falo com eles, seu Nelson finalizava a idéia.

De dentro do carro, Maurinho, do terceiro ano, provavelmente ouvia Mané dizendo tudo. Esse moleque era

maluco. Depois fiquei sabendo, o maluco era lá do Brooklyn. Mas da parte boa, sabe. Abriu a porta e fingia

estar apenas ajeitando a câmera, mesmo que todo mundo já tivesse visto a luz vermelha acesa. Mané apontava

de longe e ainda dava pra ouvir os gritos dos outros. "Fecha a porta, Mau, que merda!".

Meu tio correu em disparda pra cima do moleque. Tirou a câmera da mão dele, afastou todo mundo. Deitou o

fulano no chão e distribuiu. Jogou a câmera com força umas 3 vezes na cara, o garotão ensanguentado, já

tinha parado de reagir há um bom tempo. Os gêmeos, que estavam segurando o pessoal da sopa, soltaram,

apavorados. Seguraram os braços de meu tio, que chorava e tremia muito, não se sabe o porquê.

Mané voltou a correr quando uma viatura parou em cima do viaduto e viu a confusão. Os policiais desciam a

milhão os degraus, pulando lances de escada, pareciam uns animais caçando uma presa. Só os mais velhos

ficaram no local e ainda assim, foram agredidos até Seu Nelson dizer que eles não tinham nada a ver e

comentar sobre meu tio. Eu, que já tinha corrido, fingia dormir do lado oposto de onde estava o tumulto, mas

conseguia ver tudo.

Outra vez os policiais farejaram sua caça e foram atrás. O camburão deu a volta e fechou a rua na saída do

terminal bandeira. Alguns dizem ter visto meu tio com algemas, outros dizem que ele apanhou como um cão e

havia tomado um tiro nas costas. Bem que eu havia ouvido uns disparos no dia. A única certeza que tive ao

acordar no outro dia de manhã foi a de que jamais veria meu tio novamente. Mas algo dele parece ainda estar

em mim. Talvez o espírito de lutar pelo que temos, mesmo sem termos nada, é o que me faz sobreviver dia

após dia, sozinho, no inferno do centro de São Paulo.

*

Um Dia em Comum com o Resto do Mundo

São quatro e trinta e cinco da manhã. Meus olhos quase não conseguem abrir, mas ninguém me mandou ficar

acordado até tarde. Com aquele monte de policial na rua não dava pra dormir direito. Certeza que subiam a

avenida principal na captura de alguém. O problema era a gritaria dentro dos becos, os avisos e o silêncio que

se fazia quando se ouvia vozes de PMs. Fiquei da laje vendo tudo, enquanto Aninha, minha esposa, já na

cama, reclamava.

E agora essa de acordar, tudo bem. Naquele momento, desligar o despertador parece a tarefa mais árdua do

mundo, mas quando chega a hora do rush a gente esquece disso e percebe que tem coisa pior para enfrentar.

Finalmente consigo me sentar na cama. No disco que coloco no rádio, um Herbert Viana mais jovem e

esperançoso canta: "Da cama pro banho, do banho pra sala, o sono persiste, o sol já não tarda, a vida insiste

em seguir um velho ritual que sempre segue a tantos outros, o mesmo pão comido aos poucos", quando ouço

esse trecho escovando os dentes e me olhando no espelho, pergunto a mim mesmo se o pessoal da rádio pensa

nessas coisas.

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São cinco e dois da manhã quando coloco os dois pés para fora de casa e desço a Principal, para pegar o

primeiro ônibus da viagem. Nesta caminhada passo por algumas marcas de pneu no asfalto e lembro da

polícia do dia anterior. Até que hora teriam ficado infernizando? Mão no bolso e sigo em frente.

Mais lá embaixo, vejo a fila quase vazia de ônibus e três garotos esperando o ônibus sentido bairro, dormindo

cobertos com suas próprias blusas com marcas de skate que até hoje, vergonhosamente desconheço. Eles

entram em um carro, talvez o primeiro do dia para aqueles lados. Eu continuo de pé, na fila.

- Moço, que horas são, por favor? - Me pergunta uma senhora de óculos e voz doce.

- Cinco e quarenta, senhora.

- Obrigado, viu. Tá uma demora esses ônibus, né?

É lei. Se você informar a hora para uma tiazinha e vocês estiverem em filas, salas de espera ou dentro de

elevadores, ela vai emendar alguma conversa. Dando um pouco mais de corda, descobri que a senhora estava

indo ao médico e pretendia chegar bem cedo. Disse sobre suas filhas, seus netos, mostrou fotos. Fui

conversando com ela até o Hospital do Servidor Público, no final da Ibirapuera. Depois disso sentou um

fulano que dormiu até às seis e cinquenta, quando chegamos no ponto final. Tive que acordar o cara. Isso,

depois de ser acordado por outro que do banco de trás me deu dois tapinhas nas costas, indicando o ponto de

chegada.

Desço a Praça da Sé tranquilamente, ainda me dá tempo de parar no boteco do Barba para tomar um café,

comprar um maço de cigarros, trocar duas palavras sobre a quebra da invencibilidade do Corinthians na Série

B. Chego no prédio dez minutos antes de meu horário. Faço uma brincadeira com Dona Ana, secretária, e vou

para a sala.

O dia passa seco. Almoço no Barba, pra variar. Na quarta-feira ele faz a melhor feijuca do centro de São

Paulo. Relatórios, arquivos, faço de tudo nessa empresa. Tenho até dois cargos, mas, óbvio, como em

qualquer organização de cunho capitalista, recebo apenas por um deles. Já são quatro e vinte e daqui a pouco

volto para o ponto que me entregou aqui pouco depois do sol nascer.

Acho que não existe nada mais contrastante do que ver o pôr-do-sol de cima do viaduto do chá. É uma cena

lindíssima, gostaria que alguém fotografasse um dia. Ao mesmo tempo em que correm contra a morte os

meninos com o saco de cola na mão e as meninas que limpam vidros de carro atrás de trocados.

Apertei um pouco o passo, cheguei no terminal Às seis da tarde.A fila já ganhava proporções que poucos

podem imaginar. Duas, três filas de espera. Os ônibus chegam, lotam e saem. As filas só aumentam. As

tiazinhas pensam no absurdo que é pegar um ônibus, várias pessoas conversam e sorriem, como se aquilo

fosse bonito, ou realmente engraçado. Estranho jeito de levar a vida esse tipo de gente, eu acho. Não consegue

entrar no ônibus porque está muito lotado, sorri. É maltratado pela balconista do banco, sorri. Vai entender.

Dessa vez, talvez pelo horário, não consigo lugar para sentar. Vou ao lado da porta, entre a escada de saída e o

corredor. Ali é tranquilo. É impressionante como todos os dias eu acho que venho no coleitov mais lotado da

cidade. Cada dia um pior. O sistema de transporte da cidade é ridículo, milhares de pessoas e três linhas para o

mesmo lugar. Um celular toca funk enquanto dois caras conversam sobre alguma garota em comum.

Nesta hora, pensei na conspiração que rege o mundo: Ou estou sendo muito zoado por alguém que criou essa

merda toda, ou é tudo verdade e as pessoas são realmente vazias. Esqueço isso quando vejo uma morena

caminhar em plena Avenida santo amaro, com uma saia de seda e um decote que faria qualquer ser humano

ter o mais primitivo dos desejos carnais. Dei risada quando lembrei que também sou vazio.

Desço no final, pego outro coletivo ou pouco mais cheio, talvez por ser menor. Pelo menos chego em casa

rápido. Vejo a bolsa de Aninha jogada no sofá e imagino que acabou de chegar. Ouço o fogão ligado e a

televisão da sala na novela das sete e minha linda mulher assitindo entre a cozinha e a sala. Ela não é a Julia

Roberts, mas nem se fosse eu a amaria tanto.

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Ainda um pouco suado - não do trabalho, da condução - chego ao seu lado e lhe dou um beijo no rosto, um

abraço. Ela pergunta o que eu tenho. Respondo: amor. E ela ri, caminhando para a cozinha e terminando nossa

comida. Também dou risada, nem eu mesmo acredito em mim. Mas acho que, sem o amor, nada destes dias

tensos e dessa correria maluca por sobrevivência, iria funcionar muito bem.

Neste momento olho para o relógio que marca vinte e três e quarenta e oito. Minha princesa dorme e eu tenho

algumas horas de sono para esquecer um pouco toda essa polícia, essa condução, esse capitalismo e essa gente

doida - incluindo eu mesmo - do mundo em que vivo. Poucas coisas na vida conseguem dizer "Eu te amo"

com tanta propriedade como ver sua garota dormindo ao seu lado. É tanta responsabilidade, tanta mente em

parafuso, tanta maluquice, relatório, intriga, briga, desigualdade, maldade e tortura social que às vezes

esquecemos de sentir uma simples saudade.

*

Paranóia Passional

Helena estava cansada. Não suportava mais aquelas homenagens que recebia na igreja da Graça Celestial, que

freqüentava no Jd. Monte Azul. Seu casamento era, deveras, o mais duradouro de todas as jovens do local, ela

sabia disso, não eram necessários os semestrais buquês de rosa e as declarações de amigos e conhecidos ao

final do culto. No próximo mês, seria aniversário dos dois, ela não queria nem imaginar.

Mas dessa vez, Jucilene, amiga do casal, falara tão a fundo sobre o relacionamento que fez Helena suspeitar.

Ao sair do culto agradeceu a todos e viu de longe o cochicho de seu marido Carlinhos com a amiga. A

adrenalina de poder enxergar os dois sem ser vista lhe fez saltar os olhos para um bilhete que Jucilene deixara

no bolso de seu marido.

No caminho a pé entre as subidas e descidas de terra do bairro, o casal falava sobre como era bom estar juntos

por tanto tempo e serem felicitados assim sempre. E Helena dizia tudo de maneira tão jocosa, que desta vez

quem desconfiou foi Carlinhos, mas ainda assim não queria perder tempo e seguiu até em casa sem

questionar.

Ao chegar, Helena o colocou contra a parede. Ele, receoso, viu a garota tirar botão por botão de sua camisa ao

mesmo tempo que mordia a língua.

- Agora não, Leninha.

- Mas hoje a gente tem que comemorar, retruca a moça.

- To muito cansado, querida, depois a gente vê isso melhor.

Claro que jamais desconfiou da esperteza da garota com quem se casou. Era uma menina simples demais para

bolar planos mirabolantes. Helena o viu colocar as roupas no canto do quarto, como de praxe, e entrar no

banheiro resmungando algo. Correu para o quarto e apanhou o bilhete no bolso do rapaz. Um papel amassado

e dobrado quatro vezes dizia:

“Carlinhos, é muito perigoso fazer o que fizemos no meio do culto. Se a Helena perceber vai melar tudo.

Amanhã passo no seu trabalho às 18h30. Lá conversamos melhor. Ju.”

Fez questão de guardar o bilhete do jeito que encontrou. Finalmente, viu que não era apenas ela que estava

cansada de seu relacionamento. E então as horas extras que ele dizia ter acumulado e nunca recebido

começaram a fazer sentido, assim como as noites de sábado em que dizia estar no inventário. A traição de seu

marido começava a se desenhar, bem na sua frente.

Naquela noite, não dormiu, o sangue fervilhava vingança. Havia esquecido todas as

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Amores Urbanos – Robson Assis

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Carlinhos acordou, saiu às 5h20 da madrugada de sexta, era sua rotina. Era o dia de pagar as contas, levou o

dinheiro que sempre guardava nos cantos escondidos de sua casa. No caminho encontrou o bando que mais

assustava os moradores da região. Julinho, Neca, Alemão e o pior deles, Garrincha. Esse último, parou e

desceu do carro, encarando nosso personagem. Aos berros trocava com Carlinhos:

- Ce ta me tirando, doidão? Diz o furioso.

- Não, responde Carlinhos temeroso pelo dinheiro que portava.

- Ah, e eu sou bobo então, sou bobo né.. Isso que ce ta me dizendo?

- Mas o que foi? Eu não fiz nada absolutame..

- To te zuando, mermão – dizia o malandro já rindo da cara do outro com seus parceiros – Vamo ali tomar

uma breja pra finalizar essa noite, vamo!

- Não, que isso, preciso trabalhar ainda, mas valeu.

- Porra, to falando pra vir com a gente, maluco!

Após ver a arma na cintura de Garrincha e o estado ora tranqüilo, ora caótico do malandro, decidiu ir com eles

e inventar qualquer desculpa para o atraso.

No boteco do Jé, tomou algumas doses de cachaça barata e saiu tropeçando na cadeira em que estava.

Garrincha e Alemão, cumprimentaram o rapaz que às 6h30 partia sentido centro.

- Ele gelou, mano, mancada – Diz Alemão.

- Mancada? Mancada é trabalhar pros outro. Um dia zicado abre os olhos da gente.

E todos na mesa riram fervorosamente ao ver Carlinhos tropeçar outra vez na guia em frente ao bar.

Como há muito não bebia por conta de sua religião, Carlinhos percebeu a merda que tinha acabado de fazer.

Completamente bêbado, sentou no final do escadão e chorou. Precisava contar a Helena sobre seu plano com

Jucilene, precisava pedir demissão. Mesmo se passasse fome, se sentiria mais vivo. Havia, então, tomado uma

decisão. Queria viver.

Helena acordara às 7 e meia com um ar estranho entre a angústia e a sede de vingança, desceu à padaria. No

caminho, ao passar pelo bar do Jé, viu malandros assobiando, bêbados, dizendo palavras chulas em relação à

ela. Virou a cara e neste segundo, enquanto olhava para o outro lado, pela primeira vez se permitiu olhar de

volta os fulanos que bebiam de maneira incessante. “Chega aí, morena, tem um lugar aqui pra você”, grita

Alemão.

Ela dá outros três passos e volta ao bar.

Entra, finge não ver os rapazes na mesa, que a olham como Lobos que cercam uma presa. Compra um maço

de cigarros, fato este que não fazia desde os 17 anos, quando era uma garota rebelde, e pergunta ao Jé se tem

fósforos. “Mas ela não é aquela mina da igreja?” se perguntam aos cochichos os quatro malandros. Quando Jé

se vira para pegar os fósforos:

- Aqui, morena, pode acender aqui – Alemão estende o braço com o isqueiro para a moça.

Ela acende. Olha para os rapazes durantes três segundos e solta os cabelos. Os quatro se sentem num filme em

câmera lenta. Ela se senta, olha para os rostos apavorados dos boquiabertos malandros. Se serve de um copo

de cerveja.

- E então? Pergunta a garota enquanto dá seu primeiro gole.

Nenhum daqueles jamais havia visto aquilo. Afinal, eles infernizam a vida de milhares de garotas do bairro.

Nenhuma delas, a não ser as mais conhecidas e atiradas, nunca ousou virar o rosto, olhar para eles. E a que

menos esperavam, a crente, como chamavam, se voltou, sentou à mesa e pegou uma cerveja. Após três vezes

perguntando para si mesmo se estava bêbado demais, Garrincha despertou:

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- É, morena, ce é gata demais. Qual é a sua graça, meu bem?

- A que você quiser, responde uma Helena quase inconcebível de sensualidade.

Carlinhos acabara de acordar na guia. Não sabe como havia dormido, nem como tinha parado ali. Olhou para

os lados e notou o desprezo das pessoas no ponto de ônibus, como se fossem testemunhas vivas da degradação

da pior das espécies. Procurou sua bolsa e não encontrou. Só então percebeu no que havia se metido. Levaram

seu dinheiro e o que restava de sua moral. Ele decidiu ir pra casa, encontrar sua mulher, dizer que queria outra

vida, em outro lugar e assim falar sobre seu segredo com Jucilene.

Andou com a cabeça fervendo até chegar na rua de sua casa. Pensava em seu trabalho, nas desculpas que teria

de arrumar, na reação de sua esposa para o que iria lhe oeferecer. Abriu a porta de casa e deu de cara com

Alemão fumando um cigarro no sofá. Não entendeu nada. “Como o filho da puta sabe onde eu moro?”, o

primeiro pensamento que lhe veio à cabeça.

Olhando surpreso e calado para o malandro, Carlinhos recobra os pensamentos e começa ouvir barulhos

parecidos com sexo. Antes de pensar em Helena, vê sair de seu quarto Garrincha puxando o zíper das calças e,

antes que ele fechasse a porta, nosso personagem tem a visão certa do inferno: Julinho e Neca sobre sua

mulher, em movimentos bruscos e posições que jamais imaginara.

Caiu de ombros como um derrotado. Não pensou em Helena, ou em qualquer um dos quatro malandros que

invadiram sua casa. Temos agora outro personagem em busca de vingança. Garrincha tentou entrar no quarto

para avisar os três na cama, mas era tarde demais. Carlinhos já havia se levantado e não pensou duas vezes

quando viu a arma em cima da mesa: “Porra!” Deu um grito que assustou Dona Maria, vizinha da casa, que ao

mesmo tempo parou de lavar a louça para ouvir o alvoroço.

Saía então do quarto uma Helena de cabelos bagunçados, camisola amassada e maquiagem estragada, mesmo

àquela hora da manhã. Carlinhos jamais ousou imaginar a cena. Os outros dois, medrosos, vestiam rápido suas

roupas, podia se ver na fresta da porta entreaberta.

- Helena, o que você está fazendo? Diz Carlinhos desesperado.

- Diz você, o que você tem feito com a vaca da Jucilene no meio do culto?

Arregalou os olhos. Como será que sua esposa descobrira o tal segredo dos dois? Mesmo assim abriu um

sorriso desesperançoso por imaginar o que ela estava pensando.

- O que você sabe?

- Sei que ela anda te mandando uns bilhetinhos. Que vocês fazem coisas escondidas no meio do culto. No

meio do culto, Carlos?

- Ela trabalha numa imobiliária, você sabia disso?

- Dane-se, e eu quero lá saber onde essa piranha trabalha? Retruca Helena.

- Chega! Carlinhos interrompe com um grito como da primeira vez.

Carlinhos estava mais cansado do que com raiva. Em uma manhã que seria comum, teve sua vida toda

despedaçada. Agora estava apenas nervoso e cansado. Então alinhou os malandros ao lado de sua esposa. A

arma que tinha nas mãos era a única dos quatro. Pensou bastante antes de tomar a decisão e deu o primeiro e

único tiro da história. Em sua própria cabeça.

Os malandros saíram em disparada, afinal, quem acreditaria na versão deles? Além disso, Neca era foragido

da polícia. No último Dia das Mães deixou o presídio em que estava e não voltou mais. Correram sem

perceber Dona Maria que da janela ouviu o disparo e se abaixou, mas ainda conseguiu ver os quatro em

disparada e ligar rapidamente para a polícia.

Helena, em estado deplorável, gritava de horror pela cena que presenciara. Ao lado de seu marido

ensangüentado, leva às mãos a arma que o matou e faz o mesmo. Não conseguiria explicar nem a si mesma o

que havia feito nesta manhã. A polícia chega e encontra os dois corpos sobrepostos. Dona Maria não consegue

explicar nada aos oficiais.

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O dia inteiro se passa, os dois vão ao IML, amigos da igreja preparam o velório, mas não conseguem falar

com Jucilene, que às 18h45 espera Carlinhos e não entende nada por ele não aparecer. Pergunta na portaria,

descobre que o amigo havia faltado no trabalho. Deixou um recado ao porteiro do prédio, para ser entregue ao

amigo junto a um documento:

”Carlinhos, a casa nova está pronta! Como não sei quando vou te ver novamente, na semana que vem, na data

do aniversário de vocês, eu entrego a chave. Este documento do envelope é a escritura. Achei que gostaria de

ver. A Helena ainda nem desconfia de nada! Ela quase nos viu ontem, mas sem dúvida a hora que souber da

casa nova vai ficar muito feliz! Beijos, Ju.”

O envelope nunca saiu da gaveta do porteiro.

*

I am on the Highway to Hell

“Eu amo isso, mas eu odeio o gosto que tem”, dizia o Dave Grohl na música que tocava na jukiebox do bar

mais sujo de santo amaro. Tudo relacionado. Meus melhores amigos eram uma dose de conhaque barato e a

cerveja que enchia metade do copo.

Uma depressão que hora ou outra me consome a cocaína dos meninos da mesa ao lado. Eles, alegres, pedem

outra cerveja e trocam o som. Agora a canção mais antiga do que eu diz “garotas só querem se divertir”.

Desconfio do tanto de cerveja desperdiçada dos garotos que brindam ao nada com extrema excitação.

Volto a olhar a garrafa, medi-la, compará-la às outras mais caras. Peço outra dose e já nem vejo o que o

garçom colocou na minha bebida. Mas dane-se, a essa hora o cara do The Who (lembro que sou péssimo para

lembrar nomes depois de alguns copos) canta “substitua coca por gim” e eu adiciono o “, foda-se” à frase

dele..

A noite passa, vejo entrar no bar milhares de corpos distintos, camisetas vulgares e cabelos estranhos, que

deixariam qualquer mãe decepcionada. Não ligo. As pessoas são quem elas foram ensinadas a ser e ponto

final.

Quando o cara atrás do balcão não consegue mais olhar pra mim sem ter um resquício de nojo, peço o que

seria minha a última dose. Uma garota senta-se do meu lado. Vejo 3 vultos coloridos e sorridentes na minha

frente, encostando no meu ombro, me desafiando a lembrar dela. Digo quatro nomes e, claramente, ela

começa a se irritar. Com a irritação tudo ficou mais claro. Era Cidinha, dos tempos do colégio. Era a garota

feia mais bem arrumada do Cyro Augusto Bernardes. Devo ter namorado ela naquela época, talvez só não

quisesse me lembrar.

Conversamos algum tempo, enquanto a tontura ia passando. Descobri que ela morava sozinha ali perto.

Fomos até sua casa, sentamos no sofá e nos beijamos. Aquele clima das partes mais picantes da novela das 8

tomando conta do ar, ela se levantou como se estivesse tirando a roupa. Nesse meio tempo, uma garrafa na

estante me chamou atenção. verde quase fluorescente, letras garrafais “GREEN DEVIL”.

Tomamos algumas doses, transamos algumas vezes. Ela foi dormir e um ar psicótico me fez ir até a cozinha

pegar uma faca e riscar meu braço com uma faca pontuda o bastante para me fazer sangrar. Era o demônio

verde, sobre o corpo de um ser que acabava de sair do bar. Voltei ao quarto e degolei a cabeça da vagabunda,

cortei-lhe os membros, joguei pela janela, na madrugada que parecia explodir em minha mente.

Sobrava meu sangue pelo chão e um quarto da garrafa que iria satisfazer as horas que ali me restassem. Só fui

imaginar que suspeitariam de algo horas depois quando derrubaram a porta e me encontraram morto ao lado

da garrafa vazia e com o AC DC cantando, “eu estou na estrada para o inferno”

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Amores Urbanos – Robson Assis

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Amores Urbanos I

Sérgião estava perto dos 64 anos. Morava sozinho, em um hotel de pouco luxo, desses que encontramos no

centro da cidade. Teve uma história familiar um tanto quanto trágica para descrever de maneira simples, o que

fazia dele um destes seres humanos que não aparentam em nada o que realmente lhes passa na mente.

Era vendedor de anúncios para um jornal de bairro. Vivia uma vida relativamente confortável com as

comissões que o trabalho lhe proporcionava. Toda semana tinha dinheiro de sobra para gastar com suas

garotas no “Elas American Bar”, uma boate que ficava no porão de uma casa vizinha ao hotel onde morava.

Em uma sexta-feira normal, Sérgião vestiu seu terno mais fino, gostava de parecer multimilionário para suas

garotas. Andava lentamente a caminho do bar, quando viu uma moça que aparentava 25 anos, jogada em um

jardim de rua, ensangüentada e com uma saia vermelha curta e suja de barro. Continuou caminhando, mas a

consciência lhe fez voltar e ir de encontro à garota.

Ao chegar mais perto, viu que era uma das suas “amigas” do bar.

- Sara, o que aconteceu com você, meu Deus? perguntou três vezes até que ela esboçasse alguma reação.

- Me bateram, eles me bateram, respondia a menina chorando e aos berros.

Ele a segurou pelo braço, ela se afastou repentinamente, com pânico no olhar. Sérgião levantou o rosto

trêmulo de Sara e viu as marcas de dor da pequena.

- Quer ajuda, vem comigo, você me conhece!

- Não vou lugar nenhum.

- Vamos, sobe comigo em casa, lá você está segura.

Quando a menina se levantou, Sérgião imaginou que usar palavras como “casa” e “segura” têm um valor

enorme em situações como essa. Carregou a menina até seu apartamento.

Lá chegando levou Sara ao banheiro, cuidou de alguns dos ferimentos que não eram tão graves, mas, sem

dúvida, machucavam. Mas ainda assim, deu um jeito para sentir o perfume de Sara, que sempre o encantava.

Obviamente, não quis tentar nada além de ajudar a moça. Ela não parava de chorar e cantarolar quase

sussurrando o que parecia uma música infantil.

- Sara, você está em casa agora, me diz o que houve, afinal.

- “la-la-la”, ela fingia não ouvir as perguntas.

Sérgião disse que ela precisava de um banho. Arrumou o chuveiro, pegou uma toalha e saiu do banheiro,

fechando a porta. Assim que saiu, Sara abriu a porta e disse, cabisbaixa:

- Os cara da 15, eu tava devendo pros cara da 15, Sérgião.

- Porra, Sara, voltou a usar essa merda? Disse Sérgião, nervoso por saber que a garota havia voltado a se

drogar na rua XV de Novembro. Ela ficou calada por alguns instantes.

- Eu sei, to errada. Me desculpa, só que.. Valeu pela ajuda.

- Vai tomar banho, depois a gente conversa.

Sérgião havia realmente ficado fulo da vida. Sempre que vai ao bar, diz à elas que pode ajudar no que

precisarem, mas que não peçam dinheiro para comprar drogas, jamais. Sabia que muitas delas, como Sara, já

haviam, usado, mas pedia para que não o deixassem saber que estavam envolvidas com isso, caso contrário

perderiam o cliente. Ele sentou no sofá e ligou a TV, tentava ver o final do jornal sem pensar no assunto.

Parou e esticou as pernas, olhando pro teto. Tirou os sapatos, sabia que não voltaria no ‘Elas’ aquela noite por

culpa de Sara. Deu um suspiro alto, quando sentiu os passos da menina pararem à sua frente. Olhou, Sara veio

nua ao seu encontro. Entendeu porque pensou que a garota jogada na grama só parecia ter 25 anos. “Ela tem

mesmo 19?!”, pensou consigo.

- Vai comer, tem yakissoba na mesa, diz Sérgião, nervoso, ao mesmo tempo em que olhava as pernas de Sara,

que faz uma cara terrível e vai à cozinha.

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Ela termina e volta à sala como estava da primeira vez. Dessa vez, ela senta ao lado de Sérgião, no sofá,

cruzando as pernas e se espreguiçando. A esta hora, Sérgião já não quer mais só conversar. E ela sabe disso.

No outro dia, Sérgião acordou ao lado de Sara. Passaram o final de semana juntos. Passaram duas semanas

juntos. Passaram 3 meses juntos. Sara dizia que queria casar. Ele pediu que ela fosse embora. Não gostava

disso, Sérgião se apegava fácil à garotas com a vida como a dela.

Aos gritos histéricos, Sara partiu. Sérgião soube que ela novamente se envolveu com tráfico, novamente foi

espancada, chegou a ser presa. Ele foi à cadeia, pagou fiança. Ela foi à casa de Sérgião, que abriu a porta

pensando no único pedido que havia feito ao delegado, para que não dissesse à moça quem a havia tirado de

lá. Nos milésimos de segundo em que a porta se abria, refletiu um pouco sobre o poder de sedução feminina e

em como ela conseguiria fácil aquela informação.

- Por que você fez isso? Disse Sara.

- Te quero longe daqui, mas te amo, Sérgião responde sem medo do que a depressão poderia lhe reservar.

Ela vai embora e deixa a porta aberta, deixando de propósito cair no chão seu cachecol carregado daquele

perfume que ele sentira no corpo machucado da moça, quando da vez em que a ajudou…

Sérgião nunca mais ouvira falar sobre Sara.

*

As Flores Malditas - A decisão foi sua, o dinheiro era pra semana passada.

- Calma, mano, me dá mais uns dias, a gente é irmão, truta, por fav...

Dona Maria ouviu o disparo como se tivesse sido dentro da sua casa, mas não era. Três ruas acima, na boca do

Tiziu, Sandrinho, seu filho, acabara de morrer na mão de traficantes para quem devia dinheiro do crack que

havia tentado vender na última festinha da zona norte, com o pessoalzinho da USP. Não conseguiu vender

nem metade. Seu vício o fez usar a festa toda, sem miséria. É como se colocassem um crocodilo para tomar

conta de um açougue.

Naquele momento Maria, mãe/pai de família, sozinha, havia tirado a mente da TV por alguns instantes. Foi

como se o tiro lhe dissesse que havia algo errado na ordem natural das coisas. Levantou, bebeu água, voltou a

sentar na frente do aparelho e tentou se distrair. Certa aflição a rondava, não podia imaginar o que era.

Assistia a cena do casal romântico, na época o Tarcísio e a Glória, mas nem eles a prendiam mais a atenção.

Percebe que seu maço estava acabando quando acende o primeiro cigarro, vício adquirido após a derrocada de

Sandrinho, seu filho, nas drogas, pelas várias vezes que o buscou em lugares distantes, metido em encrencas

com a polícia, ou largado após uma boa surra. Sempre se segurava para não ir, tinha dito a si mesma que

jamais aceitaria uma coisa dessas em sua casa. Mas nunca tinha jeito, Dona Maria era mãe. E ao lembrar

destes dias, de seu filho, da perdição, do primeiro dia em que dormiu chorando quando ele passou um tempo

na recuperação paga pelos tios lá de Brasília, da raiva quando expulsou o menino de casa quando ele "noiou"

o radinho da sala, ela surtou em silêncio, apertou uma das almofadas do sofá com força, como se fosse rasgá-

la. Parou. Aumentou o volume da TV, talvez fosse isso.

Continuou a prestar atenção com certo desprendimento, muitas vezes sem ouvir o que diziam os atores.

Parecia olhar mais o relógio do que a própria TV. Finalmente acabou o capítulo. Desligou a TV, arrumou

objetos jogados na sala, pegou o boné que Sandrinho havia esquecido e levou ao quarto do rapaz, sentou em

sua cama e chorou um pouco. Estava infeliz com a vida que levava, não entendia porque seu filho tinha de se

envolver com gente errada, como conseguia se viciar daquele jeito tão triste em compostos químicos que não

sabia nem de onde vinham.

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Secou as lágrimas, foi até seu quarto. Em um silêncio quase mortal, arrumou a cama de casal que, após a

morte de seu marido quatro anos atrás, dividia apenas com suas mágoas e os pensamentos de esperança que

enchiam o quarto de uma luz que não existia em nenhum outro lugar do mundo. Se deitou e em exatos seis

minutos após a oração levantou e decidiu que não ia conseguir dormir. Talvez esperar o filho, e que dessa vez

ele não tenha feito na errado de novo.

Voltou a sala, ligou a TV para desbaratinar o tempo que passava ali. Fumou os dois últimos cigarros do maço.

O Jornal trazia algumas notícias de fazendas invadidas por sem-terra cansados de esperar a reforma agrária,

crises econômicas quebrando bancos, nada que entendesse muito. Já passava das 11 da noite, seu filho não

voltava. Talvez dormisse fora, como em outras ocasiões, mas o estado de alerta dizia que não era bem isso o

que tinha acontecido.

Trancou a porta e foi até o bar sem perceber o movimento na travessa, ruas acima de sua casa. Pediu um

Lucky Strike, "pra dar sorte", sonhava. Percebeu que os presentes a entreolhavam com desânimo e certo

receio. Saiu sem entender nada.

Antes de cruzar o farol, percebeu o movimento. Caminhou pra ver o que era, tinha muita gente na rua e aquela

sensação estranha ficava cada vez mais forte com os passos em direção ao tumulto. Aqueles que fechavam a

roda sobre o ocorrido olharam pra trás e deram espaço à ela. Todos saíam aos poucos quando viam Dona

Maria se aproximando, até que ela conseguiu ver o corpo de seu filho com um tiro no peito. Ajoelhou,

colocou as mãos no rosto e finalmente desabou em prantos.

No outro dia, Pilé, um dos meninos envolvidos com o tráfico da região em que morava estava no enterro. Era

'amigo' do finado e sentiu que devia estar lá para presenciar os últimos momentos do corpo do rapaz.

Comprou uma rosa na entrada do cemitério e entrou com ela. Parecia mesmo triste, mas conformado e

entendedor da situação. Dona Maria o conhecia, sabia de seu envolvimento na boca de fumo. Viu ele de

longe, mas não conseguia dizer qualquer palavra desde que acordou.

Ao lado do caixão, Dona Maria ouviu o padre encaminhar a alma de seu filho para os céus. E viu os parentes e

conhecidos jogarem as flores sobre seu corpo.

Quando Pilé se aproximou, Dona Maria pegou a flor de sua mão e disse não querer que seu filho subisse ao

céu com lembranças dos dias negros que passou neste universo. Pilé ouviu e deu as costas num êxtase

momentaneo que o dividia entre a raiva e o discernimento das palavras que aquela mulher acabara de lhe

dizer. Dona Maria pisou e viu as pétalas se desfazerem na terra daquele lugar que voltaria anos depois apenas

para lembrar seu filho nas datas comemorativas que mais gostava quando pequeno, como seu aniversário, a

Páscoa e o Natal.

Dona Maria era mãe. E mais uma vez - ou pela última vez - livrou Sandrinho das flores malditas.

*

Entre as Ruínas

Outra noite, tive um sonho. Estava eu, de fraldas, engatinhando no andar de um prédio qualquer. Meus pais

choravam descontrolados tentando sem sucesso forçar a porta corta-fogo do lugar onde estávamos.

Eu engatinhava. E ouvia estrondos me dizendo que algo sombrio estava para acontecer. Porém, como eu disse,

estava de fraldas, não podia imaginar o que significava "sombrio". Minha mãe parecia chorar mais a cada

instante que passava. Meu pai a consolava, mas seus olhos tremendo não mentiam, estava também muito triste

por algo que eu ainda não temia. O barulho realmente aumentou alguns minutos depois. Lembro de um

zunido, um barulho de sirene, pessoas que não paravam de falar, gritar com espanto. Só assim percebi que o

temor daqueles que estavam lá embaixo era o mesmo de meus pais. De repente, um pedaço do teto se

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despedaça ao meu lado. Ao olhar pra cima, ver de onde vinha aquilo, minha mãe me tomou nos braços e

apertou tão forte que eu mal podia respirar. Pobre pedaço de teto. Estilhaçado no chão e sem nenhum amigo.

Eu, pelo menos estava com meus pais. A essa hora, estávamos todos na janela, olhando um círculo imenso de

pessoas que nos olhavam de volta. Parei para prestar atenção em uma senhora parecida com a minha vó.

Chorava e colocava a mão sobre o rosto. Pobre senhora. Por que, afinal, estava tão triste?

Meu pai batia ansiosamente o punho na parede, enquanto subia uma escada branca que saía de um caminhão

vermelho meio distante do prédio. Os bombeiros estavam lá. Isso me lembrava dos carrinhos que eu ia brincar

quando chegasse em casa. Outro pedaço de teto caiu. Esse, infelizmente não parou no chão. Desceu até o

andar de baixo, onde havia mais gente gritando. Povo maluco esse.

A escada chega ao nosso andar, mas não consegue alcançar a janela. Um bombeiro grita para que meus pais

me joguem até eles. Minha mãe insiste que não. Meu pai a deixa em prantos quando berra que não há outro

jeito. Ele me dá um beijo, minha mãe me agarra forte, naquilo que parecia ser a última vez que me abraçaria.

Eu voei um metro e meio sobre o céu gelado de São Paulo. Caí nas mãos de uma mulher que suava e

certamente estava com tanto medo quanto meus pais. Ela me abraça e me beija. Consigo olhar de volta para o

prédio. Onde estão eles? Ah, sim. Se abraçavam, diziam coisas um ao outro em prantos, se beijavam.

Voltaram a se abraçar e pelo que pareceu, durante dois dos segundos mais importantes de minha vida, jamais

se soltariam.

Nessa hora, creio que o teto cansou de perder pedaços e caiu inteiro sobre eles. A moça que me segurava virou

meu rosto. E eu, agora sim, entendido da situação, olhei para o bombeiro que estava atrás de mim e só

consegui dizer "pais!". Enquanto a escada voltava ao caminhão, uma lágrima de dor me escorreu pelo olho e

desabou no chão, junto com o prédio onde estavam meus pais.

*

Medo

Faltava apenas uma noite. Tínhamos bolado o plano todo. Eu e o Neguinho, parceiro que cresceu comigo aqui

na João do Galo e era quem concordava quando eu lamentava a falta de oportunidade da vida. Essa noite ele

tava no barraco. Ficamos trocando uma idéia até 6h da manhã, acertando os últimos detalhes.

Sofia Avelar era uma mulher de meia-idade, divorciada pela segunda vez e de família rica. Além disso, era

muito gostosa. Tinha um filho pequeno também, o Diego Garcia Avelar. Um mês de estudo sobre essa daí nos

deixou conhecê-la mais do que a própria família inteira sabe sobre sua vida. Sabíamos os melhores amigos,

lugares que freqüentava, rotinas. O Neguinho sabia o dia-a-dia direitinho. Precisa ver ele contando, coisa de

novela.

A gente já tinha combinado: a cena do seqüestro era sem morte, sem pânico pra ninguém. Pegava a safada,

levava pro barraco, ligava pra casa dos pais, exigia grana. Avisava que ia matar se não fosse no mesmo dia. Já

era.

Acordamos umas 8h de um domingo ensolarado. Era o dia. Chegamos na rua Domingos Souza lá pelas 10h. O

carro estava estacionado. A dona ainda não havia saído. Voltamos com o Passat preto até o quarteirão de trás.

Tava tenso ali dentro, confesso. O neguinho botou o Marvin Gaye no rádio e deu pra dar uma relaxada, mas

no fim não acabou amenizando em nada.

Sofia saiu de casa às 12h45, provavelmente depois de almoçar. Seguimos o carro até ela parar. Coloquei a

cabeça pro lado de fora: “Parque dos Pinheiros?”, pensei. Nunca tinha nem passado perto daquele lugar,

parecia muito feliz em relação à vida que eu levava.

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As horas começaram a passar. Eu e meu parceiro comemos dois dogs e bebemos uma Coca 2 litros. Já

começávamos a ficar injuriados com a cena:

- Olha lá, mano! Essa vaca só sai daí oito hora da noite, Cacá!, dizia o neguinho.

- Relaxa, maluco, uma hora ela vai embora, segura essa tua onda aí.

Dez minutos depois, ela começou a recolher os brinquedos do filho, que vinha adormecido em seus braços.

Ela, cheia destes potes de lego na outra mão, parecia reclamar de algo. Malditos Ricos, mal sabem a vida que

levam.

Ela chegou no carro. O Neguinho já tinha parado a caranga emparelhado com o Vectra cinza, quando eu desci

do carro e encostei a faca no pescoço:

- Quietinha, dona, ou você já era! Pega esse teu filho aí e entra no carro, vamo logo, porra!

A caixa de lego espalhou no banco de trás do Vectra.

O Neguinho parou o carro na ladeira do morro, até onde dava pra ir. Eu segui o resto a pé. No domingo, a essa

hora, ninguém de bem caminha tranqüilo pela favela. Entrei. Joguei o moleque no canto, perto de um buraco

onde passava uma água cheia de lodo. A dama, sozinha no outro (e único) cômodo.

O lance da família já tinha dado errado. Todo mundo tinha viajado pro Litoral. Deixamos a vadia no quarto

uns dias. Esquecemos ela lá. Dávamos comida de manhã e de noite. Falávamos muito pouco dentro do

barraco.

O moleque era chato demais. Chorava pra caralho. A gente colocava um pão e ele recusava. Colocava leite

puro e ele recusava. Deixamos de dar comida. Faziam uns 8 dias que eles tavam lá, eu rodava a favela pra ver

se pegava alguma coisa de polícia. O Neguinho tava sozinho e o moleque caiu na besteira de chorar. Quando

cheguei, a cena já tava feita. Um monte de terra, do lado do barraco e um sussurro de choro da mãe, dentro do

quarto, me dizia tudo.

O Neguinho furou o moleque inteiro, degolou com faca de cozinha, abriu um buraco e jogou os pedaços

dentro.

“Ele não parava, Cacá, mereceu mano, é hora da gente terminar essa merda logo”, dizia o Neguinho afobado.

Eu não disse nada. Sentei, com as mãos na cabeça, fiquei um tempão ali, pensando sem pensar em nada. Na

mesma noite, o parceiro assistia o jornal de boca aberta, na televisão velha:

- Ela sumiu. Não pode ter largado tudo! Não mesmo! - dizia aos prantos uma mãe de rosto inchado e

aparência bastante cansada.

Ao que o âncora diz:

- O carro de Sofia Avelar, filha do empresário Santoja Gomes Avelar foi encontrado nas proximidades do

Parque dos Pinheiros, possivelmente de onde seqüestradores levaram ela e seu filho de 4 anos, Diego. A

polícia diz ter indícios de que o cativeiro estaria na favela do João do Galo, zona sul.

Eu e Neguinho pasmos, não tiramos os olhos da TV. Nem nos falamos durante o comercial. Até que o jornal

voltou com uma notícia sobre a crise econômica da indústria têxtil no Japão.

- E AGORA MANO? – Eu já alterava a voz.

- NUM SEI CARALHO, NUM SEI.

- VAMO LIGAR!

- PORRA NENHUMA, TÁ MALUCO, OS GAMBÉ VEM PRA CÁ NA HORA

- E O QUE VOCÊ QUER FAZER?

- MATA ESSA DESGRAÇADA.

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Ela provavelmente dormia, pois não fazia nenhum barulho. Ouvimos sirenes. Saí e fui ver o que era. Abri a

porta devagar e espionei. Lá embaixo, mais de 10 viaturas cercavam a entrada da favela. Homens armados

subiam a ladeira como cães.

- FUDEU, NEGUINHO – Disse eu que, ao olhar pra trás, vi o filho da puta tentando sair por cima do telhado

pelo lado escuro do barranco.

Eu tremia e suava frio. Eles bateram na porta e gritaram que estava acabado, para que eu me rendesse. Estava

ainda quieto e já com a arma na mão, quando ouvi o coturno que derrubou a porta e os três fardados que

estilhaçaram as costas do Neguinho, que tinha dado o primeiro tiro, em uma tentativa de reação repentina. O

tiroteio foi pesado, eu já abria a porta do outro cômodo em meio ao caos da situação.

Sofia estava sentada, com a cabeça entre os joelhos, parecia aterrorizada. Um instante menor do que todos os

outros fez com que me arrependesse de tudo o que havia feito à moça. Eu havia levado um tiro de raspão no

ombro e ao cair, me esfolei na porra dos vasos de barro no chão de concreto. Peguei a faca. Ela me olhou.

Quando a levantei e segurei a arma em sua garganta, desmaiou. Mais tiros. Dessa vez não foi um coturno

quem abriu a porta. Foram balas de fuzil.

Quando ouvi os primeiros disparos, fechei os olhos. E dali pra frente não vi mais nada.

*

Crime Organizado Mais que Profissional

- Trim!

- Alô?!

- Olá, sr. Anderson Vilela, muito boa tarde!

- Boa tarde!

- Meu nome é Pompeu, da agência StolenYou, de furto de casas e apartamentos. Tudo bem com o senhor?

- Opa! Tudo certo! – diz o outro sem entender direito o que o telefonista disse após o nome da empresa.

- Sr. Anderson, deixe-me só confirmar seus dados. Sua casa fica na Al. Tenente Mario Pastorelli, 25, Jd.

Bonaventura.

- Certo! (?!?!)

- Este telefone é 5687-4456 e seu celular 4665-7789. Ok?

- Isso mesmo! (?!!?)

- Sua filiação é de Carlos Godói Vilela e Maria Aparecida Vilela, residentes na Rua dos Macaús, 37. Sua

esposa chama-se Claudete Rodrigues Vilela e suas filhas Clara e Judith Vilela, de 13 e 15 anos,

respectivamente, estudantes da Escola Amador Rodrigues, no centro.

- Está certo! Quem é você?

- Sr. Anderson, não sei se o senhor conhece nossos serviços. Somos uma empresa de roubo a casas, carros,

flats e executamos serviços de seqüestro também.

- QUÊ???

- É isso mesmo, sr. Anderson. Nossos profissionais são treinados em campos construídos ao norte das Guianas

Francesas e recebem auxílio psicológico e treinamento intensivo de autoridades do FBI, CIA, Hamas,

Scotland Yard, entre outros serviços de inteligência da Irlanda e Coréia do Sul.

- Tá, tá, tá. Você acha que eu sou um idiota?

- De maneira alguma, senhor. Estou aqui apenas para lhe oferecer nossos serviços. Eu vou estar lhe passando

agora nossos planos, para que o senhor possa escolher a forma mais cômoda de ser furtado, sem maiores

problemas, agressões ou qualquer outro descontentamento por parte do senhor ou da sua família, ok?

- Você está me dizendo que vão roubar minha casa?

- Exatamente. Por volta das 23h20, desta sexta. Estou apenas tentando fazer as coisas da maneira mais

eficiente para mim e para o senhor, certo sr. Anderson?

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Ele desliga o telefone, que toca instantes depois.

- Sr. Anderson, sabia que aconteceria isto e o capítulo 3 de meu manual diz como devo proceder para tanto.

Está bem claro: “Ignorar maus-tratos do cliente em primeira instância”. Mas, quando da reincidência deste

artigo, outro trecho diz: “Convocar equipe Hard”. O senhor conhece nossa equipe Hard, sr. Anderson?

- Não! Escuta aqui, seu filho da puta, você acha mesmo que...

- Senhor, por favor, não comece a me insultar. Não é política da StolenYou amedrontá-lo, mas lembre-se que

temos seus dados, endereço e, neste momento, vários de nossos profissionais estão vigiando sua família,

apenas por segurança.

- SEGURANÇA????

- Isso mesmo. Ainda por segurança, nossa conversa está sendo gravada e repassada em conexão IPC-12 para a

base central, na Guiana Francesa. Mas vamos ao que interessa não é mesmo sr. Anderson?

- Você é tão burro! Eu tenho identificador de chamadas e vou lhe denunciar agora. Que trote mais imbecil.

Anderson desliga pela segunda vez e disca 190. Seu celular toca.

- Por favor, não tente isso, sr. Anderson. Ao fazer a denúncia, a polícia possivelmente vai acionar o GOE, que

virá até o meu escritório e não vai encontrar evidência alguma de que eu tenha ligado para o senhor.

- Que idiota!! - o 190 continua chamando.

- Senhor Anderson, abra a persiana bege da janela da sala, na sua frente.

Nessa hora, Anderson tem sua primeira sensação de pavor real, deixando cair no chão o telefone que chamava

a polícia. Como ele sabia da persiana? Como ele sabia da persiana bege? Como ele sabia da persiana bege na

sua frente? Caminhou e abriu a janela se escondendo.

- Acalme-se, sr. Anderson. Vê um cartão de visita preto e branco do lado esquerdo do vidro?

- Vejo.

- Pegue-o. Nele estão nossos telefones da central, email, assim como endereço do site e da comunidade do

orkut. Pode guardá-lo.

- Você não está falando sério, está?

- O senhor pode ver um furgão escuro, na esquina?

- Sim.

- Estão lhe vigiando.

- Não olhe agora. Uma mulher está no terceiro andar do condomínio Guarani, aí em frente a sua casa. Ela o

vigia também. Assim que olhar diretamente para ela, ela vai piscar para o senhor.

- É. Piscou. Diga. O que você quer de mim?

- Sr. Anderson. Vou apenas pedir para que escolha um destes planos. No Plano BigHard, o senhor pode

permanecer armado em sua casa e chamar a polícia, se quiser. Nossa equipe Hard será acionada e vai invadir

sua casa em horário e dia não estabelecidos. Neste plano nós levamos todos os pertences de valor da casa e

não nos responsabilizamos por vítimas fatais.

- E como saberão que estou desarmado?

- O Furgão da esquina está equipado com rastreador de artefatos explosivos, armas e munição em geral. Eu

peço que o senhor levante a poltrona do sofá. Lá, vai encontrar um saco marrom onde deve colocar todos as

armas que possuir em sua residência.

- Um.. Um momento - Anderson treme outra vez.

Ao pegar o saco marrom, ele corre até o quarto, tira sua arma da gaveta de cuecas, recolhe as balas e as coloca

no saco. Volta à sala e pensa no que está fazendo. Nesta hora, Anderson desconecta a linha do telefone e

quebra o celular, querendo muito que tudo aquilo fosse mentira.

Senta no sofá, temeroso. Olha para os lados ofegante, quando ouve a voz novamente, desta vez, ela parecia vir

de uma espécie de home-theater.

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- Sr. Anderson. Por favor, não subestime nossa empresa. Agora eu estou falando de um sistema interno de

escuta, conversação e transferência de imagens, instalado em sua residência na semana passada, que ficará

ativo apenas até a data do serviço.

Anderson Chora e grita:

- POR QUE EU?

- O senhor foi indicado por um ex-funcionário da Reality Consulting, empresa em que o senhor trabalha. Não

posso revelar sua identidade, mas hoje ele faz parte da nossa equipe de colaboradores.

- Tá, me diz o que fazer com esta sacola.

- Vê a tampa de esgoto na frente da garagem? Ele está aberta. Apenas jogue lá dentro e volte para dentro de

casa.

Anderson seca as lágrimas e atende o pedido.

- Sr. Anderson. O sensor acusa munição e uma pequena arma calibre 22, na gaveta do armário da Judith. O

senhor pode pegar para nós? Provavelmente é do novo namorado dela, o Carlos.

- Impossível, ela não tem namorado. Nós saberíamos. Não tem nenhuma arma lá.

- Senhor, caso opte por deixar a munição e a arma no local e algum dos membros da equipe receber um tiro ou

for machucado de qualquer maneira, a StolenYou sente-se livre em praticar maus-tratos e tortura com todas as

pessoas da sua família, na sua frente.

- Espere mais um pouco – Ele caminha até o quarto da filha e encontra a arma. Desta vez ele treme, mas de

um ódio repentino, abafado pela voz que vinha de minúsculas, mas potentes, caixas de som instaladas pela

casa.

- Sr. Anderson, não fique com medo. Somos profissionais e não temos intenção alguma de fazer mal ao

senhor ou à sua família.

- Ok. O que faço com isso? – Anderson volta a chorar.

- Enrole em alguma toalha e jogue no esgoto, onde deixou a outra.

Ele novamente atende o pedido.

- Certo. Fala dos planos. Tem o Hard e os outros?

- O outro chamamos Medium. Neste, o senhor paga à StolenYou uma determinada quantia e tem direito de

ficar com 20% de seus bens. É como se o senhor os comprasse novamente. A equipe que fará o trabalho tem

um perfil mais humano e chega no local com armas leves, apenas por precaução.

- Tem mais?

- Temos um último, o plano light. Neste, o senhor aceita o furto completo de todos os eletrodomésticos da

casa, além do carro e parte da mobília que nos interessar. A equipe que faz este serviço é treinada em escolas

de Londres e é bastante cuidadosa, o que facilita a negociação.

- E se eu chamar a polícia agora. O que acontece com você?

- Como eu lhe disse, eles vão estar acionando o GOE, Grupo de Operações Especiais. Depois disso, vão

rastrear a ligação e chegar até o escritório de onde falo. Como não vão encontrar indícios, vão fazer um

inquérito, milhões de perguntas e depois me liberar.

- E se encontrarem alguma pista?

- Eles podem me prender. O fato não é esse. Caso tudo dê errado e eu vá preso, a StolenYou tem um time de

mais de 4500 funcionários só no Estado de São Paulo. No mundo inteiro, somam-se 150 mil pessoas treinadas

para serem presas e substituídas, caso algo falhe, como o senhor está prevendo.

- Para que tanto?

- Nós somos uma multinacional respeitada mundialmente, mas apenas na área de crime organizado. Talvez

por isso o senhor nunca tenha ouvido falar de nós. A StolenYou visa apenas facilitar a relação ladrão-vítima,

que hoje em dia tornou-se muito violenta e desonesta, o senhor não concorda?

- Concordo.

- Agora é só escolher, senhor Anderson. Lembrando que estamos também com uma promoção para o Plano

Light, onde o senhor e sua família são trancados no lugar da casa que desejarem, desde que não possua janela

nem telefone...

- Ok...

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- E levam inteiramente como cortesia, uma mala térmica da StolenYou para ser usada durante o processo de

assalto. Esta mala vem com 6 latas de cerveja, dois refrigerantes de 2l da sua preferência, 30 coxinhas de

festa, 10 kibes e 15 esfihas de carne, além de pratos, copos e guardanapos, para que o senhor tenha conforto

enquanto é assaltado.

- Entendi. E por isso eu não pago nada, certo?

- O senhor já estará pagando muito caro. Este é um brinde da StolenYou para o senhor.

- Certo, fico com esse.

- Ok. Deixe-me só completar a ficha. Qual o melhor horário para o senhor?

- Pode ser hoje, às 23h mesmo.

- Certo, sr. Anderson. Caso o senhor queira encomendar algum de nossos serviços, no site temos uma lista na

qual o senhor pode escolher o que deseja. Entre os mais executados estão: Assassinatos por vingança,

seqüestros de mentira e sustos terroristas.

- Tá bom. Tá bom, Pompeu.

- O senhor pode indicar cinco pessoas para participar de nosso cadastro e ter alguns benefícios. Quem o

senhor quer indicar, sr. Anderson?

- Não, por enquanto não.

- Então ta certo, hoje às 23h. Está anotado aqui. Quais os refrigerantes o senhor prefere?

- Pode ser Coca e Guaraná mesmo.

- Ok. Anotado. Eu só peço para que, 10 minutos antes do horário marcado o senhor deixe as portas de sua casa

livres para o acesso de nossa equipe.

- Certo, certo, combinado então, Pompeu.

- Tudo bem então, sr. Anderson?!

- Sim, certo, obrigadão! Tchau!

- A StolenYou é que agradece a sua preferência.

*Os gerúndios são propositais.

*

A História do Prato

Ou “Ensinando Decepções de Amor para Crianças”

Eu era um prato. Muito, muito vazio. Era apenas um prato. E vivia no meio de uma praia onde o vento era

bem forte, quando o convinha. Certo dia, alguém chamado amor veio encher-lhe de vida. E por um bom

tempo ele viveu bem e sem grandes preocupações, estava completo.

O amor geralmente ficava ao lado do prato em todas as horas – difíceis ou não – de sua até então explicável

existência. Isso talvez tenha provocado no amor, de alguma maneira, um descontentamento, um cansaço de

estar ali e viver de um jeito só, a ver o outro feliz, sobre a areia.

Numa segunda-feira, o amor disse que havia encontrado a felicidade. Só que o prato não fazia mais parte disso

tudo.

E disse adeus ao outro, já caminhando em sentido oposto pela praia. Chegou até a rua e sumiu ao longe. Não

havia mais como o parar, era sua decisão.

Um mês se passou. E não gosto de lembrar como é forte a solidão neste lugar depois que o amor foi embora.

O prato ficou só. Alguns amigos tentam alegrá-lo, enchem-no com a areia da praia, cobrem com tolhas de

banho. Mas quando chega a noite, o vento é tão forte que consegue tirar tudo de cima dele, deixando-o

novamente vazio e desgraçado do mundo.

Hoje o prato não busca ninguém que o encha de novo, senão o amor, que o trouxe tudo, desprendimento,

esperança e alívio. O prato só não sabia que o tal amor carregava em sim tanta dor e angustia.

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Dilemas de um Escritor

É necessário um grande motivo para escrever belas frases e poesias. É preciso sentir o calor de uma manhã,

olhando para algum lago e espantando os mosquitos do ouvido, enquanto se ouve um beija-flor fazer um

barulho qualquer que um beija-flor faça.

Mas é também doloroso escrever cartas quando não se tem para quem escrever. Uma fuga indecisa, letras que

aparecem na caneta e somem do coração. E você termina escrevendo o maior e mais brilhante conjunto de

versos de amor que possivelmente ninguém vai ler.

Escrever é negócio para malucos. Existem os que escrevem para externar suas loucuras, outros para colocá-las

em debate. E há ainda os que, como eu, não conseguem dizer nada do que sentem verbalmente. E isso, caros,

está bem cotado na lista de mal do século XX. (Spleen!)

Olho pra tela e vejo sair uma frases que vão se juntando e formando outras que falam sobre o barulho dos

carros na estrada de Itapecerica, sobre meus pais que a essa hora dormem o 8º sono e do vizinho safado do

andar de cima que fica empurrando o sofá às 23h26 de uma terça. Tenha dó. Todas elas fazem sentido e

convergem sempre para o último parágrafo do texto que, no final, sempre tenho a impressão de estar curto.

Bato os pés quando não consigo escrever nada. Fico alucinado e abrindo portas, procurando saídas. É a falta

que me faz o calor de uma manhã, a vista de algum lago, um mosquito a me azucrinar o ouvido e um beija-

flor a fazer um barulho qualquer que um beija-flor faça.

*

Os Últimos Tragos da Noite

Era umas três da manhã já. Eu passava ali em frente ao Inocoop, saindo da quermesse na sexta/sábado mais

alucinante do começo das festas de inverno. Estava a pé. Na mente, pelo menos seis doses daquela batida

açucarada, alguns tragos no baseado do Peu e meia dúzia de garotas que passaram por mim durante a festa.

Voltava tranqüilo, sobravam 3 cigarros no maço que acabaria logo que chegasse em casa.

Primeiro trago – Ver luz em meio à escuridão absoluta

Antes de chegar na avenida, acendo o primeiro e sigo em frente. Um gato preto corre sobre o muro de uma

das poucas casas que espreitam a rua. Eu olho para o alto e sigo em frente, sem pensar em sorte ou azar,

decido esquecer o gato. Outros passos mais largos no trecho sem iluminação. Nessa hora ouço o barulho de

um tapa bem dado. Não quero parar, encaro o chão e continuo a caminhada. Outro tapa, sem dúvida vindo de

trás daquele fusca abandonado.

- Cuzão pra caralho hein moleque, cadê você agora, tio?

- Me deixa em paz, truta, pelo amor de Deus.

- Truta é o caral...

Um grito mais alto me fez perceber a voz do Estrela, vizinho meu, amigo de infância, hoje meio distante.

Parei e olhei pra trás, boné branco, camisa larga, ele mesmo. Voltei alguns passos, cumprimentei o malandro.

Ele estava com uma arma na mão. Falou seco, disse meu nome na frente daquele filho bastardo da favela, o

Zeca, endividado no tráfico e, neste momento em uma péssima situação.

Já tinha visto o Zeca na festa. Passou olhando para os lados afoito, como quem precisasse fugir. Ao mesmo

tempo tinha aquele ar de superioridade que todo nóia aparenta. “Eu uso, vocês não usam”, isso sempre me

deixou puto. Mesmo assim, a cara ensangüentada e os dentes quebrados daquele maluco não faziam me sentir

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muito bem. Pedi ao rude do Estrela pra parar, a polícia ia chegar logo, algumas janelas do prédio já olhavam

para a rua como se esperassem a viatura chegar.

- Pode crer, vamo embora.

Quando ele apontou a arma para o golpe final, segurei seu braço. Uma criança olhava de uma janela da sala,

mostrei pra ele, a garotinha se escondeu rápido quando viu que a percebemos. Barulho de sirenes, corremos

em direção à viela dos apês, ninguém acha ninguém ali, ainda por cima, ia cortar meu caminho. Só não fui por

lá antes pela hora, mas no risco iminente, corremos para lá.

- Porra, Leco, devia ter matado aquele filho da puta, mano.

- Nada, Estrela, desencana. Os homi já tomaram conta da cena. Você podia ta lá essas hora.

- Vai vendo nénão, tiu. Ce apareceu na hora certa memo, ó mano.

- Miliano né, truta, sabia que ia dar bosta ali, melhor chegar junto.

- Firmeza então, aqui ta no seguro, só descer pela mureta, ce ta ligado né? Vou ter que chegar ali na lojinha

- Isso memo, moleque, vai com Deus nessa caminhada aí..

- Nóis.

Vi ele subir por alguns buracos tortos e entrar numa casa em que, provavelmente, todos dormiam. Salvei a

vida do pilantra do Zeca, mas livrei meu parceiro de ir pra cadeia à toa. Era algo sensitivo o que eu tinha com

o crime, nunca me envolvi diretamente, mas era coisa de vidente mesmo. Eu podia sentir a hostilidade com

que os outros nos olhavam das janelas, mesmo se escondendo atrás das frestas, o mal-cheiro dos policiais

subindo a rua com os canos das armas pra fora, o clima de terror que tomava a menininha quando viu que era

ela quem estávamos olhando.

Mesmo assim, salvei a vida de um filho da puta que conseguiu escalar o inferno até voltar à Terra.

Segundo trago – Quando calar é a melhor sentença

Atravesso o bairro praticamente inteiro sem tropeçar para não chamar a atenção. Ao chegar na avenida escura,

beirando o matagal, voltei a respirar. Tornei a pegar o maço magro e abduzir outro cigarro. Subo a rua, vejo as

árvores, as pedras espalhadas na rua, desenhos de amarelinha no chão e o que tudo aquilo representa para

crianças com duas décadas de idade a menos que eu. As luzes vez ou outra aparecem, em postes tão sombrios

quanto nossa própria realidade.

Chego ao topo da rua. Pensei algumas vezes antes de decidir o caminho futuro que me levaria para casa. Fui

em direção à outra avenida, lembrei de alguns enquadros e policiais no acelero da madrugada, preferi voltar

pelo campão. A chegada até lá é tranqüila, pelo menos uns seis condomínios. Portões automáticos, carros do

ano, guardas com quepe. A pseudo-segurança deles me faz rir sozinho em alguns instantes.

Um casal se beija atrás do carro, próximo ao muro, do lado oposto aos condomínios. Não tem luz ali, eles se

beijam entrelaçados, provavelmente seminus . Consigo ouvir os barulhinhos, risadinhas e sussurros. Não se

consegue esonder nada na madrugada. O silêncio da noite nos faz perceber o quanto somos vulneráveis.

Sigo caminhando, fumo à meia-vida. Ao chegar no campão, apenas algumas lâmpadas acesas do lado de fora

das casas na vila ao lado. Atravesso o caminho de pedras que dá para a rua sem saída e me deixa mais perto de

casa. Chego na rua, finalmente algo para ver. Um cheiro de alumínio queimado me faz olhar para trás e ver

garotos abaixados na escada que dava para as casas, fumando crack e desperdiçando suas juventudes agora já

predestinadas a um ponto sem volta. Um deles coloca a cabeça pra fora, pára um pouco e volta, quando vê que

sigo meu caminho. “Fique em paz, irmãozinho”, penso com meus botões.

Finalmente, a ladeira. Os bares da esquina já estavam fechados. Antes de cruzar a rua, um gato sai de uma

casa e passa correndo na minha frente. Isso me chama atenção para a única casa com a luz ligada naquele

horário. Novamente barulho de tapas e alguns gritos, bem mais altos do que aqueles com os quais identifiquei

a voz do Estrela, meia hora atrás. Passo pela casa e vou embora. Passos adiante, o barulho de portão se

abrindo me faz parar.

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- Você vai aprender, sua safada. – Mais um tapa na mulher.

A raiva que tenho diante dessas situações deve ser igual em qualquer ser humano homem. Ver uma mulher

apanhar, provavelmente do marido, é absurdo de se ver. Penso em ir até lá ver o que acontece, mas dessa vez

não consigo. Apenas páro no final da rua e observo os tapas. Muitas vezes o marido bate sem culpa, mas

como saber? A lei da quebrada é um pouco diferente da habitual lei dos homens de que homem não bate em

mulher. Ladrão bate em mulher, mas se ela tiver um bom motivo para apanhar como qualquer outro filho da

puta.

Ainda assim desconfio do tom de voz do fulano. Tento voltar para ajudar ou coisa parecida. Mas antes de

pensar completamente nisso, as luzes da rua começam a acender. Zé povinho na madrugada é como lésbica no

show da Simone. Abro um sorriso pela comparação e termino de descer a rua. Resolver assuntos alheios é

uma das coisas que, sem dúvida, não nos faz mais completos.

Segundo trago e meio – A respiração, a liberdade instantânea

O Peu tinha me deixado umas bagas de maconha, tinha certeza disso, estava em algum dos meus bolsos e eu

as procurava freneticamente, afinal, viver uma vida e não dar uns pegas atrás da estação é como não viver

uma vida. Bato em todos os compartimentos da blusa e finalmente encontro. Me sento atrás da pilastra. A

estação fechada e, de frente para a entrada, penso nas pessoas que em meia hora estariam ali esperando abrir

para pegar o primeiro trem do dia. Penso durante uma prensada, Prenso durante um pensamento. Trava

linguístico assim.

Uma viatura passa com faroletes na avenida, mas não conseguem me ver. Esqueço do mundo naquele lugar. O

cigarro de maconha começa a tomar formas estranhas e gargalho ao pensar nisso. Provavelmente não me

lembrarei o motivo desse riso daqui a dois minutos, mas a vida é melhor assim, vivida de momento. É um tipo

de sensação que todos deveriam experimentar: Não ligar para o que os outros dizem ou pensam e mandar o

mundo se ferrar sozinho.

Terceiro trago – Ninguém quer salvar o Estrela

Finalmente me levanto, após um êxtase de alegria e a companhia de outros gatos que, já havia percebido, só

me traziam desgraças quando passavam. O efeito ainda não tinha passado, mas já estava controlável, como se

diz por aí. Volto à rua, ao convencional, ao mundo dos fantoches. Abraço a idéia de que nada é completo sem

a minha presença. Não sei como cheguei até esse pensamento, mas essa era a tese final.

Após acender o derradeiro cigarro da noite, atravesso à rua, em direção à barraquinha. Ali, cobradores de

ônibus de turno matinal dividem lugares nas cadeiras com bebuns de dias inteiros e outros loucos que voltam

de qualquer lugar. Um lugar simples, salgadinhos de borracha pendurados, batata frita e pipoca e os mais

diversos tipos de bebida forte que você quiser encontrar.

- Ô, Leco, fala aí, qual a boa? – Diz o dono, que conversava com pessoas das cadeiras.

- Fala Denis, suave? Vê aquele bombeirinho caprichado no limão! – Digo como bom e satisfeito cliente.

Pago o fulano, cumprimento dois ou três rostos conhecidos e me despeço de Denis. Subo a rua e tomo em

rápidos goles o drink. Dois nóias da quebrada dormem na calçada da rua, perto do bar já fechado. Estão

sempre ali, discutindo e roubando pedestres. Lembro da Dona Cida, que roubaram um relógio ameaçando com

um pedaço de pau. Me volta a raiva e jogo uma pedra de longe. Erro, mas tanto faz, a vida dos dois já não

deve durar até o natal.

Ao passar pela escola, outro casal conversava. Ele sobre a moto, ela de capacete na mão. Silenciosos, nem sei

se falavam alguma coisa. Provavelmente sim, mas com a presença de um estranho, param a conversa. Ouço o

assobio. Cumprimento Pilé, amigo da vila também. Perguntou se os caras ficaram lá, respondi que não.

Ofereceu uma carona, mas disse que não era preciso, já estava do lado de casa.

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Já rua de casa, o churrasquinho do Chico cheirava de longe. Havia umas 15 pessoas na barraca, dia de alegria

para Chicó. Se eu pedisse dois espetos, certeza que ele me dava aquela dose de Ypioca. Paro no pico, encontro

meus parceiros. Peço dois queijos passando do ponto. Ele já me oferece a pinga dizendo “para abrir o apetite”.

Conto a eles tudo o que me aconteceu na volta da quermesse. Eles não acreditam que ainda faço esses roles a

pé e não comprei uma moto. Talvez nem tenham prestado muita atenção em tudo, só no fato de que voltei a pé

de lá. Estão todos alucinadamente longe. Meu sono também já me pede algum esforço. Termino o cigarro e a

dose oferecida pelo Chico. Peço para ele embalar os queijos e me despeço dos malandros.

A noite é cheia dessas surpresas que não podemos controlar. Sigo a pé até a entrada da vila. Paro ao ouvir

alguém me chamar lá do Chico, mas não volto, digo apenas um “amanhã a gente troca idéia” e olho pra frente

com o barulho infernal de pneu e um carro na contra-mão. Três fulanos descem do Opala, entre eles, Zeca,

ainda com a cara cheia de sangue. Pega na minha mão trêmula e diz algo como “valeu pelo salve lá no

Inocoop”. Conto que me assustei, não se pára ninguém assim na madrugada.

Sinto ouvir um rangido dentro do carro, mas não presto muita atenção, os malandros estão na frente. Zeca,

com um veneno irremediável nos olhos, diz que Estrela é um filho da puta, pois pensava que o tráfico era todo

dele. Peço para ele parar, porque nesse ponto discordávamos. Precisava ir embora. Ao bater o olho no Chico,

nem uma alma viva. Tremo novamente, mas dessa vez, sem medo.

Ao entrarem no carro para seguir a caminhada, vejo que havia mais alguém lá dentro. Enfaixado e amarrado,

mas eles fecham a porta. Zeca, no piloto, pede para abrir a janela de trás. Estrela estava lá dentro. Tomado por

um repentino estado de fúria e medo, corro atrás do carro alguns instantes e os vejo ir embora. Pego o celular

para chamar a polícia. Lembro então de onde estava e de toda a situação que circundava a possível morte de

meu amigo. Corro na vila, chamo meus parceiros. Ninguém quer salvar o rude Estrela.

- Porra, como assim, vão deixar o maluco morrer memo?

- Ce num sabe nem metade da história, Leco, os mano tão na idéia certa.

Fico sabendo de pelo menos quatro histórias de desrespeito envolvendo Estrela e me coloco desolado no chão,

sem saber no que pensar. Ele vai morrer pelo bem do lugar em que ele mesmo vive. E isso nenhum canal de

TV vai conseguir entender.

Volto para casa a pensar nas leis de sobrevivência deste lugar em que nasci e me criei. Sento no sofá, um copo

de água para reacalmar a dor e a notícia do dia seguinte. Esta era só mais uma noite em nossas vidas. Talvez a

última de Estrela. Um tiro dispara ao longe, eu paro por alguns segundos. Minha reação fria pede para que vá

dormir e espere para ouvir as notícias com um falso espanto no outro dia. Talvez seja melhor assim.

A quebrada silencia e eu continuo contando gatos pretos até adormecer.

*

Os Corvos da Berrini

Às 12h, eles começam a sair de seus prédios e caçar alimento. Restaurantes requintados, mesas postas,

garçons educados, conversas simples acerca de qualquer assunto para esquecer o trabalho que em 15 minutos

os absorverá novamente. O Ray-Ban da propaganda eles estão usando. Da família de classe média alta vieram

para se manter estáveis e comedidos como foram seus antepassados.

Desajustado mesmo é o menino que engraxa sapatos em frente à padaria. Como se pode levar uma vida

destas? Eles desfilam seus sapatos de couro e sua elegância quase que endeusada, em frente a uma trupe de

estudantes que passa entregando questionários para seu trabalho de conclusão de curso, para quem sabe anos

depois vestir um terno como aquele, ter uma mesa só sua, com uma foto da família, um carrão importado na

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garagem do prédio, um apartamento no Brooklyn, outro Ray-Ban medíocre na Avenida Berrini. O sonho de

muitos é a realidade patética de poucos.

Eles sobem. O habitat fica deserto por pelo menos outras cinco horas. É quando começam a descer novamente

os corvos, a caminho de suas casas. os óculos deram lugar a pastas também escuras e bolsas cheias de algo

que reluz parecendo ouro. Carros caros, ônibus fretados, luzes brancas, amarelas, o dia começa a fechar sua

cara, a rua enche de corvos.

Eles e seus ternos escuros parecem zumbis de gravata descendo escadas em direção à rua violenta que os

espera de braços abertos. Demora algum tempo, a avenida se vê novamente esvaida de motivação e dá lugar

ao fracasso, nada de madames, motoristas, gorjetas. No lugar da cordialidade, a hostilidade. No lugar do

garoto com a pasta cheia de currículos, jovens que vendem drogas meninas que atravessam com seus bebês

próximo à Chucri Zaidan.

Os corvos abominam os povos e voltam para suas casas baseadas na arquitetura das cidades modelo de

grandes emissoras de TV. Os meninos, ainda na avenida, choram calor materno e adoecem à luz de

entorpecentes macabros. Os corvos voltam a dormir para que no outro dia esqueçam que onde vivem, acima

dos óculos, maletas e laptops, há também um pouco de imperfeição.

*

Nós, os Não Ricos

Sono, trânsito, lentidão. O que dizer da vida de um pobre desmazelado no meio do bolo que acorda mais cedo

do que queria, percorre quilômetros até seu trabalho para se manter vivo. É uma desgraça, mas temos que

aceitar, não há quem viva sem trabalhar. Os poucos, vencedores ilimitados de si mesmos vivem nas sarjetas a

esmolar o pão que o Roberto Justus comeu, amassou e jogou no lixo.

Max Weber diria entender o caso. O fascínio da vida só pode ser completo com o trabalho. No ocidente, mais

ainda. Quem não trabalha em um escritório é visto com maus olhos, louco, desbravador, ou simplesmente não

é visto. Digo isso pelos meus pais que de todos os trabalhos que tive até então, só se lembram de quando fui

estagiário numa Multinacional da Berrini.

As corporações trazem até você uma isca para continuar vivo. É como aquele desenho, em que o personagem

segura uma cenoura em frente ao cavalo para que ele continue o caminho. O problema é que nunca

alcançamos nosso sucesso naquilo que queremos dentro de empresas que não nos querem, senão

simplesmente para manter um quadro de funcionários "satisfeitos".

Outro dia, imaginei, em um segundo das dez horas que me restam no meu local de trabalho. E se eu morresse

amanhã? E se eu morresse na minha cadeira, sentado, sem ar, olhando o teto? O que sobraria de minhas

histórias, de minha correria por um futuro digno para posteriores relações conjugais, de meus estudos, os

discos que tenho, as habilidades, os livros que li simplesmente para ter assunto.

O fato é que perdemos muitas horas de nosso tempo fazendo o que não queremos fazer. Pelo menos nós, os

não-ricos, sabemos que servimos a escravidão deste sistema operacional que rege todas as coisas. Quer dizer,

muitas vezes não sabemos e jamais vamos tocar no assunto.

O capitalismo fez o ser humano ceder sua própria vida a conquistas, riquezas acumuladas e bens de consumo.

Deixar a herança para outro, perpetuar a classe dominante, abandonar os excluídos, vai ficar tudo bem. Eu não

acreditaria nisso tão piamente assim.

E a engrenagem segue esmagando a massa.

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Finais de Semana Nefastos

Às vezes, eu sinto que simplesmente concorro contra minha própria ascensão. Às vezes sou meu contra ego

personificado, mas esqueço isso aos sábados de madrugada, quando enquadro um casal saindo do motel,

parado no farol, na esquina do Hospital com a Esfiha Chic.

Aquele dia, estava com minhas duas filhas: Berê e Neguinha, uma PT e uma 357, mas nem precisei usar

nenhuma delas. Ele, quarentão, ela no máximo 21. Corpo esbelto o da Patrícia. Só consegui ver depois que

joguei o fulano pra fora do carro. Ele caiu de cabeça na guia. "Traumatismo", disse aquele repórter novo do

jornal.

As recordações daquela noite são inesquecíveis. Carrão, Augusta, Motel. Ela veio comigo. Nem imaginava ter

perdido o marido. Mas Patty queria mesmo era a grana do pilantra. Dono de joalheria, bonitão, família rica.

Agora é uma viúva sem filhos e cheia da grana. Quer sair comigo essa noite. Mas sabe como é, hoje é

sábado...

*

Divino, o Comédia

Dan era envolvidão desde moleque. Conhecia todo mundo da quebrada, desde as tiazinhas que comentavam

sobre a vida dos outros até os pivetes E essa sexta tava da hora. Já tinha arrastado umas minas pra casinha,

vendido mais que a cota de farinha que tinha. Chegou a negar vender mais para um comédia, já tinha

reservado umas cápsulas para clientes da semana.

Tudo dando certo, samba lotado, rua fechada de motos e suspeitos para a polícia. Uma viatura passa perto e

não pára. Ele sorri desordeiro e com os olhos vermelhos. Divino chega no bar e o chama de canto. Sobem a

rua umas três casas. Três tiros são disparados. Correria, o bando de moto consegue pegar Divino lá em cima.

Com um tique nervoso, o cara tentava morder o pescoço de maneira incontrolável. Também movia o queixo

demais. Perguntaram o que havia acontecido. Na Constituição da favela não se mata antes de saber o que

aconteceu. "Sei lá, mano, ele não me vendeu". "Porra, você faz do samba esse inferno e ainda mata o

malandro por cocaína?" Foi levado ao júri popular.

Manchete: Divino dos Anjos, 33, encontrado morto na região do Capão Redondo, São Paulo. Em seu peito, os

assassinos escreveram à faca: COMÉDIA.

*

Manifesto pela Simplicidade

Ser alguém mais simples. Acho que é o que falta para todos nós. Por que teorizar sobre o que não pode ser

tocado como os sentimentos. Sejamos portanto menos complexos e mais felizes. Esqueça as teorias de Darwin

e seja alguém melhor para o mundo mesmo com Murphy dizendo que você vai se ferrar no final. Carregue

seus fardos, esqueça limites, ultrapasse abismos numa pernada só, todos nós podemos.

A falta de simplicidade é que faz do mundo um lugar tão obscuro e com pessoas de pensamentos tão

incongruentes e muitas vezes maléficos. Desse ponto nos resta a escolha de esquecer os podres, só assim eles

se auto-excluem e sermos mais livres em nossas tão absurdas e curtas vidas.

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Não sei quem sou, não sei porque estou aqui e nem o que tudo isto quer dizer, mas os 13 velhinhos que

habitam minha cabeça alterando meu destino dizem para que eu deixe isso de lado e faça da vida algo mais

agradável do que simplesmente raciocinar fundo e descobrir a chave da vida.

Sejamos livres de amarras! O mais belo do mundo está no que se pode tocar, no que é palpável. Sejamos

livres para pensar em nosso futuro sem premeditar o que seremos daqui há 10 ou 12 anos. O conceito

envelhecido de viver é se sustentar, ter uma vida média, viver num local mediano, ter filhos, uma casa bacana,

geladeira e TV a cabo. Talvez ter tudo isso não faça diferença se você se tornar um escravo de seus afazeres,

um pau mandado da vida em sociedade.

Portanto, amigo, seja livre para decidir o que lhe traz bem. Mas cuidado! Seja verdadeiro consigo mesmo. O

que tem sabor de vitória para os outros pode amargar sua boca com a derrota. Seja simples a ponto de não

pensar nos outros para tomar suas decisões e mais ainda para ajudá-los quando precisarem. Pois estamos todos

no mesmo local, sem saber para onde vamos, sequer de onde viemos.

Sejamos livres, amigos, para festejar com requinte o bolo de fubá e o guaraná Dolly em cima da laje da casa.

Não existe maneira melhor de aproveitar a vida do que ter uma infinita grandeza de espírito e mesmo na

adversidade, saber respeitar que seu destino pode não ter sido igual ao dos filhos do Roberto Justus, mas que

vc pode ter muito mais do que eles em pensamento e vontade.

Respirar a vida não é para todos. Portanto, sejamos nós, simples.

*

Negra Ângela

Faz pelo menos uns cinco anos, eu não sei mais o que é amor de verdade. Tentei, era moleque, 15 anos nas

costas e uma idéia relativa sobre o que era viver. Quem estava certo? O mano baleado depois de deixar sua

filhinha na escola e recusar a entregar seu carro do ano na mão de assaltantes? Observava os ladrões da

quebrada, sempre percebi os olhares frios que tinham, as atitudes de tomavam, as conversas que levavam. E

foi assim que, aos 18 anos, conheci uma PT.

A “Pistola Taurus” é minha amiga desde o primeiro assalto, naquele posto de gasolina 24 horas que só o

Bequinha pra me fazer a cabeça mesmo. Fomos os dois, três da manhã, segurança rendido, dinheiro na sacola,

escondido no porta-pizza da moto, pra não chamar atenção. Me rendeu um apelido, tempos mais tarde. Me

chamam Del, acho que de “Delivery”. Custa entender que são inteligentes os caras, mesmo os do crime. O

fato é que tempos depois me envolvi na biqueira do Messias, nome bem sugestivo, mas ao contrário de Deus,

o Messias da Atlântico não queria ver ninguém fugir da droga, afinal, nóia é clientela.

Naquela sexta-feira eu tava com muita grana. Foram três assaltos de leve durante a semana, mas deu pra

encher a geladeira de casa e sobrou uma moeda. Peguei minha Hornet nova e subi em direção ao samba do

Tevez. Passei antes na casa do Preto Célio pra acertar umas paradas com ele e ficar suave no samba. Meu truta

de muito tempo atrás, eu que dei o apelido de Preto Célio. Estávamos distantes por brigas entre amigos de

nossos amigos, não valia a pena desfazer uma amizade.

Bati no portão, ele saiu sem camisa, mais magro do que nunca. Fazia uns meses que não o via, o cara tava só a

carcaça. Meia hora de conversa o diagnóstico: AIDS. Não era pra menos. Sempre que perguntava sobre ele,

me diziam que estava no Treme-treme, aquele prédio do centro que tem mais putas por andar do que tijolos na

parede. Nem pra se cuidar. Conversamos mais de uma hora, até me esqueci do samba.

Me contou sobre sua prima que veio do Nordeste morar com ele, mas a notícia passou despercebida pelos

meus ouvidos, até quando saiu pela porta da casa dele uma garota morena, descalça, saia comprida e negros

cabelos encaracolados tão brilhantes que achei ser um anjo. Parei naquele olhar de criança, me senti

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novamente com 15 anos. Ouviu nossa conversa por algum tempo, até que Célio percebeu sua presença e nos

apresentou. Quando ela apertou minha mão, lembrei daquele filme que o Bola me emprestou semana passada,

do Ray Charles. O cara era cego e sabia a beleza de alguém apenas pelo contato e pela maciez da mão da

mina. Não quis soltar, mas pelo meu senso moral involuntário, larguei a mão da pequena.

Começou a me contar sobre Ângela, que quis vir pra São Paulo conhecer a cidade, mas acabou se

apaixonando por tudo aqui e, mesmo com a pobreza de seu primo, tinha resolvido ficar. Tinha diploma de

faculdade, mas trabalhava como secretária na Berrini, estava se virando da maneira que podia.

A garota entrou, continuamos, mas a paisagem da beleza de Ângela não queria sair da minha mente. Para não

fazer besteira, achei melhor esquecer e disse a ele que ia subir, disse que deixei o Bequinha esperando no

samba. Mentira, ele estava lá, mas não me esperava. Isso era só para apressar a coisa toda.

- Firmeza, aí, valeu mesmo ter colado aqui pra trocar idéia, truta - Diz Célio

- É ‘nóis’, mano, não vamos desfazer amizade por nada.

- Pode crer

- Aí, lamento a doença, mano, mas fica com Deus.

Depois de um abraço fraterno, sinto que ele estava tremendo, talvez chorando. Ângela, agora na porta, via

tudo. Quando disse tchau a ela, Célio perguntou se eu não a levaria comigo para o samba. Claro que dei um

tempo, pra fingir estar pensando duas vezes sobre o assunto. Aceitei e ela foi se vestir. Recomendou que não a

envolvesse em nenhuma fita e só mais tarde fui saber que ele disse também à garota que eu era um cara gente

fina, que ela poderia confiar em mim.

Fumava um cigarro do lado de fora, esperando a moça. Prefiro não descrever a sensação que tive quando a vi

sair pelo portão. Ela subiu na moto e fomos pra lá. Ao chegar, o lugar estava lotado. Motos pela rua inteira,

para todos os gostos, carros rebaixados, gente bebendo e a banda tocando. A polícia vinha até a rua e virava

uma esquina antes. O samba estava no contrato com a PM.

Entramos no bar e, por sorte, havia uma mesa um pouco destacada do som, perto do balcão, perfeito.

Começamos a conversar, ela me disse sobre a vida que levava no nordeste, a seca, as plantações perdidas, seu

estudo, sua nova vida em São Paulo. Era alguém que pensava muito além de mim. Meu destino estava

traçado. Um dia, neste mesmo bar conheceria uma menina e engravidaria a coitada. Pagaria pensão e morreria

baleado em um assalto, ou na cadeia, sem mal conhecer meu filho. Ela havia me mostrado que viver poderia

ser um desafio mais bacana do que levar coisas que não nos pertencem ou aterrorizar casais de ricos nos

faróis.

Após três cervejas, ela estava solta. Se levantou e foi dançar na roda. Fiquei apenas admirando de longe,

primeiro a beleza de Ângela, depois a vida que incendiava a menina. Pensei várias vezes sobre os assaltos,

sobre o crime, talvez fosse mesmo hora de mudar. Só após muito tempo sem conhecer alguém interessante é

que repensamos novamente a vida.

As garotas que frequentavam o bar, ao perceber o afastamento da moça, chegavam na mesa, se sentavam,

cumprimentavam, mas eu não me importava mais. Não queria mais uma noite com nenhuma delas. Eu queria

Ângela. Ela me olhava sorrindo sarcásticamente a cada mina que se aproximava. Um tempo depois, voltou à

mesa.

- Famoso você, não é?

- Que nada, essas minas ficam em cima de todo mundo, sempre.

- E você não gosta disso?

- Não quando tenho alguém mais interessante comigo.

A menina pegou seu copo para beber e olhou para o lado, encabulada. Outros 10 minutos de conversa e

estávamos nos beijando na mesa. Não queria seguir os impulsos normais: Embebedar a menina, levá-la para

outro lugar, depois pra casa, sair de madrugada, após o sexo. Queria só continuar ali, um tempo.

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Bequinha se aproximou da mesa dizendo que tinha uma treta lá fora dos trutas do Célio. Só não disse que eles

queriam pegar a gente. Falei que não queria ver, que podia deixar eles se matarem sozinhos. Saem os

primeiros tiros. Ângela se assusta e corre em direção ao fundo do bar. Vou atrás dela e digo para esperar ali e

não sair, não importa o que acontecesse.

Algumas balas acertam dentro do bar. Me escondo atrás da parede e vejo quem está atirando. Três fulanos.

Bequinha, do outro lado, acerta um deles. Os outros se escondem e começam a fuzilar dentro do bar. Acabam

as balas deles, que tentam sair correndo. Levanto e digo para que parem. Faço-os ajoelhar e pedir perdão a

Deus. Minha última cartada no crime. Depois disso, prometo que paro e fico com Ângela. Serei eu feliz para

sempre com essa mina? Não sei, mas pelo menos ela me fez ver o mundo com cores tão novas e é assim que

vai ser. Por ela esqueço tudo isso, arrumo um emprego justo, viro gente comum. Esqueço todas as mulheres

que me idolatram pela grana e pelo poder que isso lhes confere. Termino o trabalho e entro no bar, para buscá-

la, dizer a ela tudo o que pensei enquanto executava os dois malditos do lado de fora.

Ângela estava escondida atrás do balcão, mas numa posição estranha. Havia sido baleada. Procuro Bequinha e

vejo que desce a rua correndo, sem avisar. Saio pelo portão com ela nos braços. Jogo a PT na mata. Não há

mais ninguém na rua, chamo uma ambulância. Meu anjo sangra demais e quando a vejo subir na maca,

desacordada, tenho um espasmo de terror. Naquele dia lembro de ter ido até o Hospital Campo Limpo

chorando muito e sem capacete. Não avisei o Célio, era tarde e ele não podia se preocupar com isso.

Se tivesse tempo para me casar com ela, ter alguns filhos que fossem pessoas bacanas quando crescessem, ou

se pelo menos eu tivesse tempo de dizer a ela que queria mudar de vida e por causa dela, seria tudo muito

diferente. Esta cela de presídio e os outros 49 presos aqui dentro convivendo com ratos e a podridão dos canos

de esgoto que respingam aqui dentro, não têm nenhuma relação com a vida que eu tinha para levar ao lado

dela, muito menos com seus cabelos negros, muito menos com seu rebolado aquele dia no samba.

Ângela foi um anjo que veio à Terra apenas me dizer que o mundo pode ser um lugar melhor se eu quiser que

ele seja. Em três horas conseguiu colocar lentes gigantes em minha visão limitada. E assim foi embora, na

cama de um hospital da periferia abandonada de São Paulo. A vida continuou pra mim, com mais raiva do que

antes, com menos esperança do que antes e hoje conto isso enquanto ouço gritos e lamúria na cela do lado.

Morador efetivo da 325-B já não me importo com a morte, sequer com a vida, perdi minha PT, perdi o amor

da minha vida. Hoje, mesmo com os pensamentos novos e incandescentes que Ângela um dia plantou em

minha mente, a comida azeda deste lugar e o ódio encubado destas paredes me fazem acreditar piamente que

dias melhores não virão.

*

Se não Houver Amanhã

Eu não quero dizer que nós dois daríamos certo. Que a vida seria justa com um namoro estável e um

casamento infalível. Conheço muitos casais assim e nada me parece mais ultrajante. Sabemos que dormir com

uma mágoa no peito é uma sensação arrebatadora para o coração, às vezes humilhante, mas é o que nos torna

fortes e sábios. Ela é linda, tem um coração imenso, um jeito de falar que me faz lembrar que a vida vai além

do meu coração comunista e das minhas bandeiras negras que imagino penduradas na parede deste quarto.

Estamos distantes, mas parecemos tão perto. Eu olho para o teto, as luzes apagadas, tudo faz o mundo girar

pouco agradável. Além da dor física do leito, existe uma dor de não poder tocá-la o rosto e sentir seu sorriso

se fazer com um carinho. Querida, tudo é tão triste para mim. Me sinto amarrado, sem saber sobre o que será

de nós. Sabe aquela caverna de Platão, a qual sempre me lembro quando falamos sobre alienação? De certa

forma, me sinto assim, sem saber sobre o mundo que acontece lá fora.

Um médico abre a porta, eu o olho como quem suplica pela vida. Será que ele vai dizer algo, ou vai fazer

como os outros, conferir a prancheta na ponta da cama, sacudir a cabeça negativamente e dar de ombros,

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como quem pouco se importa? Segunda opção. Mas antes dele sair, eu digo algo que o faz parar de cabeça

baixa segurando a porta:

- É um caminho sem volta, não é doutor?

Julio encosta a porta e se volta para falar comigo. Era alto, uma barba rala, mas bem cobreposta, parecia que

plantava cuidadosamente cada fio de cabelo sobre suas bochechas. Sentou ao meu lado, lembrei daquele

monte de seriados sobre plantões médicos engraçados em que a recepcionista é amante do diretor do hospital.

"Ele realmente parece um ator", penso comigo. Um ator em um hospital público num bairro perdido da

cidade. Põe a mão sobre meu peito, como um amigo.

- Não vem ninguém te ver?, diz Julio, espantado.

- Não doutor, hoje não, talvez amanhã.

- E se não houver amanhã?

Viro a cabeça. Parecia Nietzsche ou Augusto dos Anjos falando ao meu lado, enterrando palavras fúnebres

sobre tudo o que via. Ao menos era sincero. Lembrei dela, pedi ao médico que abrisse a janela. Comecei

dizendo que havia uma pessoa De outro lado da cidade e que talvez não pudesse vir me ver. E além do pessoal

de casa, talvez fosse a única que realmente se importasse. Tinha os cabelos escuros, a pele branca, era alta, era

linda. Tive dias com ela que de tão perfeitos pareciam que o mundo inteiro havia parado apenas para nós.

- Mais triste que minha situação neste quarto de hospital é lembrar de uma citação de Paulo Coelho dizendo

que "Quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize o seu desejo”. Auto-

ajuda suicida, não?

Ele riu. Prossegui.

Nunca soube direito quem eu era. Minha vida até então havia sido decerto frustrante. E com ela tudo parecia

fazer certo sentido. Aquilo vez ou outra me causava medo, mas os dias faziam esquecer. Alguém disse uma

vez que é melhor pensar na morte quando chegar o fim da vida. Filósofos e suas anedotas. Aquela frase tinha

um fundo trágico e eu o vivenciava naquele instante exato, dentro de um quarto de hospital, sozinho.

Fazia frio em São Paulo. A madrugada era sempre gelada, mas com aquele vento que passava por nós e subia

em direção ao outro bairro no final da subida, a noite se tornava algo horrível para alguém que debilitado

segurava o pranto e contava suas histórias ao doutor. Pedi para me levantar. Ele insistiu que ficasse na cama,

mas sabia que fazia parte daquele instante me deixar fazer tudo o que me viesse à mente. Julio me agasalhou.

Dois casacos pesados de lá grossa cobriam meu corpo que de negro, mais aparentava amarelo e pálido.

Me acompanhou até a janela. Fez com que eu segurasse no corrimão. Não, eu queria sentar. Fiquei na cadeira

encostada à janela, bem próximo daquele frio que não doía mais do que a falta De meu amor. Comecei a

procurar as estrelas que gostávamos de ver no céu, encontrei uma apenas. E dela não desgrudava meu olhar

sereno e febril. Continuava contando ao médico sobre meu amor e a dor que causava em um homem a falta da

mulher que se ama.

Ele estava ressabiado com algo. Olhei no relógio, estava perto das 5 da manhã. Julio disse que saía mais cedo

que os outros funcionários, perguntei a que horas saíam os outros, afinal, quase não aparecia ninguém no meu

quarto. Ele me respondeu que só largavam o turno com o amanhecer do sol. Eu disse que podia ir embora, ali

eu ficaria bem. Que mal faria um cidadão em meu estado? Até a mim mesmo ficava complicado tentar

qualquer brutalidade.

- Vou dar um jeito de não me jogar da janela, pode ir, cara. Eu tenho esperança.

Confiou em mim. Pobre homem. Se eu me matasse esta noite ele não saberia o que fazer no outro dia. Ficaria

tenso, marcaria sessões com psicólogos e terapeutas, sua garota o daria a maior força do mundo e no mês

seguinte, talvez ele nem lembrasse meu nome. Estava realmente com uns pensamentos malucos naquela noite,

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mas nada que deixasse entrar o suicídio em minha mente. Suicídio é fuga. E eu não queria algo tão deprimente

assim em minha história.

Voltei a olhar nossa estrela. Lembrei das coisas que ela me dizia, como me tranquilizava em noites de

domingo, como seu beijo era doce e reconfortante. Fechava os olhos e tentava sem sucesso senti-la mais

próxima. Hoje eu era só lágrimas e um vazio que dominava o quarto por inteiro, fazendo com que eu me

sentisse sozinho num planeta desabitado. Tudo se fazia triste em meu coração.

"Talvez ela venha amanhã, se o amanhã houver". Eu lembrava da frase do médico e metia a mão na cabeça.

Como eu queria um cigarro. Quando as coisas apertam é que um viciado sabe que jamais vai deixar de ser um

viciado. Ela não gostava desse vício, mas ignorava, às vezes até fingia gostar. E eu colocava os dedos sobre a

boca, fingindo fumar.

Fechei então a janela e me arrastei até o corredor daquele hospital, para tentar mudar o foco da mente. Não

havia ninguém à vista, eu começo a caminhar e me acostumar com as pernas. Olho alguns quartos em volta,

todos vazios, com as luzes apagadas. "Não é possível", penso. Abro algumas portas, nada, sequer uma alma

penada além de mim, que caminhava pelos corredores como um fantasma. Finalmente já quase no final, um

quarto com a luz ligada.

Uma senhora abre a porta desesperada, provavelmente achando que eu era um médico. Quando percebe o

apoiador com o qual me mantinha de pé, fica desamparada. Começa a me explicar que ele, Seu Vicente,

deitado imóvel e com uma respiração fraca sob a cama, não tinha mais jeito. “Esse último andar é para os que

não vão conseguir sair do hospital caminhando”, ela disse. Assustado e um pouco irritado com aquele

pessimismo da senhora, pergunto o porquê. Ela me fala que perdeu três irmãos neste mesmo lugar. "Os

médicos sobem poucas vezes, nada dizem e o final é sempre o mesmo. É como um pré-IML". Quando revelo

que também estou naquele andar, ela faz um sinal da cruz, me olhando nos olhos com se estivesse olhando um

corpo já sem vida.

Volto ao quarto de onde saí, desta vez mais rápido. Sento na cadeira ao lado da janela. A estrela havia sumido.

O dia começava a clarear, mais pessoas caminhavam na rua, o barulho de carros já não era tão tímido quanto o

da noite. Meu amor vinha ainda hoje me ver, depois do trabalho. O dia teria de passar inteiro diante de meus

olhos até que pudesse ver aquele sorriso atravessar esta porta. Não queria uma tarde inteira com ela, não

queria viajar para a Londres com meu amor, nem uma noite de sexo em um quarto de hotel em Dubai. Se ela

abrisse a porta e me desse um sorriso, Deus, talvez fosse hora de me levar.

Começo a dormir e a única coisa que peço é que meu mundo não acabe antes daquele sorriso cruzar a porta.

Se houver um só amanhã e um só sorriso aberto, poderei dizer que tudo valeu a pena.

*

De Olhos Fechados

O relógio marcava quatro da madrugada. Gostava de acordar mais cedo para tomar um café da manhã

sossegado, cansado, assistindo o primeiro jornal do dia, antes de sair para o mundo que já acontecia naquele

momento. Saí de casa e caminhei pela rua escura até o ponto de ônibus. Garotos voltavam de algum lugar

conversando alto e rindo. Encostei na parede, começando a jornada ao trabalho, no outro extremo da cidade.

O coletivo já ia relativamente lotado às 4h30. 'Relativamente' é quando se consegue ficar imóvel sem ser

perturbado. Lotado é quando a coisa lembra realmente uma lata de sardinha. Ia em meu lugar de pé, ouvindo

Tupac no tocador de música. Changes. As coisas que mudaram, que não mudaram, sentia meu cotidiano triste,

refletia sobre o dia anterior e prestava atenção no sono dos que, com sorte, conseguiam lugar para ir sentados

até o centro da cidade.

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Amores Urbanos – Robson Assis

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Passando o cruzamento com a Espraiada, pela avenida Santo Amaro, já não cabia mais ninguém naquele

veículo. O motorista sabia disso. O cobrador sabia disso. os cento e poucos passageiros encurrlados nas entre

os balaústres de metal sabiam disso. Dali pra frente começavam a descer os que trabalhavam no Brooklyn e

no Itaim, ia melhorar. Feito. Acreditei por um segundo que pudesse viver um dia inteiro de olhos fechados.

Era fácil, nossa rotina pode ser contada. De olhos fechados eu poderia saber o que aconteceria em cada hora

do meu dia. Pedi perdão a Deus pelo mau pensamento, mas sabia que podia ao menos narrar meu dia sem

vivê-lo, isso me confundiu por alguns segundos até que uma moça de vestido social preto se levantou e cedeu

seu lugar, já havia chegado ao seu destino. Me sentei e esqueci disso.

Dormi um pouco, acordei na parte baixa da Avenida Nove de Julho. Esfreguei meus olhos e o dia já

espreguiçava, mas ainda era escuro. O coletivo já esvaziava, finalmente me alonguei e desci com um bocejo

típico, não sem antes acordar um ou outro passageiro que ainda dormia mesmo após a chegada ao ponto final.

Saí do Terminal faltando dez minutos para as seis horas da manhã. Corri atrás do metrô Anhangabaú e alguma

coisa me fez sorrir. Talvez aquele sol que aparecia fraco e sonolento, os tiozinhos montando as barracas de

bilhete de metrô, tudo aquilo tinha uma certa magia, eu não sabia explicar. Subi as escadas do metrô e avistei

a Xavier de Toledo. Esperei o farol fechar e atravessei. Na metade da faixa de pedestres, o tempo começou a

andar mais devagar. Ela era morena, tinha saias compridas, um tom rubro escuro, vestia um chapéu e tinha

uma pele lisa. Eu sabia que jamais diria alguma palavra e segui caminhando, ela deu um trago no cigarro e me

olhou por dois segundos que bastaram para que me lembrasse de seu rosto pelo resto de minha vida. Ela

passou depressa, com medo. Desceu as escadas e sumiu para sempre. Nunca esqueci aquela cena.

Esperei outro ônibus no ponto final. O cobrador decidiu abrir a porta após devorar seu pingado com pão

chapa. Poucos passageiros subiram. Saiu vazio o coletivo, rumo ao terminal Pirituba. Era um bom caminho.

Avenida São João, Lapa, Raimundo Pereira de Magalhães, final. Eram 7 horas e começavam a abrir as

borracharias, bares. As cabelereiras varriam o chão ainda com a porta do salão fechada. Estava chegando

novamente em outro ponto final.

Sete e meia, milhares de pessoas vão e vem dentro do terminal de ônibus. Eu desço, vou ao banheiro, bebo um

pouco de água, sigo para a última linha do dia. O Vila Zatt sai em disparada, faltam dez minutos para o

horário de trabalho. Bem são só alguns pontos. Olho aquele bairro como se pudesse morar ali em pensamento,

era tão igual ao Campo Limpo, mas de um lado tão distante. Fiquei olhando pela janela, quando avistei o

galpão onde ficava meu trabalho, passando ao longe. Desci e voltei um pouco a pé. Sempre dava dessas.

Trabalhava para um grande livraria, arrumava o estoque, empilhava caixas, contava, etiquetava, haveria uma

grande Bienal nas semanas subsequentes, o que fez aumentar meu serviço. Novos empregados também foram

contratados, todos pareciam vir de lugares simples. Hoje, pela primeira vez, parecíamos mais próximos, todos

eles. Nos encontramos no pátio e subimos até o local escuro e seco onde trabalhávamos.

O dia estava quente, mas o trabalho ajudava a manter a cabeça distante. Empilhava caixas, organizava os

livros, conferia as notas fiscais e colocava nas estantes. Todos se ajudavam, arrumavam os papelões em locais

distantes para que um tiozinho de idade inteira viesse buscar a cada uma hora, com um carrinho. Ele passava

tanto por ali que ganhamos certa intimidade para fazer piadas e brincadeiras. Seu Valdo era gente boa, gostava

das coisas certas, só rosnava quando via as caixas abertas fora das pilhas, tinha dois filhos com sua esposa,

morava na Lapa, apesar de não morar lá, imaginei que fosse um bom lugar.

Durante o almoço, dois moleques saíram para fumar um baseado. Não gostei quando vi, mas cada um tem a

sua escolha, sabe o que é melhor pra si. Prefiro acreditar assim. Quando saí do refeitório e desci no pátio,

consegui vê-los na praça do lado de fora, assoprando fumaça e rindo à toa.

Voltamos para o trabalho, continuamos a rotina. Aquele dia quente estava rendendo de maneira supreendente.

Eram três da tarde quando Seu Valdo apareceu e viu dois papelões fora do lugar.

- Aí Moleque, disse olhando pra mim.

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Foi quando sem imaginar, fiz brilhar uma estrela dentro de todos nós naquele galpão. Como já tínhamos certa

proximidade, cantei um trecho do Racionais compulsivamente caminhando em sua direção:

- "Aí moleque, me diz, então, ce quer o quê? A vaga tá lá esperando você. Pega todos seus artigos importados,

seu currículo no crime, limpa o rabo."

Valdo recolheu os papéis e virou as costas. Continuei e vi que todos me olhavam. Continuei a música, era

sempre assim, ela não saía da minha mente. Cantarolei baixinho, até que alguém ouviu e me seguiu. Em cinco

minutos estávamos todos cantando aquele som um pouco mais alto, fazendo as entradas, as passagens como

um Wu-Tang-Clan de estoquistas.

Acabou o som, de longe eu ouvi alguém cantando outra coisa. Era 509-E, Saudades Mil. Seguimos.

Espantosamente, todos nós sabíamos cantar todas as músicas que, aleatóriamente, alguém começava. Thaíde

& DJ Hum, SNJ, Consciência Humana, Detentos do Rap, Facção Central, Xis, RZO. Cantávamos 'Paz

Interior', quando a supervisora chegou. Abaixamos o tom, fomos amenizando. Ela vestia saia e camisa social,

cabelo amarrado, salto alto. Parou, encaixou as mãos sobre a cintura, lembrando uma professora de pré-escola

encontrando os alunos aprontando alguma. Era um tanto velha e tinha uma cara um tanto suja. Arrumou os

óculos de armação grossa e disse:

- Vocês acham que estão num show é? Aqui é uma empresa. Olhem lá pra cima. É um escritório, as pessoas

precisam de concentração!

Todos ficamos quietos e continuamos o serviço, sem jeito e até um pouco envergonhados, admito. Ela saiu.

Caminhou até o elevador social, virou para nós e as portas se fecharam. Deu até pra ver ela se sentando

naquele escritório todo de vidro, no mezanino, com máquinas de café, impressoras a laser e poltronas

reclináveis. Senti um pouco de pena de nós, nem os escravos eram impedidos de cantar em seus quilombos.

Gui terminou de recolher os papéis na empilhadeira e desceu do carrinho. Chegou perto de todo mundo e

assobiou o começo de Burguesia, do De Menos Crime, de forma idêntica à música. Ainda deu-nos as

primeiras frases: "A minha voz não calo, não sou otário, burguesia do caralho...". Bem baixinho, todos

cantávamos mais músicas. A supervisora lenvantou outra vez e nos olhava lá de cima. Balançou a cabeça

negativamente e voltou a se sentar. Ali dentro, nós éramos o rap nacional, a revolucionária geração dos anos

90, os guerreiros mostrando serviço.

O relógio bateu às oito da noite. Penduramos os aventais bege nos ganchos e saímos em direção ao bolsário.

Pegamos as mochilas. Ainda voltei ao prédio administrativo. Aquela supervisora não estaria lá, meus chefes

não estariam lá, chefes dos meus chefes talvez já estivessem em casa, jogando golf no tapete e acionando os

alarmes do portão. Ali seríamos eu e a máquina de café apenas. Um vício que adquiri na última semana,

quando descolei a brecha. A secretária ficava até tarde, Jolene, mas era gente fina, sabia conversar, gostava de

música e das coisas boas da vida, se é que você me entende.

Naquele dia, Jolene parecia tensa, trocou meia-dúzia de palavras comigo e mergulhou dentro de uma pilha de

papéis sobre sua mesa. Parecia ser vigiada. Peguei duas moedas, coloquei na máquina, me servi de um

capuccino, sentei no sofá. Uma folheada na revista Cult, sempre tinha alguma coisa da qual eu nunca tinha

ouvido falar. Aquela falava sobre Baudelaire. Já tinha lido As flores do Mal, sabia que o livro tinha sido

proibido na época, embora nunca tenha ouvido nada a respeito do autor. Mais algumas páginas, deixei a

mochila no chão, entrou alguém pela sala, percebi, mas não olhei.

Fechei a revista e terminei a bebida. Fui até a máquina e me encarreguei de outra mais pesada. Um café forte e

seco, eu precisava. A Caros Amigos falava sobre as Leis do Islã. Comecei a ler, esqueci um pouco o café e fui

mais a fundo. Li Glauco Matoso, Ferréz, a entrevista. Hora de ir embora. Encostei o exemplar sobre a mesa, o

senhor de óculos na outra poltrona me perguntou se eu gostava daquela revista. Não era um cara mal-vestido,

mas não aparentava ser chefe de ninguém. Disse que gostava, tinha uma coleção em casa com vários números.

- Mas é uma revista de esquerda não é?, me questionou o senhor

- Sim, a gente precisa respirar a rebeldia.

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Abriu um sorriso breve, jogou seu copo no lixo. Saiu e acendeu um cigarro no pátio, Jolene parecia transpirar

na mesa. Olhava para o lado de fora como se houvesse um monstro pernicioso prestes a entrar e assassiná-la.

Disse tchau, ela acenou com a mão, sem me olhar nos olhos, mal podia falar comigo.

De fora, também acendi um cigarro. Comentei algo sobre as estrelas e citei Kerouac. Ele sorriu novamente.

- Você trabalha aqui?

- Sim, no estoque, estamos arrumando as coisas para a Bienal. E o senhor?

- Sou do administrativo. Parece ler muito, não?

- É, gosto. Estudei Jornalismo. Trabalho aqui porque gosto de livros e o mundo não oferece muitas chances.

- Que tal trabalhar no prédio, revisando livros?

- Por mim, ótimo.

Nunca mais voltei a ver aquele que, certa vez me disseram, de acordo com a descrição que fiz, era o

presidente daquela companhia. Não sei o trabalho de um presidente, mas acredito ser um quase dono. Um

quase dono sem cara de chefe. Era o que precisava ser. Consegui o cargo de revisor, trouxe mais dois amigos

do estoque, que trouxeram mais dois.

Aquele dia se passou, aquele trânisto, aquele café, a Jolene, o Valdo, tudo se fez passar como numa história de

esperança, contada para crianças. Em alguns anos, enchemos aquela sala de ex-estoquistas que não

desacostumaram da idéia de trabalhar cantando rap.

E nunca mais quis viver meus dias de olhos fechados.

*

Derrotas

Foi quase que um soco na cara. Bem dado, daqueles que deixa o adversário no chão, sabe. Não fiquei abalado,

mas foi meio triste a ligação do Leandro da MBPress. Tudo bem, era longe, quase não tinha ônibus que

passasse por lá, eu ia ter que me matar pra acordar cedo e chegar lá pela manhã. Mas era uma chance para ter

minha vida pelo menos começada. Certo, minha vida já começou, está fazendo umas planilhas na RS, mas eu

preciso ajudar, preciso reagir. Essa não é a última derrota da minha vida.

Eu li textos, comparei, de verdade. Acompanhei as coisas todas. No domingo, durante o jogo entre São Paulo

e Vasco eu sentei na mesa do computador, joguei o Estadão no chão, larguei todas os cadernos do lado da

cadeira, só deixei o "Feminino" ao lado, para minha mocinha ler depois. Deixei a fotod ela em cima da cama

também. Como um santinho, sabe, para te proteger de não fazer merda. Abri o caderno de esportes, estirei na

página que falava sobre o jogo. Faltavam três horas para a partida em São Januário. Eu liguei o rádio. Só a

rádio Globo ia transmitir. Nada de tv, nada de ver as jogadas. A voz irritante do locutor fazia eu desligar o

rádio constantemente para pensar no que ia digitando. Não como agora. Eu não preciso pensar.

Às 16h de domingo estávamos, no quarto: Eu, a foto dela, o caderno de esportes do Estadão, O Jornal

"Lance", o Word, o Lancenet e a rádio Globo conectados. Já havia parte do texto. Eu sabia de detalhes

mínimos, como as linhas do campo que sumiram com a pouca chuva que fazia no Rio de Janeiro. Sabia

também que o São Paulo não vencia há muito tempo no Rio e que o Vasco ainda não tinha vencido no

Brasileirão. E agora me pergunto, para quê?

Eu fiz o texto. Exatos 4 minutos após o jogo, ele estava entregue nos e-mails que o Leandro pediu. Estava

bom, li, reli, algum tempo depois, achei um erro de digitação. Em todo o texto, feito rapidamente como eles

me pediram, havia uma letra que faltava. Mas estava entregue.

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Segunda feira eles ligam. "Seu texto foi selecionado", diz a voz do outro lado da linha. Eu desligo o telefone

tremendo, sorrindo muito. Ligo para a mocinha, aviso. Ela fica feliz, cheia de esperanças. Esse seria o começo

do nosso futuro. Ontem, comemoramos no shopping Boa Vista comendo no Bobs e assistindo Visões (versão

japonesa de O Chamado, horrível, mas só pra constar), saímos cedo, fui pra casa. Arrumei a mochila. Decidi

que iriam comigo: O guia Mapograf de São Paulo, Minha pasta, o Discman do Rodrigo e o livro do Wagner

só pra estar lá.

Dormi bem. A foto ainda estava na cama, do mesmo jeito como estava no dia do teste. Ao lado dela, olhando

no escuro, decidi lutar até o fim. Dormi com a foto dela em meu braço (baço). Acordei, ela ainda do meu lado,

sorridente, esperançosa. Levantei às 5:10 da madrugada. Estava tudo certo, dentro dos ônibus, antes de

chegar. Mas ainda não havia pensado no fracasso.

Só fui pensar no fracasso quando vi um Scénic entrando no estaconamento do prédio onde ficava a tal agência

de notícias. Esses carros só são dirigidos por pessoas que mentem. Era um homem de meia idade, roupa

social, gravata e tudo o mais, desses cuja vida profissional vale mais do que qualquer amor verdadeiro. Nunca

me dei bem com esse tipo de gente, não trato mal, nem nada. Só não me sinto bem perto de alguém que ri e

contorce as sombracelhas. E pela primeira vez eu pensei no fracasso.

Ao entrar, cumprimentei o cara que me ligou. Sentei ao lado de um outro candidato, da Faculdade São Judas,

segundo ano de Jornalismo, claramente subversivo. Ele conversava sobre qualquer coisa, só pra distrair.

Parecia acanhado, com medo, mas talvez lembrasse dos conselhos que sua mãe lhe dava. Conversei um pouco

com ele. "É, a prática é ruim. Você recebe a pauta e tem que ir atrás das fontes em Diadema, Sorocaba, São

José dos Campos, muito ruim, eu gostava mesmo é da teoria, você estudava para a prova e tinha sua nota".

Parei de conversar.

O teste era o seguinte: Assitir um jogo entre São Caetano e Santa Cruz (Talvez o nome de um dos times seja

um tanto sarcástico, enfim) , pelo brasileirão série B de 99 , relatar os fatos, a escalação, escrever uma matéria

sobre a partida. Depois disso, que deveria ser entregue ém até 15 minutos após o término do jogo, havia 15

perguntas sobre futebol, 10 sobre esportes gerais e 5 sobre atualidades. As questões sobre atualidades eram

legais. Um pouco imbecis, mas legais. Depois, mais um texto. Agora você tinha que falar sobre uma discussão

entre os jogadores José Reis e Alex Dias, do Vasco. Acho que escrevi demais.

Depois, uma entrevista: "Você faria outra coisa se recebesse uma mesma proposta como a nossa?", dizia o

editor-chefe. Ao que respondi: "Faria". E depois as velhas frases: "tem alguma coisa a mais pra perguntar aí?

Acho que não né, então obrigado Robson, a gente liga para você ainda hoje."

Aí eu saí e liguei pra linda. Falei o que aconteceu, ela deu a velha força de sempre, até me senti melhor.

Peguei o ônibus com um salgadinho e um refrigerante na mochila. Tudo bem, tinham umas bolachas. Cheguei

em casa, a ligação. "Então, cara, infelizmente dessa vez não deu. Mas seu currículo fica guardado aqui,

para..."

E agora me sinto mal. Não quero desistir. Mas pelo menos hoje eu quero paz dormindo com ela. Amanhã é

dia de correr de novo. Correr atrás da casa no Paraíso, para quem sabe acordar numa madrugada e ir buscar o

pastel na Catarina. Ninguém entende não é? Ela entende. O fato é que hoje eu quero paz.

Preciso de trabalho. Sei enrolar carretel na lata de refrigerante, fazer cerol e empinar pipa, sei guardar carro,

ler história pra criança, rodar peão, tocar violão e tenho muitas idéias legais e felizes para o seu negócio.

Ligue: 581... Não, pra ser sincero, não ligue não.

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Amores, Tragédias e Valquírias

Ed não conseguia dizer a Ana tudo o que sentia. Tentava, sempre tentou. Cartas, e-mails, bilhetes, todo o tipo

de comunicação, exceto a principal e mais sincera: falar. Sempre que estava ao lado de seu amor sentia algo

diferente, que o fazia pensar em como seria sua vida sem os rolês intermináveis de sexta-feira, que só tinham

mesmo fim na barraca de pastel na feira de sábado, duas ruas atrás da avenida Robert Kennedy. Pensou em

como seria morar com alguém, ter filhos, se dedicar a uma vida nova e repleta de alegrias e desesperos

passageiros. Não fazia idéia de como seria isso.

Também não sabia que Ana tentava se declarar todas as vezes que se encontravam. Só não encontrava jeito,

talvez estragasse toda a amizade que tinham, talvez o sufocasse, talvez se sufocasse. Era cheia de dúvidas. Sua

única certeza era o sentimento por Ed.

Aquele era um sábado cheio de sol, as ruas do centro pareciam menos desagradáveis com todo aquele sol. Ed

caminhava pelo Viaduto do Chá. Dali desceu a São Bento e chegou ao Museu da Língua Portuguesa, onde

encontraria sua platônica inspiração para os poemas de seu caderno, sempre presente na mochila que

carregava.

Chegou cedo ao local e a garota não estava lá. Resolveu caminhar no parque em frente ao museu. Andou sob

árvores que o escondiam do sol, sobre camisinhas usadas e restos de garrafas de bebida. Aquele parque era

como o final de uma festa no inferno. Todo o tipo de coisa estranha aparecia, viu um travesti caminhando

torto em seu salto com uma camisa rasgada e o batom manchando o rosto. Resolveu voltar.

Avistou Ana do outro lado da rua, ela estava linda. Uma saia verde na altura dos joelhos, uma blusinha branca

com a alça ameaçando cair e desnudar a linda moça. Seus cabelos loiros e esvoaçantes, sempre uma atração à

parte. Ela caminhava de um lado para o outro como se o procurasse. Finalmente, se viram. Cumprimentaram-

se com um beijo quente no rosto e um abraço demorado, fazia tempo que não se viam.

Ed tinha pouco dinheiro consigo, mas aos sábados a entrada do Museu era gratuita. Tomaram seus tickets e

subiram pelo elevador. Era uma exposição sobre a vida da escritora Cecília Meirelles, grande literata na

opinião de ambos. Cartas, fotos, escritos perdidos, primeiras edições de livros raros, livros da biblioteca

pessoal da escritora, montes de figuras, o lugar era mágico.

Ana caminhava olhando pra cima, admirada a cada passo que dava. Ed não conhecia tanto sobre a escritora,

então se empenhou em fazê-lo naquele momento e já que 'sua' garota admirava tanto a tal Cecília, não faria

mal entrar no clima. Logo na entrada havia um paredão com diversas frases da autora retiradas de livros. Leu

alguns em voz alta, infeliz apenas por não ter conhecido tudo aquilo antes.

Duas horas depois, saíram do Museu, pegaram alguns panfletos, marcaram a volta em outras exposições. Ed

pediu para segurar sua bolsa enquanto caminhavam até o outro lado do centro. O sol já esmaecia, eles

caminhavam com vontade de ficar, devagar, cabisbaixos e risonhos, andavam como quem não quer chegar.

Ana evitava Ed por medo de interromper a amizade, Ed evitava Ana por um medo qualquer sem explicação.

Ambos sabiam onde aquilo ia dar.

Contavam histórias e relembravam momentos subindo a Avenida Ipiranga, próximo ao Bar Brahma, quando

Ed disse que era hora de cantar Caetano. Ela pediu que não, ele foi valente, ela o agarrou e segurou sua boca,

ele tentava soltar a voz mesmo impedido. Os dois riam alto e em seguida cantavam: "Só quando cruza a

Ipiranga com a avenida São João". Riram mais ainda quando não lembraram a continuação da música.

Entraram numa velha livraria, um Sebo esquecido pela humanidade, com muitos livros raros, fitas VHS,

discos antigos. Vasculharam tudo o que podiam. Ed quase chorou ao ver Bill Halley & His Comets, banda

preferida de seu pai na adolescência. Ana insistiu em comprar, depois ele lhe dava o dinheiro. Um décimo de

segundo para questionar sua moral e ele não aceitou.

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Numa lanchonete mais acima, decidiram comer, já era um tanto tarde. Na dúvida entre Coca-cola e Sprite,

pediram uma cerveja. Serviram-se e comeram alguns salgados já velhos no balcão do bar. Os donos eram

japoneses, então a comida não era de todo mal. O problema ficava no mau cheiro e no mundo que se fazia do

lado de fora. Eram 9 horas de uma noite calada e sombria no Vale do Anhangabaú.

Lembraram mais histórias, se surpreendiam com o outro, se embaraçavam quando sabiam que tinham de dizer

o que sentiam em seus corações e nada se ouvia, além dos ruídos vindos de fora. Suspiros e goles olhando o

infinito, mais suspiros e dois olhares sem jeito que se convidavam calorosamente. Descobriram que havia

música clássica na jukebox, insistência do dono da máquina, que não gostava de forrós e funks.

Colocaram dinheiro e escolheram duas canções: na primeira Mozart e em seguida, Wagner. Ed desviou o

olhar para a porta do bar, onde um senhor estava encostado esperando que os donos fechassem o

estabelecimento para finalmente se acomodar e dormir. Ele tinha um cigarro nas mãos e o fumava assistindo

algo que acontecia mais à frente, como um jovem em frente à televisão.

Ed olhou assustado, mas tentou prender a atenção de Ana, que estava de costas para a rua. Dois hippies,

moradores locais, brigavam por comida, enquanto uma criança pequena chorava num lençol jogado no chão.

Era frio, o garoto tinha apenas uma camada fina que o cobria. Os dois digladiavam de maneira brutal. Era a

fome que fazia seu primeiro show de horrores da noite.

Ana já havia perdido o apetite instantes atrás ao ver uma barata correndo de dentro do banheiro na direção de

outro vão onde pudesse se esconder, quando também olhou para trás, viu o senhor e também percebeu a briga

que acontecia metros às suas costas. Deu alguma atenção. Quando deram por si, os dois assistiam a cena com

medo e apreensão, como num cinema ao vivo.

Um som de cavalos veio da rua de trás. Eram dois soldados da cavalaria da PM que, sem demonstrar sinais de

piedade, começaram a descer atrás dos baderneiros. Os hippies perceberam tudo isso quando os cavalos já

vinham embalados. Mesmo assim tentaram correr, eufóricos e dispostos a atravessar o mundo inteiro para não

serem pegos pelos soldados. Ana pensou em Heroísmo, Ed foi menos otimista quando a obra de Wagner na

Jukebox parecia oferecer-se a ser trilha sonora da cena.

Uma criança enrolada no lençol gritava, dois cavalos disparavam na direção dos dois humanos que corriam

para o final da rua sabendo que possivelmente apanhariam feio dos soldados. Era uma cena infernal, barulho

de patas no chão, uma criança que gritava, policiais parecendo cachorros raivosos, uma criança que, insistente,

gritava. Nem os cavalos, nem os policiais enxergariam uma criança num lençol em meio à toda aquela

escuridão, mesmo o garotinho chorando do jeito que estava. Os soldados cavalgavam furiosos em direção ao

garoto que gritava agora como se soubesse que estava próximo seu fim. Ed deu um passo quando sugeriu isso

à sua consciência. Ana esbugalhou os olhos como se de repente reparasse neste mesmo fato. Um ensurdecedor

grito veio do fundo de um corpo pequeno. A criança parou de gritar. Os cavalos partiram sem olhar um bebê

pisoteado no chão agora mais imundo da entrada do Vale do Anhangabaú. A cena teve seu desfecho na

melodia insana da Valquíria de Wagner.

Para evitar que comentassem o assunto, Ed disse que o melhor era ir embora. Haviam esquecido a conversa

toda, a tolice de seus doces olhares se encontrando, a pobreza toda do mundo parecia fazer um grande sentido

naquele momento e aquilo definitivamente não era um sentimento bom. Aquela criança havia morrido, não

havia sentido, porque deveriam estar ali, naquela hora, juntos? Realmente não dariam certo.

Naquela noite foram embora juntos no mesmo ônibus. Por motivos que se pode entender, Ed queria ter certeza

de ter entregue a garota a salvo em casa. Partiram no primeiro ônibus rumo à Avenida do Estado, caminho da

casa de Ana. Se abraçaram sentados no fundo do coletivo e com um sorriso um pouco forçado, beirando a

decepção, remediaram tudo aquilo que sentiam dentro de si. Havia implícita no ar uma grande vontade de dar

um grande beijo e fazer esquecer tudo aquilo que acabaram de ver, esquecer que existia um universo além dos

dois. Mas sabiam que assim, estragariam a si mesmos um pouco mais com estas mentiras.

Os dois abraçados voltando pra casa em um ônibus com poucas pessoas era algo com que sempre se

lembrariam. A pureza daquele momento, cercada pela barbárie dos instantes que se passaram começava a

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remediar a dor da situação. Se ficassem juntos ou não, se a vida os fizesse seguir diferentes caminhos, sabiam

que aquela noite jamais sairia de seus pensamentos.

Ana recostou a cabeça sobre o peito de Ed que fez carícias no cabelo liso da moça e a cobriu com seu braço

esquerdo. A moça agarrou forte o rapaz e disse que não queria sair dali. Não havia qualquer carta de Cecília

Meirelles ou qualquer sucesso de Bill Halley & His Comets que os dois pudessem se lembrar. Entretanto,

conforme o veículo seguia em frente, a segurança que sentiam um no outro se fortalecia na mesma medida em

que os gritos da pobre criança relutavam em se desfazer dentro de suas almas. Naquele instante, sabiam que a

coisa mais fácil naquele momento seria dizer o quanto se amavam. E, meio que se interrompendo, ao mesmo

momento eles disseram.

E tudo, de repente, começou a fazer algum sentido.