18

Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo

Citation preview

Page 1: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

A rede de Vogel armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

A l f r e d G e l l

O artigo discute as distinccedilotildees mais comuns entre obras de arte e ldquomeros artefatos que satildeo uacuteteis mas natildeo satildeo belos ou esteticamente interessantes

Se como o filoacutesofo Arthur Danto afirma um objeto artiacutestico eacute identificado como tal em funccedilatildeo do modo como eacute interpretado entatildeo muitos artefatos poderiam ser

exibidos como objetos artiacutesticos Seu objetivo eacute demonstrar como as armadilhas para capturar animais poderiam perfeitamente ser exibidas como objetos

artiacutesticos porque conteacutem ideacuteias e intenccedilotildees complexas a respeito da relaccedilatildeo entre homens e animais aleacutem de fornecer um modelo do caccedilador e de como ele

concebe sua presa Conclui portanto que a definiccedilatildeo esteacutetica de umobjeto artiacutestico eacute insatisfatoacuterio

A t eacute agora grande parte dos debates no campo da filosofia da arte especialmente no que diz respeito agraves artes visuais dedica-se ao problema da definiccedilatildeo de obra de arte Como determinar quando um objeto fabricado eacute uma obra de arte ou algo menos nobre um artefato Existem (pelo menos) trecircs teorias que tentam responder a essa questatildeo De acordo com a primeira uma obra de arte pode ser definida como qualquer objeto esteticamente superior desde que possua determinadas qualidades como apelo visual e beleza Essas qualidades devem ter sido intencionalmente atribuiacutedas ao objeta pelo artista pois os artistas seriam dotados da capacidade de resposta esteacutetica Natildeo pretendo discutir especificamente essa teoria embora ela ainda seja aceita pelo puacuteblico em geral que continua a pensar que qualidades como apelo visual e beleza podem ser reconhecidas automaticamente nos objetos

A segunda teoria sustenta que as obras de arte natildeo satildeo identificadas por suas qualidades externas como a definiccedilatildeo esteacutetica propotildee Um objeto pode natildeo ser belo ou mesmo interessante de se ver mas seraacute considerado obra de arte se for interpretado a partir de um sistema de ideacuteias fundamentadas em uma tradiccedilatildeo

Arte primitiva arte contemporacircnea artefatos

artiacutestica historicamente estabelecida Eacute a chamada teoria interpretativa cujo grande meacuterito criacutetico em relaccedilatildeo agrave teoria esteacutetica eacute estar muito mais afinada com o mundo artiacutestico contemporacircneo Nesse contexto a elaboraccedilatildeo de pinturas e esculturas belasrdquo deu lugar agrave chamada arte conceituai como eacute o caso por exemplo de montagens como a realizada por Damien Hirst na qual um tubaratildeo morto eacute exibido em um tanque de formol (figura a ser comentada posteriormente) Mesmo natildeo sendo um objeto atraente ou especialmente elaborado o tubaratildeo de Hirst eacute um gesto altamenteinteligiacutevel nos termos do fazer artiacutestico contemporacircneo e natildeo pode ser tomado como um truque publicitaacuterio ou um sintoma de insanidade Inserida na tradiccedilatildeo artiacutestica conceituai poacutes-Duchamp a qualidade dessa obra deve ser avaliada em termos artiacutesticos pois seja ela considerada boa ruim ou regular trata-se inegavelmente de um tipo de arte Os defensores da teoria esteacutetica tecircm no miacutenimo dificuldade para aceitar esse tipo de obra e estatildeo inclinados a recusaacute-la categoricamente como arte mas ao fazer isso correm o risco de ser acusados de reacionaacuterios por criacuteticos e artistas que como eu discordam dessa visatildeo

TRADUCcedilAtildeO bull A L F R E D G E L L 1 7 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A deg U F R J deg 2 0 0 1

Finalmente existe uma versatildeo mais radical da teoria interpretativa que fornece uma terceira possiacutevel resposta para a pergunta o que eacute uma obra de arte Conhecida como teoria institucional afirma como a interpretativa que natildeo haacute no objeto artiacutestico enquanto veiacuteculo material uma caracteriacutestica capaz de qualificaacute-lo definitivamente como sendo ou natildeo uma obra de arte Isso eacute vaacutelido a despeito do fato de o objeto estar ou natildeo subordinado ao mundo artiacutestico ou seja a uma coletividade interessada em fazer partilhar e debater julgamentos criacuteticos desse tipo

A diferenccedila entre as teorias interpretativa e institucional eacute que a institucional natildeo pressupotildee a coerecircncia histoacuterica das interpretaccedilotildees Uma obra pode estar a princiacutepio fora do circuito oficial da histoacuteria da arte mas se o mundo artiacutestico coopta essa obra e a faz circular como arte entatildeo ela eacute arte porque satildeo os representantes do mundo artiacutestico ou seja artistas criacuteticos comerciantes e colecionadores que tecircm o poder de decidir essas questotildees natildeo a histoacuteria ponto de vista proposto pelo filoacutesofo americano George Dickie 1 Essa teoria aparentemente natildeo tem o apoio da maior parte dos filoacutesofos contemporacircneos a Dickie talvez por ser mais socioloacutegica do que efetivamente filosoacutefica - uma teoria sobre o que (de fato) eacute considerado arte e natildeo sobre o que (racionalmente) deveria ser considerado como tal Todavia o que torna a teoria de Dickie questionaacutevel do ponto de vista da esteacutetica tradicional eacute precisamente o que a torna atraente para os antropoacutelogos jaacute que ele ultrapassa a esteacutetica em nome de uma anaacutelise socioloacutegica que caracteriza em sentido amplo essa disciplina 2 Contudo a relevacircncia da teoria institucional para o estudo socioloacutegico do mundo artiacutestico deve ser avaliada independentemente de sua contribuiccedilatildeo para a esteacutetica filosoacutefica

As questotildees levantadas por essas teorias foram colocadas em evidecircncia pela exposiccedilatildeo intitulada ArteArtefato montada no Center for African Art (Nova York 1988) sob a curadoria da antropoacuteloga Susan

Vogel Natildeo vi essa exposiccedilatildeo que foi poreacutem detalhadamente descrita por Farissup3 em Current Anthropology acrescentando tambeacutem alguns comentaacuterios criacuteticos que pretendo retomar adiante O primeiro espaccedilo da exposiccedilatildeo (com paredes brancas e refletores) foi intitulado Galeria de Arte Contemporacircnea e seu foco principal era um objeto impressionante uma rede de caccedila Zande (Aacutefrica) firmemente enrolada e pronta para o transporte Provavelmente Susan Vogel exibiu-a dessa maneira porque pensou que o puacuteblico frequumlentador de galerias de arte em Nova York seria capaz de associar de maneira espontacircnea aquele artefato com um certo conjunto de objetos exibidos em outras galerias ou apresentados em publicaccedilotildees especializadas Nesse caso especiacutefico a analogia mais imediata seria com as esculturas de barbante amarrado de Jackie Windsor Faris4 menciona as obras de Nancy Graves e Eve Hesse como outros paralelos possiacuteveis A escolha desse objeto especiacutefico foi um golpe de mestre em termos de curadoria pelo qual Vogel merece muitos elogios Aleacutem do mais a exposiccedilatildeo gerou um ensaio igualmente magistral do criacutetico e filoacutesofo Arthur Danto 5 publicado no cataacutelogo

A intenccedilatildeo de Vogel era quebrar o elo entre a arte africana e o primitivismo da arte moderna (Les Demoiselles d Avignon de Picasso as pseudomaacutescaras africanas de Modigliani e Brancusi etc ) e sugerir diferentemente que os objetos africanos podem ser analisados em uma perspectiva mais ampla evocando o estilo artiacutestico dominante na deacutecada de 1980 em Nova York do qual Jackie Windsor eacute um dos representantes Danto teve razotildees para resistir a essa mudanccedila visto que natildeo estava persuadido de que a rede de caccedila fosse ou pudesse vir a ser arte Em termos institucionais a armadilha apresentada jaacute havia de fato se tornado arte dado ter sido como tal exibida por Vogel e consequumlentemente assim apreciada por parte significativa do puacuteblico Caso Dickie e natildeo Danto tivesse escrito o ensaio do cataacutelogo eu me arriscaria a dizer que a rede teria sido celebrada como um bom

176

exemplo do modo pelo qual o mundo artiacutestico cria suas obras de arte ao classificaacute-las como tal Danto poreacutem seguiu outra direccedilatildeo e dedicou seu ensaio a provar que as afinidades da rederdquo com o conceito contemporacircneo de arte seriam meramente superficiais

Meu objetivo neste artigo eacute duplo Em primeiro lugar discutir a distinccedilatildeo proposta por Danto entre arte e artefatordquo Em segundo lugar pretendo montar uma pequena exposiccedilatildeo (infelizmente composta apenas por textos e ilustraccedilotildees) de objetos que Danto consideraria artefatosrdquo mas que em minha opiniatildeo satildeo fortes candidatos a circular como obras de arte mesmo que essa natildeo tenha sido a intenccedilatildeo original de seus criadores que provavelmente desconheciam esse conceito Se eu conseguir persuadir meu puacuteblico e se a teoria institucional for verdadeira ou seja se arte for tudo aquilo que natildeo apenas eu mas outras pessoas que pensam do mesmo modo classificamos como tal entatildeo uma nova categoria de arte estaacute prestes a surgir Ou natildeo se considerarmos como paracircmetro os argumentos de Danto que retomarei agora

Danto eacute responsaacutevel por ambas as teorias da arte a interpretativa e a institucional e foi ele quem primeiro introduziu a expressatildeo mundo artiacutestico na esteacutetica filosoacutefica 6 Mas uma vez que Dickie7 desenvolveu as ideacuteias de Danto na direccedilatildeo socioloacutegica jaacute apontada a definiccedilatildeo de obra de arte tornou-se um problema de consenso social em meio ao puacuteblico de arte Danto poreacutem tende para uma visatildeo mais idealista a respeito da arte fazendo mesmo muitas referecircncias a Hegel em seus trabalhos Ele afirma que objetos de arte satildeo assim considerados em funccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada Danto escreveu dois importantes estudos que foram muito bem aceitos no campo da

filosofia da arte moderna 8 Concordo com a maior parte de sua produccedilatildeo mas devo dizer que os pontos mais fracos de sua versatildeo da teoria interpretativa ficam especialmente evidentes quando colocados em um contexto antropoloacutegico e intercultural em seu ensaio para a exposiccedilatildeo ArteArtefato

De acordo com Danto natildeo existem caracteriacutesticas intriacutensecas a qualquer objeto que possam por si soacute caracterizaacute-lo como artiacutestico A diferenccedila objetiva entre uma embalagem real de sabatildeo Brillo e a falsa embalagem Brillo de Warhol natildeo eacute o que determina que apenas a uacuteltima seja uma obra de arte Mesmo objetos semelhantes podem ser diferenciados de modo que um seja considerado obra de arte e o outro natildeo Isso foi exaustivamente discutido por Danto 9 que entretanto estabelece uma grande diferenccedila entre o tipo de interpretaccedilatildeo contexto significaccedilatildeo simboacutelica etc que um objeto deve ter para que seja uma obra de arte em comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas associadas a uma obra que natildeo eacute artiacutestica ou seja um mero artefato A interpretaccedilatildeo deve estar relacionada com uma tradiccedilatildeo de fazer artiacutestico que internaliza reflete e se desenvolve a partir de sua proacutepria histoacuteria como a arte ocidental tem feito desde Vasari pelo menos Segundo ele (e estou totalmente convencido disso) a moderna arte conceituai corresponde agrave subordinaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo da imagem agrave reflexatildeo histoacuterica em outras palavras eacute a

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 7 7

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S deg E B A deg U F R J deg 2 0 0 1

resultante final do fazer artiacutestico da filosofia da histoacuteria e da criacutetica de arte tomados conjuntamente Todavia o conceito-chave aqui eacute o de tradiccedilatildeo progressiva cumulativa (GeIst espiacuterito etc )

O que Danto faz quando o puacuteblico de Nova York se entusiasma com uma rede de caccedila como se ela fosse a mais recente produccedilatildeo do GeIst na pessoa de Jackie Windsor ou de seu grupo A arte contemporacircnea eacute capaz de digerir desse modo objetos externos A ausecircncia de um autor identificaacutevel ou de uma intenccedilatildeo artiacutestica reconheciacutevel eacute um obstaacuteculo Danto natildeo pode deixar de assumir uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a isso jaacute que intenccedilatildeo significado e fundamentaccedilatildeo em uma tradiccedilatildeo diferenciada e auto-refexiva satildeo fundamentais para sua compreensatildeo da arte contemporacircnea e mesmo de toda arte ocidental posterior ao Renascimento O caccedilador Zande que fez ou encomendou a rede natildeo participa do mesmo quadro histoacuterico de referecircncia para o qual o trabalho semelhante de Windsor estaacute apontando de modo que a analogia entre eles eacute enganosa Nem mesmo eacute possiacutevel considerar alternativamente que o artista nesse caso eacute Vogel (Danto sequer considera essa possibilidade) que estaacute apresentando a rederdquo como um ready-mode de acordo com a mesma tradiccedilatildeo dos protoacutetipos de Duchamp como a paacute o cabide e o urinol Mesmo porque Vogel natildeo estaacute se apresentando como um segundo Duchamp mas como uma curadora de museu que oferece para admiraccedilatildeo do puacuteblico um objeto feito na Aacutefrica por um artista anocircnimo que natildeo eacute certamente ela proacutepria

O dilema de Danto diz respeito essencialmente ao fato de que sua teoria interpretativa da arte eacute construiacuteda a partir do referencial histoacuterico impliacutecito na arte ocidental segundo um modelo hegeliano Caso ele diga que nenhuma produccedilatildeo externa ao fluxo histoacuterico da arte ocidental (que eacute sem duacutevida muito amplo) pode ser considerada como ldquoarte estaacute sujeito a acusaccedilotildees de eurocentrismo Caso ele admita poreacutem que objetos exoacuteticos que natildeo participaram do Geist da arte ocidental

podem ser mesmo assim obras de arte por que excluir a Vede E caso a rede seja incluiacuteda o que sobra do valor explicativo da interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada e da distinccedilatildeo entre arte e artefatoO filoacutesofo foi efetivamente enlaccedilado pela rede de Vogel que assim terminou por cumprir sua funccedilatildeo embora natildeo do modo convencional

Soacute existe uma saiacuteda para o idealista nessas circunstacircncias ele deve assumir que existem afinidades interpretativas ou simboacutelicas subjacentes agraves verdadeiras obras de arte produzidas em diferentes tradiccedilotildees culturais A rede Zande seraacute excluiacuteda nos termos Zande porque nessa cultura como possivelmente em todas as outras os objetos artiacutesticos devem ter um tipo de significaccedilatildeo simboacutelica que uma mera rede de caccedila natildeo pode ter Sendo (supostamente) excluiacuteda pelos proacuteprios Zande a rede natildeo poderia ser incluiacuteda pelos nova-iorquinos porque isso significaria contradizer os princiacutepios de Danto de que sem interpretaccedilatildeo natildeo haacute arte Depois de concordar com a ideacuteia de que nem toda embalagem de sabatildeo Brillo mas apenas a que foi criada por Warhol eacute arte Danto natildeo pode deixar de dizer que essa rede nos termos Zande natildeo equivale a uma obra de Warhol pois eacute apenas uma velha rede como outra qualquer

Mas como estabelecer paracircmetros para a afinidade entre obras de arte africanas (devidamente qualificadas) e obras de arte ocidentais e para a nacirco-afinidade entre a rede Zande e ambas as artes Danto argumenta que a grande escultura africana foi reconhecida como tal e colocada no mesmo niacutevel de Donatello Thorwaldsen etc por meio de um processo de descoberta empreendido por Picasso Brancusi Roger Fry e seus contemporacircneos comparaacutevel agraves descobertas cientiacuteficas Essa grandeza jaacute estaria laacute mas teria sido ofuscada por juiacutezos preconceituosos associados ao colonialismo Esse tipo de arte africana foi produzido individualmente por escultores altamente talentosos com intenccedilotildees artiacutesticas (esteacuteticas) especiacuteficas que eles imprimiram em seus trabalhos Soacute posteriormente essas

178

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo - mas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedankexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Basket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do outro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se originam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa distinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sobre a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva ortodoxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 7 9

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo Eles o fazem em grande medido reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especifico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacutefico nos termos do rsquorsquoOutrorsquo mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo rsquorsquoobjeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redefiniccedilatildeo contiacutenua e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas aacute ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias auto- suficientes e completas Citando Heidegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeugganzes um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeugganzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em suo utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgota- se em seu uso jaacute os obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

180

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez disso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser exportadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeugganzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africano uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivos Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um filoacutesofo

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutetica seria capaz de continuar porque os mesmos objetos disfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildees extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute certamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacuteprio Danto jaacute seriacondiccedilatildeo para qualificaacute-las como arteA separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rederdquo como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a ldquorede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees festivais anuais etc ) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de forma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 1910) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama coletivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidadeNesse caso o funcionamento da ldquorede natildeo

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 1

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

seria multo diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritualmente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metafisicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de Boyer14 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Boyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas o armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode sesoltar Ao inveacutes de arrebentaacute-la ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemplo faria 15

A conversa entre Ze e Boyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

182

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacutefica sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (assim espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visitante de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderia ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou funcionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significativa do que a maioria dos signos supostos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa

o design de seu mentor Ela estaacute equipadacom um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse sistema nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a distacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 3

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 2: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A deg U F R J deg 2 0 0 1

Finalmente existe uma versatildeo mais radical da teoria interpretativa que fornece uma terceira possiacutevel resposta para a pergunta o que eacute uma obra de arte Conhecida como teoria institucional afirma como a interpretativa que natildeo haacute no objeto artiacutestico enquanto veiacuteculo material uma caracteriacutestica capaz de qualificaacute-lo definitivamente como sendo ou natildeo uma obra de arte Isso eacute vaacutelido a despeito do fato de o objeto estar ou natildeo subordinado ao mundo artiacutestico ou seja a uma coletividade interessada em fazer partilhar e debater julgamentos criacuteticos desse tipo

A diferenccedila entre as teorias interpretativa e institucional eacute que a institucional natildeo pressupotildee a coerecircncia histoacuterica das interpretaccedilotildees Uma obra pode estar a princiacutepio fora do circuito oficial da histoacuteria da arte mas se o mundo artiacutestico coopta essa obra e a faz circular como arte entatildeo ela eacute arte porque satildeo os representantes do mundo artiacutestico ou seja artistas criacuteticos comerciantes e colecionadores que tecircm o poder de decidir essas questotildees natildeo a histoacuteria ponto de vista proposto pelo filoacutesofo americano George Dickie 1 Essa teoria aparentemente natildeo tem o apoio da maior parte dos filoacutesofos contemporacircneos a Dickie talvez por ser mais socioloacutegica do que efetivamente filosoacutefica - uma teoria sobre o que (de fato) eacute considerado arte e natildeo sobre o que (racionalmente) deveria ser considerado como tal Todavia o que torna a teoria de Dickie questionaacutevel do ponto de vista da esteacutetica tradicional eacute precisamente o que a torna atraente para os antropoacutelogos jaacute que ele ultrapassa a esteacutetica em nome de uma anaacutelise socioloacutegica que caracteriza em sentido amplo essa disciplina 2 Contudo a relevacircncia da teoria institucional para o estudo socioloacutegico do mundo artiacutestico deve ser avaliada independentemente de sua contribuiccedilatildeo para a esteacutetica filosoacutefica

As questotildees levantadas por essas teorias foram colocadas em evidecircncia pela exposiccedilatildeo intitulada ArteArtefato montada no Center for African Art (Nova York 1988) sob a curadoria da antropoacuteloga Susan

Vogel Natildeo vi essa exposiccedilatildeo que foi poreacutem detalhadamente descrita por Farissup3 em Current Anthropology acrescentando tambeacutem alguns comentaacuterios criacuteticos que pretendo retomar adiante O primeiro espaccedilo da exposiccedilatildeo (com paredes brancas e refletores) foi intitulado Galeria de Arte Contemporacircnea e seu foco principal era um objeto impressionante uma rede de caccedila Zande (Aacutefrica) firmemente enrolada e pronta para o transporte Provavelmente Susan Vogel exibiu-a dessa maneira porque pensou que o puacuteblico frequumlentador de galerias de arte em Nova York seria capaz de associar de maneira espontacircnea aquele artefato com um certo conjunto de objetos exibidos em outras galerias ou apresentados em publicaccedilotildees especializadas Nesse caso especiacutefico a analogia mais imediata seria com as esculturas de barbante amarrado de Jackie Windsor Faris4 menciona as obras de Nancy Graves e Eve Hesse como outros paralelos possiacuteveis A escolha desse objeto especiacutefico foi um golpe de mestre em termos de curadoria pelo qual Vogel merece muitos elogios Aleacutem do mais a exposiccedilatildeo gerou um ensaio igualmente magistral do criacutetico e filoacutesofo Arthur Danto 5 publicado no cataacutelogo

A intenccedilatildeo de Vogel era quebrar o elo entre a arte africana e o primitivismo da arte moderna (Les Demoiselles d Avignon de Picasso as pseudomaacutescaras africanas de Modigliani e Brancusi etc ) e sugerir diferentemente que os objetos africanos podem ser analisados em uma perspectiva mais ampla evocando o estilo artiacutestico dominante na deacutecada de 1980 em Nova York do qual Jackie Windsor eacute um dos representantes Danto teve razotildees para resistir a essa mudanccedila visto que natildeo estava persuadido de que a rede de caccedila fosse ou pudesse vir a ser arte Em termos institucionais a armadilha apresentada jaacute havia de fato se tornado arte dado ter sido como tal exibida por Vogel e consequumlentemente assim apreciada por parte significativa do puacuteblico Caso Dickie e natildeo Danto tivesse escrito o ensaio do cataacutelogo eu me arriscaria a dizer que a rede teria sido celebrada como um bom

176

exemplo do modo pelo qual o mundo artiacutestico cria suas obras de arte ao classificaacute-las como tal Danto poreacutem seguiu outra direccedilatildeo e dedicou seu ensaio a provar que as afinidades da rederdquo com o conceito contemporacircneo de arte seriam meramente superficiais

Meu objetivo neste artigo eacute duplo Em primeiro lugar discutir a distinccedilatildeo proposta por Danto entre arte e artefatordquo Em segundo lugar pretendo montar uma pequena exposiccedilatildeo (infelizmente composta apenas por textos e ilustraccedilotildees) de objetos que Danto consideraria artefatosrdquo mas que em minha opiniatildeo satildeo fortes candidatos a circular como obras de arte mesmo que essa natildeo tenha sido a intenccedilatildeo original de seus criadores que provavelmente desconheciam esse conceito Se eu conseguir persuadir meu puacuteblico e se a teoria institucional for verdadeira ou seja se arte for tudo aquilo que natildeo apenas eu mas outras pessoas que pensam do mesmo modo classificamos como tal entatildeo uma nova categoria de arte estaacute prestes a surgir Ou natildeo se considerarmos como paracircmetro os argumentos de Danto que retomarei agora

Danto eacute responsaacutevel por ambas as teorias da arte a interpretativa e a institucional e foi ele quem primeiro introduziu a expressatildeo mundo artiacutestico na esteacutetica filosoacutefica 6 Mas uma vez que Dickie7 desenvolveu as ideacuteias de Danto na direccedilatildeo socioloacutegica jaacute apontada a definiccedilatildeo de obra de arte tornou-se um problema de consenso social em meio ao puacuteblico de arte Danto poreacutem tende para uma visatildeo mais idealista a respeito da arte fazendo mesmo muitas referecircncias a Hegel em seus trabalhos Ele afirma que objetos de arte satildeo assim considerados em funccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada Danto escreveu dois importantes estudos que foram muito bem aceitos no campo da

filosofia da arte moderna 8 Concordo com a maior parte de sua produccedilatildeo mas devo dizer que os pontos mais fracos de sua versatildeo da teoria interpretativa ficam especialmente evidentes quando colocados em um contexto antropoloacutegico e intercultural em seu ensaio para a exposiccedilatildeo ArteArtefato

De acordo com Danto natildeo existem caracteriacutesticas intriacutensecas a qualquer objeto que possam por si soacute caracterizaacute-lo como artiacutestico A diferenccedila objetiva entre uma embalagem real de sabatildeo Brillo e a falsa embalagem Brillo de Warhol natildeo eacute o que determina que apenas a uacuteltima seja uma obra de arte Mesmo objetos semelhantes podem ser diferenciados de modo que um seja considerado obra de arte e o outro natildeo Isso foi exaustivamente discutido por Danto 9 que entretanto estabelece uma grande diferenccedila entre o tipo de interpretaccedilatildeo contexto significaccedilatildeo simboacutelica etc que um objeto deve ter para que seja uma obra de arte em comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas associadas a uma obra que natildeo eacute artiacutestica ou seja um mero artefato A interpretaccedilatildeo deve estar relacionada com uma tradiccedilatildeo de fazer artiacutestico que internaliza reflete e se desenvolve a partir de sua proacutepria histoacuteria como a arte ocidental tem feito desde Vasari pelo menos Segundo ele (e estou totalmente convencido disso) a moderna arte conceituai corresponde agrave subordinaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo da imagem agrave reflexatildeo histoacuterica em outras palavras eacute a

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 7 7

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S deg E B A deg U F R J deg 2 0 0 1

resultante final do fazer artiacutestico da filosofia da histoacuteria e da criacutetica de arte tomados conjuntamente Todavia o conceito-chave aqui eacute o de tradiccedilatildeo progressiva cumulativa (GeIst espiacuterito etc )

O que Danto faz quando o puacuteblico de Nova York se entusiasma com uma rede de caccedila como se ela fosse a mais recente produccedilatildeo do GeIst na pessoa de Jackie Windsor ou de seu grupo A arte contemporacircnea eacute capaz de digerir desse modo objetos externos A ausecircncia de um autor identificaacutevel ou de uma intenccedilatildeo artiacutestica reconheciacutevel eacute um obstaacuteculo Danto natildeo pode deixar de assumir uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a isso jaacute que intenccedilatildeo significado e fundamentaccedilatildeo em uma tradiccedilatildeo diferenciada e auto-refexiva satildeo fundamentais para sua compreensatildeo da arte contemporacircnea e mesmo de toda arte ocidental posterior ao Renascimento O caccedilador Zande que fez ou encomendou a rede natildeo participa do mesmo quadro histoacuterico de referecircncia para o qual o trabalho semelhante de Windsor estaacute apontando de modo que a analogia entre eles eacute enganosa Nem mesmo eacute possiacutevel considerar alternativamente que o artista nesse caso eacute Vogel (Danto sequer considera essa possibilidade) que estaacute apresentando a rederdquo como um ready-mode de acordo com a mesma tradiccedilatildeo dos protoacutetipos de Duchamp como a paacute o cabide e o urinol Mesmo porque Vogel natildeo estaacute se apresentando como um segundo Duchamp mas como uma curadora de museu que oferece para admiraccedilatildeo do puacuteblico um objeto feito na Aacutefrica por um artista anocircnimo que natildeo eacute certamente ela proacutepria

O dilema de Danto diz respeito essencialmente ao fato de que sua teoria interpretativa da arte eacute construiacuteda a partir do referencial histoacuterico impliacutecito na arte ocidental segundo um modelo hegeliano Caso ele diga que nenhuma produccedilatildeo externa ao fluxo histoacuterico da arte ocidental (que eacute sem duacutevida muito amplo) pode ser considerada como ldquoarte estaacute sujeito a acusaccedilotildees de eurocentrismo Caso ele admita poreacutem que objetos exoacuteticos que natildeo participaram do Geist da arte ocidental

podem ser mesmo assim obras de arte por que excluir a Vede E caso a rede seja incluiacuteda o que sobra do valor explicativo da interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada e da distinccedilatildeo entre arte e artefatoO filoacutesofo foi efetivamente enlaccedilado pela rede de Vogel que assim terminou por cumprir sua funccedilatildeo embora natildeo do modo convencional

Soacute existe uma saiacuteda para o idealista nessas circunstacircncias ele deve assumir que existem afinidades interpretativas ou simboacutelicas subjacentes agraves verdadeiras obras de arte produzidas em diferentes tradiccedilotildees culturais A rede Zande seraacute excluiacuteda nos termos Zande porque nessa cultura como possivelmente em todas as outras os objetos artiacutesticos devem ter um tipo de significaccedilatildeo simboacutelica que uma mera rede de caccedila natildeo pode ter Sendo (supostamente) excluiacuteda pelos proacuteprios Zande a rede natildeo poderia ser incluiacuteda pelos nova-iorquinos porque isso significaria contradizer os princiacutepios de Danto de que sem interpretaccedilatildeo natildeo haacute arte Depois de concordar com a ideacuteia de que nem toda embalagem de sabatildeo Brillo mas apenas a que foi criada por Warhol eacute arte Danto natildeo pode deixar de dizer que essa rede nos termos Zande natildeo equivale a uma obra de Warhol pois eacute apenas uma velha rede como outra qualquer

Mas como estabelecer paracircmetros para a afinidade entre obras de arte africanas (devidamente qualificadas) e obras de arte ocidentais e para a nacirco-afinidade entre a rede Zande e ambas as artes Danto argumenta que a grande escultura africana foi reconhecida como tal e colocada no mesmo niacutevel de Donatello Thorwaldsen etc por meio de um processo de descoberta empreendido por Picasso Brancusi Roger Fry e seus contemporacircneos comparaacutevel agraves descobertas cientiacuteficas Essa grandeza jaacute estaria laacute mas teria sido ofuscada por juiacutezos preconceituosos associados ao colonialismo Esse tipo de arte africana foi produzido individualmente por escultores altamente talentosos com intenccedilotildees artiacutesticas (esteacuteticas) especiacuteficas que eles imprimiram em seus trabalhos Soacute posteriormente essas

178

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo - mas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedankexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Basket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do outro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se originam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa distinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sobre a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva ortodoxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 7 9

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo Eles o fazem em grande medido reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especifico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacutefico nos termos do rsquorsquoOutrorsquo mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo rsquorsquoobjeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redefiniccedilatildeo contiacutenua e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas aacute ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias auto- suficientes e completas Citando Heidegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeugganzes um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeugganzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em suo utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgota- se em seu uso jaacute os obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

180

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez disso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser exportadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeugganzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africano uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivos Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um filoacutesofo

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutetica seria capaz de continuar porque os mesmos objetos disfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildees extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute certamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacuteprio Danto jaacute seriacondiccedilatildeo para qualificaacute-las como arteA separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rederdquo como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a ldquorede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees festivais anuais etc ) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de forma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 1910) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama coletivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidadeNesse caso o funcionamento da ldquorede natildeo

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 1

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

seria multo diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritualmente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metafisicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de Boyer14 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Boyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas o armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode sesoltar Ao inveacutes de arrebentaacute-la ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemplo faria 15

A conversa entre Ze e Boyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

182

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacutefica sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (assim espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visitante de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderia ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou funcionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significativa do que a maioria dos signos supostos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa

o design de seu mentor Ela estaacute equipadacom um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse sistema nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a distacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 3

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 3: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

exemplo do modo pelo qual o mundo artiacutestico cria suas obras de arte ao classificaacute-las como tal Danto poreacutem seguiu outra direccedilatildeo e dedicou seu ensaio a provar que as afinidades da rederdquo com o conceito contemporacircneo de arte seriam meramente superficiais

Meu objetivo neste artigo eacute duplo Em primeiro lugar discutir a distinccedilatildeo proposta por Danto entre arte e artefatordquo Em segundo lugar pretendo montar uma pequena exposiccedilatildeo (infelizmente composta apenas por textos e ilustraccedilotildees) de objetos que Danto consideraria artefatosrdquo mas que em minha opiniatildeo satildeo fortes candidatos a circular como obras de arte mesmo que essa natildeo tenha sido a intenccedilatildeo original de seus criadores que provavelmente desconheciam esse conceito Se eu conseguir persuadir meu puacuteblico e se a teoria institucional for verdadeira ou seja se arte for tudo aquilo que natildeo apenas eu mas outras pessoas que pensam do mesmo modo classificamos como tal entatildeo uma nova categoria de arte estaacute prestes a surgir Ou natildeo se considerarmos como paracircmetro os argumentos de Danto que retomarei agora

Danto eacute responsaacutevel por ambas as teorias da arte a interpretativa e a institucional e foi ele quem primeiro introduziu a expressatildeo mundo artiacutestico na esteacutetica filosoacutefica 6 Mas uma vez que Dickie7 desenvolveu as ideacuteias de Danto na direccedilatildeo socioloacutegica jaacute apontada a definiccedilatildeo de obra de arte tornou-se um problema de consenso social em meio ao puacuteblico de arte Danto poreacutem tende para uma visatildeo mais idealista a respeito da arte fazendo mesmo muitas referecircncias a Hegel em seus trabalhos Ele afirma que objetos de arte satildeo assim considerados em funccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada Danto escreveu dois importantes estudos que foram muito bem aceitos no campo da

filosofia da arte moderna 8 Concordo com a maior parte de sua produccedilatildeo mas devo dizer que os pontos mais fracos de sua versatildeo da teoria interpretativa ficam especialmente evidentes quando colocados em um contexto antropoloacutegico e intercultural em seu ensaio para a exposiccedilatildeo ArteArtefato

De acordo com Danto natildeo existem caracteriacutesticas intriacutensecas a qualquer objeto que possam por si soacute caracterizaacute-lo como artiacutestico A diferenccedila objetiva entre uma embalagem real de sabatildeo Brillo e a falsa embalagem Brillo de Warhol natildeo eacute o que determina que apenas a uacuteltima seja uma obra de arte Mesmo objetos semelhantes podem ser diferenciados de modo que um seja considerado obra de arte e o outro natildeo Isso foi exaustivamente discutido por Danto 9 que entretanto estabelece uma grande diferenccedila entre o tipo de interpretaccedilatildeo contexto significaccedilatildeo simboacutelica etc que um objeto deve ter para que seja uma obra de arte em comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas associadas a uma obra que natildeo eacute artiacutestica ou seja um mero artefato A interpretaccedilatildeo deve estar relacionada com uma tradiccedilatildeo de fazer artiacutestico que internaliza reflete e se desenvolve a partir de sua proacutepria histoacuteria como a arte ocidental tem feito desde Vasari pelo menos Segundo ele (e estou totalmente convencido disso) a moderna arte conceituai corresponde agrave subordinaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo da imagem agrave reflexatildeo histoacuterica em outras palavras eacute a

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 7 7

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S deg E B A deg U F R J deg 2 0 0 1

resultante final do fazer artiacutestico da filosofia da histoacuteria e da criacutetica de arte tomados conjuntamente Todavia o conceito-chave aqui eacute o de tradiccedilatildeo progressiva cumulativa (GeIst espiacuterito etc )

O que Danto faz quando o puacuteblico de Nova York se entusiasma com uma rede de caccedila como se ela fosse a mais recente produccedilatildeo do GeIst na pessoa de Jackie Windsor ou de seu grupo A arte contemporacircnea eacute capaz de digerir desse modo objetos externos A ausecircncia de um autor identificaacutevel ou de uma intenccedilatildeo artiacutestica reconheciacutevel eacute um obstaacuteculo Danto natildeo pode deixar de assumir uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a isso jaacute que intenccedilatildeo significado e fundamentaccedilatildeo em uma tradiccedilatildeo diferenciada e auto-refexiva satildeo fundamentais para sua compreensatildeo da arte contemporacircnea e mesmo de toda arte ocidental posterior ao Renascimento O caccedilador Zande que fez ou encomendou a rede natildeo participa do mesmo quadro histoacuterico de referecircncia para o qual o trabalho semelhante de Windsor estaacute apontando de modo que a analogia entre eles eacute enganosa Nem mesmo eacute possiacutevel considerar alternativamente que o artista nesse caso eacute Vogel (Danto sequer considera essa possibilidade) que estaacute apresentando a rederdquo como um ready-mode de acordo com a mesma tradiccedilatildeo dos protoacutetipos de Duchamp como a paacute o cabide e o urinol Mesmo porque Vogel natildeo estaacute se apresentando como um segundo Duchamp mas como uma curadora de museu que oferece para admiraccedilatildeo do puacuteblico um objeto feito na Aacutefrica por um artista anocircnimo que natildeo eacute certamente ela proacutepria

O dilema de Danto diz respeito essencialmente ao fato de que sua teoria interpretativa da arte eacute construiacuteda a partir do referencial histoacuterico impliacutecito na arte ocidental segundo um modelo hegeliano Caso ele diga que nenhuma produccedilatildeo externa ao fluxo histoacuterico da arte ocidental (que eacute sem duacutevida muito amplo) pode ser considerada como ldquoarte estaacute sujeito a acusaccedilotildees de eurocentrismo Caso ele admita poreacutem que objetos exoacuteticos que natildeo participaram do Geist da arte ocidental

podem ser mesmo assim obras de arte por que excluir a Vede E caso a rede seja incluiacuteda o que sobra do valor explicativo da interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada e da distinccedilatildeo entre arte e artefatoO filoacutesofo foi efetivamente enlaccedilado pela rede de Vogel que assim terminou por cumprir sua funccedilatildeo embora natildeo do modo convencional

Soacute existe uma saiacuteda para o idealista nessas circunstacircncias ele deve assumir que existem afinidades interpretativas ou simboacutelicas subjacentes agraves verdadeiras obras de arte produzidas em diferentes tradiccedilotildees culturais A rede Zande seraacute excluiacuteda nos termos Zande porque nessa cultura como possivelmente em todas as outras os objetos artiacutesticos devem ter um tipo de significaccedilatildeo simboacutelica que uma mera rede de caccedila natildeo pode ter Sendo (supostamente) excluiacuteda pelos proacuteprios Zande a rede natildeo poderia ser incluiacuteda pelos nova-iorquinos porque isso significaria contradizer os princiacutepios de Danto de que sem interpretaccedilatildeo natildeo haacute arte Depois de concordar com a ideacuteia de que nem toda embalagem de sabatildeo Brillo mas apenas a que foi criada por Warhol eacute arte Danto natildeo pode deixar de dizer que essa rede nos termos Zande natildeo equivale a uma obra de Warhol pois eacute apenas uma velha rede como outra qualquer

Mas como estabelecer paracircmetros para a afinidade entre obras de arte africanas (devidamente qualificadas) e obras de arte ocidentais e para a nacirco-afinidade entre a rede Zande e ambas as artes Danto argumenta que a grande escultura africana foi reconhecida como tal e colocada no mesmo niacutevel de Donatello Thorwaldsen etc por meio de um processo de descoberta empreendido por Picasso Brancusi Roger Fry e seus contemporacircneos comparaacutevel agraves descobertas cientiacuteficas Essa grandeza jaacute estaria laacute mas teria sido ofuscada por juiacutezos preconceituosos associados ao colonialismo Esse tipo de arte africana foi produzido individualmente por escultores altamente talentosos com intenccedilotildees artiacutesticas (esteacuteticas) especiacuteficas que eles imprimiram em seus trabalhos Soacute posteriormente essas

178

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo - mas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedankexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Basket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do outro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se originam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa distinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sobre a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva ortodoxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 7 9

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo Eles o fazem em grande medido reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especifico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacutefico nos termos do rsquorsquoOutrorsquo mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo rsquorsquoobjeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redefiniccedilatildeo contiacutenua e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas aacute ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias auto- suficientes e completas Citando Heidegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeugganzes um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeugganzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em suo utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgota- se em seu uso jaacute os obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

180

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez disso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser exportadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeugganzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africano uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivos Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um filoacutesofo

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutetica seria capaz de continuar porque os mesmos objetos disfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildees extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute certamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacuteprio Danto jaacute seriacondiccedilatildeo para qualificaacute-las como arteA separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rederdquo como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a ldquorede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees festivais anuais etc ) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de forma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 1910) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama coletivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidadeNesse caso o funcionamento da ldquorede natildeo

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 1

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

seria multo diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritualmente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metafisicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de Boyer14 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Boyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas o armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode sesoltar Ao inveacutes de arrebentaacute-la ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemplo faria 15

A conversa entre Ze e Boyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

182

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacutefica sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (assim espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visitante de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderia ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou funcionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significativa do que a maioria dos signos supostos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa

o design de seu mentor Ela estaacute equipadacom um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse sistema nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a distacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 3

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 4: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S deg E B A deg U F R J deg 2 0 0 1

resultante final do fazer artiacutestico da filosofia da histoacuteria e da criacutetica de arte tomados conjuntamente Todavia o conceito-chave aqui eacute o de tradiccedilatildeo progressiva cumulativa (GeIst espiacuterito etc )

O que Danto faz quando o puacuteblico de Nova York se entusiasma com uma rede de caccedila como se ela fosse a mais recente produccedilatildeo do GeIst na pessoa de Jackie Windsor ou de seu grupo A arte contemporacircnea eacute capaz de digerir desse modo objetos externos A ausecircncia de um autor identificaacutevel ou de uma intenccedilatildeo artiacutestica reconheciacutevel eacute um obstaacuteculo Danto natildeo pode deixar de assumir uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a isso jaacute que intenccedilatildeo significado e fundamentaccedilatildeo em uma tradiccedilatildeo diferenciada e auto-refexiva satildeo fundamentais para sua compreensatildeo da arte contemporacircnea e mesmo de toda arte ocidental posterior ao Renascimento O caccedilador Zande que fez ou encomendou a rede natildeo participa do mesmo quadro histoacuterico de referecircncia para o qual o trabalho semelhante de Windsor estaacute apontando de modo que a analogia entre eles eacute enganosa Nem mesmo eacute possiacutevel considerar alternativamente que o artista nesse caso eacute Vogel (Danto sequer considera essa possibilidade) que estaacute apresentando a rederdquo como um ready-mode de acordo com a mesma tradiccedilatildeo dos protoacutetipos de Duchamp como a paacute o cabide e o urinol Mesmo porque Vogel natildeo estaacute se apresentando como um segundo Duchamp mas como uma curadora de museu que oferece para admiraccedilatildeo do puacuteblico um objeto feito na Aacutefrica por um artista anocircnimo que natildeo eacute certamente ela proacutepria

O dilema de Danto diz respeito essencialmente ao fato de que sua teoria interpretativa da arte eacute construiacuteda a partir do referencial histoacuterico impliacutecito na arte ocidental segundo um modelo hegeliano Caso ele diga que nenhuma produccedilatildeo externa ao fluxo histoacuterico da arte ocidental (que eacute sem duacutevida muito amplo) pode ser considerada como ldquoarte estaacute sujeito a acusaccedilotildees de eurocentrismo Caso ele admita poreacutem que objetos exoacuteticos que natildeo participaram do Geist da arte ocidental

podem ser mesmo assim obras de arte por que excluir a Vede E caso a rede seja incluiacuteda o que sobra do valor explicativo da interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada e da distinccedilatildeo entre arte e artefatoO filoacutesofo foi efetivamente enlaccedilado pela rede de Vogel que assim terminou por cumprir sua funccedilatildeo embora natildeo do modo convencional

Soacute existe uma saiacuteda para o idealista nessas circunstacircncias ele deve assumir que existem afinidades interpretativas ou simboacutelicas subjacentes agraves verdadeiras obras de arte produzidas em diferentes tradiccedilotildees culturais A rede Zande seraacute excluiacuteda nos termos Zande porque nessa cultura como possivelmente em todas as outras os objetos artiacutesticos devem ter um tipo de significaccedilatildeo simboacutelica que uma mera rede de caccedila natildeo pode ter Sendo (supostamente) excluiacuteda pelos proacuteprios Zande a rede natildeo poderia ser incluiacuteda pelos nova-iorquinos porque isso significaria contradizer os princiacutepios de Danto de que sem interpretaccedilatildeo natildeo haacute arte Depois de concordar com a ideacuteia de que nem toda embalagem de sabatildeo Brillo mas apenas a que foi criada por Warhol eacute arte Danto natildeo pode deixar de dizer que essa rede nos termos Zande natildeo equivale a uma obra de Warhol pois eacute apenas uma velha rede como outra qualquer

Mas como estabelecer paracircmetros para a afinidade entre obras de arte africanas (devidamente qualificadas) e obras de arte ocidentais e para a nacirco-afinidade entre a rede Zande e ambas as artes Danto argumenta que a grande escultura africana foi reconhecida como tal e colocada no mesmo niacutevel de Donatello Thorwaldsen etc por meio de um processo de descoberta empreendido por Picasso Brancusi Roger Fry e seus contemporacircneos comparaacutevel agraves descobertas cientiacuteficas Essa grandeza jaacute estaria laacute mas teria sido ofuscada por juiacutezos preconceituosos associados ao colonialismo Esse tipo de arte africana foi produzido individualmente por escultores altamente talentosos com intenccedilotildees artiacutesticas (esteacuteticas) especiacuteficas que eles imprimiram em seus trabalhos Soacute posteriormente essas

178

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo - mas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedankexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Basket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do outro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se originam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa distinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sobre a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva ortodoxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 7 9

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo Eles o fazem em grande medido reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especifico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacutefico nos termos do rsquorsquoOutrorsquo mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo rsquorsquoobjeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redefiniccedilatildeo contiacutenua e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas aacute ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias auto- suficientes e completas Citando Heidegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeugganzes um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeugganzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em suo utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgota- se em seu uso jaacute os obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

180

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez disso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser exportadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeugganzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africano uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivos Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um filoacutesofo

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutetica seria capaz de continuar porque os mesmos objetos disfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildees extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute certamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacuteprio Danto jaacute seriacondiccedilatildeo para qualificaacute-las como arteA separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rederdquo como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a ldquorede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees festivais anuais etc ) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de forma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 1910) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama coletivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidadeNesse caso o funcionamento da ldquorede natildeo

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 1

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

seria multo diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritualmente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metafisicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de Boyer14 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Boyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas o armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode sesoltar Ao inveacutes de arrebentaacute-la ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemplo faria 15

A conversa entre Ze e Boyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

182

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacutefica sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (assim espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visitante de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderia ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou funcionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significativa do que a maioria dos signos supostos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa

o design de seu mentor Ela estaacute equipadacom um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse sistema nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a distacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 3

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 5: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo - mas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedankexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Basket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do outro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se originam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa distinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sobre a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva ortodoxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 7 9

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo Eles o fazem em grande medido reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especifico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacutefico nos termos do rsquorsquoOutrorsquo mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo rsquorsquoobjeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redefiniccedilatildeo contiacutenua e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas aacute ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias auto- suficientes e completas Citando Heidegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeugganzes um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeugganzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em suo utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgota- se em seu uso jaacute os obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

180

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez disso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser exportadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeugganzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africano uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivos Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um filoacutesofo

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutetica seria capaz de continuar porque os mesmos objetos disfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildees extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute certamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacuteprio Danto jaacute seriacondiccedilatildeo para qualificaacute-las como arteA separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rederdquo como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a ldquorede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees festivais anuais etc ) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de forma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 1910) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama coletivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidadeNesse caso o funcionamento da ldquorede natildeo

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 1

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

seria multo diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritualmente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metafisicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de Boyer14 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Boyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas o armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode sesoltar Ao inveacutes de arrebentaacute-la ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemplo faria 15

A conversa entre Ze e Boyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

182

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacutefica sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (assim espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visitante de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderia ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou funcionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significativa do que a maioria dos signos supostos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa

o design de seu mentor Ela estaacute equipadacom um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse sistema nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a distacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 3

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 6: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo Eles o fazem em grande medido reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especifico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacutefico nos termos do rsquorsquoOutrorsquo mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo rsquorsquoobjeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redefiniccedilatildeo contiacutenua e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas aacute ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias auto- suficientes e completas Citando Heidegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeugganzes um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeugganzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em suo utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgota- se em seu uso jaacute os obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

180

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez disso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser exportadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeugganzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africano uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivos Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um filoacutesofo

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutetica seria capaz de continuar porque os mesmos objetos disfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildees extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute certamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacuteprio Danto jaacute seriacondiccedilatildeo para qualificaacute-las como arteA separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rederdquo como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a ldquorede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees festivais anuais etc ) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de forma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 1910) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama coletivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidadeNesse caso o funcionamento da ldquorede natildeo

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 1

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

seria multo diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritualmente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metafisicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de Boyer14 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Boyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas o armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode sesoltar Ao inveacutes de arrebentaacute-la ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemplo faria 15

A conversa entre Ze e Boyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

182

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacutefica sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (assim espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visitante de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderia ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou funcionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significativa do que a maioria dos signos supostos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa

o design de seu mentor Ela estaacute equipadacom um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse sistema nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a distacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 3

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 7: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez disso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser exportadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeugganzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africano uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivos Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um filoacutesofo

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutetica seria capaz de continuar porque os mesmos objetos disfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildees extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute certamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacuteprio Danto jaacute seriacondiccedilatildeo para qualificaacute-las como arteA separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rederdquo como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a ldquorede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees festivais anuais etc ) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de forma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 1910) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama coletivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidadeNesse caso o funcionamento da ldquorede natildeo

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 1

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

seria multo diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritualmente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metafisicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de Boyer14 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Boyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas o armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode sesoltar Ao inveacutes de arrebentaacute-la ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemplo faria 15

A conversa entre Ze e Boyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

182

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacutefica sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (assim espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visitante de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderia ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou funcionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significativa do que a maioria dos signos supostos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa

o design de seu mentor Ela estaacute equipadacom um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse sistema nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a distacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 3

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 8: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

a e R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E S A bull U F R J bull 2 0 0 1

seria multo diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritualmente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metafisicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de Boyer14 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Boyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas o armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode sesoltar Ao inveacutes de arrebentaacute-la ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemplo faria 15

A conversa entre Ze e Boyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

182

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacutefica sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (assim espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visitante de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderia ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou funcionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significativa do que a maioria dos signos supostos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa

o design de seu mentor Ela estaacute equipadacom um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse sistema nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a distacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 3

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 9: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacutefica sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (assim espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visitante de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderia ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou funcionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significativa do que a maioria dos signos supostos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa

o design de seu mentor Ela estaacute equipadacom um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse sistema nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a distacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 3

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 10: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqui do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de seu criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais sutil e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-las Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetificada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso aacute armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos sobre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

o nexo dramaacutetico que liga os doisprotagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar poreacutem a estrutura temporalrdquo da armadilha Essa estrutura temporal opotildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesis- catastrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a sensaccedilatildeo de falsa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destinoSe o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetamo seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deusou o destino o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegicaParece-me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veiculam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente social e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencionalidades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

1 8 4

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 11: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para definir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio semioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o peixe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fixos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy16 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os YoInngu produzem esse tipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir-lhe forccedilas (por meio de cerimocircnias funeraacuterias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura YoInngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entreo trabalho de Hirst e a obra YoInngu natildeo eacuteapenas superficial mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencionalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacutetimas de uma armadilha para

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 8 5

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 12: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz violeta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais elas morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antropoacutelogos deveriacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacutedigo mitoloacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se identificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal morto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus perverso que colocou este mundo incoerente em movimento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hirst natildeo seria o uacutenico artista ocidental contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceituai Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posicionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalho natildeo eacute tanto o tema da violecircncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetradores justamente o tema que identifiquei anteriormente emrelaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relaciona-se diretamente ao tipo de armadilha serial para homens (espingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de propriedades em tempos passados

Exemplos adicionais de obras de arte poacutes- Duchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 1917) poderiam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hist satildeo exemplos do mesmo tipo de coisa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

186

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo suponho que para que uma armadilha africana ou uma armadilha de qualquer outra parte exoacutetica do mundo possa funcionar como uma obra de arte seja realmente necessaacuterio ou desejaacutevel que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o significado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armadilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento 18 Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 13: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a armadilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmente artiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinha Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecirc- se imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bang Antes de saber o que aconteceu transforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido corno qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as transubstanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hirst discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)larvamoscamosca (morta) mdash poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tampouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode funcionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier 20 Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tambeacutem em outros lugares

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torna-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente longo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuterios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas voltada natildeo bastaria para retiraacute-las do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seria evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - e que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente aacutes enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e conteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 14: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 001

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porque ela proacutepria eacute alongada (eel- ongated) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricada eacute certamente na forma de armadilhas como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo ldquoimagens dos antepassados no sentido de que elas contecircm encarnam e comunicam o poder ancestral Aleacutem disso elas tornam possiacutevel a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacutem sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fantasiado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor Os Anga ao contraacuterio tecircm ldquoimagens de poder ancestral que de fato trabalham de feto alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo realiacutestica de formas (superficiais)

Conclusatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armadilhas exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio - a disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte Espero que eu

tenha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teoria institucional da arte ldquoliberariarsquo imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservando- lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente diferentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses ob|etos tornar-se-iam artiacutesticos Seria essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacutelogo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa transformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute constituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como ldquoarte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm pouco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arterdquo para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como tal numa cidade provinciana muito sonolenta que se vanglorie (como a maioria delas) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad4Ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas por que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arterdquo caso produzisse coisas genericamente semelhantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 15: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

(vide Weiner21) - reside na influecircncia prolongada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica 22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte pela antropologia da arte 23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte contemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode ser visto em galerias de artesanato provincianas Deve-se aceitar a premissa em essecircncia libertadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentais jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabricado pelo homem pode ser veiculado como obra de arte Eacute isso que a teoria institucional da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de teoria da arte contemporacircnea desde 1917 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urinol (ou Fontaine) Foi no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Damien Hirst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Duchamp pouco poderiacuteamos esperar dela nesta fase tardia Na verdade as coisas natildeo satildeo bem assim Os ready made de Duchamp foram cuidadosamente selecionados e firmemente integrados tematicamente a dois de seus principais projetos (o Large Glass de 1915shy23 e a Waterfall de 1944-66) O aspecto mais interessante a respeito dos ready-mode de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Duchamp para selecionaacute- los (reveladas ao longo de toca uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceituai aparentemente arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos eles funcionam se eacute que funcionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e histoacutericas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maior ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquanto veiacuteculos de ideacuteias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de realizar etc Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer objeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencionalidades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de reconstruir plenamente 24

Assim eacute preciso mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simples exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvido e disseminado Desse ponto de vista a teoria puramente institucional da arte eacute menos do que satisfatoacuteria porque nada tem a dizer sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuais aos quais o puacuteblico educado de galeria eacute sensiacutevel Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da interpretabilidade para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teoria pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre obra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos ldquofuncionais e obras de arte significativas Esse eacute um legado dos filoacutesofos poacutes-iluministas como Hegel que obscurece a compreensatildeo de qualquer mundo artiacutestico distinto daquele que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar significado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas religiosas e outras Essas funccedilotildees satildeo praacuteticasrdquo nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e ca maneira como os seres humanos podem interferir em seu funcionamento de modo a tirar o melhor proveito possiacutevel dele Obras

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 16: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

ae R E V I S T A D O P R O G R A M A D E P Oacute S - G R A D U A Ccedil Atilde O E M A R T E S V I S U A I S E B A bull U F R J bull 2 0 0 1

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames 25 A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucionalrdquo e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bem- sucedida candidatura a obra de arte da ldquorederdquo de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencionalidades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teoriasldquointerpretativa e ldquoinstitucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26 demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-la como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funciona eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

190

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

Page 17: Alfred Gell - A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas

Quando morreu em 1997 Alfred Gell era Professor de Antropologia na London School of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a respeito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Images Totooing in Polynesia (1993) e Art and Agency An Anthropological Theory (1998)

Traduccedilatildeo Mareia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

21 Weiner J (ed ) Aesthetics is a cross-cultural CategoryGroup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic Experience AnAnthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and theEnchantment of Technology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds ) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderescognitivos

25 Gell op cit 60

26 Thomas Nicholas Entangled Objects Cambridge MAHarvard University Press 1991

T R A D U Ccedil Atilde O bull A L F R E D G E L L 1 9 1

Notas

1 Ver Dickie George Art and Aesthetics Ithaca NovaYork Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circle a Theory of Art New Yorkrsquo Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique ofJudgements of Taste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris James ArtArtifact on the Museum andAnthropology Current Anthropology 29(5) 1988 775-9

4 Faris op cit 776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifact AfricanArt in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestel Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of PhilosophyJournal of Philosophy 61 1964 571 -84

7 Dickie 1974 op cit

8 Ver Danto Arthur The Transfiguration of theCommonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cit

9 Danto 1981 op cit

10 Faris op cit 778

11 Clifford James The Predicament of Culture CambridgeMA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit 31

13 Danto 1988 op cit 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agravePens4e introduction agrave lanalyse des eacutepopeacutees Fang Pans Societeacute drsquoEthnologie 1988

15 Boyer op cit 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art and anAboriginal System of Knowledge Chicago Chicago University Press 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MDRowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the RenaissanceOxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report of the AmericanBureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-AngaMaterial and Symbolic Aspects of Trapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito