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Alexandr Romanovich Belyaev - A Estrela Ketz

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Título Original: Звезда КЭЦ (Svesda Ketz)© 1936 Александр Романович Беляев (Alexandr Romanovich Belyaev)

Dedicado à lembrança deKonstantin Eduardovich Tziolkovsky

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I - ENCONTRO COM O BARBA NEGRA

Quem pensaria que um incidente tão sem importância decidiria meu destino?Naquele tempo eu era solteiro e vivia na casa do pessoal científico. Em um dos en-

tardeceres primaveris de Leningrado, estava eu sentado na janela aberta da minha casa e admirava as árvores do bulevar, cobertas de folhagem verde clara. Os anda-res superiores das casas ardiam sob raios cor-de-palha do crepúsculo, enquanto os de baixo submergiam-se em sombras azuis. Ao longe divisava-se o espelho do Neva e a agulha do Almirantado. Era tudo maravilhoso e faltava talvez um pouco de músi-ca e meu receptor de radio havia se quebrado. Uma suave melodia, abafada pelas paredes, mal chegava até mim. Estava eu ali invejando os vizinhos, quando então me ocorreu que Antonina Ivanovna, minha vizinha, poderia ajudar-me facilmente a reparar meu aparelho de rádio.

Eu não conhecia essa senhorita, mas sabia que trabalhava como assistente no Ins-tituto Físico Técnico e me pareceu que isto era suficiente para que eu pudesse me dirigir a ela e pedir-lhe ajuda.

No minuto seguinte eu estava batendo na porta dos meus vizinhos.A porta me foi aberta pela própria Antonina Ivanovna. Era uma simpática jovem de

uns vinte e cinco anos. Seus grandes olhos cinzentos, alegres e vivos, olhavam um pouco brincalhões e com firmeza e o nariz arrebitado dava ao seu rosto uma expres-são arrogante. Usava um vestido de tecido negro, muito simples e bem ajustado à sua esbelta figura.

Não sei porque, de repente eu fiquei confuso e comecei a explicar a causa da mi-nha presença.

- Em nosso tempo é um pouco vergonhoso não saber-se radiotécnica - interrom-peu-me ela, brincando.

- Eu sou biólogo - tentei desculpar-me.- Mas hoje em dia qualquer colegial sabe consertar um rádio.Suavizou essa censura com um sorriso, mostrando os dentes brancos e uniformes

e a tensão do momento desapareceu.- Vamos à sala de jantar, acabarei de tomar meu chá e irei “curar” seu aparelho.Eu a segui alegremente.Sentada à mesa da ampla sala de jantar estava a mãe de Antonina Ivanovna, uma

velhinha gordinha, grisalha e de rosto rosado, que saudou-me com fria amabilidade e me convidou a tomar uma xícara de chá, que eu recusei.

Antonina Ivanovna terminou seu chá e nos dirigimos para minha casa.Com extraordinária rapidez, ele desmontou meu receptor. Eu fiquei admirando

suas hábeis mãos, com seus longos dedos de singular mobilidade. Falamos muito pouco. Ela arrumou o aparelho muito depressa e se foi para sua casa.

Alguns dias depois quando eu estava sozinho, pensava nela, queria vê-la nova-

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mente, mas, sem pretexto, não me atrevia. E eis então que eu, sinto vergonha de confessá-lo, estraguei meu receptor de propósito... E fui vê-la.

Ao examinar a avaria, ela olhou-me rindo e disse:- Não vou consertar seu receptor.Fiquei vermelho como uma lagosta.Mas no dia seguinte fui novamente dizer-lhe que meu radio funcionava perfeita-

mente e desde então foi para mim de vital necessidade ver Tonia, como eu mental-mente a chamava.

Ela me tratava amigavelmente, apesar de que, segundo ela, eu era somente um cientista de gabinete, um especialista limitado; não sabia radiotécnica, meu caráter era indeciso, meus costumes antiquados, dias e noites sentado em um laboratório ou em um gabinete. A cada encontro ela me dizia muitas coisas desagradáveis e me re-comendava refazer meu caráter.

Meu amor próprio estava ofendido. Até decidi não ir mais à sua casa, mas logo não aguentei mais. Mais ainda, eu comecei a mudar meu caráter sem notar. Passea-va mais frequentemente, tentei fazer esportes, comprei uns esquis, uma bicicleta e até um livro de radiotécnica.

Em uma ocasião, enquanto fazia um dos meus passeios voluntários/obrigatórios por Leningrado, no cruzamento da Avenida Vinte e Cinco de Outubro com a rua Três de Julho, notei um jovem de barba negro azulada

Ele estava me olhando fixamente e e aproximou-se decidido de mim.- Perdão, mas você não é Artiomov?- Sim - respondi eu.- Você conhece Nina... Antonina Gerasimovna? Eu o vi uma vez com ela. Queria

transmitir a ela algo sobre Evgeni Paley.Enquanto eu estava conversando com o desconhecido, aproximou-se de nós um

automóvel e o motorista gritou:- Depressa, depressa! Estamos atrasados!O desconhecido saltou para o carro e ao partir gritou:- Comunique-lhe isto: Pamir, Ketz...O automóvel desapareceu velozmente na esquina.Eu cheguei em casa confuso. Quem era esse homem? Como ele sabe meu sobre-

nome? Onde ele me viu com Tonia, ou Nina, como ele a chamou? Repassava na mi-nha memória todos os encontros, todos os conhecidos... Aquela característica do na-riz aquilino e a barba negra e pontiaguda, eu teria lembrado. Mas não, eu jamais o havia visto antes... E esse Paley de que ele me falou? Quem era?

Fui à casa de Tonia e contei-lhe sobre o estranho encontro e imediatamente esta jovem tão equilibrada emocionou-se terrivelmente. Lançou até um grito ao ouvir o nove de Paley. Ela me obrigou a repetir-lhe toda a cena do encontro e depois me censurou furiosamente porque eu não pensei em subir no carro com aquele homem e porque não perguntei detalhadamente sobre o assunto.

- Claro, você tem o caráter de uma foca - terminou ela.- Sim - respondi com raiva. - Eu não me pareço em nada com os heróis dos filmes

de aventuras norte americanos e me orgulho disto. Subir no carro de uma pessoa desconhecida... Não faltava mais nada.

Ela ficou pensativa, sem me escutar e repetia, como se delirando:- Pamir... Ketz... Pamir... Ketz...Depois correu para a biblioteca, pegou o mapa de Pamir e começou a procurar por

Ketz.Mas, claro, não havia nenhum Ketz no mapa.

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- Ketz... Ketz... Se não é uma cidade, que é então? Uma pequena aldeia, um povo-ado ou uma instituição?... É necessário saber o que é Ketz! - exclamou. - Seja como for, hoje mesmo, ou o mais tardar amanhã, logo cedo...

Eu não reconhecia Tonia. Quanto energia indômita havia encerrada nesta jovem que sabia trabalhar de uma forma tão tranquila e tão metódica! E toda essa transfor-mação havia sido produzida por uma palavra mágica: Paley. Eu não tive coragem de perguntar-lhe quem era ele e procurei ir para casa o mais depressa possível.

Não vou ocultar que não dormi esta noite, pois me sentia muito triste, e no dia se-guinte não fui à casa de Tonia.

Mas ao entardecer ela mesmo veio ver-me, tranquila e afável como sempre. Sen-tando-se em uma cadeira, ela disse:

- Eu averiguei o que é Ketz. É uma nova cidade no Pamir que ainda não está no mapa. Eu parto para lá amanhã e você deveria vir comigo. Quanto a esse homem de barba negra, eu não o conheço e você me ajudará a procurá-lo. Pois a culpa é sua, Leonid Vasilevich, já que não perguntou o nome da pessoa que tem notícias sobre Paley.

Eu fiquei com os olhos arregalados de assombro. Claro! Não faltava mais nada! Deixar meu laboratório, o trabalho científico, e correr atrás de um desconhecido até Pamir para ir procurar um tal de Paley!

- Antonina Ivanovna - comecei eu secamente, - você, claro está, sabe que mais de uma instituição espera que eu termine minhas experiências científicas. Agora, por exemplo, estou terminando um trabalho para deter a maturação dos frutos. Essas experiências há muito que foram feitas na América e agora estamos tentando aqui. Mas o resultados práticos não são muito grandes até agora. Com certeza você já ou-viu falar que as fábricas de conservas de frutas do sul, que beneficiam damascos, nectarinas, pêssegos, laranjas, marmelos, etc, trabalham com uma sobrecarga extre-ma durante um mês e meio, e que nos dez ou onze meses restantes ficam quase pa-radas. E isto acontece porque os frutos amadurecem quase todos de uma vez e é im-possível beneficiá-los. Por isto se perdem nove décimos das colheitas... Aumentar a quantidade de fábricas, que ficariam paradas dez meses no ano, tampouco é vanta-joso. Fui convidado para ir à Armênia neste próximo verão, a fim de efetuar nesse lu-gar experiências de grande importância para o atraso artificial da maturação das fru-tas. Compreende? Os frutos são colhidos antes da sua maturação completa e então vão amadurecendo pouco a pouco, partida após partida, à medida que as fábricas necessitam deles para seu processamento. Desta forma as fábricas trabalharão o ano todo e...

Olhei para Tonia e cortei meu discurso. Ela não me interrompia, sabia escutar, mas seu rosto se ensombrecia mais e mais. Entre suas sobrancelhas havia uma pequena ruga, seus cílios estavam caídos. Quando ela levantou seus olhos para mim, vi neles o desprezo.

- Que cientista ativista! - disse ela em tom glacial. - Eu também vou para Pamir por um assunto, e não vou procurar aventuras. É necessário que eu encontre Paley acima de tudo. A viagem não será de muita duração e você ainda terá tempo de es-tar na Armênia antes da colheita dos seus frutos...

Raio e trovões! Não podia dizer-lhe em que posição embaraçosa estava me colo-cando! Ir com a garota que eu amava em busca do tal de Paley, desconhecido para mim, talvez até meu rival! Era verdade que ela havia dito que não ia em busca de aventuras, e sim que era um assunto importante que a levava ali. Que negócio pode-ria ligá-la ao tal Paley? Meu amor próprio me impedia de perguntar. Não! Já era o bastante para mim. O amor entorpece o trabalho. Sim, sim! Antes eu ficava no labo-

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ratório até muito tarde e agora, em troca, saio de lá quando dá quatro horas. Ia ne-gar-me definitivamente a ir, mas Tonia adiantou-se:

- Estou vendo que terei que ir sozinha - disse ela levantando-se. - Isto complica as coisas, mas pode ser que a sorte me permita achar o tal da barba negra sem a sua ajuda. Adeus, Artiomov. Desejo-lhe muito êxito na maturação.

- Mas ouça, Antonina Ivanovna!... Tonia!...Mas ela já havia saído da casa.Ir atrás dela? Trazê-la de volta? Dizer-lhe que estou de acordo?... Não, não! É pre-

ciso demonstrar caráter. Agora ou nunca.E eu mantive meu caráter durante a tarde toda, durante toda uma noite de insô-

nia, durante toda a manhã brumosa do dia seguinte. No laboratório eu não podia nem olhar para as ameixas, objeto das minhas experiências.

Tonia, claro, vai sozinha. Ela não vai ceder ante nenhum obstáculo. Que vai acon-tecer no Pamir quando encontrar o tal da barba negra e, através dele, Paley? Se eu pudesse estar no encontro, muitas das minhas dúvidas seriam esclarecidas. Eu não vou com Tonia, isto significa a rutura. Não foi em vão que ela disse “adeus” quando foi embora. Mas tenho que manter a minha posição, tenho que demonstrar caráter. Agora ou nunca.

Está claro que eu não vou. Mas não preciso ser descortês; embora seja somente por amabilidade, tenho que ajudar Tonia a preparar-se para a viagem.

E eis que, ainda não havia dado quatro horas, e eu já saltava os degraus de cinco em cinco, descendo do quarto andar. Igualmente a um herói do cinema norte-ameri-cano, subi no bonde em movimento e corri para casa. Parece que irrompi sem cha-mar na casa de Tonia e gritei:

- Vou com você, Antonina Ivanovna!Não sei de quem foi maior a surpresa desta exclamação, se dela ou minha. Creio

que foi a minha.Assim então encontrei-me arrastado nesta cadeia de inverossímeis aventuras.

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II. O DEMÔNIO DA INDOMABILIDADE

Lembro confusamente da nossa viagem de Leningrado à misteriosa Ketz. Eu esta-va agitado demais por nossa partida inesperada, turvado por meu próprio procedi-mento, deprimido pela energia de Tonia.

Tonia não queria perder um só dia e planejou o itinerário da nossa viagem utilizan-do os mais modernos meios de comunicação existentes.

De Leningrado para Moscou voamos de avião. Na subida de Baldaisk nós fomos sacudidos o suficiente para que eu, que não aguento o balanço do mar nem do ar, me sentisse indisposto. Tonia cuidava solicitamente de mim. No caminho ela come-çou a me tratar com mais doçura; em uma palavra, ela melhorou. Eu estava mais e mais maravilhado; quanto força, ternura feminina e solidariedade nesta jovem! A preparação da viagem me deixou esgotado. Apesar de ter trabalhado mais do que eu, não havia sinal disto nela. Sempre estava alegre e frequentemente cantarolava não sei que canções.

Em Moscou fizemos o transbordo para um avião estratoplano polireator Tzi-olkovsky, que fazia a linha direta Moscou-Tashkent.

Este avião desenvolvia uma velocidade assombrosa. Três charutos metálicos uni-dos lado a lado entre si e pelo leme da cauda, cobertos por uma asa, assim era o as-pecto exterior do estratoplano. Tonia logo se pôs ao corrente das características da sua construção, e me explicava que os passageiros e pilotos viajavam no corpo da esquerda, no da direita ia o combustível, e no corpo central achavam-se a hélice, o compressor de ar, o motor e todo o sistema de refrigeração; que o avião era movido pela força da hélice e pela reação dos produtos que queimava. Falava também sobre não sei que interessantes pormenores, mas eu a escutava distraidamente, pois o efeito de tanta novidade me deprimia. Lembro que entramos em uma cabine que se fechava hermeticamente e que nos sentamos em umas poltronas muito cômodas. O estratoplano correu por uns trilhos, adquiriu velocidade - cem metros por segundo - e elevou-se no ar. Voávamos a grande altitude - talvez nos limites da troposfera - com uma velocidade de mil quilômetros por hora. E disseram que esta velocidade não era o seu limite.

Nem bem tive tempo de sentar-me e já havíamos ultrapassado os limites da Repu-blica Federativa Russa. A massa de nuvens impedia-nos de ver a Terra. Quando as nuvens começaram a clarear, vi na profundeza, abaixo de nós, uma superfície cin-zenta. Parecia mais profunda no centro e elevada no horizonte, como uma cúpula cinza invertida.

- As estepes do Quirguistão - disse Tonia.- Já? Isso sim que é velocidade!Um voo assim satisfazia até mesmo a impaciência de Tonia.Adiante de nós brilhou o Mar de Aral, e na cabine já não se falava sobre Moscou,

que acabávamos de deixar, e sim sobre Tashkent, Andijan, Kokand.Não tive tempo de ver Tashkent. Aterrizamos com a rapidez do raio e em um mi-

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nuto já corríamos em um automóvel para a estação do trem super-rápido a reator, com o nome do mesmo Tziolkovsky. Este primeiro trem a reator “Tashkent-Andijan” corria a velocidades não inferiores ao do estratoplano que acabávamos de deixar.

Vi um longo vagão de forma aerodinâmica e sem rodas. O fundo do vagão descan-sava em uma pista de concreto que se elevava sobre o solo. Em ambos os lados do vagão havia uma espécie de braços salientes que chegavam até os lados da pista e que davam estabilidade ao vagão nas curvas.

Eu soube que neste trem se bombeava ar sob pressão debaixo do vagão e que este ar era expelido para trás por uns tubos especiais. Desta forma o vagão voava sobre uma delgada almofada de ar e a fricção se reduzia ao mínimo. O movimento se obtinha ao lançar para trás os jorros de ar e o vagão desenvolvia tal velocidade, que em sua corrida atravessava pequenos riachos sem necessidade de pontes.

Subi no vagão, sentei-me receioso e logo este se pôs em movimento.A velocidade da “corrida-voo” era, com efeito, extraordinária. Através das janelas,

a paisagem se fundia em listras cinzas amareladas e somente o céu azul aparecia como de costume, mas as brancas nuvens corriam para trás com extraordinária rapi-dez. Eu reconheço, apesar de todas as comodidades deste novo método de comuni-cação, não deixei de esperar impacientemente o final da nossa curta viagem. Eis que abaixo de nós cintilou um rio mas no mesmo instante passamos por ele sem ponte alguma. Eu lancei uma exclamação e, sem poder evitar, levantei-me do assento. Ao ver tal atraso e provincianismo, todos os passageiros puseram-se a rir ruidosamente. Tonia, ao contrário, pôs-se a aplaudir entusiasmada.

- Disto sim é que eu gosto! Isto é que é correr! - dizia ela.Eu olhava ansiosamente pela janela. Quando vai terminar essa cintilância nublada?Em Andijan eu pedi por um pouco de repouso. Eu precisava descansar depois de

todas essas corridas velozes, mas Tonia não quis me escutar. Parecia dominada por um demônio indomável.

- Assim você vai estragar todo meu planejamento. Em meu horário tudo concorda com exatidão cronométrica.

E novamente, como se levados pelo diabo, corremos para o aeroporto.Fizemos o caminho de Andijan para Osha em um avião comum. Sua velocidade

normal que não era pequena, por certo, - quatrocentos e cinquenta quilômetros por hora - pareceu uma tartaruga para Tonia. Como se isto fosse pouco, um dos motores começou a ratear e tivemos que fazer uma aterrizagem forçada. Enquanto o mecâni-co consertava o motor, eu me deitei na areia. Mas esta era quente ao extremo e o sol abrasava com seus raios perpendiculares, e não tive outro remédio senão voltar à sufocante cabine.

Suando em bagas, eu maldizia interiormente a viagem e sonhava com a fresca ga-roa de Leningrado.

Tonia estava nervosa, temendo atrasar-se em Osha para a decolagem do dirigível. Para minha desdita, não chegamos tarde e aterrizamos no aeroporto meia hora an-tes da saída do dirigível. Este gigante metálico devia trasladar-nos para a cidade de Ketz. Corremos para a torre de amarração, subimos rapidamente no elevador e en-tramos na gôndola.

A viagem no dirigível deixou em mim uma agradável recordação. Os camarotes da gôndola eram refrigerados e bem ventilados. A velocidade era tão somente de du-zentos quilômetros por hora. Nem balanço, nem trepidações e absoluta ausência de poeira. Almoçamos magnificamente na sala dos oficiais. Na sobremesa eram ouvidas novas palavras: Alay, Karakul, Jorog...

Visto de cima, o Pamir me produziu uma impressão bastante sombria. Não é em

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vão que este “teto do mundo” é também chamado de “estribo da morte”. Rios de gelo, montanhas, desfiladeiros, morenas, paredes de gelo e neve coroadas por den-tes de pedra negra, eram os adornos fúnebres dessas montanhas. E abaixo, nas pro-fundezas, tão somente pastos de um verde intenso.

Um dos passageiros, um alpinista, mostrando os picos cobertos de gelo com tona-lidade esverdada, explicou a Tonia:

- Esta é uma geleira lisa, esta é de agulhas, aquela outra é quebrada, mais além forma ondas e mais abaixo, escadas...

Logo resplandeceu a lisa superfície de um lago.- Karakul. Altura: três mil, novecentos e noventa metros acima do nível do mar -

disse o alpinista- Olhe, olhe! - chamou-me Tonia.Olho e vejo um lago como qualquer outro. Brilha, e Tonia fica maravilhada:- Que formosura!- Sim, um lago brilhante - disse eu, para não ofender Tonia.

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III. ME TRANSFORMO EM DETECTIVE

Bem, já vamos aterrizar. Do meu dirigível eu vejo a vista geral da cidade. Está si-tuada em um vale muito longo e estreito, entre altas montanhas com picos cobertos de neve. O vale segue quase em linha reta de oeste para leste. Perto da cidade o vale se alarga. Na extremidade sul da cidade há um grande lago. O alpinista disse que é muito profundo.

Umas duzentas casas brilham com seus planos telhados metálicos. A maioria deles são claros como o alumínio, mas há também escuros. Na vertente norte da monta-nha há grandes edifícios com cúpulas que com certeza são observatórios. Mais além das casas de moradia veem-se os grandes vultos das fábricas.

Nosso aeroporto está situado na parte oeste da cidade e ao leste vê-se um estra-nho caminho de ferro com grandes e largas vias. Este vai até o final do vale e ali, pelo visto, vê-se cortado.

Finalmente terra firme!Nós vamos para o hotel. Eu me nego a percorrer a cidade, pois estou cansado da

viagem e Tonia, caritativa, me deixa ir descansar. Tiro as botas e caio em um largo divã. Que bem-estar! Em minha cabeça ainda sinto todo tipo de ruídos de motores, mas meus olhos se fecham. Bem, agora vou descansar bem!

Pareceu que me chamavam à porta. Ou é porque ainda ouço os zumbidos dos mo-tores... Não, estão chamando de verdade. Que importunos!

- Entrem! - grito com raiva, enquanto me levanto do divã.Aparece Tonia. Parece que ela se propôs a me fazer perder as estribeiras.- E então, descansou? Vamos embora - disse ela.- Para onde vamos? Por que vamos? - grito eu.- Como para onde vamos? Para que viemos aqui?Bom, está bem. Vimos procurar uma pessoa com barba negra. Entendido... Mas já

é tarde e seria melhor começar nossas pesquisas amanhã ao amanhecer. Por outro lado é inútil protestar. Calo-me e ponho minha capa, mas Tonia, solícita, me previne:

- Ponha o abrigo de peles. Não esqueça que estamos a alguns milhares de metros de altitude e o sol já se pôs.

Ponho meu abrigo de peles e saímos para a rua.Aspiro o ar gelado e sinto que tenho dificuldade para respirar. Tonia nota que eu

“bocejo” e diz:- Você não está acostumado ao ar rarefeito destas alturas. Mas não é nada, logo

passará.- É estranho que no hotel eu não tenha notado - digo assombrado.- É que no hotel o ar é mais denso, existem compressores - me diz Tonia. - Nem

todo mundo está acostumado ao ar das montanhas. Alguns nem mesmo saem à rua e com isto as consultas médicas são feitas em casa.

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- Uma lástima que não tenham este privilégio os especialistas que procuram bar-bas negras! - respondi tristemente.

Seguíamos pelas ruas desta cidade limpa e bem iluminada. Aqui estava o pavimen-to mais liso e mais forte do mundo: de granito natural, nivelado e polido. Um pavi-mento monolítico.

Frequentemente nos encontrávamos com barbas negras; pelo visto, entre os habi-tantes havia muitos meridionais.

Tonia a todo instante me puxava pela manga e perguntava:- Não é ele?Eu sombriamente balançava a cabeça. Sem dar-nos conta, chegamos às margens

do lago.De repente ouvimos o uivar de uma sirene. O eco repercutiu nos cumes e as enco-

lerizadas montanhas responderam com um som melancólico. Isto produziu um con-certo que gelava a alma.

Nas margens do lago acenderam-se faróis luminosos e o lago iluminou-se como um espelho em uma moldura de diamantes. Seguidamente, foram acesas dezenas de potentes projetores que dirigiam seus raios azuis para o espelhado céu vespertino. A sirene calou-se, cessou seu eco nas montanhas. Mas a cidade despertou.

No lago, perto das margens, começaram a correr rápidas canoas e botes e uma massa de gente afluía para o lago.

- Mas para onde você está olhando? - ouvi dizer a voz de Tonia.Esta expressão me recordou minha triste obrigação. Resolutamente me virei de

costas para o lago, para as luzes, e comecei a procurar os barbudos entre a massa de pessoas.

Em uma ocasião me pareceu que havia visto o desconhecido da barba. Queria di-zer a Tonia, mas ela logo exclamou:

- Olhe, olhe! - e apontava para o céu.Vimos uma estrela dourada que se aproximava da terra. A multidão emudeceu. No

silêncio que se seguiu ouvia-se um trovão distante. Um trovão no céu claro! Os mon-tes recolheram esse troar e responderam como um surdo canhão. O estrondo au-mentava a cada segundo e a estrela aumentava de volume. Atrás dela já via-se cla-ramente um rastro de fumo e logo a estrela transformou-se em um corpo em forma de charuto com aletas. Isto só podia ser uma nave interplanetária. Entre o gentio ou-viam-se estas exclamações:

- É “Ketz-sete”!- Não, é “Ketz-cinco”!O foguete logo descreveu um pequeno círculo e voltou sua proa para baixo. Uma

chama escapou do seu corpo e ele começou a descer para o lago mais lentamente. Seu comprimento ultrapassava o da maior locomotiva e com certeza não pesava me-nos.

Eis que a pesada mole ficou como que suspensa no ar a umas poucas dezenas de metros da superfície da água. A força dos gases das explosões sustentavam-na nesta posição. Os gases ondulavam e agitavam a superfície da água e colunas de fumo se estendiam pelo lago.

Então o charuto metálico foi descendo imperceptivelmente e logo sua proa chegou a tocar na água. Esta se agitou, borbulhou e começou a ferver e uma nuvem de va-por envolveu o foguete. As explosões cessaram. Entre o vapor e o fumo apareceu por um momento a aguda extremidade superior do foguete que voltou a desaparecer abaixo d’água levantando uma grande massa de líquido. Grandes ondas se espalha-ram pelo lago balançando as canoas. Segundos mais tarde apareceu novamente a

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brilhante estrutura do foguete entre os raios dos projetores, balançando-se na super-fície do lago.

A multidão aplaudia os navegantes com gritos unânimes. Uma flotilha de lanchas a motor lançou-se para o foguete flutuante, como peixes andorinhas para uma baleia. Uma pequena lancha a motor negra puxou-o a reboque arrastando-o para o porto. Dois potentes tratores tiraram o foguete da margem através de um ponte construída especialmente para isto. Finalmente abriu-se a escotilha e da nave saíram os viajan-tes interplanetários.

O primeiro deles começou a espirrar ruidosamente no momento de sair e entre a multidão ouviram-se risos e exclamações: Saúde!

- Toda vez é a mesma história - exclamou o que acabara de chegar. - Quando che-go à Terra fico constipado.

Eu olhava com interesse e respeito para o homem que acabava de chegar do es-paço infinito. É verdade que existem homens audazes! Eu, por nada deste mundo me decidiria a voar em um foguete.

Os recém-chegados eram recebidos com alegria, eram ininterruptamente interro-gados, a multidão os envolvia, davam-lhes as mãos. Então eles subiram em um auto-móvel e se foram. A multidão começou a se dissolver e as luzes se apagaram. Imedi-atamente notei que meus pés estavam ficando gelados e que eu estava tiritando e sentindo náuseas.

- Você está arroxeado - compadeceu-se de mim, finalmente, Tonia. - Vamos para casa.

No vestíbulo do hotel fui recebido por um homem gorducho e calvo que, balançan-do a cabeça, me disse.

- Você suporta mal estas alturas, jovem.- Estou gelado - respondi.Na acolhedora sala de jantar eu entabulei conversa com este indivíduo, que era

médico. Enquanto tomávamos chá, eu lhe perguntei por que davam o mesmo nome de Ketz à cidade e ao foguete recém chegado.

- E à estrela também - respondeu o Doutor. - A estrela Ketz. Já ouviu falar dela? Precisamente, tudo provêm dela. A cidade foi criada para ela. E o porque do nome Ketz? Tem certeza de que não pode adivinhar? De quem era o sistema do estratopla-no no qual você voou até aqui?

- Me parece que de Tziolkovsky - respondi.- Me parece... - disse o doutor com reprovação. - Não parece, mas é assim de

fato. O foguete que acabam de ver também foi construído segundo seus planos, e da mesma forma a estrela. E por isto se chama Ketz: Konstantin Eduardovich Tzi-olkovsky, compreendeu?

- Sim - respondi. - Mas o que é isso de estrela Ketz?- É uma satélite artificial da Terra. Uma estação-laboratório aéreo, com cosmódro-

mo para os foguetes de comunicações interplanetárias.

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IV. PERSEGUIÇÃO FRACASSADA

Fazia tempo que eu não tinha dormido como nesta noite. E teria dormido até o meio-dia se Tonia não tivesse me despertado às seis da manhã.

- Depressa, para a rua - disse ela. - Agora estão indo para o trabalho, os trabalha-dores e os empregados.

E novamente, logo de manhã cedo, tive que retomar minhas funções detetivescas.- Não seria melhor perguntar em um centro de informações para saber se Paley

reside ou não nesta cidade?- Oh que pergunta inocente - respondeu Tonia. - Eu já me informei disto em Le-

ningrado...Seguíamos pelo pavimento monolítico. O sol já brilhava nas altas montanhas, mas

eu tinha calafrios e sentia dificuldade em respirar. As geleiras refletiam os raios do sol com um brilho deslumbrante.

Chegamos a um pequeno jardim botânico, fruto do trabalho dos horticultores do lugar na difícil aclimatação dos vegetais a esta altura. Antes da construção da cidade de Ketz, aqui, na altura de alguns milhares de metros, não crescia nem erva.

O passeio me cansou e eu propus descansarmos um pouco. Tonia, complacente, aceitou e nós nos sentamos.

Ao nosso redor desfilava uma torrente humana. Falavam em voz alta e riam. Em resumo, eles sentiam-se completamente normais.

- É ele! - gritei de repente.Tonia levantou-se em um saltou, pegou minha mão e corremos atrás do carro. O

automóvel corria pela reta avenida que levava ao cosmódromo.Era difícil correr. Eu estava sem fôlego e sentia náuseas, a cabeça dava voltas e as

pernas cambaleavam. Desta vez Tonia também se sentia mal, mas apesar disto con-tinuava correndo.

Corremos assim durante uns dez minutos. Ainda víamos o automóvel do barba ne-gra ao longe. Imediatamente Tonia atravessou a calçada e, levantando os braços, in-terceptou o caminho de um carro que vinha em direção contrária. O automóvel freou em seco e Tonia rapidamente entrou nele e me puxou.

O motorista nos olhava perplexo.- Voe atrás daquele carro! - ordenou Tonia, em um tom tão autoritário que o cho-

fer deu a volta e apertou o acelerador sem dizer uma palavra.A estrada era magnífica. Logo deixamos para trás as últimas casas e diante de

nós, como na palma da mão, achava-se o cosmódromo. Nas largas vias havia um fo-guete parecido a um gigantesco siluro. Perto do foguete havia algumas pessoas. Su-bitamente soou uma sirene e as pessoas afastaram-se rapidamente do foguete. Este pôs-se em movimento sobre os trilhos, aumentou ostensivamente sua velocidade até chegar a uma velocidade incrível. Até este momento não se servia ainda das ex-plosões e movia-se utilizando tão somente a força da corrente elétrica que obtinha dos trilhos, como uma locomotiva. A via subia com uma inclinação de uns trinta

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graus. Quando faltava perto de um quilômetro para chegar ao final da rampa, surgiu uma enorme chama da cauda do foguete e uma coluna de fumo a envolveu. Depois disto, chegou até nós uma explosão ensurdecedora e alguns segundos depois uma forte onda de ar chegou até nós. O foguete endireitou-se para o céu deixando atrás de si uma coluna de fumo. Foi diminuindo de tamanho rapidamente até chegar a ser somente um ponto negro e desapareceu.

Chegamos ao cosmódromo, mas infelizmente o homem da barba negra não estava entre os que haviam ficado.

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V. CANDIDATO A VIVER NO CÉU

Tonia misturou-se à multidão e começou a perguntar a todo mundo: não haviam visto um homem com barba negra?

As pessoas olhavam para ela, pensavam, e finalmente um homem vestido de pele branca com uma viseira também branca disse:

- Com certeza este é Evgenev.- Claro, Evgenev. Hoje não havia outro com barba negra - confirmou outro.- Onde ele está? - perguntou Tonia agitada.O homem levantou o braço apontando para o céu.- Ali, atravessando a troposfera a caminho da Estrela Ketz.Tonia empalideceu e eu a tomei pelo braço e levei-a para o táxi- Vamos para o hotel - disse.Tonia ficou calada durante todo o caminho. Submissamente apoiada em meu bra-

ço ela subiu a escada. Levei-a para o quarto e sentei-a em uma poltrona. Assim ela ficou, com a cabeça deitada para trás e com os olhos fechados. Pobre Tonia! Com que agudo sentimento sofre seu fracasso! Mas pelo menos agora tudo terminou. Não vamos ficar esperando na cidade de Ketz até que o de barba negra regresse de sua viagem interplanetária.

Pouco a pouco o rosto de Tonia começou a ficar animado e, ainda sem abrir os olhos, imediatamente sorriu.

- O barba negra voou para Ketz. Pois muito bem, nós vamos segui-lo!Ao ouvir estas palavras quase caí da cadeira.- Voar em um foguete! Para o negro abismo do céu!...Eu disse isto em um tom tão trágico e com tal pavor, que Tonia soltou uma garga-

lhada.- Eu achava que você era mais valente e decidido - disse ela, já séria e até com

um pouco de amargura. - De qualquer forma, se você não quiser me acompanhar pode ir para Leningrado ou para a Armênia, para onde você quiser. Agora que já sei o nome do barba negra, posso prescindir de você. E agora vá para seu quarto e caia na cama, pois está com muito mau aspecto. As grandes altitudes e o mundo das es-trelas não são para você.

Sim, na verdade eu me sentia bastante mal e com prazer teria cumprido as ordens de Tonia, mas meu amor próprio estava afetado. Naquele momento, o que mais me interessava era ficar na Terra e o que mais temia era perder Tonia. Que sentimento seria mais forte? Enquanto hesitava, minha língua decidiu por mim.

- Antonina Ivanovna! Tonia! - exclamei. - Estou orgulhoso por ter me convidado para acompanhá-la, agora quando já não lhe faço falta, para procurar o barba negra. Eu também vou!

Ela sorriu docemente e me estendeu a mão.- Obrigada, Leonid Vasilevich. Agora devo contar-lhe tudo, pois vi como sofria de-

vido a Paley, o que procuro com tal afinco. Reconheça, você mais de uma vez teve

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na cabeça o pensamento de que Paley se foi do meu lado e que eu, como uma obsti-nada apaixonada, vou atrás dele pelo mundo, com esperança de recobrar seu amor.

Enrijeci involuntariamente.- Mas você teve tanto tato que não me fez nenhuma pergunta. Pois bem, saiba

que Paley é meu amigo e camarada da Universidade. É um jovem cientista de talento superior e além do mais é inventor. Tem uma natureza apaixonada e inconstante. Aainda no último curso da Universidade, nós dois começamos um trabalho científico que prometia fazer uma revolução na eletromecânica. Nós dividimos o trabalho e se-guíamos cada qual por um caminho para um único objetivo, como os trabalhadores que abrem uma brecha em um túnel, cada de um lado, para se encontrarem em um ponto. Já havíamos chegado ao objetivo. Paley tinha todos os apontamentos em seu caderno de notas, mas inesperadamente foi enviado a Sverlovsk em uma missão de serviço. Foi-se com tanta pressa que não me deixou o caderno. Ele sempre foi distra-ído. Eu escrevi para Sverlovsk, mas não recebi resposta. Desde então ele se perdeu para mim, como uma gota de água no mar. Em Sverlovsk eu soube que ele havia sido transferido para Vladivostok, mas ali sua pista foi perdida. Tentei continuar o trabalho sozinha, mas me faltava uma série de fórmulas e cálculos que Paley havia feito. Algum dia lhe contarei mais detidamente sobre este trabalho. Isto transfor-mou-se para mim em uma ideia perseguidora, em um pesadelo. Isto me impedia-me de dedicar-me a outros trabalhos. Deixar no meio do caminho um problema com tan-tas perspectivas, ainda agora não consigo compreender essa inconstância de Paley. Agora você compreende porque as notícias sobre ele me agitaram tanto. E isto é tudo... Você realmente está com muito mau aspecto. Vá e durma.

- E você?- Eu também vou tentar descansar um pouco.Mas Tonia não conseguia descansar. Dirigiu-se à seção de quadros da direção ge-

ral de Ketz e ali soube que podia chegar à estrela Ketz firmando um contrato para trabalhar ali. Necessitavam de físicos e biólogos. E Tonia, sem pensar muito, contra-tou nós dois por um ano.

Entrou alegre no meu quarto e, animada, começou a relatar-me suas aventuras. Então tirou da sua carteira de pele lilás os impressos e sua caneta esferográfica e es-tendeu-os para mim.

- Eis aqui sua solicitação, assine-a.- Sim, mas... o prazo de um ano...- Não se preocupe. Eu já me informei que a direção não se atém muito rigorosa-

mente às condições do contrato. A situação pouco comum, as condições climáticas e outras, são levadas em consideração. E se alguém não suportar bem aquele clima...

- O clima? Que clima existe lá?- Eu me refiro aos locais habitáveis de Ketz. Lá se pode organizar qualquer clima,

com a temperatura e umidade de ar necessárias.- Ou seja, lá existe uma atmosfera tão rarefeita quanto aqui, nas alturas do Pamir?- Sim, aproximadamente igual - respondeu Tonia sem muita segurança. E acres-

centou rapidamente: - Ou um pouco menos. Nisto com certeza está o principal obs-táculo para você. Os candidatos a ir para a Estrela têm que passar por um duro exa-me físico. Os que sofrem do mal das alturas são dispensados.

Na realidade, eu me alegrei muito ao saber que ainda tinha um caminho honroso de retirada. Entretanto, Tonia me consolou logo a seguir.

- Mas de alguma forma arranjaremos isto! Eu tenho ouvido falar que lá existem habitações com a pressão atmosférica normal. Logo depois a pressão vai diminuindo gradualmente e os forasteiros logo se acostumam. Falarei com o doutor sobre seu

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caso.Eu fiquei fora de mim e, desesperado, me agarrei ao meu último argumento:- E que vai acontecer com meu trabalho na Terra?Tonia já tinha a resposta preparada:- Nada mais fácil! Ketz é uma instituição com muita autoridade e será suficiente

comunicar ao seu local de trabalho que você foi contratado, para que eles imediata-mente o deixem livre. Se pelo menos sua saúde aguentasse... Como você está? - e pegou minha mão para tomar o pulso.

- Bom, quando um doutor assim toca sua mão, sem querer você responde: “Perfei-tamente”.

- Muito melhor. Pronto, assine os papéis e eu irei ver o doutor.E assim, sem ter tempo de pensar, encontrei-me inscrito para viver no céu...

- Sente fraqueza? Sua pele fica azul? Vertigem? Náuseas? - interrogava-me o dou-tor. - Não vomitou?

- Não, só tive náuseas fortes quando corríamos atrás do automóvel.O doutor ficou pensativo por cerca de um minuto e disse:- Você sofre da enfermidade em ligeiro grau.- Ou seja, posso voar, doutor? - Sim, acho que pode. No foguete, claro, existe tão somente uma décima parte da

pressão atmosférica normal; em compensação, você respirará oxigênio puro, sem a mistura de quatro quintos de nitrogênio, como na atmosfera terrestre. Isto é comple-tamente suficiente para a respiração. E na Estrela Ketz há câmaras internas com pressão normal. A Estrela acha-se somente a uma altura de mil quilômetros.

- Quantos dias durará o voo? - perguntei.O doutor olhou-me de soslaio, com expressão interrogativa.- Vejo que você entende muito pouco de viagens interplanetárias. Pois, meu queri-

do amigo, para chegar à Estrela, o foguete demora uns oito ou dez minutos... Mas como tem que transladar pessoas não acostumadas, o voo se prolonga um pouco mais. Para aproveitar a força centrífuga, o foguete voa em um ângulo de vinte e cin-co graus em relação ao horizonte e na direção da rotação da Terra. Nos primeiros dez segundos a velocidade aumenta até quinhentos metros por segundo e somente durante o tempo de voo através da atmosfera diminui alguma coisa da velocidade, e então, quando a atmosfera começa a rarefazer-se, aumenta novamente.

- Por que a velocidade diminui durante o voo através da atmosfera? Freando?- A frenagem pode ser superada, mas é que durante o voo a grande velocidade, na

atmosfera, a fricção faz com que o envoltório externo esquente extremamente e também aumenta a sobrecarga. E sentir que nosso corpo aumenta seu peso em dez vezes não é, digamos assim, muito agradável.

- E não queimaremos com a fricção do envoltório externo com a atmosfera? - per-guntei receoso.

- Não, embora possa subir um pouco. Pois o envoltório do foguete é formado por três camadas. A interna é de metal duro, com escotilhas de quartzo recobertas de vi-dro ordinário, e com portas que se fecham hermeticamente. A segunda é refratária, de um material que quase não transmite o calor. E a terceira, a externa, apesar de ser relativamente fina, é de um metal extraordinariamente refratário. Se o envoltório externo chegar a esquentar até o vermelho, a intermediária retém o calor e não o deixa penetrar no interior do foguete; além disto, a refrigeração é perfeita. Um gás refrigerante circula sem interrupção entre os envoltórios, filtrando-se através de um

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material poroso e refratário que separa os envoltórios entre si. - Você é um verdadeiro engenheiro, doutor - disse eu.- Que podemos fazer? É mais fácil adaptar o foguete ao organismo humano que

adaptar o organismo a condições anormais. Por isto os técnicos não tem outra opção senão trabalhar em contato conosco. Se você tivesse visto as primeiras experiências. Quantos fracassos! Quantas vítimas!

- E houve vítimas humanas? - Sim, humanas também.Senti um formigueiro nas costas, mas era muito tarde para retroceder.

Quando voltei ao hotel, Tonia me comunicou muito alegre:- Já sei de tudo. Você se portou maravilhosamente. Voamos amanhã ao meio-dia.

Não leve nadas das suas coisas. Cedo, antes do voo, tomaremos banho e passare-mos pelas câmaras de desinfecção. Receberemos roupas esterilizadas. O doutor me comunicou que você está perfeitamente bem de saúde.

Eu ouvia Tonia como em um sonho. Não pude responder-lhe nada pois o medo ha-via me paralisado. Não creio que valha a pena falar sobre como passei minha última noite na Terra, nem sobre tudo que passou pela minha cabeça...

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VI. O “PURGATÓRIO”

Chegou a manhã. A última manhã na Terra. Olhei com tristeza pela janela do meu quarto; o sol brilhava resplandescente. Não tinha apetite mas me superei e fiz o des-jejum.

Em seguida fui “limpar-me” dos micróbios terrestres. Isto durou mais de uma hora. O médico bacteriologista me falou de cifras astronômicas, bilhões de micróbios habi-tam minhas roupas. Aconteceu que eu levava em mim o tifo, o paratifo, a disenteria, a gripe, a coqueluche e quase até o cólera. Em minhas mãos foram descobertos ba-cilos do carbúnculo e da tuberculose. Minhas botas estavam infectadas por uma série de micróbios de enfermidades raras. No meu bolso o tétano. Nas dobras do meu so-bretudo, febre de malta e aftosa. No chapéu, raiva, varíola, erisipela..

Diante de todas essas novidades eu comecei a tremer. Quantos inimigos invisíveis aguardavam o momento de cair sobre mim e derrubar-me! Diga-se o que disser, a Terra tem seus perigos. Isto me conciliou um pouco com a ideia da próxima viagem às estrelas.

Foi necessário suportar uma lavagem de estômago e intestinos, alem de submeter-me a radiações com nove aparelhos desconhecidos. Estes deveriam eliminar os mi-cróbios daninhos que se encontravam no interior do meu corpo. Terminei bastante atormentado.

- Doutor - disse eu. - Todas essas precauções não vão dar resultado algum. Assim que eu sair daqui, os micróbios vão lançar-se novamente sobre mim.

- Isto é verdade, mas você pelo menos ficou livre daqueles micróbios que trouxe da cidade grande. Em um metro cúbico do centro de Leningrado há milhares de bac-térias; nos parques somente centenas, já nas alturas de Isaakiya são somente deze-nas. Aqui em Pamir, unidades. O frio e o sol forte, a ausência de pó e o clima seco são excelentes desinfectantes. Na Estrela Ketz terá que passar novamente pelo “pur-gatório”. Aqui a limpeza foi somente superficial, e lá será a fundo. Desagradável? O que se há de fazer? Em compensação, vocês poderão estar tranquilos porque não vão padecer de nenhuma doença infecciosa. Quando menos, ali o perigo será reduzi-do ao mínimo. Aqui o risco é muito maior.

- Isto é muito consolador - disse eu, enquanto vestia minhas roupas desinfetadas, - a menos que alguém se queime, se asfixie, ou...

- Queimar-se e asfixiar-se também é possível na Terra - interrompeu-me o doutor. Quando saí para a rua, nosso carro já estava esperando. Imediatamente Tonia

saltou da seção feminina de câmaras de desinfecção. Sorriu e sentou-se ao meu lado e o automóvel se pôs em marcha.

- Lavou-se bem?- Sim, o banho era excelente. Tirei de cima de mim trezentos quatrilhões, duzentos

trilhões e cem bilhões de micróbios.Olhei para Tonia. Fresca, bronzeada, as bochechas vermelhas. Ela estava comple-

tamente tranquila, como se estivéssemos nos dirigindo ao parque para dar um pas-

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seio. Sim, fiz muito bem em aceitar voar com ela...Meio-dia. O sol cai quase verticalmente sobre nossas cabeças. O céu é azul, trans-

parente como cristal do rocha. A neve brilha nas montanhas, brilha o azul dos gela-dos rios das geleiras, abaixo murmuram alegres os riachos, formando pequenas cas-catas, mais abaixo os verdes campos, e neles, como bolinhas de neve, veem-se re-banhos de ovelhas que pastam. Apesar do calor do sol, o vento trás o hálito gelado das montanhas. Quão bonita é nossa Terra! E dentro de alguns minutos vou abando-ná-la para voar para o negro abismo do céu. Na verdade, essas coisas são melhores quando lidas nos contos...

- Olhe, nosso foguete! - gritou Tonia alegremente. - Parece com uma bexiga de pescado. Veja, o doutor gorducho já nos espera.

Saímos do automóvel e eu, como de costume, estendi a mão ao doutor, mas ele se esquivou rapidamente.

- Não esqueça que você está desinfetado. Não toque em nada que seja terrestre.Ai! Renunciei à Terra. Menos mal que Tonia também é “celeste”.Tomei-a pela mão e nos dirigimos para o foguete.- Eis aqui nossa obra - disse o doutor, apontando para o foguete. - Notem que ele

não tem rodas. Em lugar de trilhos, deslisa por canais de aço. No corpo do foguete há uns pequenos furos para as bolas, e ele deslisa sobre estas. A corrente para a corrida de lançamento é produzida por uma central elétrica terrestre e o canal de aço serve como condutor da mesma... Você já tem no rosto uma cor normal. Está se acostumando? Muito bem, muito bem. Transmitam meus cumprimentos aos habitan-tes celestes. Peça à doutora Anna Ignatevna Meller que me transmita pelo foguete “Ketz cinco” o informe mensal. É uma mulher muito simpática. Uma doutora com a menor prática do mundo. Mas de toda forma não lhe falta trabalho...

O uivo da sirene afogou as palavras do doutor. Abriu-se a escotilha do foguete e a escada desceu.

- Bem, já está na hora! Passem bem! - exclamou o doutor, escondendo novamente as mãos nas costas. - Escrevam!

A escada tinha somente dez degraus, mas enquanto subia por eles meu coração parecia querer sair do peito. Atrás de mim subiu Tonia e logo após o mecânico. O pi-loto há muito que já estava em seu lugar. Com dificuldade nos instalamos na estreita câmara iluminada por uma lâmpada elétrica. A câmara era parecida com a cabine de um elevador.

A porta fechou-se suavemente. “Como a tampa de um ataúde”, pensei.Os vínculos com a Terra estavam quebrados.

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VII. UMA CURTA VIAGEM

Os postigos das escotilhas da nossa cabina estavam fechados; eu não vi o que se passava no exterior e, com os nervos tensos, esperava a primeira sacudidela. Os ponteiros do relógio se juntaram às doze, mas nós continuávamos completamente imóveis É estranho, pelo visto alguma coisa tinha atrasado nosso foguete.

- Parece que estamos nos movendo! - exclamou Tonia.- Eu não noto nada.- Talvez seja porque o foguete segue lenta e suavemente sobre suas rodas-bolas.Imediatamente senti uma suave pressão que me forçava contra o encosto da pol-

trona.- Claro que estamos nos movendo! - exclamou Tonia. - Está notando? As costas

pressionam mais o encosto.- Sim, já comecei a sentir.Soou o barulho de um explosão que foi aumentando até chegar a um uivo. O fo-

guete começou a tremer. Agora já não havia dúvida alguma: estávamos voando. A cada segundo o calor aumentava. O centro de gravidade foi mudando para as cos-tas. Finalmente pareceu como se eu não estivesse sentado na poltrona, e sim deita-do na cama, levantando contra mim as pernas dobradas nos joelhos. Evidentemente o foguete estava tomando a posição vertical.

- Parecemos escaravelhos com as patas para cima - disse Tonia brincando.- E além disto esmagados por um tijolo - acrescentei eu. - Sinto bastante pressão

no peito.- Sim. E os braços parecem de chumbo. É impossível levantá-los.Quando as explosões pararam, notou-se uma melhoa. Apesar das capas isolantes

e dos refrigeradores, fazia muito calor: estávamos atravessando a atmosfera e o fo-guete esquentava com a fricção.

Outra trégua. Não há explosões. Respirei mais livremente. Subitamente uma curta explosão e senti que caía para o lado direito. Claro, deve ser uma catástrofe. Agora cairemos com um estrondo sobre o Pamir. Convulsivamente aperto o ombro de To-nia.

- Com certeza foi uma colisão com um bólide... - murmuro.O rosto de Tonia está pálido, em seus olhos lê-se o medo, mas ela fala tranquila:- Agarre-se no encosto da cadeira como eu.Mas a posição do foguete se endireita. As explosões param. Dentro, a temperatura

vai baixando. Pelo corpo se espalha uma sensação de leveza. Eu levanto os braços, agito as pernas. Que leveza agradável! Tento levantar-me e, imperceptivelmente, me separo da poltrona e fico flutuando no ar, mas novamente desço rapidamente para meu assento. Tonia agita os braços como um pássaro agita suas asas e canta. Nós rimos. Extraordinária e agradável sensação.

Inesperadamente os postigos das escotilhas se abrem. Diante de nós está o céu. Está completamente coberto de estrelas que não cintilam e um pouco tingido de car-

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mim. Vê-se a Via Láctea semeada de estrelas de cores diferentes. Não tem a cor lei-tosa como se vê da Terra e que lhe deu o nome.

Tonia chama minha atenção apontando-me uma grande estrela perto de alfa da Ursa Maior, uma nova estrela na conhecida constelação.

- É Ketz... A Estrela Ketz - diz Tonia. Entre a inumerável quantidade de estrelas não cintilantes, é a única que se distin-

gue por seus raios pulsantes, agora vermelhos, logo verdes e então alaranjados. Tão logo se ilumina vivamente, apaga-se para iluminar-se de novo...

A estrela cresce diante dos nossos olhos e se aproxima pouco a pouco do lado di-reito da escotilha. Isto quer dizer que a nave aproxima-se dela em linha curva. A es-trela lança longos raios azulados e sai da nossa visão. Agora, no escuro fundo do céu veem-se unicamente estrelas distantes e algumas nebulosas esbranquiçadas. Pare-cem muito perto esses distantes mundos de estrelas...

Fecham-se as vigias. Novamente trabalham os aparelhos de explosão. O foguete faz manobras. Seria interessante ver como atraca no cosmódromo celeste...

Uma pequena pancada. Parada. É possível que seja o final da viagem? Sentimos uma estranha sensação de imponderabilidade.

A porta da cabine do capitão se abre. O capitão, deitado no chão, desce susten-tando-se em pequenas alças. Após o capitão, também de rastros, segue-o um jovem, que já havíamos visto antes.

- Perdoem pelos desagradáveis segundos que lhes ocasionamos durante a viagem. A culpa foi do meu jovem praticante: girou com muita violência o leme de direção e vocês com certeza foram jogados dos seus assentos.

O capitão toca o jovem com o polegar e este, suavemente como uma lâmina, é ex-pulso lateralmente.

- Bem, tudo terminou bem. Vistam os trajes e as máscaras de oxigênio. Filip-chenko - este era o nome do jovem piloto, - ajude-os.

O mecânico de bordo saiu já vestido. Parecia um mergulhador, embora o escafan-dro fosse menor e nos ombros levava uma capa confeccionada com um material bri-lhante, como se fosse alumínio.

- Estas capas - explicou o capitão, - ponham de lado se têm frio. Deixem que os raios do sol os aqueçam. E se tiverem muito calor, então cubram-se com elas. Elas repelem os raios solares.

Com a ajuda do capitão, logo estávamos ataviados com os trajes interplanetários e, emocionados, esperamos o momento de sair do foguete.

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VIII. UMA CRIATURA CELESTIAL

Fomos transferidos para outra câmara da qual começaram a extrair o ar pouco a pouco. Rapidamente formou-se o “vazio interplanetário” e a porta foi aberta.

Cruzei o umbral. Não havia escadas; o foguete descansava de lado. Neste instante eu estava deslumbrado e aturdido. Abaixo dos meus pés brilhava a superfície de um imenso globo de alguns quilômetros de diâmetro.

Mal tive tempo de dar o primeiro passo e já apareceu ao meu lado um “habitante da estrela” com traje interplanetário que, com rara habilidade e destreza, amarrou minha mão com um laço de um cordão de seda. Já começamos mal. Eu me irritei, puxei minha mão e dei um chute irritado..., e no mesmo instante subi algumas deze-nas de metros. O “habitante da estrela” imediatamente me puxou pelo cordão para a superfície do brilhante globo. Então eu compreendi que se ele não tivesse me agar-rado, ao primeiro descuido em meus movimentos eu teria voado para o espaço e não teria sido fácil a recuperação. Mas, por que eu não tinha levado comigo o homem que me sustinha atado no laço? Olhei para o “chão” e vi que na sua brilhante super-fície havia um sem número de braçadeiras, em uma das quais meu acompanhante se segurava.

Vi Tonia ao meu lado e ela também tinha seu satélite, bem atado ao seu laço. Eu queria me aproximar dela, mas meu acompanhante impediu meus passos. Através do vidro do escafandro vi seu jovem rosto sorrindo. Ele aproximou seu escafandro do meu para que eu pudesse ouvi-lo e disse:

- Agarre-se forte à minha mão.Eu obedeci e o meu acompanhante tirou o pé da braçadeira e saltou habilmente.

Das suas costas saiu uma chama, eu senti um puxão e fomos lançados para a frente sobre a superfície da “lua” esférica. Meu acompanhante estava equipado com uma mochila-foguete para voos a curta distância no espaço interplanetário. Disparando com habilidade os “revólveres” da mochila, o de cima ou o de baixo, os dos dois la-dos ou o de trás, ele me levava mais adiante pelo arco da superfície do globo. Ape-sar da destreza do meu acompanhante, dávamos algumas piruetas como palhaços na arena do circo. Tanto de cabeça para baixo como para cima, mas isto quase não causava nenhuma congestão do sangue.

Logo desapareceu no horizonte o foguete no qual chegamos. Percorríamos o espa-ço vazio que separava o cosmódromo da Estrela Ketz. Entretanto, se tiver que falar das minhas sensações, devo dizer que me pareceu que estávamos parados e se aproximava de nós um tubo brilhante que aumentava de volume paulatinamente. Então o tubo girou e vimos sua extremidade fechada por uma brilhante semiesfera Deste lado, o tubo parecia um pequeno globo em comparação com a “lua-cosmódro-mo”. E esse globo dirigia-se diretamente para nós como uma bomba. A sensação não era de todo agradável: um pouco mais e a brilhante bomba nos esmagaria. De re-pente, a bomba descreveu um semicírculo no céu e ficou às nossas costas com uma rapidez inverossímil. Meu acompanhante me virou de costas para a Estrela para frear

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nosso movimento. Alguns curtos disparos, umas pancadinhas de uma mão invisível nas costas e meu companheiro aferrou-se a uma das braçadeiras na superfície do se-micírculo.

Com certeza estavam nos esperando, pois quando “atracamos” na parede do semi-círculo uma porta se abriu. Meu acompanhante me empurrou para o interior, entrou também e a porta se fechou.

De novo uma câmara de ar iluminada por uma lâmpada elétrica e na parede um manômetro, um barômetro e um termômetro, Meu acompanhante dirigiu-se para os aparelhos e começou a observar. Quando a pressão e a temperatura estavam corre-tas, ele começou a tirar a roupa e, com um gesto, mandou-me fazer o mesmo.

- Que tal as cambalhotas? - preguntou rindo. - Eu fiz intencionalmente.- Queria se divertir?- Não. Eu temia que você sofresse pelo calor ou pelo frio por não saber utilizar a

capa reguladora de temperatura. Por isto eu dava voltas, como um pedaço de carne na churrasqueira, para que você “assasse” no sol - disse ele, desfazendo-se comple-tamente do traje interplanetário. - Bem, permita que eu me apresente. Kramer, bió-logo residente da Estrela Ketz. E você? Veio trabalhar conosco?

- Sim, sou biólogo também. Artiomov, Leonid Vasilevich.- Excelente! Trabalharemos juntos.Eu comecei a tirar a roupa e logo senti que a lei física - a força da ação é igual à

força da reação - aqui se descobre em seu sentido puro, sem ser obscurecida pela atração terrestre. Aqui todas as coisas e até as próprias pessoas se transformam em “dispositivos reativos”. Joguei a roupa, falando em linguagem terrestre, “para baixo”, e subi, empurrado por ela. Ou seja, joguei a roupa e ela me lançou.

- Agora devemos nos limpar. Temos que passar pela câmara de desinfecção - dis-se Kramer.

- E porque você também? - perguntei eu, estranhando.- Porque eu toquei em você.“Diabos! Como se eu viesse de um lugar afetado pela peste”, pensei.E eis que tive que passar novamente pelo “purgatório”. Novamente uma câmara

com aparelhos zumbidores que atravessam meu corpo com raio invisíveis. Roupa nova, limpa e esterilizada, um novo exame médico, o último, no pequeno e branco laboratório do médico “estelar”;

Nesse ambulatório celeste não havia nem mesas nem cadeiras. Somente uns ar-mários com instrumentos, colados na parede com pinos fixadores.

Fomos recebidos pela pequena e vivaz doutora Anna Ignatevna Meller. Com um leve vestido prateado, apesar dos seus quarenta anos, ela parecia uma adolescente. Eu transmiti-lhe as saudações e o pedido do “doutor terrestre” da cidade de Ketz.

Depois da desinfecção ela me comunicou que ainda haviam descoberto alguns poucos micróbios em minhas vestes.

- Vou escrever sem falta à seção sanitária da cidade de Ketz, fazendo constar que ali eles dão pouca atenção às unhas. Em suas unhas havia uma colônia inteira de bactérias. É necessário cortar e limpar bem as unhas antes de enviar alguém à Estre-la. No geral você está sadio e agora está relativamente limpo. Eles o levarão ao seu quarto e logo lhe darão de comer.

- Levarão? Darão? - perguntei assombrado - Mas eu não sou um doente que tem que ficar na cama. Nem um animal! Creio que poderei comer sozinho.

- Não seja jactancioso! No céu você ainda é um recém nascido.E me deu uma palmadinha nas costas. Eu rolei precipitadamente para a outra ex-

tremidade da sala e, tomando impulso e apoiando-me na parede, consegui chegar ao

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centro e fiquei “suspenso”, agitando as pernas impotente.- Então está convencido? - exclamou Meller, rindo. - E isso porque aqui ainda exis-

te gravidade. Você é um bebê. Vamos ver, caminhe!Que seja! Somente depois de um minuto eu consegui que meus pés tocassem no

solo. Tentei dar um passo e novamente subi para o ar, batendo a cabeça no teto quase sem sentir a pancada e agitava meus braços desamparado...

A porta abriu-se e por ela entrou meu amigo Kramer, o biólogo. Ao me ver assim ele soltou uma gargalhada.

- Bem, reboque esta criatura e leve-o ao quarto seis - disse a doutora a Kramer. - Ele ainda suporta mal o ar rarefeito. Dê-lhe metade da ração de ar.

- Não pode dar-me, para começar, a pressão normal? - pedi eu.- A metade é suficiente. - Você tem que se acostumar.- Me dê a mão - disse Kramer.Enganchando seus pés nas correias do chão, aproximou-se de mim com bastante

rapidez, pegou-me pela cintura e saiu para o amplo corredor. Girando-me como se eu fosse uma bola, me jogou ao longo do corredor. Eu lancei um grito e voei. A força com que ele me atirou foi tão bem calculada que, voando uns dez metros em direção obliqua, cheguei até a parede.

- Agarre-se na correia! - gritou Kramer.Havia correias por todos os lados: nas paredes, no solo, no teto. Eu me agarrei

com todas minhas forças esperando um choque quando parasse, mas no mesmo ins-tante notei com assombro que minha mão não sentia tensão alguma. Kramer já es-tava ao meu lado e abriu a porta pegando-me pelas axilas e entrou em uma sala de forma cilíndrica. Aqui não havia camas, nem cadeiras, nem mesas. Somente correias por todas as partes e um ampla janela coberta por um material esverdeado e trans-parente. E por isto a luz da sala também tinha um tom esverdeado.

- Bem, sente e sinta-se como na sua casa - brincou Kramer. - Agora eu lhe darei mais oxigênio.

- Diga-me, Kramer, por que o cosmódromo é separado da Estrela?- Isto é uma inovação que fizemos há pouco tempo. Antes os foguetes atracavam

diretamente na Estrela Ketz. Mas nem todos os pilotos têm a mesma destreza. É difí-cil atracar sem dar nenhuma pancada. E uma vez aconteceu que o capitão da nave “Ketz-sete” bateu com força na Estrela e a grande estufa sofreu danos: os vidros se quebraram e parte das plantas morreu. Os trabalhos de reparação ainda continuam. Depois deste acidente, decidiram construir o cosmódromo separado da Estrela. Inici-almente era um grandioso disco plano, mas na prática se viu que para a atracação é mais cômoda uma semiesfera. Quando terminar a reparação da estufa, obrigaremos a Estrela Ketz a girar junto com a estufa sobre seu eixo transversal. Disto resultará uma força centrífuga e teremos gravidade.

- E o que são aqueles raios de diferentes cores que vimos durante o voo? - per-guntei.

- São sinais luminosos. Não é fácil achar uma estrela tão pequena como a nossa na imensidão do espaço e por isto organizamos essas “fogos de bengala”. Como se sente? Está respirando melhor? Não vou dar mais, pois você poderia se embriagar com o oxigênio puro. Está com calor?

- Ao contrário, sinto um pouco de frio - respondi.Kramer chegou de um salto na janela e correu a cortina. Os deslumbrantes raios

do sol encheram a sala e a temperatura começou a subir rapidamente. Kramer saltou para a parede oposta e abriu o postigo.

- Admire esta formosura.

Page 26: Alexandr Romanovich Belyaev - A Estrela Ketz

Voltei-me para a janela e fiquei extasiado. A Terra ocupava metade do horizonte. Eu a olhava da altura de mil quilômetros. Parecia, não um globo convexo como eu esperava, e sim côncavo. Suas bordas, muito desiguais, com os dentes salientes dos picos das montanhas, pareciam cobertos por um véu de fumaça. Os contornos eram confusos, erodidos. Mais além dos limites da Terra, avançavam manchas cinzentas oblongas, as nuvens, escurecidas pela grossa capa atmosférica. No centro havia manchas também, mas eram claras. Consegui reconhecer o Oceano Glacial, o con-torno das costas da Sibéria e o norte da Europa. O Polo Norte se destacava como uma mancha deslumbrante de cor clara. No Mar de Barentz o sol se refletia com pe-quenos raios.

Enquanto eu estava observando a Terra, esta tomou o aspecto de uma enorme Lua em quarto minguante Eu não conseguia tirar a vista dessa gigantesca meia-lua vivamente iluminada pela luz do sol.

- Nossa Estrela Ketz - comentou Kramer, - voa na direção leste e faz uma volta completa ao redor da Terra em cem minutos. Nosso dia solar dura somente sessenta e sete minutos e a noite dura trinta e três. Dentro de quarenta a cinquenta minutos entraremos na sombra da Terra.

O lado escuro da Terra, fracamente iluminado pela luz refletida pela Lua, era qua-se invisível. O limite entre zona escura e a clara destacava-se vivamente com enor-mes e quase negros dentes: as sombras das montanhas. Prontamente vi a Lua, a verdadeira Lua. Parecia estar muito perto, mas era muito pequena em comparação ao seu tamanho visto da Terra.

Finalmente o sol ocultou-se por completo atrás da Terra. Agora a Terra se apre-sentou com a aparência de um disco escuro rodeado por um círculo bastante lumino-so formado pela luz da aurora. Eram os raios invisíveis do Sol que iluminavam a at-mosfera terrestre. Um reflexo rosado penetrava em nossa sala.

- Como você pode ver, aqui não existe escuridão - disse Kramer. - A aurora da Terra substitui completamente a Lua quanto esta se põe atras da Terra.

- Me parece que faz mais frio - disse eu.- Sim, é o frescor da noite - respondeu Kramer. - Mas esta diminuição da tempera-

tura é insignificante. A capa intermediaria do envoltório da nossa estação resguarda-nos de maneira segura contra a radiação do calor; além disto, a Terra irradia grande quantidade de calor e a noite na Estrela Ketz é muito curta. Assim não há perigo de ficarmos gelados. Para nós, os biólogos, assim está muito bem. Mas nossos físicos não estão contentes: conseguem com dificuldade alcançar, em suas experiências, temperaturas próximas ao zero absoluto. A Terra, como um grande forno, irradia ca-lor mesmo à distância de mil quilômetros. As plantas da nossa estufa suportam sem dano algum a breve fresca noturna. Não é necessário ligar as estufas elétricas. Aqui desfrutamos de um magnífico clima de montanha. Muito breve, em suas pálidas bo-chechas aparecerá a cor bronzeada dos alpinistas. Aqui eu engordei e meu apetite aumentou.

- Verdade seja dita, eu também estou com fome - falei.- Pois vamos voando para o restaurante - propôs Kramer, estendendo sua mão

bronzeada.Me puxou para o corredor e, saltando e agarrando-se nas correias, nos dirigiu para

o restaurante.Era uma grande sala de forma cilíndrica na qual penetrava a luz dos dourados rai-

os do “amanhecer”. Uma grande janela de grossos vidros rodeada por uma moldura com trepadeiras de um verde esplendoroso. Eu nunca havia visto um verde assim na Terra.

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- Aqui está ele!Volto a cabeça para a voz conhecida e vejo Meller. Ele está agarrado na parede

como uma andorinha e ao seu lado está Tonia com um leve vestido de cor lilás. Os cabelos de Tonia estão desgrenhados depois da desinfecção. Eu lhe sorrio com ale-gria.

- Por favor, por favor, venha aqui - me chama Meller. - Bem, então quer que eu lhe convide?

Diante de mim há uma prateleira com potes, latas, frascos e umas espécies de balões.

- Vamos dar-lhe de comer em uma mamadeira, com mingaus e alimentos líquidos. Você não vai poder tomar alimentos sólidos, pois lhe saltariam das mãos e você não poderia pegá-los. Nossos alimentos são quase todos vegetarianos, das nossas própri-as plantações. Aqui temos creme de maçã - e apontou para o pote fechado, - aqui de morango com arroz, damasco, pêssego, banana, nabo à “Ketz”, que na Terra não teria comido... Quer nabos?

E Meller tirou habilmente da prateleira um cilindro que tinha um tubo no lado. Na parede posterior do cilindro havia outro tubo mais comprido. Esse tubo foi conectado a uma pequena bomba e ele começou a bombear. Da extremidade do outro tubo co-meçou a sair uma espuma amarela e Meller estendeu o cilindro para Tonia.

- Tome e chupe. Se ficar difícil de chupar, bombeie um pouco de ar. Os bocais são esterilizados. Porque está fazendo careta? Nosso vasilhame não é tão bonito como os cálices gregos, mas é indispensável em nossas condições.

Tonia, indecisa, pôs o tubo na boca- Que tal? - perguntou Meller.- Muito saboroso.Kramer pegou para mim outra “mamadeira”. O creme semi-líquido de cor amarela,

elaborado com nabos de Ketz, era de fato delicioso. O de banana também era bom. Eu não fazia nada mais que bombear. A estes “suculentos” pratos seguiu-se uma ge-leia de damasco e morango.

Eu comia com apetite, mas Tonia estava pensativa e quase não comia nada.Já no restaurante eu me aproximei, tomei sua mão e perguntei:- Com que está preocupada, Tonia?- Acabo de ver o diretor da Estrela Ketz e lhe perguntei sobre Evgenev. Ele já não

está na Estrela. Partiu para uma longa viagem interplanetária.- Ou seja, vamos seguir atrás dele? - perguntei alarmado.- Claro que não! - respondeu ela. - Nós temos que trabalhar. Mas o diretor disse

que talvez você faça uma viagem interplanetária.- Para onde? - perguntei espantado.- Ainda não se sabe. Para a Lua, para Marte... talvez para mais longe.- Mas, não se pode falar com Evgenev pelo rádio?- Podemos sim. Por enquanto, o contato por radio a partir de Ketz é impossível

unicamente com a Terra, pois é estorvado pela camada de Jevisayd, que repele as ondas de radio. Precisamente a mim tocará trabalhar neste problema, para tentar ul-trapassar esta capa com ondas curtas e poder estabelecer um contato por rádio com a Terra. Atualmente isto é feito mediante um telégrafo luminoso. Um projetor com um milhão de velas faz sinais perfeitamente visíveis na Terra, sempre que não esteja coberta por nuvens. Mas quase sempre no Pamir, na cidade de Ketz, o céu está livre de nuvens. Com os foguetes que voam pelos espaços interplanetários, a Estrela Ketz mantém um contato continuo por radio... Agora mesmo eu ia à estação de rádio para tentar falar com o foguete que faz pesquisas no espaço entre a Estrela Ketz e a

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Lua... Lembrei agora que o diretor rogou que você fosse vê-lo - olhando para seu re-lógio, Tonia acrescentou: - Embora já seja tarde para vê-lo. Voemos juntos para a estação de radio. É na sala número nove.

O imenso corredor, vivamente iluminado por lâmpadas elétricas, perdia-se ao lon-ge como um túnel subterrâneo. As vozes soavam mais baixo que habitualmente devi-do ao ar rarefeito e não ouvi que me chamavam.

Era Kramer, que voava em nossa direção agitando umas pequenas asas. Pendente nas suas costas, objetos parecidos a leques dobrados.

- Aqui estão as asas - disse, - para que fiquem completamente parecidos aos habi-tantes do céu - abertas, elas recordavam um pouco as asas do morcego. - São ma-nuseadas com as mãos, podem ser dobradas e, jogando-as para trás, podem usar as mãos livremente

Kramer pôs as asas em nós com rapidez e habilidade, ensinou-nos como utilizá-las e se foi, voando. Tonia e eu começamos os voos. Mais de uma vez nossas cabeças se chocaram, batíamos nas paredes dando voltas inesperadas. Mas essas batidas não doíam.

- Na verdade nós parecemos morcegos - disse Tonia rindo. - Vamos ver quem che-ga primeiro à estação de rádio?

Saímos voando.- E por que o corredor está tão deserto? - perguntei.- Estão todos trabalhando - disse Tonia. - Dizem que aqui à tarde está cheio de

gente. Voam como um enxame, como escaravelhos de Maio no tempo bom!Chegamos à sala número nove, Tonia comprimiu um botão e a porta abriu-se si-

lenciosamente. A primeira coisa que me surpreendeu foi o operador de rádio. Com os auriculares nas orelhas, ele estava no teto anotando um radiotelefonema.

- Pronto - disse ele, guardando o bloco de notas em uma bolsa presa ao seu cintu-rão. Pelo visto, esta bolsa substituía a gaveta da mesa de escritório. - Quer falar com Evgenev? Vamos tentar.

- É difícil? - perguntou Tonia.- Não, não é difícil, mas hoje o transmissor de ondas longas não está funcionando

e com ondas curtas é um pouco difícil falar com um foguete que sobe em espiral so-bre a Terra. Vou calcular a posição do foguete e tentarei...

Mas neste momento ele tropeçou inesperadamente com o pé na parede e voou para um lado. Os cabos dos auriculares o detiveram e em seguida o operador de rá-dio voltou à mesma posição. Tirando o bloco de notas, olhou para o cronômetro e concentrou-se em seus cálculos. Logo começou a sintonizar.

- Alô... Alô! Fala a Estrela Ketz! Sim, sim. Chamem Evgenev ao aparelho. Não? Di-gam-lhe que chame a Estrela Ketz quando voltar. Quem deseja lhe falar é uma nova empregada da Estrela. Seu nome é...

- Antonina Gerasimova - apressou-se a dizer Tonia.- Camarada Gerasimova. Ouviu? Ah, sim. Muito? Boa pesca? Eu os felicito.Desligou o aparelho e disse:- Evgenev não está no foguete. Ele voou para pescar no espaço interplanetário e

voltará dentro de umas três horas. Está ocupado na pesca de pequenos asteroides. É um excelente material de construção. Ferro, alumínio, granito. Eu a chamarei quando Evgenev estiver no radiotelefone.

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IX. NA BIBLIOTECA Eu estava tomando chá quando Kramer chegou.- Está livre esta tarde? - me perguntou, e esclareceu: - Não se surpreenda, por fa-

vor. Na Estrela a jornada é de cem minutos, mas por costume continuamos calculan-do o dia de trabalho pelo tempo da Terra. Fechando as janelas, fazemos a “noite” e dormimos cerca de seis a sete jornadas “estelares”. Agora, pela hora de Moucou, são oito da tarde. Quer conhecer nossa biblioteca?

- Gostaria muito - respondi.Como em todos os locais na Estrela Ketz, a biblioteca também tinha a forma cilín-

drica e nela não havia janelas. Todas as paredes estavam totalmente ocupadas por prateleiras. No eixo longitudinal do cilindro, a partir da porta até a parede oposta, havia quatro cabos delgados. Segurando-se neles, os visitantes se moviam por esta espécie de corredor. O espaço entre os “corredores” e as paredes laterais estava ocupado por uma fileira de camas. No local se desfrutava de um ar fresco, ozonizado e com cheiro de pinho. Algumas lâmpadas fluorescentes situadas entre as prateleiras iluminavam o local com luz suave e agradável. Silêncio. Em algumas camas havia pessoas deitadas e com caixas negras postas na cabeça. De vez em quando elas gi-ravam umas manivelas que saíam das caixas.

Que biblioteca estranha! Poder-se-ia pensar que aqui não estão lendo e sim fazen-do alguma cura.

Segurando o cabo com a mão, sigo atrás de Kramer até o final da biblioteca. Ali, sobre o fundo escuro das gavetas que cobrem as paredes, destaca-se uma jovem com um vestido de seda vermelho vivo.

- Nossa bibliotecária Elsa Nilson - disse Kramer, e por brincadeira me lança para a garota. Ela, rindo, me pega em pleno voo e assim travamos conhecimento.

- O que você vai ler? - pergunta ela. - Temos um milhão de livros em quase todos os idiomas.

Um milhão de exemplares! Onde eles os colocam? Mas depois eu adivinho.- Uma filmoteca?- Sim, livros em filmes - responde Nilson. - São lidos com a ajuda de um projetor.- Fácil e compacto - acrescenta Kramer. - Um tomo inteiro, páginas e páginas gra-

vados na fita. Ocupa o mesmo espaço de um carretel de linha.- E os jornais? - pergunto eu.- São substituídos pelo rádio e pela televisão - responde Nilson.- Os livros em filmes não não são novidade - disse Kramer. - Temos coisas mais in-

teressantes. Que programa vamos organizar esta tarde para o camarada Artiomov? Vamos ver: primeiro uma crônica mundial. Nós lhe demonstraremos que na Estrela Ketz não estamos atrasados quanto a notícias frescas em todo o mundo. Após isto, “A Coluna Solar”...

- É uma nova novela? - perguntei.- Sim, alguma coisa do estilo - respondeu Kramer. - Bem, ou então “A Central Elé-

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trica Atmosférica”.Assentindo com a cabeça, Nilson tirou da gaveta alguns carretéis metálicos.Kramer me fez deitar em uma das camas e então, colocando esses carreteis no

aparelho com manivela, pôs este na minha cabeça.- Bem, agora veja e escute - disse ele.- Não consigo ver nem ouvir nada - exclamei.- Use a manivela da direita - disse Kramer.Girei a manivela, alguma coisa estalou e ouviu-se um zumbido. Uma forte luz me

cegou e instantaneamente fechei os olhos, ao mesmo tempo em que ouvia uma voz dizendo:

“A selva tropical africana é desmatada para terrenos de cultivo”,Abri os olhos e vi, brilhando sob os cegantes raios do sol africano, a superfície es-

verdeada do oceano, e nele estendia-se uma enorme frota: couraçados, cruzadores e destroiers de todos os tipos e sistemas. Havia ali velhos barcos de guerra lançando nuvens de fumo negro por suas chaminés, outros, mais novos, com motores a com-bustão interna e alguns, modernos, como motores movidos a eletricidade.

Esse espetáculo foi tão inesperado que sem querer eu estremeci. Será a guerra novamente? Mas como pode ser uma guerra? Não estarei vendo um velho filme dos últimos anos?

“A frota de guerra, arma de destruição, foi convertida em transportes” - continua-va a voz.

Ah, eis do que se trata! Cego pela viva luz, não me dei conta de que as torres de canhões haviam sido eliminadas e que em seu lugar haviam colocado gruas. Cente-nas de lanchas motorizadas, rebocadores e barcaças que vão e veem entre os barcos e o novo porto. Ferve o trabalho de descarga.

Giro novamente a manivela e... isto também me parece uma guerra.Um imenso acampamento, tendas de campanha brancas e casas de madeira pinta-

das também de branco. Nas casas e barracas de campanha veem-se pessoas vesti-das com roupas leves de cores claras. Há uma mescla de negros e europeus. Atrás do acampamento, uma cortina de fumaça chega quase ao zênite. A fumaça se eleva em redemoinhos com se houvesse um enorme incêndio...

Um novo “quadro”: um compacto e intransitável bosque tropical arde em chamas. Entre as cinzas há enormes furgões, caixas formadas por carcaças de aço cobertas de rede de arame. Perto delas há gente que arranca os troncos com pequenas má-quinas.

“Os trópicos são o lugar mais rico em sol da Terra, mas são inacessíveis para o cultivo agrícola. Os intrincados bosques e pântanos, os animais selvagens, répteis venenosos, insetos e febres mortais invadiam esses lugares. Vejam a mudança que sofrem agora...”

Uma pradaria. Os tratores trabalham a terra. Alegres tratoristas negros sentados em suas máquinas sorriem mostrando seus resplandescentes dentes brancos. No ho-rizonte divisam-se edifícios de vários andares e a espessa verdura dos seus jardins.

“Os trópicos alimentarão a milhões de pessoas... a ideia de Tziolkovsky foi posta em prática...”

Como? Também Tziolkovsky? - me assombro. - Quantas ideias uteis à humanidade futura ele teve tempo de preparar!

E, como resposta a este pensamento, vi outros quadros da grande transformação da Terra segundo as ideias de Tziolkovsky. A transformação dos desertos em oásis, utilizando a energia do sol; a adaptação de moradias e estufas nas até hoje inacessí-veis montanhas; os motores solares que trabalham com a força das marés; novas

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espécies de plantas que utilizam um alto percentual de energia solar...Mas isto já entra em minha especialidade. Desses progressos eu já tenho conheci-

mento. A cine-crônica mundial terminou. Depois e um minuto de descanso voltei a ouvir a

mesma voz. E tudo que ela relatava passava diante dos meus olhos atônitos, como se fosse real.

“Eu fiz parte dos testes de um aero-trenó de novo tipo - dizia a voz. - As condições

em que foram efetuadas eram bastante difíceis; tínhamos que percorrer centenas de quilômetros de tundra mais além do círculo Polar.

Eu era o chefe da expedição e dirigia a coluna. Íamos diretamente para o norte.Era noite e a aurora boreal não brilhava no céu. Somente os faróis iluminavam o

caminho. A temperatura alcançava os cinquenta graus abaixo de zero e ao nosso re-dor só se via a planície de neve.

Viajamos dois dias guiando-nos pela bússola.Logo me pareceu que o céu no horizonte havia se iluminado.- Começou a aurora boreal. Nossa viagem ficará mais alegre - disse o que levava

nosso trenó.Dentro de meia hora o horizonte se iluminou mais vivamente.- Que estranha aurora boreal - comentei, dirigindo-me ao meu companheiro. -

Noto a ausência absoluta de disseminação da luz. E das cores. Geralmente as auro-ras boreais começam com uma cor esverdeada e depois passa para o rosa de diver-sos matizes. E esta luz parecia a do amanhecer, e além disto, completamente imó-vel. Ela só vai aumentando gradualmente e passa do rosado ao branco à medida que avançamos.

- Poderia ser luz zodiacal? - perguntou meu acompanhante.- Não é possível; nem pelo lugar nem pelo tempo. E também não é parecida; olhe

a faixa de luz que vai quase desde o zênite até o horizonte, alargando-se gradual-mente como um cone.

Estávamos tão impressionados observando o maravilhoso fenômeno celeste que não vimos que tínhamos avançado até um profundo vale com uma descida abrupta e por pouco não quebramos os patins do trenó.

Após alguns minutos, ao sairmos do vale, notamos um aumento da temperatura. O termômetro marcava trinta e oito graus abaixo de zero, quando há apenas uma hora atrás marcava cinquenta.

- Será que esta luz está irradiando calor? - disse eu.- Se assim é, isto é completamente inexplicável - respondeu meu companheiro. -

Uma coluna de luz esquentando a tundra!A coluna estava no caminho da nossa rota e hão havia outro remédio senão mar-

char para aquele cone luminoso e averiguar, se fosse possível, o que estava aconte-cendo.

Pusemo-nos em marcha e logo a temperatura subiu mais ainda e o tom da luz se fez mais vivo. Logo apagamos os faróis pois não havia necessidade deles. Então ob-servamos que aumentava a corrente de ar para o cone de luz e que na parte superi-or deste distinguia-se um brilhante foco luminoso em forma de foice, como o cres-cente de Vênus observado através de binóculos.

À medida que íamos nos acercando, o enigma não se esclarecia, pelo contrário, tornava-se cada vez mais complicado.

Esta luz... é surpreendente, mas me lembra a luz do sol - disse meu camarada, perplexo.

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Logo ficou tão claro como em pleno dia. Mas à direita, à esquerda e atrás de nós estava escuro, e mais ao longe era noite fechada. O vento, arrastando-se ao nível do chão, aumentava levantando pó de neve. Continuamos no caminho em meio a um simum de neve.

Entretanto a temperatura aumentava precipitadamente.- Menos trinta... vinte e cinco... dezessete... nove... - comunicava meu acompa-

nhante. - zero... dois graus acima de zero... E isto depois de cinquenta abaixo de zero! Agora compreendo o porque do vento. Pelo visto, esta “coluna solar” esquenta o solo e disto resulta uma grande mudança de temperatura. O ar frio aflui por baixo para a zona temperada e acima, com certeza, há um corrente inversa de ar quente.

Estávamos nos aproximando no limite em onde caíam diretamente os raios lumi-nosos. O pó da neve, atraído pelo vento, se derretia; o chuvisco se transformou em chuva que caía, não do céu, e sim vindo por trás A neve se derretia no solo e se transformava em água. Nos declives dos montículos e pequenos vales já corria água e não havia caminho para o trenó. O escuro e gelado inverno polar convertia-se, como por encanto, em primavera.

Era perigoso continuar por nosso caminho pois o trenó poderia se quebrar. Nós paramos e toda a coluna parou. Dos dois aero-trenós começaram a sair os conduto-res, os engenheiros, os correspondentes, os operadores de câmera e todos os com-ponentes do teste. Todos eles estavam tão interessados quanto eu pelo extraordiná-rio fenômeno.

Mandei colocar alguns trenós de lado para nos resguardar do vento e começamos a deliberar. Não demoramos muito a chegarmos a um acordo. Todos pensávamos que ir mais longe seria arriscado e decidiu-se que alguém me acompanhasse a pé na expedição, enquanto os outros ficavam com os trenós. Nós exploraríamos até onde fosse necessário e veríamos se seria possível averiguar a causa daquilo. Então volta-ríamos para continuar nossa viagem juntos, contornando a “coluna solar”.

No local da nossa parada o termômetro marcava oito graus positivos. Por isto, ti-rando nossos abrigos de pele, calçamos botas de couro, pegamos umas poucas pro-visões e instrumentos e partimos.

O caminho não era fácil. No começo, nossos pés afundavam-se na neve macia e logo estávamos atolados no barro. Foi preciso fazer arrodeios entre riachos, pânta-nos e pequenos lagos. Por sorte, a faixa de barro não era muito larga. Ao longe, po-díamos ver a “margem” seca, coberta de ervas verdes e flores.

- No final de dezembro e além do círculo polar há luz, calor e plantas verdes! Me belisque que eu quero acordar! - exclamou meu amigo.

- Mas isto não é a primavera, e sim um encantador oásis primaveril entre o oceano do inverno polar - comentou outro acompanhante. - Se isto fosse a verdadeira pri-mavera, em todos os pântanos e lagos encontraríamos uma infinidade de aves.

Nosso operador de câmera preparou seu aparelho, focou e começou a rodar. Mas neste preciso momento uma corrente de vento o jogou no barro junto com sua má-quina.

O furação não cessava e o vento impedia nossa marcha. Ali já não havia uma dire-ção constante do vento, soprava em rajadas agora, então pelas costas, ou girava em torvelinho, quase levantando-nos no ar. Pelo visto, havíamos chegado ao limite onde a afluência do ar frio se encontrava com o quente e que, ao chocarem-se, formavam torvelinhos de correntes ascendentes. Eram os limites do ciclone causado pela des-conhecida “coluna de sol”.

Já não conseguíamos seguir a pé, trepávamos, nos arrastávamos pelo barro, segu-rando-nos uns aos outros.

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Completamente esgotados, chegamos à zona de solo seco onde reinava uma com-pleta calma. Ali só notávamos as suaves correntes ascendentes da terra esquentada, como no campo nos dias quentes de verão ao meio-dia. A temperatura se elevou até os vinte graus de calor.

Em alguns minutos ficamos completamente secos e começamos a tirar a roupa. A primavera se transformava em verão.

Não muito distante se elevava um montículo coberto de erva fresca, flores e bétu-las polares. Voavam mosquitos, moscas e mariposas, ressuscitados pelos raios vivifi-cantes.

Subimos no montículo e ficamos petrificados. O que vimos parecia uma miragem.Ante nossos olhos admirados o trigo brotava. Em campos separados cresciam gi-

rassóis e o milho amadurecia. Atrás dos campos havia hortas com repolhos, pepinos, tomates, e canteiros de morangos. Mais além, uma zona com arbustos, árvores frutí-feras: peras, maçãs, cerejas, ameixas; em seguida tangerinas, pêssegos e damascos e finalmente, na parte central do oásis onde a temperatura seria muito alta, cresci-am laranjas, limões e cacau, intercalados por pés de chá e de café.

Em poucas palavras, haviam ali reunidos as principais culturas da zona média, da subtropical e até da tropical.

Entre os campos, hortas e pomares, havia caminhos que iam até o centro em cír-culos concêntricos. Ali elevava-se um edifício de cinco andares com balcões e uma antena de rádio em seu telhado, todo ele vivamente iluminado pelos raios verticais do “sol”. Nos balcões e nos parapeitos da janelas abertas da casa viam-se flores e plantas verdes. Nas paredes, trepadeiras.

Nos campos, nas hortas e nos pomares trabalhavam homens com roupas de verão e chapéus de abas largas...

Ficamos parados por alguns minutos, cheios de admiração e finalmente meu ca-marada exclamou:

- Puxa! Isto ultrapassa os limites do assombroso! É um conto das “Mil e Uma Noi-tes”!

Por um caminho radial nos dirigimos para o centro do oásis e de vez em quando eu olhava para o céu, de onde saíam os misteriosos raios. O deslumbrante quarto crescente ia-se transformando em um disco como o sol.

Veio ao nosso encontro, pelo caminho coberto de areia entre as laranjeiras carre-gadas de frutas, um homem de tez bronzeada, de camisa branca e calças também brancas, que iam até os tornozelos e de sandálias. Seu chapéu de abas largas deixa-va seu rosto na sombra. De longe ele nos cumprimentou levantando o braço. Ao chegar junto de nós, disse:

- Bom dia, camaradas. Já me haviam comunicado da sua chegada. De qualquer forma vocês são audazes, já que conseguiram se arranjar para passar pela nossa zona de ciclones.

- Sim, vocês têm bons guardiões - exclamou sorrindo um dos meus acompanhan-tes.

- Não temos porque nos proteger - respondeu o homem de roupa branca. - Os torvelinhos nos limites são, por assim dizer, um fenômeno suplementar. Mas se qui-séssemos poderíamos criar uma barreira de redemoinhos através da qual nenhum ser vivo se atreveria a passar. Um rato ou um elefante seriam elevados a dezenas de quilômetros e lançados para trás no deserto de neve com a mesma facilidade. Mas vocês se expuseram a um grande perigo. Na parte oriental existe uma passagem co-berta pela qual se pode chegar até aqui sem nenhum perigo, através da “zona bor-rascosa”... Bem, vamos nos apresentar: Kruks, Villiam Kruks, diretor do oásis experi-

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mental. Vocês pelo visto não sabiam que aqui existia um oásis, certo? Isso se pode adivinhar por suas fisionomias assombradas. O oásis não é um segredo. Falou-se disto nos jornais e pelo rádio. Mas não me surpreende sua falta de informação. Des-de que a humanidade tomou a sério a tarefa de transformação do mundo, em todas as partes do universo são levados a cabo tantos trabalhos que é difícil ficar ao cor-rente de todos. Já ouviram falar da Estrela Ketz?

- Sim - respondi.- Pois bem, nosso “sol artificial” - e Kruks apontou para o céu, - deve sua origem à

Estrela Ketz. A estrela Ketz é a primeira base celeste. Tomando isto por base, não nos foi difícil criar nosso “sol”. Com certeza vocês já adivinharam do que se trata. É um espelho côncavo composto por placas metálicas polidas. Está situado a uma altu-ra tal que os raios do Sol verdadeiro, encontrando-se além do horizonte terrestre, caem no espelho e refletem-se verticalmente na Terra. Prestem atenção nas som-bras. São verticais como no equador ao meio-dia. Um pau cravado verticalmente não dá sombra alguma. A temperatura no centro do oásis é um pouco mais baixa, devido à penetração do ar frio. Apesar de que essa influência é insignificante, já que o ar frio é instantaneamente elevado pela corrente ascendente. De acordo com estas zo-nas de temperatura, distribuímos nossas culturas. No centro, como veem, crescem inclusive plantas tão amantes do calor como o cacau.

- Mas se o seu sol artificial se apagasse? - perguntei.- Se ele se apagasse, as culturas do nosso oásis sucumbiriam em alguns minutos.

Mas ele não pode se apagar enquanto o sol verdadeiro esteja brilhando. Girando as placas do espelho segundo o ângulo necessário, pode-se regular a temperatura, que aqui é sempre a mesma. E temos várias colheitas por ano. Este “sol” é tão somente o primeiro entre dezenas de outros que vão ser acesos brevemente nas altas latitu-des do sul e do norte do nosso planeta. Vamos cobrir os países polares com uma rede de tais oásis. Progressivamente, o ar irá se esquentando nas zonas que se en-contrem entre os oásis. Criaremos um potente “sol” no próprio Polo Norte e derrete-remos os gelos eternos. Esquentando o ar e originando novas correntes, protegere-mos contra o frio todo o hemisfério norte. Converteremos a gelada Groenlândia em um jardim florido o ano todo. E finalmente chegaremos até o Polo Sul, com suas inesgotáveis riquezas naturais. Livraremos do gelo a todo um continente que alber-gará e alimentará a milhões de seres. Transformaremos nossa Terra no melhor dos planetas...”

A voz se calou e a escuridão se fez. Somente se ouvia o zumbido do aparelho. En-tão acendeu-se a luz outra vez e vi um novo quadro extraordinário.

No espaço estratosférico, sob um céu cor de ardósia, voam estranhos projéteis pa-recidos com ouriços. Abaixo, leves nuvens e acima os cúmulos... Através do manta de nuvens vê-se a superfície da Terra: as manchas verdes dos bosques, os quadra-dos dos campos semeados, os ziguezagueantes fios dos rios, o brilho dos lagos, as delgadas e retas linhas das ferrovias. Os “ouriços” se movem pelo céu em diferentes direções, deixando atrás de si caudas de fumo. Algumas vezes os “ouriços” diminuem a velocidade do seu voo e param. Então, deles escapa um clarão ofuscante que cai na Terra quase verticalmente.

...Uma grande cabine. Lâmpadas redondas com grossos cristais de quartzo. Com-plicados aparelhos desconhecidos para mim. Dois jovens estão sentados atrás dos aparelhos. Um terceiro, mais velho, está diante de um console e dirige o trabalho:

- ...Cinco mil... sete... Pare o voo... Dez amperes... Quinhentos mil volts... Alto...

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Descarga!Um dos que está nos aparelhos puxa uma alavanca. Um seco estampido de força

extraordinária rompe o silêncio, sai um relâmpago que se precipita para a Terra.- Adiante, a toda velocidade!... - ordena o major, que volta-se para mim e diz: -

Você está em uma central elétrica atmosférica. Esta também é uma empresa da Es-trela Ketz. Ao construir a Estrela Ketz, nós pudemos pesquisar a estratosfera e, com completa meticulosidade, estudamos a eletricidade atmosférica. Sabíamos sobre ela há muito tempo e inclusive havia sido tentado sua utilização com fins industriais. Mas essas tentativas não tiveram êxito devido à ínfima quantidade de eletricidade exis-tente na atmosfera. Calculava-se que em um quilômetro quadrado existiam somente 0,04 Kilovolts hora de energia, mas isto só acontece levando-se em conta somente as camadas atmosféricas próximas da superfície da Terra. As descargas dos relâm-pagos dão muito mais: 700 Kilovolts hora durante um centésimo de segundo. Mas os relâmpagos são raros. É diferente nas altas camadas atmosféricas. Ali as coisas mu-dam.

Vivendo na Terra, nós estamos no fundo de um oceano de ar. Comparativamente, há muito que os homens aprenderam a usar as correntes de ar horizontais que infla-vam as velas dos navegantes e giravam as asas dos moinhos de vento. Depois, des-cobriram as causas dessas correntes: o aquecimento desigual do ar pelos raios do sol. Então, quando os homens aprenderam a voar, descobriram que pelas mesmas causas se originam também os movimentos do ar, verticalmente, de baixo para cima e de cima para baixo. E, finalmente, não faz muito tempo que se estabeleceu que no nosso oceano aéreo, devido à atração do Sol e sobretudo da Lua, acontecem os mesmos fluxos e refluxos que nos oceanos de água. Mas, como o ar é quase mil ve-zes mais leve que a água, compreende-se que esses fenômenos sejam muito mais fortes. A atmosfera, em relação aos fluxos e refluxos, se comporta aproximadamente como o oceano na profundidade de oito quilômetros.

A Lua atrai a massa atmosférica e nosso oceano de ar se levanta em direção à Lua e disto resulta enormes movimentos periódicos das camadas aéreas. Esses fluxos e refluxos são acompanhados pela fricção das partículas gasosas, as quais estão forte-mente ionizadas. Por isto, as altas camadas da atmosfera são boas condutoras das ondas de rádio. E é aqui nestas camadas da atmosfera fortemente ionizadas, que seus movimentos em relação aos polos magnéticos da Terra são animados como no condutor de correntes indutoras de Foucault.

Desta forma, graças aos fluxos atmosféricos, é criado na natureza um dínamo ori-ginal que exerce sua influência nas condições magnéticas da Terra. Istro foi desco-berto graças aos registros dos magnetógrafos.

Estudando o trabalho dessa grandiosa máquina, esse original “moto perpétuo”, achamos que as reservas de eletricidade atmosférica são inesgotáveis. Estas podem cobrir largamente as necessidades de energia elétrica da Humanidade, só falta saber como “dar a partida”.

Isto que você está vendo, é a primeira e ainda imperfeita solução para esta tarefa. Os foguetes são equipados com agulhas que sugam a eletricidade e vão acumulan-do-a em uma espécie de garrafas de Leiden. Depois disto é efetuada a descarga “re-lâmpago” sobre lugares inabitados onde existem estações receptoras com esferas metálicas elevadas a grande altura sobre elas e conectadas às mesmas por meio de cabos.

Estamos começando agora a construção de uma grandiosa estação atmosférica, cujo funcionamento será completamente automático. Erigiremos na estratosfera ins-talações imóveis permanentes, unidas entre si por cabos. Essas instalações recolhe-

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rão e acumularão a eletricidade, enviando-a então para a Terra por meio de uma co-luna de ar ionizado. A humanidade receberá um caudal inesgotável de energia, ne-cessária para a transformação do nosso planeta.

De novo a escuridão, o silêncio.. Então acende-se uma luz azulada que gradual-mente vai mudando até tornar-se rosada. O amanhecer... Macieiras em flor. Uma jo-vem mãe segura seu filho. Ele estende seus braços para o radiante amanhecer...

A visão desaparece.Então vejo o espaço celeste e nosso planeta Terra voando na imensidão do Univer-

so. Ouve-se uma música solene. A Terra voa pelo espaço desconhecido, transfor-mando-se em uma estrela. E a música vai diminuindo de tom, até que finalmente se apaga à distância. A sessão terminou, mas eu continuo com os olhos fechados, revi-vendo minhas impressões.

Sim, Tonia com certeza tinha razão ao reprovar por eu ter me encerrado em mim mesmo e no meu trabalho. Somente agora senti como a vida mudou nos últimos anos: Que trabalhos! E em que grande escala! E isto é tão somente o prelúdio das minhas impressões! Que me espera no futuro?

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X. COM O DIRETOR O gabinete do diretor era um pouco diferente das outras salas que eu havia visto.

Perto da janela havia uma mesa de alumínio extraordinariamente delgado. Na mesa havia pastas, telefones e um painel com botões numerados. Perto da mesa havia uma estante giratória, construída também em alumínio, para os livros e pastas. Na Estrela existia uma pequena força de gravidade artificial e os objetos “descansavam” em seu lugar, mas “voavam” ao menor movimento e por isto todos tinham fixadores automáticos.

Atrás da mesa estava sentado o diretor em uma leve cadeira de alumínio.Era um homem de uns trinta anos, bronzeado pelo sol, com nariz aquilino e gran-

des olhos expressivos. Vestia uma roupa leve e ampla que não estorvava seus movi-mentos. O diretor me cumprimentou fazendo um rápido movimento com a cabeça (em Ketz não se cumprimenta com a mão) e perguntou:

- Como você se sente em nossas condições, camarada Artiomov? Não está sofren-do pela insuficiência de oxigênio?

- Parece que estou começando a me acostumar - respondei. - Mas aqui faz muito frio e o ar é tão rarefeito como nas mais altas montanhas da Terra.

- É questão de costume - respondeu ele. - Como vê, eu me sinto admiravelmente bem. Muito melhor que na Terra. Lá eu estava condenado à morte por uma terceira etapa de tuberculose e vômitos de sangue. Eles me levaram para o foguete em uma padiola e agora eu estou forte como um touro. A Estrela Ketz faz milagres. É um bal-neário de primeira classe, com a vantagem sobre a Terra que aqui pode se criar o clima mais conveniente para cada pessoa.

- Mas, como o admitiram em Ketz, com a seleção tão severa que é feita, estando você tuberculoso? - perguntei eu admirado.

- Foi uma exceção para uma pessoa necessária - respondeu o diretor sorrindo. - Fui enviado com um foguete sanitário especial e fiquei por muito tempo isolado aqui, até que desaparecessem os últimos sinais do processo ativo da atividade. Nossa mé-dica, a respeitável Anna Ignatevna Meller, está ocupada em gestionar a inauguração de sanatórios especiais aéreos para os enfermos de tuberculose óssea. Ela já fez di-versas experiências e os resultados são admiráveis. Nenhuma pressão nos ossos que destrua o processo, nada de camas engessadas, nem ataduras nem moletas. Somen-te os intensos raios ultravioletas do sol. Plena respiração da pele, ar marítimo; nada mais fácil de criar em nossas condições. Tranquilidade absoluta e alimentação. Mes-mo os casos mais desesperados se curam no mais curto prazo.

- Mas não seria perigoso para essas pessoas voltarem para a Terra?- Porque, se o processo terminou? Muitos deles voltaram e sentem-se maravilhosa-

mente bem. Mas nós nos desviamos do assunto... Pois bem, camarada Artiomov, nós precisamos muito de biólogos. Aqui há uma quantidade enorme de trabalho. Nossa primeira tarefa é a de abastecer a Estrela com frutas e verduras da nossa própria es-tufa. Até agora nosso “hortelão” Andrey Pavlovich Shlikov tem conseguido isto com

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êxito, mas acontece que frequentemente ampliamos nossos domínios celestes. Na Terra as pessoas podem se estabelecer somente em quatro direções: leste, oeste, sul ou norte. Mas aqui temos também em cima e em baixo. Em poucas palavras, para todos os lados. Gradualmente nós crescemos, enriquecemos com todo tipo de empresas auxiliares. Estamos construindo uma nova estufa onde trabalha o ajudante de Shlikov, Kramer.

- Já nos conhecemos.O diretor assentiu com a cabeça.- Pois bem... - continuou ele, agitando o braço em que segurava o lápis. O lápis

escapou dos seus dedos e saiu em disparada, quase roçando por mim. Eu quis pegá-lo no voo, mas meus pés se separaram do chão, os joelhos se elevaram até meu ventre e fiquei flutuando no ar e somente depois de um minuto pude voltar à posição normal.

- Aqui as coisas são desobedientes, sempre tentam fugir - brincou o diretor. - Pois bem, nós produzimos frutas e verduras em condições de quase completa impondera-bilidade. Pense você em quantos interessantíssimos problemas se abrem para os bió-logos: Como se comporta nos vegetais o geotropismo faltando a força de gravidade? Como influenciam os raios ultracurtos? E os raios cósmicos? É difícil enumerá-los! Sh-likov faz descobertas continuamente. E os animais? Estamos pensando em criá-los aqui também e já temos alguns exemplares em experiência. Sem dúvida alguma, um laboratório aéreo como este é um verdadeiro tesouro para o cientista que ama sua profissão. Estou vendo que seus olhos estão brilhando.

Eu não via meus olhos, mas na verdade as palavras do diretor me alegraram. Con-fesso que naquele momento eu me esqueci não somente da Armênia como também de Tonia.

- Estou impaciente para começar a trabalhar - eu disse.- E amanhã mesmo poderá começar - disse o diretor. - Mas por enquanto não aqui

na estufa. Estamos organizando uma expedição para a Lua na qual irão nosso velho astrônomo Fedor Grigorievich Tiurin, o geólogo Boris Mijaailovich Sokolovsky e você.

Ao ouvir isto, logo me lembrei de Tonia. Deixá-la aqui, talvez por muito tempo... Não saber o que lhe acontecerá aqui sem mim...

- E para que um biólogo? - perguntei - A Lua é um planeta completamente morto.- Há de se pensar que é assim realmente, mas não se exclui a possibilidade... fale

com nosso astrônomo, que tem algumas hipóteses sobre o assunto - o diretor sorriu. - Nosso velho amigo está um pouco maluco. Ele tem uma obsessão filosófica: “Filo-sofia do movimento”. Temo que ele vá encher sua cabeça. Mas no seu campo ele é uma grande celebridade, que podemos fazer? Na velhice, os homens frequentemente têm seu “hobby”! ou, como dizem os ingleses, sua mania. Vá agora ver Tiurin e trave conhecimento com ele. É um excêntrico interessante. Só não o deixe conversar mui-to sobre filosofia.

O diretor apertou um dos muitos botões.- Você vai conhecer Kramer. Eu o chamei para ajudá-lo a mudar-se para o obser-

vatório. Lembre que ali não existe a menor força de gravidade como existe aqui.Kramer entrou na sala e o diretor lhe explicou tudo. Kramer assentiu com a cabe-

ça, tomou-me pelo braço e saímos voando para o corredor.- Neste voo eu estou interessado a aprender a movimentar-me somente no espaço

interplanetário - eu disse.- De acordo! - respondeu Kramer. - O vovozinho que vamos ver é boa pessoa, em-

bora se irrite facilmente. É como mel com vinagre. Não o contradiga nem leve em conta sua filosofia, ou do contrário ele se irritará e você não conseguirá conversar

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com ele durante a viagem toda. Apesar de tudo ele é um excêntrico admirável. To-dos nós gostamos dele.

Minha situação se complicava. O diretor me recomendou não deixar Tiurin filosofar muito e Kramer me adverte que eu não irrite o velho astrônomo filósofo. Terei que ser muito diplomático.

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XI. O SÁBIO ARANHA Com os trajes interplanetários e as mochilas foguetes nas costas, passamos pela

câmara atmosférica, abrimos a porta e “caímos” para o exterior. Um empurrão com o pé foi suficiente para que ficássemos flutuando no espaço. No céu, novamente havia “terra nova”. Como uma enorme “bacia” côncava, a Terra ocupava metade do hori-zonte.

- Cento e doze graus, afirmou Kramer.Vi o contorno da Europa e da Asia, o norte coberto pelas manchas brancas das nu-

vens. Nas “clareiras” viam-se os brilhantes gelos dos mares polares do norte. Nos es-curos maciços dos montes asiáticos brilhavam as manchas brancas dos picos eleva-dos. O sol refletia-se no lago Baical cujos contornos eram precisos. Entre sombras esverdeadas serpenteavam os fios prateados que eram o Obi e o Yenisey. Distingui-am-se claramente os conhecidos perfis dos mares Cáspio, Negro e Mediterrâneo. Destacavam-se nitidamente o Irã, a Arábia, a Índia, o Mar vermelho e o Nilo. Os con-tornos da Europa Ocidental apareciam borrados. A península da Escandinávia estava coberta de nuvens. O extremos sul e ocidental da Africa também não se viam bem. Como uma mancha desfocada, um borrão, Madagascar destacava-se no azul do Oce-ano Indico. O Tibete podia ser visto maravilhosamente, mas o leste da Asia estava submerso em neblina. Sumatra, Bornéu, a sombra esbranquiçada das costas ociden-tais da Austrália... As ilhas do Japão, quase invisíveis, maravilhoso! Eu via ao mesmo tempo o norte da Europa e a Austrália, as costas orientais da Africa e o Japão, nos-sos mares polares e o Oceano Indico. Nunca o homem havia abrangido um espaço tão grande da terra com somente uma olhada. Supondo que na Terra se usasse um segundo para olhar cada hectare, seriam necessários quatrocentos ou quinhentos anos para vê-la toda, tão grande ela é.

Kramer segurou minha mão e apontou para um ponto luminoso ao longe, o objeti-vo da nossa viagem; e tive que parar de admirar o grandioso espetáculos da Terra. Olhei a Estrela Ketz e o cosmódromo, semelhantes a uma grande lua reluzente. Lon-ge, muito distante, nas escuras profundezas do céu, uma desconhecida estrela ver-melha acendia e apagava. Eu adivinhei o que era: um foguete vindo da Terra que chegava ao nosso cosmódromo. Ao redor da Estrela Ketz, na escuridão do espaço celeste, havia muitas estrelas próximas. Examinando-as com atenção percebi que elas eram criações da mão do homem. Eram as “empresas auxiliares” sobre as quais o diretor havia me falado e que eu ainda não conhecia. A maioria tinha a aparência de cilindros luminosos, mas havia outras diferentes: cubos, globos, cones, pirâmides. Além disso, algumas construções possuíam anexos e delas saíam espécies de man-gueira, tubos ou discos, cuja utilidade era desconhecida para mim. Outras “estrelas” lançavam raios luminosos periodicamente. Parte delas não tinha movimentos e ou-tras giravam depressa. Haviam também algumas que se moviam perto das outras, em grupos, unidas com segurança por cabos invisíveis à distância. Com certeza, era com este movimento que se criava nelas uma gravidade artificial.

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Kramer chamou novamente minha atenção. Apontando para o observatório, apro-ximou seu escafandro do meu e disse:

- Depois você terá tempo de admirar. Aperte o botão no peito e dispare. Não po-demos mais perder tempo.

Apertei o botão, senti um golpe nas costas e saí disparado, dando cambalhotas. O Universo começou a girar. Em um instante olhava para o Sol e logo para a gigantes-ca Terra, ou o vasto espaço celeste coberto de estrelas de diferentes cores. Via tudo confuso e a cabeça dava voltas. Não sabia para onde estava voando e onde estava Kramer. Entreabrindo os olhos, vi com espanto que caía vertiginosamente para o cosmódromo. Rapidamente apertei outro botão, recebi um empurrão nas costas e segui para a esquerda do cosmódromo. Que sensação desagradável! E o pior é que eu nada podia fazer. Eu me contraía, me estirava, me contorcia... Nada ajudava! En-tão apertei os olhos e apertei novamente o botão. Outra pancada nas costas... Fazia muito tempo que tinha perdido de vista o observatório. Abaixo, a terra azulada se iluminava e suas bordas já escureciam. Aproximava-se a curta noite.

À direita acendeu-se uma luzinha, com certeza uma explosão do foguete portátil de Kramer. Não, não vou mais disparar sem sentido. Eu estava completamente deso-rientado. E eis que no momento crítico do meu desespero, via a Estrela Ketz no lugar em que menos esperava. Na alegria, sem me dar contra, disparei meus foguetes e comecei novamente a dar cambalhotas e fiquei com medo de verdade. Esses exercí-cios de circo não eram para mim... E imediatamente alguma coisa me golpeou na perna e logo no braço. Não seria um asteroide?... Se meu traje se romper me con-verterei instantaneamente em um pedaço de gelo e me asfixiarei... Senti um formi-gueiro no corpo todo. Será possível? Será que tem um buraco em meu traje e por ali está penetrando o frio interplanetário? Sentia que me asfixiava. Meu braço direito está seguro por alguma coisa. Ouço um golpe no escafandro e logo depois a voz apagada de Kramer:

- Finalmente o alcancei. Você me deu muito trabalho... Eu achava que você era mais destro. Não dispare mais, por favor. Você estava saltando de um lado para ou-tro como fogos de pirotecnia e por pouco não o perdi de vista. Poderia ter se perdido completamente.

Kramer afastou minha capa branca que havia-se enrolado completamente em mim e os raios vivificantes do sol me esquentaram rapidamente. O aparelho de oxigênio estava em boas condições, mas eu quase não respirava devido à excitação. Kramer me pegou pelas axilas, como na minha primeira saído ao espaço, disparou para a es-querda, para a direita, para trás, e voamos. Mas eu não notava o movimento, via so-mente que “universo estava em seu lugar”, que a Estrela Ketz parecia cair para baixo e que a estrela do observatório vinha ao nosso encontro, pois sua luz ascendia mais e mais vivamente, como a de uma estrela variável.

Logo distingui o aspecto externo do observatório. Era uma construção extraordiná-ria. Imagine um tetraedro regular em que todas suas faces são triângulos, onde há grandes esferas anexadas com uma infinidade de janelas redondas. As esferas estão unidas entre si por tubos. Como eu soube depois, esses tubos servem como corredo-res para se passar de uma esfera para outra. Nas esferas foram montados telescópi-os refletores. Enormes espelhos côncavos que estão unidos às esferas com leves ar-mações de alumínio O tubo do telescópio usado na Terra não existe no telescópio “celeste”, pois aqui não é necessário: não existe atmosfera e por isto não existe dis-persão da luz. Além dos gigantescos telescópios, acima das esferas elevam-se outros instrumentos astronômicos relativamente pequenos: espectrógrafos, astrógrafos e heliógrafos.

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Kramer diminuiu a velocidade do voo e mudou de direção. Nos aproximávamos de uma das esferas e paramos junto ao tubo que as unia, mas sem tocá-lo. Tal precau-ção, como depois me explicou Kramer, devia-se a que o observatório não deve sofrer o mais leve choque. Passará mal o visitante que o tocar ao abordá-lo, pois Tiurin fi-caria colérico e quase com certeza diria que estragaram a melhor fotografia do céu estrelado, ou que lhe arruinaram a carreira...

Kramer apertou cuidadosamente um botão na parede, a porta se abriu e entramos na câmara atmosférica. Quando o ar a encheu, tiramos nossos trajes e meu acompa-nhante disse:

- Na verdade este velhote criou raízes em seu telescópio e não se separa dele nem para comer. Colocou ao seu lado bolsas e vasos nos quais chupa por meio de um tu-binho enquanto continua suas observações. Você mesmo verá.

Enquanto conversava com ele, eu voei até a nova estufa. Vou ver como estão os trabalhos.

Novamente vestimos o escafandro e, abrindo a porta para o interior do observató-rio, encontrei-me em um corredor iluminado por luz elétrica. As lâmpadas estavam sob meus pés - é que entrei no observatório de cabeça para baixo - e para não que-brar as lâmpadas, apressei-me em segurar nas correias da parede. Eu estava com minhas asas dobráveis, mas não me atrevi a usá-las no santuário do temível velho. Era assim que o desenhava minha imaginação depois das referências dadas por Kra-mer e pelo diretor.

Havia um silêncio sepulcral. O observatório parecia completamente desabitado. Ouvia-se somente o zumbido dos ventiladores e em alguns lugares o silvo apagado, provavelmente dos aparelhos de oxigênio. Eu não sabia para onde me dirigir.

- Ei!, ouçam - gritei, sem levantar muito a voz, e pigarreei.Silêncio absoluto. Pigarreie mais forte e então gritei:- Há alguém aqui?De uma porta ao longe apareceu a cabeça crespa de um jovem negro.- Quem? O que? - perguntou.- Fedor Grigorievich Tiurin está em casa? Pode me receber? - brinquei.- Pode sim. Eu estava dormindo. Sempre durmo quando é noite na Flórida. Você

me acordou na hora certa - disse o loquaz negro.- Como você da Flórida veio parar no céu? - continuei.- De barco, trem, aeroplano, dirigível, paquete- Sim, mas... por que?- Porque sou curioso. Aqui faz o mesmo calor que na Flórida. Eu ajudo o professor

- pronunciou a palavra “professor” com respeito. - pois ele é como uma criança. Se não fosse por mim, teria morrido de fome ao lado da sua ocular. Tenho uma maca-quinha que se chama “Mikki” e com ela ninguém fica muito entediado aqui. Há livros e há também um livro muito grande e interessante: o céu. O professor me fala sobre as estrelas.

“Pelo visto este velhote não e tão terrível assim”, pensei.- Voe reto pelo corredor até a esfera. Nela você verá uma corda que o levará até o

professor Tiurin.Ouviu-se um grito da macaquinha.- O que? Não consegue ver quem está aqui? Com quem estou falando? Rá rá, está

se contorcendo no ar no meio da sala e não consegue descer para o chão. Com cer-teza vão-lhe aparecer asas - acrescentou o negro com convicção. - Sem asas aqui se passa mal.

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Voei até a parede esférica no final do corredor, abri a portinhola e entrei na esfera. Na parede estavam presos, máquinas, aparelhos, armários, balões. A partir da porta de entrada havia uma corda bastante grossa estendida que se perdia em uma aber-tura do tabique que dividia a esfera em duas partes. Peguei na corda e comecei a avançar, se para cima ou para baixo não sei dizer. É necessário despedir-me para sempre das noções terrestres.

Finalmente passei pelo buraco e vi uma pessoa. Estava deitada no ar e dela saiam delgados fios de seda atados à parede.

“Como uma aranha em sua teia” - pensei.- John? - perguntou ele com uma foz fraquinha, para mim inesperada.- Bom dia, camarada Tiurin. Sou Artiomov. Eu vim...- Sim, eu já sei. O diretor me falou. Para a Lua? Sim, voaremos. Excelente ideia.Ele falava sem afastar os olhos da ocular e sem fazer o mais leve movimento.- Não lhe convido para sentar porque não tem onde. Bom, não faz falta mesmo.Eu tentei aproximar-me com cuidado da “aranha”, para ver melhor o seu rosto. A

primeira coisa que vi foi uma grande cabeleira de espesso cabelo branco como a neve e um rosto pálido com um nariz reto. Tiurin girou um pouco seu semblante para mim e me encontrei diante do vivo olhar dos seus olhos negros com pálpebras avermelhadas. Pelo visto ele fatigava muito sua vista.

Eu tossi.- Não tussa para cá, vai desordenar minhas coisas! - disse ele com severidade.“Já começamos - pensei eu. - Nem tossir se pode.”Mas, observando atentamente ao redor, compreendi porque não se podia tossir.Tiurin deixava dispersos pelo ar, livros, papeis, lápis, cadernetas, seu lenço, seu

cachimbo, o pacote de tabaco e muitos outros objetos. Ao mínimo movimento de ar tudo voaria. Será necessário chamar John para que o ajude, pois com certeza não lhe será fácil desfazer-se da sua teia por si mesmo. Provavelmente, com esta teia ele sustenta seu corpo imóvel perto da objetiva do telescópio.

- Seu telescópio tem um grande diâmetro - eu disse, para começar a conversar.Tiurin sorriu satisfeito.- Sim, os astrônomos terrestres não podem sequer sonhar com um telescópio as-

sim. Só que ele não tem tubo. Você notou quando voou para cá?... Desculpe, antes que me esqueça, tenho que ditar algumas palavras.

E começou a dizer frases salpicadas de termos astronômicos e matemáticos. Então estendeu levemente a mão para um lado e girou uma botão de um pequeno armário que também estava amarrado com cordas. Se esses movimentos fossem mostrados na tela de cinema, os espectadores achariam que o operador havia se equivocado e que a velocidade da máquina estava retardada.

- A gravação automática na fita é uma secretária caseira perfeita - esclareceu Tiu-rin. - Encerrada na caixa, trabalha com exatidão e não pede para comer. É mais rápi-do do que alguém mesmo tenha que escrever. Observo e dito ao mesmo tempo. Este aparelho me ajuda também a efetuar cálculos matemáticos, mesmo se por aca-so tiver papel e lápis por perto. Não respire em cima de mim... Sim, isto é um teles -cópio... Na Terra não poderia ser construído, pois ali o peso limita o tamanho. Este é um telescópio refletor. E não somente um. Os espelhos têm um diâmetro de cente-nas de metros. São refletores gigantescos e foram construídos aqui com materiais celestes. A lente foi feita de meteoros cristalinos. Eu organizei aqui uma verdadeira caça a bólides-meteoros... Sim, de que estávamos falando... Por acaso é possível se dedicar à astronomia na Terra? São toupeiras, comparados comigo. Aqui, em dois anos eu adiantei um século. Espere um pouco e verá quando publicarem minhas

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obras... Por exemplo, o planeta Plutão. O que sabem sobre ele na Terra? O tempo da sua revolução ao redor do Sol, sabem? Não. A distância média até o Sol? A inclinação em relação à elíptica? Não. Sua massa? Sua densidade? Não, não e não. E dizem que descobriram um planeta!...

Deu uma risadinha de velho.- E os brancos planetas anões das estrelas duplas? E a estrutura do sistema galác-

tico? Bem, que se pode dizer se nem mesmo nada sabem de concreto da atmosfera dos planetas do sistema solar! Se passam a vida discutindo! Em troca, aqui eu tenho descobertas para vinte Galileus. Eu não me vanglorio disto, pois neste caso não foi o homem que fez isto possível, e sim as possibilidades que foram postas à nossa dis-posição. Qualquer outro astrônomo em meu lugar teria feito o mesmo. Eu não traba-lho sozinho, tenho toda uma equipe de astrônomos... Sem alguém foi genial, este foi o que imaginou o observatório aéreo. Sim, Ketz. É a ele que devemos isto.

Na abertura do tabique algo se moveu. Via a macaca e a cabeça encaracolada de John. Com seus dedos metidos na sua espessa e emaranhada cabeleira, a macaca estava sentada na cabeça do negro.

- Camarada professor! Você ainda não tomou café? - falou John.- Fora! - gritou Tiurin.A macaca emitiu um guincho.- Olhe, e Mikki também disse. Tome um pouco de café quente - insistiu John.- Apodreça, saia daqui! Vai seu... sua guinchadora!A macaca emitiu um som ainda mais agudo.- Não saio daqui até que você tome café!- Está bem, está bem. Já estou tomando, está vendo?Tiurin aproximou o balão com cuidado e, abrindo a torneira do tubo, chupou uma

e outra vez.A macaca e a cabeça do negro desapareceram, mas daí a poucos minutos apare-

ceram novamente na abertura. Assim eles repetiram até que, do ponto de vista do negro, o professor tomou o suficiente para se reconfortar.

- É isso é todo dia - disse Tiurin com um suspiro. - São meus verdugos. Claro que sem eles eu me esqueceria completamente de comer. A astronomia, meu amigo, é tão apaixonante!... Você acha que a astronomia é uma ciência? Humpf! Falando sin-ceramente, é um conceito do mundo. Uma filosofia.

“Já começou”, pensei assustado. E, para me esquivar do tema perigoso, perguntei:- Diga-me, por favor. Você acha que é necessário que vá um biólogo para a Lua?Tiurin voltou cuidadosamente a cabeça e me olhou prescrutador, com desconfian-

ça.- E você, não quer nem falar de filosofia?Recordando os conselhos de Kramer, respondi apressadamente:- Pelo contrário, eu me interesso muito pela filosofia, mas agora.... falta muito

pouco tempo, é necessário preparar-se. Eu queria saber...Tiurin voltou-se para a ocular do telescópio e emudeceu. Teria se irritado? Eu não

sabia como sair daquela situação embaraçosa. Mas Tiurin, imprevistamente, come-çou a falar:

- Eu não tenho ninguém na Terra. Nem esposa nem filhos. No sentido ordinário da palavra, estou sozinho. Mas minha casa, minha pátria, são a Terra toda e todo o céu. Minha família são todos os trabalhadores do mundo. Os bons moços como você.

Ao ouvir este cumprimento me senti aliviado.- Você acha que aqui, sentado neste ninho de aranha, eu perdi contato com a Ter-

ra, com seus interesses? - continuou - Não. Nós levamos a cabo uma grande tarefa.

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Você terá tempo de conhecer todos os laboratórios que existem na Estrela Ketz.- Já me inteirei de algo na biblioteca. “A Coluna Solar”...Tiurin estendeu a mão suavemente, ligou seu aparelho “secretária automática” e

ditou algumas frases; pelo visto, estava gravando suas últimas observações ou idei-as. Então continuou:

- Eu observo o céu. E o que mais surpreende minha mente? O eterno movimento. O movimento é vida. O cessar do movimento, a morte. Movimento é felicidade. A fal-ta de independência, parar, são sofrimento, desdita. A felicidade está no movimento, o movimento dos corpos, das ideias. Fundamentando-se nisto pode-se inclusive erigir uma moral. Você não acha?

- Creio que você tem razão - pude dizer afinal. - Mas é necessário meditar bem so-bre esta profunda ideia .

- Ah! Então de qualquer forma você acha que esta é uma ideia profunda? - excla-mou alegre o professor e, pela primeira vez, voltou-se rapidamente para mim. A teia de aranha voltou a oscilar. Menos mal que aqui é impossível cair...

- Vou aprofundar esta ideia sem falta - eu disse, para ganhar a simpatia do meu futuro companheiro de viagem. - Mas agora o camarada Kramer virá atrás de mim, e eu queria...

- Mas o que é que você quer saber? Se é necessário um biólogo na Lua? Bem... a lua é um planeta completamente morto. Nele não existe absolutamente atmosfera e por isto não pode haver vida orgânica. Assim se costuma pensar. Mas eu me permito pensar de forma diferente. Meu telescópio... Sim, venha e dê uma olhada na Lua. Agarre-se a estas cordas. Com cuidado! Não tropece nos livros! Assim! Bem, dê uma olhada...

Eu olhei o objetivo e fiquei admirado. A superfície da Lua era vista muito de perto, distinguiam-se até alguns blocos de pedras e fendas. A borda de um dos blocos bri-lhava com fulgores de diferentes cores. Com certeza eram originados pelo brilho de rochas cristalinas.

- Bem. O que você me diz? - falou o professor satisfeito.- Me parece que vejo a Lua mais próxima da Estrela Ketz que a Terra.- Sim, mas se olhasse para a Terra do meu telescópio, poderia admirar sua Lenin-

grado... Pois bem. Eu acho, baseando-me em minhas observações, que na Lua exis-tem gases, pelo menos em quantidades insignificantes e, portanto, também pode ha-ver alguns vegetais... Amanhã vamos voar para comprovar isto. Em suma, eu não sou amigo das viagens. Daqui eu vejo tudo. Mas nosso diretor insiste em fazer esta expedição. A disciplina antes de tudo... Agora voltemos à nossa conversa sobre a fi-losofia do movimento.

O movimento retilíneo infinito de pontos no espaço é um absurdo. Tal movimento não se diferencia da imobilidade. O infinito adiante, o infinito atrás... não há propor-ção. Qualquer parte do caminho percorrido, em comparação com o infinito, é igual a zero. Mas, o que fazer com o movimento em todo o cosmos? O cosmos é eterno. O movimento nele não cessa. Será possível que o movimento do cosmos também seja um absurdo?

Durante alguns anos eu raciocinei sobre a natureza do movimento, até que final-mente encontrei onde estava o essencial da questão. O assunto era completamente fácil. O fato é que na natureza não exite absolutamente o movimento infinito ininter-rupto, nem retilíneo, nem curvo. Todo movimento é intermitente, eis aqui o segredo. Mendeleiev já demonstrou a regularidade da intermitência das dimensões (inclusive as dimensões!), neste caso concreto, dos átomos. A doutrina da evolução se trans-forma, ou melhor, se aprofunda na genética, dando mais importância ao desenvolvi-

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mento dos organismos em impulsos, em mutações. A intermitência das magnitudes magnéticas foi demonstrada por Weiss; a intermitência das radiações por Blank; a in-termitência das características térmicas por Konovalov. O cosmos é eterno, infinito, mas todos os movimentos no cosmos são intermitentes. Originam-se novos sistemas diferentes. Têm princípio e fim e, portanto, têm proporção de medida. O mesmo acontece no mundo orgânico... Você está entendendo? Está seguindo o fio das mi-nhas ideias?...

Por sorte, assomou de novo no buraco a cabeça do negro com a macaca.- Camarada Artiomov. Kramer o espera na câmara atmosférica - disse o negro.Apressei minha despedida com o professor e saí daquele rincão de aranhas.Tenho que confessar que Tiurin me obrigou a pensar em sua filosofia. “A felicidade

no movimento”... Mas que quadro tão desalentador oferece à simples vista o criador da filosofia do movimento! Perdido no escuro espaço do céu, rodeado de teias de aranha, imóvel, pendurado por meses, anos... Mas ele é feliz, isto é indubitável. Ele compensa a falta de movimento do corpo com o intenso movimento das ideias, das células cerebrais.

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XII. TIURIN ESTRÉIA.

Kramer me esperava sem tirar o escafandro; pelo visto ele estava com pressa, en-tão rapidamente tambem pus o meu. Meu acompanhante diminuiu a pressão atmos-férica e abriu a porta para o exterior. Segurando-me com força, separou-se da pare-de do observatório com precaução e, com um movimento de lado ajudado por sua-ves disparos, girou para a Estrela Ketz. Logo fez alguns disparos mais fortes e saí-mos, lançados a grande velocidade. Agora Kramer podia me deixar solto, mas pelo visto não tinha confiança em minha “arte do voo” e me sustentava por trás pelo co-tovelo.

Olhando como ele se aproximava da Estrela Ketz, observei que esta girava veloz-mente sobre seu eixo. Evidentemente o conserto da estufa havia terminado e agora estava sendo criada uma maior força de gravidade artificialmente.

Não é tarefa fácil agarrar-se às pás de um moinho de vento em movimento, mas Kramer se arranjou maravilhosamente. Começou dando voltas ao redor do cilindro, na direção do seu giro, igualando deste modo nossa velocidade com a do cilindro, e pegou na alça.

Ainda não tinha terminado de me despir quando Meller me chamou ao seu gabine-te.

Não sei em quanto havia aumentado a gravidade na Estrela, mas com certeza ali não havia nem um décimo da terrestre. Mas eu notei logo a conhecida sensação de tensão nos músculos. Estava grato por “pisar” com os pés no “solo” e sentir nova-mente o chão e o teto.

Entrei animado no gabinete de Meller.- Bom dia - cumprimentou ela. - Eu chamei Tiurin e ele vai chegar de um momento

para outro. O que você achou dele?- É uma pessoa original - respondi, - mas eu esperava encontrar...- Eu não quis dizer isto - interrompeu-me Meller. - Qual a aparência dele? Estou

perguntando como médico.- Muito pálido e com a cara um pouco inchada...- É compreensível. Ele leva um regime de vida impossível. No observatório há um

pequeno jardim, uma sala para ginástica com aparelhos pra treinamento dos múscu-los, mas ele menospreza completamente sua saúde. Eu lhe confesso que fui eu que persuadi o diretor a mandar Tiurin para a Lua. E além disso, exigirei que ele mude completamente o regime, ou de outro modo logo perderíamos esse homem excepci-onal.

Tiurin se apresentou. Sob a viva luz do ambulatório, parecia ainda mais adoenta-do. Além disto, os músculos das pernas haviam perdido completamente o hábito de se movimentar e é possível que tenham se atrofiado em parte. Era difícil para ele fi -car de pé. Seus joelhos se dobravam, as pernas tremiam e, impotente, agitava os braços. Se o tivessem devolvido para a Terra neste estado, com certeza se sentiria como uma baleia arrojada à praia pelas ondas.

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- Olhe até que ponto você chegou! - começou Meller em tom de repreensão - Pa-rece que é feito de geleia

A pequena e enérgica mulher repreendia o velho cientista como a um garoto tra-vesso. Finalmente enviou-o para o massagista, ordenando que depois da massagem se apresentasse para um novo reconhecimento.

Quando Tiurin saiu, Meller se dirigiu a mim:- Você é um biólogo e vai me entender. Tiurin é uma exceção. Todos nos sentimos

muito bem. Entretanto, esta leveza da “via celeste” me preocupa muito. Você não sente ou quase não sente seu corpo. Mas, quais serão as consequências? Ketz é uma estrela jovem e seus mais velhos habitantes estão a não mais que três anos em con-dições de imponderabilidade. O que acontecerá dentro de dez anos? Como repercuti-rá tal adaptação ao ambiente nas condições gerais do organismo? Finalmente... Como se desenvolverão nossos recém nascidos? E os filhos dos nossos filhos? É mui-to possível que os ossos dos nossos descendentes sejam mais cartilaginosos, mais gelatinosos. Os músculos se atrofiarão, sem dúvida. Esta é a primeira coisa que mais me preocupa como pessoa responsável pela saúde da nossa colônia celeste. A se-gunda são os raios cósmicos. Apesar do envoltório que detêm esses raios em parte, de qualquer maneira nós recebemos aqui muito mais que na Terra. Até agora eu não vejo consequências nocivas, mas é que temos ainda muito pouco material para as observações. Nas moscas drosófilas, aqui se observa uma acentuada mutação; aliás, algumas nascem com genes voláteis e não têm descendência. Que acontecerá se os raios produzirem este mesmo efeito nas pessoas que vivem na Estrela Ketz? E se nascerem filhos monstros ou mortos?... Ao fim e ao cabo está tudo em nossas mãos. Podemos eliminar todas as consequências prejudiciais. Podemos originar artificial-mente qualquer força de gravidade, se precisar, inclusive maior que a da Terra. Po-demos também isolar-nos dos raios cósmicos. Mas devemos fazer uma infinidade de experiências para poder definir as condições ótimas... Está vendo quanto trabalho te-mos para os biólogos.

- Sim, trabalho é o que não falta - respondi, muito interessado nas palavras de Meller. - Este trabalho é necessário, não somente para as colônias celestes, como também para a Terra. Como se abrem os horizontes do saber sobre a natureza viva ou morta! Eu estou entusiasmado porque a casualidade me trouxe aqui.

- Tanto melhor. Precisamos de trabalhadores entusiastas - disse Meller,,A lembrança da frase “a casualidade me trouxe aqui”, me levou a pensar em To-

nia. Cativado pelas novas impressões, eu até havia me esquecido dela. Como ela está e como vai sua busca?

Me despedi de Meller e saí voando para o corredor. Ali ouviam-se alegres risos, vo-zes, canções e o particular zumbido de asas; apesar de já haver um pouco de gravi -dade, a juventude agia como de costume com as asas. Gostavam de dar saltos voan-do por alguns metros, como peixes voadores. Alguns se exercitavam andando no chão. Quantos rostos jovens, alegres e bronzeados! Quantas diversões e travessuras! E eis que um grupo de garotas inventou jogar bola, fazendo uma delas servir de bola, uma pequena gordinha. Esta gritava, enquanto “voava” de uma mão para ou-tra.

Todos se sentiam alegres e despreocupados. Pelo visto o trabalho não os cansava neste mundo de “pouco peso”. Passando de lado perto da parede, consegui chegar ao quarto de Tonia. Ela estava sentada em uma leve cadeira de alumínio. Ao que pa-rece haviam trazido móveis do armazém.

Através da janela, no negro céu via-se uma enorme resplendor; era o círculo da Terra “na noite”. A luz do resplendor coloria o rosto e as mãos de Tonia, que estava

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pensativa.Eu quis alegrá-la e cheguei até ela e disse, rindo:- Bem, quanto você pesa agora?E sem pensar muito, peguei-a pelos ombros e levantei-a facilmente. Provavelmen-

te fui contagiado pela alegria dos jovens que acabara de ver.Ela se afastou em silêncio.- Por que está triste? - perguntei, sentindo-me violento.- Nada... estava pensando em mamãe.- Está atuando a “atração terrestre”? Nostalgia?- Pode ser - respondeu.- Soube alguma coisa de Evgenev?- Ainda não pude me comunicar com ele. O aparelho está sempre ocupado. E

como foi sua conversa com o diretor?- Amanhã estou saindo para a Lua.Ela levantou os olhos. - Por muito tempo?- Não sei. Dizem que o voo demora uns cinco ou seis dias. E não se sabe quanto

tempo ficaremos na Lua.- É muito interessante - disse Tonia, olhando fixamente nos olhos. - Eu iria de boa

vontade com você, mas me enviaram por algum tempo pra o laboratório, o qual se encontra a tal distância da Terra que a radiação terrestre não chega ali. Ali, na som-bra, reina o frio do espaço universal. Vamos montar um novo laboratório para o es-tudo da eletro condutibilidade dos metais a baixa temperatura.

Seus olhos brilharam.- Há um problema interessantíssimo! Você sabe que com a diminuição da tempera-

tura a resistência à corrente elétrica diminui nos metais. A temperaturas perto do zero absoluto, a resistência também é quase igual a zero... Kapitza já trabalhou na solução desses problemas. Mas na Terra eram exigidos esforços colossais para con-seguir baixas temperaturas. E no espaço interplanetário isto é simples. Imagine um arco metálico colocado no vazio, à temperatura de zero absoluto. Nele é dirigida cor-rente induzida. Esta corrente pode ser de uma potência enorme. E circulará eterna-mente pelo aro, enquanto a temperatura não aumentar. Quando a temperatura sobe, produz-se uma descarga instantânea. Se utilizarmos esses aros dando-lhes al-tas tensões, poderemos ter uma espécie de relâmpago em reserva, cuja atividade se manifestará quando se elevar a temperatura. Embora exista o problema do fato que, ao faltar a resistência, a tensão diminui, ou seja, a potência... É necessário fazer um cálculo. Como Paley me ajudaria neste caso! - exclamou, quase com paixão.

Isto, claro, era a paixão do cientista, mas eu não pude dissimular meu desgosto.

Não pude sair na expedição no dia seguinte: Tiurin adoeceu.- Que aconteceu? - perguntei a Meller,,- Nosso filósofo azedou - respondeu ela, - adoeceu de “alegria”, tudo é devido ao

movimento. Na realidade não é nada. Ele se queixa de dor nas pernas e nas pantur-rilhas. É pouca coisa. Mas como enviá-lo para a Lua neste estado? Isto lhe criaria muitos problemas. Com uma décima parte da gravidade terrestre ficou assim, e na Lua há uma sexta parte e ali, com certeza, não aguentará com seus ossos. Decidi dar-lhes alguns dias para se exercitar. Aqui temos um depósito de asteroides captura-dos por nossos homens; e todas essas pedras, pedaços de planetas, se amontoaram em forma de globo. Para que não voassem pedaços dessa massa, nossos hélio/solda-

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dores fundiram e soldaram a superfície desses pedaços. A uma dessas “bombas” nos atamos uma esfera vazia com um cabo de aço e então lhe demos movimento circu-lar, o que resultou em uma força centrífuga; a gravidade no interior da esfera oca é igual à da Lua. É nesse globo que Tiurin está se exercitando. A pressão e a quantida-de de oxigênio na esfera são as mesmas do escafandro interplanetário. Voe para lá e faça-lhe uma visita. Mas não vá sozinho, que Kramer vá com você.

Encontrei Kramer na sala do ginásio. Ele estava fazendo tais números que lhe teri-am invejado os melhores artistas de trapézio se pudessem vê-lo.

- Vou com você sim, mas já é hora de aprender a voar sozinho. Logo você irá para a Lua e não sabemos o que pode acontecer em uma viagem assim!

Kramer me atou em uma longa corda e me deixou voar até o campo de treina-mento de Tiurin. Eu já não dava voltas e já “disparava” com segurança, mas não soube me ancorar à esfera em movimento e Kramer logo veio em minha ajuda. Qua-tro minutos após termos partido, entramos na esfera metálica.

Fomos recebidos por ensurdecedores gritos e alaridos. Estranhando, olhei para o interior do globo, que estava iluminado por uma grande lâmpada elétrica, e vi Tiurin sentado no “chão” e batendo com os punhos em um tapete de borracha. Perto dele, o negrinho John dava saltos gigantescos. A macaca “Mikki”, com alegres gritos, sal-tava dos ombros do negro até o “teto”, ali se agarrava nas correias, caindo nova-mente na cabeça de John. Ela parecia gostar a gravidade “lunar”, o que não se podia dizer de Tiurin.

- Levante-se professor! - gritou John. - A doutora mandou andar por uns quinze minutos e você não andou nem cinco.

- Não me levanto! - gritou Tiurin irritado. - Eu não sou um cavalo! Verdugos! Não posso mais!

Neste momento nós chegamos. John foi o primeiro a nos ver e ficou alegre:- Olhe, camarada Artiomov - disse, dirigindo-se a mim, - o professor não faz caso

do que eu digo e quer se meter de novo em sua teia de aranha.A macaca logo começou a gritar.- Desligue já esse toca-discos! - gritou o professor. - Bom dia, camaradas! - disse,

dirigindo-se a nós e, ficando de joelhos levantou-se pesadamente.“Como ele pode ir à Lua nesse estado?”, pensei eu, olhando para Kramer. Este ba-

lançou a cabeça.- Mas foi você mesmo, professor, que mais de uma vez me disse: quanto mais mo-

vimento mais felicidade... - insistia o negro.Este argumento “filosófico” por parte de John foi inesperado. Sem querer nós sor-

rimos e Tiurin ficou vermelho de raiva.- Precisa compreender! Ou pelo menos tentar - gritou ele, com voz agura. - Exis-

tem diversos tipos de movimento. Estes movimentos físicos pesados estorvam o mo-vimento superior das células do meu cérebro, dos meus pensamentos. E ademais, qualquer movimento é intermitente e tu queres que eu ande sem descanso... Assim vai me matar!

E começou a caminhar com cara de mártir, gemendo e suspirando.John me levou para um lado e me disse ao ouvido:- Camarata Artiomov, eu tenho muito medo pelo professor. Está tão fraco. Será

perigoso ele ir à lua sem mim. Ele até se esquece de comer e de beber... Quem vai cuidar dele na Lua?

Apareceram lágrimas nos olhos de John. Ele gostava muito do professor. Consolei-o como pude e lhe prometi que cuidaria de Tiurin durante a expedição.

- Você responde por ele! - pronunciou o negrinho solenemente.

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- Sim, claro! - assenti.De volta à estrela, contei tudo a Meller,, Ela balançou a cabeça em desaprovação.- Terei que ocupar-me eu mesma de Tiurin.E, com efeito, esta pequena e enérgica mulher dirigiu-se para a “Sala de treina-

mento”.Eu também não perdi tempo: aprendi a voar no espaço interplanetário e, segundo

manifestou meu mestre Kramer, fiz grandes progressos.- Agora estou tranquilo, porque durante a expedição à Lua você não se perderá

nos abismos do céu - disse.

Passados alguns dias, Meller,, regressou da “sala de treinamento” mais satisfeita e declarou.

- Eu ainda não deixaria o professor ir para a Terra, mas para a Lua ele está em “plena forma”.

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XIII. EM ÓRBITA LUNAR Na véspera da nossa viagem para a Lua, acompanhei Tonia até o laboratório do

frio universal. A despedida foi breve mas calorosa. Ela apertou minha mão com afeto e disse:

- Seja prudente, cuide-se...Estas simples palavras me deixaram feliz.Na manhã seguinte, Tiurin entrou no foguete bastante animado. John despediu-se

dele completamente aflito. Parecia que ia chorar de um momento para outro.- Você responde pelo professor! - gritou-me ele, quando a porta do foguete estava

se fechando.Acontece que não voamos diretamente para a Lua, e sim em uma espiral ao redor

da Terra. E não se sabe quanto vai durar a viagem. Em nosso foguete podem-se alo-jar vinte pessoas e somos apenas seis: três componentes da expedição científica, o capitão, o piloto e o mecânico. Todo o espaço livre da nave está ocupado por víveres de reserva, materiais explosivos e oxigênio líquido. Na parte superior do foguete vai preso uma espécie de vagão com rodas, destinado a servir para as viagens na super-fície lunar. Como aqui não existe a resistência do ar, o “automóvel lunar” não dimi-nuirá a velocidade de voo do nosso foguete.

Breve o foguete abandonou o hospitaleiro cosmódromo da Estrela Ketz e logo a seguir Tiurin se sentiu mal. O caso era que quando aumentava a velocidade e as ex-plosões se fizeram mais seguidas, o peso do corpo mudava. E eu entendi Tiurin: a pessoa pode se acostumar à gravidade e à ausência de peso, mas acostumar-se a que de repente o corpo deixe de ter peso, e então pese como chumbo, é impossível.

Menos mal que tínhamos reservas suficientes de alimentos e combustível, o que nos dava a possibilidade de não nos apressarmos e as explosões eram moderadas. O som delas transmitia-se unicamente pelas paredes do foguete. A esses ruídos a pes-soa podia se acostumar, como ao zumbido de motores, ou ao tique-taque do relógio. Mas não ao aumento de peso!

Tiurin suspirava e gemia. O sangue lhe subia à cabeça e seu semblante se tornava purpúreo, quase azul, ou a cor sumia e seu rosto se tornava pálido, amarelado.

Somente nosso geólogo Sokolovsky, alegre e forte, com grandes bigodes, suporta-va tudo muito bem e estava sempre de bom humor.

Quando nossos corpos voltaram ao estado de imponderabilidade, o astrônomo co-meçou a falar em voz alta, costume que havia adquirido em sua vida solitária. Falava sem coerência; comunicava dados astronômicos de interesse, desconhecidos pelos astrônomos terrestres,ou pronunciava sentenças “filosóficas”.

- Por que o cinema é tão interessante? Porque nele vemos o movimento...E logo começava a gemer e a se retorcer, para depois falar novamente.Eu olhava pela janelinha. À medida que nos afastávamos da Terra, esta parecia

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menor. Nosso dia se fazia mais longo e as noites mais curtas. Na realidade não eram noites e sim eclipses solares.

Em troca, aconteciam coisas chocantes com a Lua.Se nosso foguete se encontrava em um ponto oposto à órbita da Lua, esta apare-

cia pequena, muito menor do que se vê da Terra; e se nos aproximávamos da Lua pela órbita, esta ficava enorme.

Finalmente chegou o momento em que a dimensão máxima da Lua se igualou com a da Terra. Nosso capitão, que mais de uma vez havia feito a viagem à órbita lunar, nos disse:

- Eu os felicito. Superamos as quatro quintas partes da distância que nos separa da Lua. Ultrapassamos quarenta e oito raios terrestres. Para nossas viagens interpla-netárias dentro do Sistema Solar, o raio terrestre, que é de 6.378,4 quilômetros, ser-ve como unidade de medida. É uma espécie de milha para os navegantes interplane-tários - esclareceu.

Agora o tamanho da Lua variava durante o dia, que era o tempo da órbita do fo-guete ao redor da Terra. A metade do dia da Lua “engordava”, se fazia maior, e a outra metade “diminuía. Mas esses dias começaram a ser de maior duração que os terrestres.

O dia claro, sem nuvens e resplandescente, aumentava sem cessar.O capitão disse que a atração da Lua se deixa sentir mais e mais forte e altera a

rota do foguete. A velocidade do mesmo aumenta ou diminui como resultado dos fortes abraços do nosso satélite terrestre. A Lua não quer deixar-nos sair do seu campo de atração. Se não fosse pela força de resistência que oferecem nossos apa-relhos de explosão, ela nos faria prisioneiros pela eternidade. Quão mais mais peri-gosos serão os planetas do Sistema Solar!

Nas primeiras horas de voo, o capitão deixava os comandos para que o foguete voasse automaticamente pela rota assinalada. Isto não era perigoso, mas depois, poucas vezes o deixou, apesar de serem mecanizados e automatizados.

Seguíamos ao redor da Terra, aproximadamente pela mesma órbita que a Lua, e por isto a viagem ao redor da Terra foi feita no mesmo tempo da Lua - cerca de trin-ta dias terrestres. - Nossa noite, ou seja, o eclipse solar, se fez tão raro como os eclipses lunares na Terra. O foguete ia se aproximando da Lua igualando sua veloci-dade à dela. Nossa nave alcançou a mesma distância da Terra que a Lua. O espaço que separava o foguete da Lua ficou invariável.

Parecia que a Lua, a Terra e o foguetes estavam imóveis e que somente a abóba-da celeste se movia continuamente.

- Logo construiremos colônias aqui - rompeu o silêncio Sokolovsky.- Não, não meu senhor, não tão depressa - contestou Tiurin, - antes é necessário

encontrar materiais aqui. Não vamos trazê-los da Terra, pelo contrário, devemos en-viar à Terra alguns presentes “celestes”. Já enviamos toda uma coleção de meteori-tos. Todo uma coleção de Leônidas.

E Tiurin sorriu satisfeito.- É verdade - disse Sokolovsky. - Precisamos de muito ferro, níquel, aço e quartzo,

para a construção dos nossos alojamentos.- E de onde vão tirar esses minérios? - perguntei. A palavra “mineral” fez Soko-

lovsky rir.- Esses materiais não são minérios, e sim “aéreos” - disse. Os meteoritos são nos-

sos “minerais”. Não era embalde que eu corria atrás deles.- Eu organizei a exploração dos meteoritos. Esta ideia foi minha! - retificou Tiurin.- Não discuto isto, professor - disse Sokolovsky - A ideia foi sua e a execução mi-

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nha. Por exemplo, agora mesmo enviei Evgenev a uma nova exploração.O nome de Evgenev me fez rememorar todo o caminho que tinha me trazido aqui.

Quem diria? Como a vida pessoal havia passado a segundo plano diante das extraor-dinárias impressões aqui recebidas!

- Você com certeza não sabia que encontramos toda uma nuvem de pequenos me-teoritos não muito longe da Estrela Ketz, não é mesmo? - disse Sokolovsky - Mais acima estão os maiores. Ao serem analisados, achou-se ferro, níquel, sílica, alumina, óxido de cálcio, feldspato, ferro cromado, óxidos de ferro, grafite e outras substânci-as. Em uma palavra, tudo que é necessário para a construção e também oxigênio para os vegetais e a água. Possuindo a energia solar, podemos transformar esses materiais e ter tudo que precisamos, inclusive lápis. O oxigênio e a água, claro, não se acham em um estado e uso e sim em estado “ligado”, mas isto não é problema para os químicos.

- Estudei, segundo seus dados, os movimentos desses restos de corpos celestes - interveio Tiurin, - e cheguei a interessantes conclusões. Parte desses meteoritos veio de longe, mas a maioria girava ao redor da Terra, na mesma órbita da Estrela Ketz...

- Sobre isto, professor, fui eu quem lhe chamou a atenção - disse Sokolovsky.- Sim, claro! Mas as conclusões são minhas.- Não discutamos - acrescentou Sokolovsky, conciliador.- Não estou discutindo. Só quero exatidão. Não é à toa que sou cientista - replicou

Tiurin, levantando-se da poltrona. Mas em seguida se deixou cair e começou a se queixar.

- Meller, tinha razão - disse. - Eu me debilitei completamente nos anos que passei no mundo da imponderabilidade. Preciso mudar meu regime.

- A Lua será um bom treinamento - riu o geólogo.- Sim... Bem, eu queria falar sobre minha hipótese - continuou Tiurin. - São tantos

os meteoritos que giram ao redor da Terra que nos obriga a pensar que devem ser restos de um pequeno satélite desaparecido da Terra, uma segunda Lua. Esta seria uma Lua muito pequena. Quando calcularmos exatamente a quantidade e a massa desses meteoritos, poderemos calcular as medidas que tinha esse satélite, assim como os geólogos restauram os ossos dos animais desaparecidos. Uma pequena Lua! Embora que ela com certeza brilhava menos do que a atual, pois se encontraria mais perto da Terra.

- Perdão, professor - interveio logo o jovem mecânico que parecia um indiano, de-vido à cor da sua pele. - A mim me parece que a tão curta distância, a Terra teria atraído essa pequena Lua.

- O que? O que? - gritou Tiurin em tom ameaçador. - E a pequena Estrela Ketz, porque não cai na Terra, hein? Tudo depende da rapidez do movimento... Mas de qualquer forma a pequena Lua sucumbiu - disse, conciliador. - As forças em luta (sua inércia e a atração terrestre) a fizeram em pedacinhos. Ah, isto é também o que ameaça a nossa Lua. Ela se desintegrará em pequenos pedaços e a Terra terá um magnífico anel como o de Saturno. Acho que esse anel dará tanta luz quanto a Lua atual. Enfeitará as noites dos habitantes terrestres. Mas de qualquer forma será uma perda - terminou o professor, com um suspiro.

- Uma perda irreparável - acrescentei.- Talvez sera reparável. Tenho alguns projetos, mas por agora me calo.- E como vocês caçavam os meteoros? - perguntei a Sokolovsky- É uma caça divertida - respondeu o geólogo. - Eu tive que caçá-los, não somente

na órbita da Estrela Ketz, como...- Na zona de asteroides entre as órbitas de Marte e Júpiter - interrompeu Tiurin, -

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os astrônomos terrestres identificaram pouco mais de dois mil asteroides ali. Mas meu catálogo já passa dos quatro mil. Esses asteroides também são restos de um planeta, mas mais importante que nossa segunda Lua. Segundo meus cálculos, esse planeta era maior que Mercúrio. Marte e Júpiter o desintegraram com suas atrações. Não o compartilharam! O anel de Saturno é também um satélite seu que sucumbiu, destroçado aos pedados. Já viram quantos cadáveres há em nosso sistema solar. Quem irá segui-los? Ai, ai, ai, outra vez esses empurrões!

Olhei novamente pela janelinha, segurando-me no apoio. Através dela se via o mesmo céu negro coberto de estrelas. Assim se pode voar durante anos inteiros, sé-culos, e o quadro será o mesmo...

Então recordei de uma viagem que fiz em um vagão de um trem ordinário com uma velha locomotiva a vapor. Era verão. Entardecia. O sol se ocultava por trás do bosque dourando as nuvens. Pela janela aberta do vagão entrava a umidade do bos-que com aroma de acônito e tília No céu, atrás do trem corre a jovem Lua em seu quarto crescente. O bosque deixa passagem a um lago, o lago a uns promontórios e neles estão dispersas casas com frondosos jardins. Logo vieram os campos com aro-ma de trigo maduro... Quantas impressões diferentes, quanto “movimento” para os olhos, para o ouvido e o olfato, expressando-se segundo Tiurin. E aqui, nem vento, nem chuva, nem mudança de tempo. Nem noite, nem verão, nem inverno. Sempre esta lúgubre abóboda celeste, o espantoso sol azulado e o clima invariável no fogue-te...

Não, por interessante que seja estar no céu, na Lua, em outros planetas, eu não trocaria esta vida “celeste” pela terrestre...

- Pois bem!... A caça aos asteroides é uma das mais atrativas - ouvi logo a voz de baixo do geólogo Sokolovsky

Gosto de escutá-lo, pois fala de uma maneira simples, como se conversasse em casa, em seu gabinete, reunido com amigos que vieram passar um tempo. A ele, pelo visto, não produz sensação alguma a situação extraordinária em que nos acha-mos.

- Aproximando-se da zona de asteroides temos que estar muito atentos - disse Sokolovsky, - ou do contrário é possível que algum “pedacinho” do tamanho do Palá-cio dos Soviets de Moscou, ou maior ainda, caia sobre o foguete e... esqueça de como se chamava! Por isto temos que voar pela tangente, aproximando-se mais e mais na direção dos asteroides... Que quadro formoso! Nos aproximamos da zona de asteroides. O aspecto do céu muda... Olhe para o céu! Na realidade não se pode di-zer que seja completamente negro. O fundo é negro, mas nele há uma massa com-pacta de estrelas. E eis que nessa massa luminosa se notam raias escuras. É o voo dos asteroides não iluminados pelo Sol. Alguns desenham no céu traços luminosos como a prata, outros deixam rastros de cor vermelho bronze. Todo o céu fica cheio de traços mais ou menos luminosos. À medida que o foguete voa na direção do mo-vimento dos asteroides e aumenta sua velocidade, quando voa quase igual a eles, as raias deixam de aparecer. Você se encontra em um mundo extraordinário e voa en-tre inumeráveis “luas” de diversas formas e tamanhos. Todos voam em uma direção, mas ainda continuam avançando para o foguete.

Quando alguma lua voa perto do foguete, poderá ver que ela não é redonda. Es-sas “luas” têm formas muito variadas. Um asteroides, digamos, parece com uma pirâmide, outro que se aproxima tem a forma de uma esfera, um terceiro se parece com um cubo tosco. A maioria é simplesmente disformes pedaços de rochas. Alguns voam em grupos, outros, sob a influência da atração mútua, se reúnem, formando como um “cacho de uvas”... Suas superfícies, neste caso, varia: pode ser opaca ou

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reluzente como o cristal de rocha. “Luas” à direita, “luas” à esquerda, acima, abaixo... Quando o foguete diminui sua velocidade, parece como se as “luas” imedia-tamente fossem para adiante, mas quando o foguete novamente adquire velocidade, então parece que elas freiam. Finalmente o foguete as ultrapassa e as “luas” ficam para trás.

É perigoso voar mais depressa que os asteroides. Eles podem alcançar e destruir o foguete. Ao contrário, é completamente seguro voar na mesma direção e na mesma velocidade. Mas então você vê unicamente os asteroides que lhe rodeiam. Parece que tudo está imóvel: o foguete, as “luas” da esquerda, as da direita, as de cima e as de baixo. Somente a cúpula celeste avança lentamente, pois, apesar de tudo, os asteroides e o foguete voam e mudam de posição no céu.

Nosso capitão preferiria voar um pouco mais veloz que os asteroides. Então a mas-sa de asteroides ficam em cima. E ademais você se move entre eles, entre uma nu-vem de “luas”. Você as observa, escolhe. Em uma palavra, intervem como no perso-nagem do diabo de Gogol, que queria roubar a Lua do céu. Só que pequena. Ainda não temos força suficiente para arrancar um grande asteroide de sua órbita e arras-tá-lo para a Estrela Ketz. Temos medo de gastar todo o combustível na “peleja” e de ficarmos prisioneiros do asteroide, que nos levaria com ele... Nos primeiros tempos escolhíamos os menores. Era necessária uma grande destreza e sangue frio para nos acercarmos do asteroide sem bater, e “abordá-lo”. O capitão dirigia o foguete de ma-neira que, voando ao seu lado, procurava aproximar-se o mais possível. Então os dis-paros de lado cessavam e púnhamos em ação o eletroímã, pois quase todos os aste-roides, exceto os cristalinos, são compostos principalmente de ferro. Finalmente, quando a distância era mínima, desligávamos o eletroímã, deixando que a força de gravidade fizesse o resto. Ao cabo de alguns instantes, sentíamos uma pancada in-significante e seguíamos voando junto com nosso satélite. As primeiras tentativas de “abordagem” nem sempre saíram como se esperava. Algumas vezes batíamos com muita força. E nestes casos, sem que notássemos, ele se desviava da sua órbita; e como nosso foguete era mais rápido, disparava para um lado, sendo necessário ma-nobrar novamente. Mas já tínhamos a manha de “abordar” de forma mais limpa. Restava somente “amarrar” o asteroide ao foguete. Tentamos amarrá-lo com corren-tes, tentamos aguentá-lo com eletroimãs, mas tudo isto não dava resultado. Final-mente aprendemos a soldar os meteoros na coberta metálica do foguete e para isto nos servíamos de aparelhos de solda heliogênica, aproveitando a energia solar.

- Mas, e para isto era necessário sair do foguete? - perguntei.- Claro, e saíamos. Fizemos até excursões nos asteroides. Lembro de um caso -

continuou Sokolovsky rindo. - Chegamos a um grande asteroide, eu me agarrei a um dos ângulos do asteroide e tentei fazer uma “viagem” ao redor daquele mundo. E que acha você que aconteceu? Pois nos “polos” achatados desse planeta eu podia fi-car em pé, mas no proeminente “equador” o centro de gravidade havia se deslocado e eu tive que ficar de cabeça para baixo, com os pés para cima. E assim caminhei por ele, agarrando-me com as mãos.

- Seria seguramente um pequeno planeta giratório; e não é que o centro de gravi-dade tivesse se deslocado, e sim a gravidade relativa - retificou Tiurin - Nas superfí-cie dos polos de rotação, a gravidade tem seu valor máximo e a direção normal para o centro. Mas quanto mais longe do polo, menor é a força de gravidade. Assim, uma pessoa que vai do polo ao equador, é como se descesse uma montanha e além disso o declive aumenta sem cessar. Entre os polos e o equador a direção da gravidade coincidia com o horizonte e para você parecia que descia por uma ladeira quase ver-tical. Mais adiante o solo já lhe parecia como um teto inclinado e tinha que se agar-

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rar onde podia para não ser lançado do planeta... Da Terra, com os melhores teles-cópios - continuou Tiurin, - se distinguem planetas com diâmetros não menores que seis quilômetros. Mas há asteroides do tamanho de uma partícula de pó.

- E em quantos eu estive! - disse Sokolovsky. - Em alguns, a força de gravidade é tão insignificante que é suficiente um pequeno salto para sair disparado da sua su-perfície. Estive em um desses, que tinha uma circunferência de dezessete quilôme-tros e meio. Ao saltar a um metro de altura, demorava vinte e dois segundos para voltar a tocar a superfície. Ao fazer um movimento semelhante a passar por uma porta na Terra, lá eu subia à altura de duzentos e dez metros..., um pouco menos que a altura da torre Eiffel. Atirava pedras e elas não voltavam a cair.

- Cairão; mas após algum tempo - acrescentou o astrônomo.- Estive em um planeta relativamente grande, com um diâmetro apenas seis vezes

menor que a Lua. Nele, somente com uma mão eu levantava vinte e duas pessoas, todos os meus companheiros. Ali a pessoa podia se balançar em um balanço amarra-do com cordões finos, construir torres de seis quilômetros e meio de altura. Testei disparar com o revólver e você não pode imaginar o que aconteceu! Se eu mesmo não tivesse sido impelido do planeta pelo disparo, minha bala teria podido me matar por trás, depois de voar ao redor do asteroide. Tenho certeza de que ela ainda conti-nua dando voltas ao planeta, como se fosse um satélite. (1)

- Em um planeta assim, os trens poderiam ira a uma velocidade de mil e duzentos quilômetros por hora - disse Tiurin. - A propósito, alguns desses planetas poderiam aproximar-se da terra. Por que não organizar uma melhor iluminação das noites ter-restres? E então povoar esses planetas, envolvendo-os em redomas de vidro, como se fossem estufas. Semear plantas, criar animais. Com o tempo, do mesmo modo poderíamos povoar a Lua.

- Na Lua faz muito frio ou muito calor - eu disse.- Uma atmosfera artificial sob uma cúpula de vidro com cortinas reduziria o alor do

Sol. No que se refere ao frio do solo durante as noites lunares, tenho minha opinião - acrescentou Tiurin em tom significativo. - Não renunciamos à teoria do núcleo can-dente da Terra com temperaturas extraordinariamente altas? (2) E apesar disto nossa Terra é quente...

- O Sol e o abrigo da atmosfera... - começou o geólogo, mas Tiurin o interrompeu.- Sim, sim, mas não é somente isto. Na crosta terrestre se desenvolve o calor da

desintegração radioativa que tem lugar em suas entranhas. Por que isto também não pode acontecer na Lua? Inclusive em mais alto grau? A desintegração radiativa pode esquentar o solo da Lua. E ademais, o magma ainda não esfriado debaixo da sua crosta... A Lua não é tão fria como parece. E se além disso, houver restos de atmos-fera... Eis aqui porque você, biólogo, foi incluído nesta expedição - disse, dirigindo-se a mim.

Sokolovsky balançou a cabeça em dúvida- Nos asteroides eu não consegui encontrar nenhum esquentamento do solo cau-

sado pela desintegração radioativa dos elementos.- Os asteroides são menores que a Lua - respondeu o astrônomo gritando.Ficou calado durante muito tempo mas logo voltou com sua filosofia, como se em

seu cérebro as linhas das ideias fossem paralelas.Estrelas mortas que já não brilham olham pela vigia do nosso foguete. A chuva de

estrelas, atravessando a abóboda celeste, vai para o lado e para o alto. O foguete gira.

(1) Que mentira da p.... N.do Espinhudo.(2) ???????

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- Temos recolhido muitos asteroides - me disse Sokolovsky em voz baixa, sem prestar atenção em Tiurin que, como uma pitonisa, pronunciava suas sentenças. - Antes de tudo, “fizemos as bases” abaixo do nosso cosmódromo. Quanto maior fosse sua massa, mais estabilidade teria. Os golpes casuais dos foguetes, quando chega-vam não poderiam deslocá-lo no espaço. Também provimos nossas fábricas com as-teroides. Você ainda não conhece esta faceta. Não faz muito tempo, conseguimos caçar um pequeno planeta interessantíssimo Bem, era tão somente um pedaço que, segundo a medida terrestre, teria uma tonelada e meia de peso. Imagine um pedaço totalmente formado de ouro... Que achado! Jazidas de ouro no céu...

Pelo visto Tiurin ouviu estas palavras, pois comentou:- Nos grandes planetas, os elementos se espalham partindo da superfície para o

centro, segundo seu peso específico: acima o silício e o alumínio “sial”; abaixo do silí-cio há o magnésio (“sima”, mais abaixo o níquel, o ferro) “nife”, o ferro e outros me-tais mais pesados: platina, ouro, mercúrio, chumbo... Seu asteroide de ouro seria um pedaço do núcleo central de um planeta destroçado. É um caso raro. Não contem encontrar muitos como este.

Eu estava com sono. Meu organismo ainda não havia se desacostumado do regime de vida terrestre. Da troca do dia e da noite.

- Vai dormir? - perguntou Tiurin. - Boa noite e descanse. Eu já perdi o costume de dormir à noite. No observatório eu perdi completamente o hábito de dormir regular-mente. E agora eu pareço com aqueles animais que dormem a intervalos curtos. Como um gato, por exemplo.

E continuou falando, mas eu adormeci. Não havia explosões, somente silêncio, tranquilidade... Sonhei com meu laboratório em Leningrado...

Quando depois de um dia olhei para o céu, estranhei o aspecto da Lua que ocupa-va a sétima parte do céu e dava medo pelo seu grande tamanho. Estávamos tão so-mente a dois mil quilômetros dela. As montanhas, os vales e os “mares sem água” viam-se como na palma da mão. Se destacavam bruscamente os contornos de algu-mas cordilheiras e os cones de vulcões apagados, sem vida, como tudo na Lua. Vi-am-se inclusive, as profundas rachaduras...

O astrônomo olhava a Lua fixamente. Conhecia há muito tempo “cada pedra da sua superfície”, como ele dizia.

- Vejam ali, no extremo. É Clavius, abaixo está Tycho, e mais adiante Alfonso, Pto-lomeu, à direita Copérnico, e mais além os Apeninos, Cáucaso, Alpes...

- Falta o Pamir e o Himalaia - acrescentei eu.- Então vamos batizar os picos da outra face invisível da Lua - disse o geólogo sor-

rindo. - Ali eles ainda não têm nome.- Mas que Lua! - dizia Tiurin admirado. - Cem vezes maior que a “terrestre”. Ai, ai,

ai - gemeu, - outra vez a sobrecarga.- O capitão está freando - disse o geólogo. - A Lua está nos atraindo cada vez com

mais força. Dentro de meia hora chegaremos.Eu me alegrei mas também me assustei um pouco. Que me chame de covarde

aquele que já pisou na Lua e não se emocionou ante sua próxima “alunissagem”.A Lua está abaixo de nós. Ocupa a metade do céu. Seus picos crescem diante dos

nossos olhos.Mas é estranho; a Lua, igualmente à Terra, do alto parece côncava e não proemi-

nente. Aparece como uma sombrinha voltada ao contrário.Tiurin se queixava: as contra explosões aumentavam. Apesar disto, ele não deixa-

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va de olhar. Mas logo começou a se mover para o lado. E somente porque meu cor-po ficou mais pesado de um lado, compreendi que o foguete havia mudado nova-mente a direção. A gravidade se deslocou tanto que a Lua já era “percebida” acima de nós. Era difícil entender a ideia de como poderíamos andar pelo “teto”.

- Aguente mais um pouco, professor - disse o geólogo, dirigindo-se a Tiurin. - Res-tam somente dois ou três quilômetros. O foguete já está voando muito devagar, não mais que algumas centenas de metros por segundo. A pressão dos gases do foguete é igual à atração lunar; portanto, está indo somente pela inercia.

Novamente nos sentimos leves. O peso desapareceu.- Onde nós descemos? - perguntou Tiurin, já reanimado.- Parece que perto do nosso vizinho Tycho Brahe. Faltam somente quinhentos me-

tros - disse Sokolovsky.- Ai, ai, ai! Outra vez as contra explosões - gemeu Tiurin.Bom, agora já está tudo normal. A Lua já está abaixo.- Agora nós descemos... - disse Sokolovsky emocionado. - Contanto que nosso

“automóvel” lunar não fique destroçado ao cair.Passaram-se uns dez segundos e senti uma leve batida. As explosões cessaram.

Com bastante suavidade caímos para um lado.

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XIV. NA LUA - Chegamos! - disse Sokolovsky. - Tudo correu bem.- Não fechamos as escotilhas quando caímos - resmungou Tiurin. - Isto foi uma

imprudência. O foguete podia ter caído de lado e romper o vidro.- Bom, não é a primeira vez que nosso capitão “aluniza” - replicou Sokolovsky. -

Bem, queridos camaradas, ponham os trajes interplanetários e transfiram-se para o “automóvel lunar”.

Nos vestimos rapidamente e saímos do fogueteRespirei profundamente. E apesar de estar respirando o oxigênio do meu aparelho,

me pareceu como se aqui o gás tivesse outro “gosto”. Isto, claro, era tudo imagina-ção. Minha segunda impressão foi completamente real, foi a sensação de leveza. Já antes, durante os voos nos foguetes e na Estrela Ketz, onde havia uma completa fal-ta de gravidade, eu havia experimentado esta leveza, mas aqui na Lua sentíamos a gravidade como uma “magnitude constante”, só que bastante menor que na Terra. Não era brincadeira! Eu agora pesava menos que meu peso terrestre!

Olhei ao redor. Acima de nós achava-se o mesmo céu lúgubre com suas estrelas sem brilho. Não se via o Sol e tampouco a Terra. Escuridão completa, atenuada tão somente pelos raios de luz das escotilhas do nosso foguete. Tudo isso era muito es-tranho, pela ideia terrestre que temos do nosso satélite reluzente. Então adivinhei: o foguete caiu mais ao sul de Clavius, no lado invisível da Lua visto da Terra. E aqui agora era noite.

Tudo ao redor era silêncio e deserto sem vida. Não sentia frio dentro do meu traje eletrificado, mas o aspecto desse deserto inóspito me gelava a alma.

Saíram também do foguete o capitão e o mecânico, para ajudarem a tirar o auto-móvel. O geólogo me convidou com um gesto a tomar parte no trabalho. Olhei para o carro foguete. Tem a forma de vagão-ovo. Apesar de ser pequeno, deve ser pesa-do. Mas não vejo cordas, nem cabos, nem gruas; em uma palavra, nenhum aparelho para descê-lo. O mecânico trabalhava lá em cima desenroscando as porcas. O capi-tão, Sokolovsky, Tiurin e eu estamos embaixo, preparados para receber o carro-fo-guete. Vai nos esmagar... Mas, bem, estamos na Lua. Não é fácil se acostumar assim de repente. Sokolovsky puxa ele. O capitão está no meio e eu na parte dianteira. Agora o carro virá abaixo... Eu estou preparado para prendê-lo e ao mesmo tempo penso em como e onde saltar, se o peso for demasiado para minhas forças. Mas meus temores são em vão. Seis braços, segurando o deslisante automóvel, sem grande esforço o colocam sobre suas rodas.

O capitão e o mecânico se despedem agitando a mão e voltam para o grande fo-guete.

No carro era bastante estreito, mas em compensação podíamos nos livrar dos nos-sos trajes e conversar.

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Sokolovsky ficou no comando, já que conhecia a construção do pequeno foguete. Acendeu a luz, acionou o aparelho de oxigênio e ligou a calefação elétrica.

O interior do foguete lembrava um automóvel ordinário de pequenas dimensões. Seus quatro assentos ocupavam a parte dianteira do mesmo. Dois terços da cabine estavam ocupadas pelo combustível, pelas provisões e mecanismos. Essa parte do veículo levava a uma estreita portinha, pela qual era difícil entrar.

Ao tirarmos nossos trajes e escafandros sentimos frio, apesar da calefação elétrica já estar ligada. Eu tinha calafrios. Tiurin colocou por cima um abrigo de peles.

- Nosso foguete esfriou muito. Tenham um pouco de paciência, logo estará quente - disse Sokolovsky.

- Já está começando a alvorada - disse Tiurin, olhando pela escotilha do nosso veí-culo.

- A alvorada? - perguntei eu, estranhando - Como se pode ver na Lua o brilho do amanhecer se não existe atmosfera?

- Pois acontece que pode - respondeu Tiurin. Eu nunca havia estado na Lua, mas como astrônomo sabia tanto das condições lunares como das terrestres.

Olhei pela escotilha e vi ao longe alguns pontos luminosos, como se fossem peda-ços de metal em fusão.

Eram os picos das montanhas, iluminadas pelos raios do sol nascente. Seu vivo re-flexo iluminava outros cumes. Sua lua ia se transmitindo mais; e mais além ia enfra-quecendo pouco a pouco. Era isto que criava o original efeito da alvorada lunar. À sua luz, comecei a distinguir as cordilheiras que se achavam na sombra, as cavidades dos “martes” e os picos cônicos. Montanhas invisíveis se destacavam contra o fundo do céu estrelado, mostrando suas fendas como traços negros de caprichosos contor-nos dentados.

- Logo o sol vai sair - eu disse.- Não tão logo - replicou Tiurin. - No equador da Terra ele sai em dois minutos,

mas aqui será necessário esperar mais de uma hora até que todo o disco solar se eleve sobre o horizonte, pois os dias na Lua são trinta vezes mais longos que na Ter-ra.

Fiquei preso à escotilha sem poder me afastar. O espetáculo era magnífico! Os cu-mes das montanhas acendiam-se com luz cegante, uma após a outra, como se seres desconhecidos estivessem acendendo nelas bengalas de grande potência. Quantos picos há na Lua! Os raios do sol, ainda invisíveis, “cortaram” todos os cumes das montanhas a uma mesma distância da superfície. E parecia como se de repente apa-recessem no “ar” montanhas de estranhos contornos, mas com bases planas iguais. Foi aumentando mais e mais a quantidade dessas montanhas em chamas até que, fi-nalmente, se divisaram suas projeções” e elas deixaram de parecer flutuantes no fundo negro,

Suas partes inferiores eram de cor cinza claro, e mais acima de um branco deslum-brante. Gradualmente, as bases das montanhas foram se iluminando pelos reflexos do sol. A “alvorada lunar” se tornou ainda mais luminosa.

Completamente encantado por esse espetáculo, eu não podia tirar meus olhos da escotilha. Queria ver as particularidades e o traçado das montanhas lunares, mas me dei conta de que eram quase como na Terra. Em alguns pontos, as rochas pendiam de forma inverossímil sobre o abismo, como enormes cornijas, e não caíam. Aqui elas pesavam menos, a gravidade era menor.

Nas planícies lunares, como grandes campos de batalhas passadas, haviam bura-cos em forma de funil de diversas medidas. Alguns pequenos, não maiores que os que deixam, ao explodir, uma granada de três polegadas, outros se aproximavam

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das medidas de uma verdadeira cratera. Serão sinais de meteoritos caídos na Lua? Talvez. Na Lua não existe atmosfera e, portanto, não tem a cobertura protetora que possa evitar, como na Terra, que essas bombas celestes caiam inteiras. Mas... bem, então aqui não estamos livres de perigo. Que acontecerá se cair em cima de nós uma dessas bombas meteoro?

Comuniquei a Tiurin minha inquietação e ele me olhou sorrindo.- Parte das crateras são de origem vulcânica, mas outras sem dúvida são feitas

poe meteoritos que caem - disse ele. - Você tem medo que um deles caia em sua ca-beça? Esta possibilidade existe, mas o cálculo das probabilidades nos demonstra que o perigo é um pouco maior que na Terra.

- Um pouco maior??!! - exclamei. - Caem muitos meteoros grandes na Terra? Eles são procurados como uma raridade. Aqui, ao contrário, a superfície está coberta de-les.

- Isto é verdade - disse tranquilamente Tiurin. - Mas você está se esquecendo de uma coisa: faz muito tempo que a Lua não tem atmosfera. E ela existe a bilhões de anos; além do fato de que, não existindo aqui nem vento nem chuva, as marcas fica-ram intactas. Estas crateras são os anais de muitos milhões de anos de vida. Se na Lua cair um meteoro de grandes dimensões a cada cem anos, já é muito. E vamos ter tanto má sorte precisamente agora, quando estamos aqui, vai cair um meteoro? Eu não teria nada contra, claro, sempre que não caísse exatamente sobre nossas ca-beças, e sim perto para poder vê-lo.

- Vamos discutir sobre o plano das nossas operações - disse SokolovskyTiurin propôs começar com um exame geral da superfície lunar.- Quantas vezes eu admirei, com meu telescópio, o circo de Clavius e a cratera de

Copérnico! - disse. - Quero ser o primeiro astrônomo a pisar nesses lugares.- Eu proponho começarmos com o exame geológico do solo - acrescentou Soko-

lovsky. - Sobretudo porque a parte invisível para a Terra ainda não está iluminada pelo sol e aqui começa a “amanhecer”.

- Você está equivocado - replicou Tiurin, - ou melhor, não muito exato. Na Terra estão vendo a Lua agora em quarto crescente. Nós podemos percorrer este “quarto”, o extremo oriental da Lua, em quarenta e cinco horas, se pusermos nosso bólide a duzentos quilômetros por hora. Vamos parar unicamente em Clavius e em Copérnico. Além disso, quem é o chefe da expedição, eu ou você? - concluiu, acalorado.

O passeio pelo “quarto” me interessou.- Na verdade, por que não admirar os mais grandiosos circos e crateras da Lua? -

falei. - Suas estruturas geológicas também têm grande interesse.O geólogo encolheu os ombros. Sokolovsky já tinha estado na parte da Lua que é

vista da Terra, mas se a maioria queria...- Mas você não subiu a cratera, não é mesmo? - perguntou Tiurin com temor.- Não, não - sorriu Sokolovsky - O pé do homem nunca pisou naqueles locais. Você

será o primeiro. Eu estive no “fundo” do Mar da Abundância. E posso confirmar que este nome é justificado, falando de materiais geológicos. Eu recolhi ali uma coleção extraordinária... Bem, não percamos tempo. Vamos então, vamos. Mas permitam-me ir a uma grande velocidade. Em nosso carro podemos fazer mais de mil quilômetros por hora. Que seja, vou levá-los a Clavius.

- E a Copérnico - acrescentou Tiurin. - Pelo caminho veremos os Cárpatos. Acham-se um pouco mais ao norte de Copérnico.

- De acordo! - respondeu Sokolovsky, passando a marcha.Nosso foguete estremeceu, percorreu um trecho sobre suas rodas e, deixando a

superfície, foi tomando altura. Vi nosso grande foguete pousado no vale e então um

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raio de luz me cegou: O Sol!Ainda estava muito baixo no horizonte. Era um sol de madrugada, mas não se pa-

recia em nada com o que vemos da Terra! A atmosfera o tornava avermelhado. Ti-nha uma cor azulada, como sempre, neste céu negro. Apesar disto, sua luz era des-lumbrante. Através do vidro da escotilha senti imediatamente o calor.

O foguete havia subido e voava acima dos altos picos. Tiurin observava com aten-ção o contorno das montanhas. Havia esquecido dos embates que acompanham as mudanças de velocidade e também da sua filosofia. Agora era tão somente um as-trônomo.

- Clavius! É ele! Já estou vento três crateras não muito grandes em seu interior.- Eu o levo para o circo mesmo? - perguntou Sokolovsky sorrindo.- Sim, para o circo. Bem perto da cratera! - exclamou Tiurin, e começou a cantar

de alegria.Isto foi tão inesperado para mim como ouvir uma aranha cantar. Creio que já ha-

via dito que Tiurin tinha uma voz extremamente fina, o que infelizmente não se po-dia dizer do seu ouvido. Em seu canto não havia ritmo nem melodia. Sokolovsky olhou para mim maliciosamente e sorriu.

- O que? O que foi? - perguntou-lhe Tiurin.- Estrou procurando um lugar para descer - respondeu o geólogo.- Um lugar para pousar?! - exclamou Tiurin. - Creio que há lugares de sobra. O

diâmetro de Clavius tem duzentos quilômetros. Uma terça parte da distância que se-para Moscou de Leningrado!

O circo de Clavius era uma espécie de vale rodeado por um alto terreno plano. Tiurin disse que a altura desse terreno era de sete quilômetros. Mais alto que os Al-pes. Julgando pela sombra dentada que projeta no vale, esse terreno tem uma crista muito desigual. As três sombras das crateras se esticavam, ocupando assim todo o circo.

- É o melhor tempo para fazer excursões pelo circo - disse Tiurin. - Quando o Sol estiver acima, o calor será insuportável. O solo ficará em brasa. Agora está somente começando a esquentar.

- Tanto faz, também aguentaremos o dia lunar. Nossos trajes nos resguardam tão bem do calor como do frio - respondeu Sokolovsky. - Estamos baixando. Segure fir-me, professor!

Eu também me agarrei no assento. Mas o foguete, quase sem sacudir, caiu sobre suas rodas, deu um salto, voou uns vinte metros, caiu novamente, outra vez deu um saldo menor e finalmente correm por uma superfície bastante lisa.

Tiurin pediu para ir até o centro do triângulo formado pelas três crateras.Rapidamente nos dirigimos para elas. O solo se fazia cada vez mais irregular, mas

escabroso, e começamos a saltar em nossos assentos.- Será melhor que passemos em um salto - disse o geólogo. - Ou vamos deixar as

rodas nesta “pista”Neste mesmo instante sentimos uma forte pancada. Alguma coisa havia se quebra-

do; E nosso bólide, inclinando-se para um lado, foi dando saltos lentamente pelos torrões

- Aí está o que eu dizia! - exclamou Sokolovsky, com desgosto. - Uma avaria. Tere-mos que sair e reparar.

- Temos rodas de substituição. Nós nos arranjaremos - disse Tiurin. - Caso contrá-rio iremos a pé. Até as crateras são somente uns dez quilômetros. Vistamo-nos.

Tirou depressa o cachimbo e começou a fumar.- Eu proponho comermos um pouco - disse Sokolovsky. - Já está na hora de co-

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mer.Apesar da sua pressa, Tiurin teve que obedecer. Comemos frugalmente e saímos

para o exterior. Sokolovsky balançou a cabeça: a roda estafa destruída. Foi necessá-rio por uma nova.

- Bom, enquanto vocês fazem isso, eu vou - disse Tiurin.E com efeito começou a correr. Parecia estar deslizando em gelatina. O que pode

a curiosidade! Sokolovsky, admirado, abriu os braços com um gesto de surpresa. Tiurin saltava com facilidade fendas de mais de dois metros e somente as mais lar-gas o obrigavam a dar a volta. Metade do seu traje brilhava ao sol e a outra metade quase se perdia na sombra. Parecia como se na superfície lunar estivesse se moven-do um estranho monstro, saltando sobre a perna direita e agitando também o braço direito. A perna e o braço esquerdo cintilavam periodicamente com uma estreita fai-xa luminosa. A “quarta” parte da figura de Tiurin, iluminada, afastou-se rapidamente.

Estivemos ocupados com a roda por alguns minutos. Quando tudo estava conser-tado, Sokolovsky me propôs ir para a plataforma superior aberta do foguete, onde havia um segundo comando de direção. Retomamos nosso caminho seguindo as pe-gadas de Tiurin. Cavalgar na plataforma superior era mais interessante ainda. Dali se podia ver tudo ao nosso redor. À nossa direita, quatro sombras de montanhas se projetavam suas silhuetas no vale, vivamente iluminado pelo Sol. À esquerda, “ardi-am” somente os cimos das montanhas e suas bases estavam submersas no crepús-culo lunar. Vista da Terra, esta parte da Lua parece de cor cinza. As cordilheiras ti-nham declives mais suaves do que eu esperava. Seguíamos pela borda do “quarto crescente”, ou seja, pela linha “terminal”, como disse Tiurin, o limite entre a luz e a sombra.

Subitamente, Sokolovsky me deu uma pancadinha com o cotovelo e com a cabeça apontou para a frente. Diante de nós havia uma enorme fenda. Mais de uma vez ha-víamos passado correndo por fendas dessas dimensões, e se eram muito grandes, voávamos sobre elas. Com certeza, Sokolovsky teria me avisado antes do salto para que eu não caísse Eu olhei para ele, interrogativamente. O geólogo aproximou seu escafandro do meu e disse:

- Olhe, nosso professor...Dei uma olhada e Vi Tiurin que acabava de sair da faixa de sombra. Corria agitan-

do os braços, ao longo da extensa fenda, em direção a nós. Pelo visto não podia sal -tá-la.

- Está com medo que passemos na frente dele e sejamos os primeiros a chegar ao centro do crico - disse o geólogo. - Teremos que parar.

E quando paramos, Tiurin subiu a plataforma de um salto. Realmente, a Lua o ha-via rejuvenescido.

Mas ele exagerou um pouco. Tiurin caiu em cima de mim com todo seu corpo e vi-a-se como seu traje se levantava convulsivamente no peito. O velho estava extraor-dinariamente cansado.

Sokolovsky “pisou no pedal” diante da fenda. Ouviu-se uma explosão e, ao mesmo tempo, o foguete deu uma puxão para cima. Neste instante vi diante dos meus olhos os pés de Tiurin. O cansaço se fez sentir e eu não tive tempo de me segurar firme-mente na varandinha e fui derrubado. Vi somo seu corpo descrevia um arco e come-çava a cair. Caía devagar, mas de uma altura considerável. Meu coração deixou de bater. Vai morrer!...

E nós já estávamos voando acima da longa fenda. Sokolovsky girou o foguete bruscamente, com o que por pouco eu também não caí; e rapidamente descemos para a superfície, não longe de onde jazia Tiurin. Ele estava estendido e não se mo-

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via. Sokolovsky, como pessoa entendida, revisou antes de tudo o traje. O menos bu-raco poderia ser mortal: o frio transformaria o corpo do professor em um pedaço de gelo em um instante. Por fortuna o traje estava inteiro, somente manchado em al-guns lugares pelo pó negro e tinha alguns arranhões sem importância, que não havi-am chegado a furá-lo. Tiurin levantou uma mão, moveu o pé... Vivo! Inesperada-mente ele se levantou sem ajuda de ninguém e se dirigiu para o foguete. Eu fiquei admirado. Somente na Lua se pode cair com tanta sorte. Tiurin subiu para o seu lu-gar e, sem dizer uma palavra, apontou com o braço para a frente. Olhei através do vidro do seu escafandro e vi que ele estava sorrindo!

Depois de alguns minutos chegamos ao local. O professor desceu do foguete com ar solene. Realizava um ritual. Este quadro ficou gravado em minha memória. O céu negro semeado de estrelas, o Sol azulado. De um lado, as montanhas com um brilho cegante e de outro, picos montanhosos “incendiados” até o branco, “pendentes no vazio”. O amplo vale do circo com quase a metade coberta por sombras das bordas dentadas; as marcas do nosso automóvel-foguete no solo rochoso coberto de cinzas e pó. Essas marcas na superfície lunar produziam um efeito singular.

No próprio limite da sombra, pisa solenemente uma figura, parecida com um bugio e deixando pegadas atrás de si... Pegadas do homem! Mas eis que esta figura para, olha para a cratera, olha para nós, para o céu, recolhe algumas pedras e forma uma pequena pirâmide. Então se abaixa e desenha com o dedo na cinza:

T I U R I N

Esta inscrição, feita na frágil cinza, com um dedo da mão, era de fato mais forte que as inscrições rúnicas nas rochas terrestres, pois as chuvas não vão erodíi-la, os ventos não vão preenchê-la de pó. Se conservará assim durante milhões de anos, supondo que não caia neste local algum meteorito casual.

Tiurin está satisfeito. Novamente subimos em nosso carro e voamos para o norte. O sol pouco a pouco se eleva no horizonte e ilumina isolados penhascos das monta-nhas situadas ao leste. Mas como deslisa lento pelo firmamento!

Novamente um salto sobre uma fenda. Desta vez Tiurin está preparado. Se agarra fortemente na varandinha e olha para baixo. Que fenda pavorosa! Não é fácil na Ter-ra existirem tais fendas. Não se vê o fundo, está escuro. Tem uma largura de vários quilômetros. Pobre velhinha, a Lua! Que rugas profundas tens no rosto!...

- Alfonso... Ptolomeu... Já os vimos quando voávamos para Lua - disse Tiurin. Ao longe vejo a cúspide de uma cratera.Tiurin aproxima seu escafandro do meu, de forma que possamos conversar, e me

comunica:- Ei-la aqui...! Copérnico! Uma das maiores crateras da Lua. Seu diâmetro ultrapas-

sa os oitenta e cinco quilômetros. A maior da Terra, na ilha do Ceilão, tem menos de setenta quilômetros de largura.

- Para a cratera! Para a própria cratera! - ordena Tiurin.Sokolovsky coloca o foguete na vertical e subimos, para voar sobre a borda da cra-

tera. De cima vê-se o círculo completo, no centro do qual se eleva um cone. O fo-guete desce na base do cone. Tiurin desce para a superfície e, dando saltos, se diri -ge para ele. Estará querendo subir até seu cone? Isto mesmo. Ele já começa a esca-lar pelas abruptas rochas, quase verticais, e com tal rapidez que o melhor alpinista da Terra não o teria alcançado. Na Lua a escalada é mais fácil. Aqui Tiurin pesa entre dez e doze quilogramas. Não é muito peso, mesmo para seus músculos debilitados.

Ao redor do cone e a alguma distância dele, há um terreno plano de pedras for-

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mando um círculo. Não compreendo sua origem. Se estas são pedras alguma vez ar-rojadas por um vulcão em erupção, então deveriam estar dispersas por todo lugar e não formariam um círculo tão perfeito.

A explicação veio inesperadamente. De repente senti que o solo estremecia. Será que na Lua ainda existem “lunamotos”. Olhei perplexo para Sokolovsky Este, em si-lêncio, estendeu o braço em direção a um pico: dali saiam em disparada rochas enormes que se desfaziam pelo caminho. Em sua corrida, essas rochas rolavam até o planalto.

Agora compreendo do que se trata! Na Lua não ventos, nem chuvas que destruam as montanhas. Mas em troca existe outro fenômeno destrutivo: a enorme diferença de temperaturas entre o dia e a noite lunares. Durante duas semanas a temperatura se sustenta em cerca de duzentos graus abaixo de zero; e em outras duas semanas, quase duzentos graus de calor. Uma diferença de quatrocentos graus! As rochas não resistem e fendem-se, rompendo-se em pedaços, como um vaso de vidro no qual se põe água fervendo. Tiurin deve saber isto melhor que eu. Como pôde cometer tal imprudência!... Pelo visto, ele mesmo já compreendeu isto e está descendo rapida-mente, saltando de rocha em rocha. À sua esquerda há outra avalanche, à direita também, mas ele já está perto de nós.

- Não, não! Eu não desisto da minha tentativa - disse ele, agitado, - mas escolhi uma má hora. Para subir nas montanhas lunares, é necessário fazê-lo no final do dia lunar ou à noite. Por agora já basta. Voemos para o Oceano das Tormentas e, dali, direto par ao leste, para o outro lado da Lua, o qual não foi visto por nenhum ser hu-mano.

- Eu gostaria de saber quem deu esses estranhos nomes - eu disse, quando já es-távamos a caminho. - Copérnico, Platão, Aristóteles... ainda não entendo. Por exem-plo: Que oceano das Tormentas pode haver na Lua, se absolutamente não existem tormentas? Uma mar da Abundância, onde não há nada, exceto pedras mortas, um mar das Crises... que crise? E que tipo de mares são estes onde não há uma única gota de água?

- Sim, os nomes não são de todo corretos - conveio Tiurin. - Claro que as cavida-des na superfície da Lua são leito de mares e oceanos que existiram alguma vez. Mas esses nomes... Mas precisavam ser chamados de alguma maneira” Quando os pequenos planetas foram sendo descobertos, a princípio os chamavam, segundo uma tradição já estabelecida, pelos nomes dos antigos deuses gregos. Mas logo se esgotaram todos os nomes e havia mais e mais planetas. Então se recorreu aos no-mes de homens célebres: Flamarion, Gauss, Pickeringe e até de conhecidos filantro-pos, como o norte americano Eduard Tuck. Assim, o capitalista Tuck pôde adquirir propriedades no céu. Eu acredito que para os pequenos planetas o melhor sistema seria o numérico... O Cárpatos, Alpes, Apeninos, na Lua, é por falta de fantasia. Eu, por exemplo, imaginei uma denominação completamente nova para as montanhas, vulcões, mares e circos, que descubramos no outro lado da Lua.

- Você não se esquecerá da cratera Tiurin, não é mesmo? - perguntou Sokolovsky sorrindo.

- Haverá que dê para todos - respondeu Tiurin. - A cratera de Tiurin, o mar de Sokolovsky e o circo Artiomov, se assim o querem.

Ainda não havia passado meia hora quando Sokolovsky, “aumentando o ardor” do nosso foguete, nos levou ao Oceano das Tormentas. O foguete desceu até o “fundo” do oceano. Este “fundo” era muito desigual. Em alguns lugares elevavam-se altas

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montanhas. É possível que em algum tempo seus cumes sobressaíam das águas, for-mando ilhas. Algumas vezes descíamos a profundos vales que se achavam na som-bra. Mas a escuridão não era completa: a luz refletida pelos picos das montanhas nos iluminava.

Olhei ao redor atentamente. As pedras davam sombras compridas e compactas. De repente vi ao longe uma sombra estranha em forma de grade, como uma grande cesta meio desfeita. Mostrei a sombra a Sokolovsky que parou imediatamente o fo-guete e eu corri para ela. Parecia uma pedra, mas uma pedra de forma diferente: como parte de uma espinha dorsal com suas costelas. É possível que tenhamos en-contrado os restos de algum monstro extinto? Ou seja, que na Lua existiram até ani-mais vertebrados? Para tanto, não faz muito tempo que perdeu sua atmosfera. Olhando atentamente, vi que as “vértebras” e as “costelas” eram finas demais para um animal de tais dimensões. Mas claro, na Lua a gravidade é seis vezes menor que na Terra e aqui os animais podiam ter esqueletos mais delicados. Alem disso, este seguramente foi um animal marinho.

O geólogo recolheu uma “costela” caída perto do esqueleto e partiu-a. Por fora era negra, no interior era de uma cor acinzentada e de aspecto poroso. Sokolovsky ba-lançou a cabeça e disse:

- Creio que isto não é osso, e sim corais.- Mas seu aspecto, seus contornos... - tentei objetar.Estivemos a ponto de entabular uma discussão científica, mas naquele momento

Tiurin se imiscuiu. Alegando seus poderes, exigiu a partida imediata. Tinha pressa em examinar a parte oposta da Lua enquanto estava quase toda iluminada pela luz do sol. Não tivemos outro remédio, senão obedecer. Recolhi alguns “ossos” para analisá-los detidamente na volta para Ketz e empreendemos o voo. Este achado me emocionou fortemente. Se fosse escavado o solo do fundo marinho, poderíamos fa-zer muitas descobertas inesperadas. Poder-se-ia reconstruir o quadro da breve vida na Lua. Breve, claro, em escala astronômica...

Nosso foguete corria para o leste. Eu olhava para o sol e me assombrava: estava subindo bastante depressa para o zênite. Subitamente, Tiurin passou as mãos de lado.

- Creio que perdi minha máquina fotográfica... O estojo está aqui, mas o aparelho não... Para trás! Não posso ficar sem máquina fotográfica! Com certeza ela caiu quando a pus no estojo, depois de fotografar aquele esqueleto nefasto! Aqui os obje-tos têm tão pouco peso que não é difícil que caiam sem notarmos...

O geólogo balançou a cabeça com desgosto, mas deu meia volta no foguete. E en-tão me dei conta e um fenômeno inverosímel: o sol foi para trás, para o leste, bai-xando gradualmente no horizonte. Tive a sensação de que estava delirando. Será que os raios solares me esquentaram a cabeça? O sol está se movendo no céu para um lado e depois para outro! Não me atrevia a dizer isto aos meus companheiros e continuava minha observação, calado. Quando chegamos ao local, nosso foguete di-minuiu a velocidade até uns quinze quilômetros por hora e o sol parou. Não posso compreender isto!

Pelo visto, Tiurin se deu conta de que eu olhava frequentemente para o céu. Sor-riu e, aproximando seu escafandro do meu, disse:

- Vejo que está inquieto pelo comportamento do sol. Entretanto a razão é simples. A Lua é um corpo celeste pequeno e, portanto, o movimento dos seus pontos equa-toriais é muito lento: menos de quatro metros por segundo. Portanto, se vai pelo equador a uma velocidade de cerca de quinze quilômetros por hora, para o oeste, o sol estará parado no céu; e se aumentar aumentar esta velocidade, o sol começará a

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“se por” para o leste. E ao contrário: quando nós íamos para o leste, na direção do sol, então, ao nos movimentarmos pela superfície lunar, obrigamos o mesmo a au-mentar sua ascensão Em resumo, aqui podemos dirigir o movimento do sul. É fácil fazer quinze quilômetros por hora na Lua é fácil, mesmo que seja a pé. Então, o ex-pedicionário que vá pelo equador para o oeste, vai a tal velocidade que terá o sol sempre acima... Isto é muito cômodo. Por exemplo, é muito conveniente ir seguindo o sol quando ele está perto do poente. O solo ainda está quente, há luz suficiente e já não existe o calor sufocante. Apesar dos nossos trajes nos preservarem das mu-danças de temperatura, a diferença entre a luz e a sombra é bastante sentida.

Chegamos ao local. Tiurin começou a procurar seu aparelho, e eu, aproveitando a oportunidade, comecei novamente a inspeção do fundo do Mar das Tormentas. Pode ser que algum dia houvesse de fato, na superfície deste oceano, espantosas tempes-tades. Que suas ondas eram cinco ou seis vezes mais altas que nos mares terrestres. Que verdadeiras montanhas de água se deslocaram algum vez por este mar. Que cintilaram relâmpagos, iluminando suas águas ruidosas, que retumbara o trovão, que o mar estivera cheio de monstros de gigantescas estaturas, maiores que os maiores já existentes na Terra...

Cheguei à borda de uma fenda. Tinha uma largura não menor que um quilômetro. Por que não olhar o que há no fundo? Acendi uma lâmpada elétrica e comecei a des-cer pelo lado de inclinação mais suave. Era fácil a descida. Comecei com precaução, e logo dando saltos e descendo mais e mais fundo. Acima brilhavam as estrelas. Ao meu redor uma escuridão impenetrável. Me pareceu que a temperatura aumentava à medida que ia descendo. Ou talvez eu estivesse quente por meus rápidos movimen-tos. Pena que não peguei o termômetro do geólogo. Teria podido comprovar a hipó-tese de Tiurin, segundo a qual o solo da Lua é mais quente do que os cientistas supõem

Pelo caminho comecei a encontrar restos estranhos de pedras de forma cilíndrica. Seriam troncos de árvores petrificadas? Mas como poderiam ter ido parar no fundo do mar, nesta profunda fenda?

Me enganchei em alguma coisa aguda e pouco faltou para que meu traje se ras-gasse. Um suor fio de angústia me invadiu; isto teria sido mortal. Me encolhi rapida-mente e apalpei o objeto com as mãos: eram uns estranhos dentes. Movi a lâmpada. Da rocha saía uma longa e negra serra de dois gumes, exatamente igual à dos nos-sos peixes serra. Não, isto não podia ser coral. Dirigi a luz para vários lados e tudo ao meu redor estava cheio de serras, presas retas em espiral, como as dos narvais, lâminas cartilaginosas, costelas... Todo um cemitério de animais desaparecidos... Era muito perigoso passear entre todas essas armas de ataque petrificadas. Apesar disto, eu vagava entre elas, encantado. Uma descoberta extraordinária! Somente por isto valia a pena fazer uma viagem interplanetária. Já imaginava como desceria a esta fenda uma expedição especial; e os ossos desses animais, que pereceram há milhões de anos atrás, seriam recolhidos e levados para Ketz, para a Terra, para os Museus e Academias de Ciências, onde os cientistas restaurariam os animais lunares...

Isto sim é que são corais! E não somente seis, e sim dez vezes maiores que os maiores corais terrestres. Todo um bosque de “cornos ramificados”. Alguns deles ain-da conservavam seu colorido. Uns eram de cor marfim, outros rosa, mas a maioria era de corais vermelhos.

Sim, pode-se afirmar que na Lua existiu vida. Pode ser que Tiurin tenha razão e que possamos descobrir restos dessa vida. Não somente os despojos mortais, e sim os restos vivos dos últimos representantes do mundo animal e vegetal...

Uma pequena pedra passou roçando por mim e foi cair em uma mata de coral pró-

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xima.Isto me fez voltar à realidade. Levantei a cabeça e vi, na borda superior da fenda,

umas luzinhas que cintilavam. Fazia tempo que meus companheiros estavam me fa-zendo sinais. Era necessário voltar. Fiz-lhes sinais com minha lanterna, recolhi de-pressa as amostras mais interessantes e enchi minha bolsa de campanha. Na Terra, este tesouro pesaria com certeza não menos que sessenta quilos. Ou seja, aqui não pesa mais que dez. Este lastro não me atrapalhou muito e subi rapidamente à super-fície.

Tive que escutar uma reprimenda por parte do astrônomo, por haver-me separado da expedição, mas quando lhe contei meu achado, ele abrandou um pouco.

- Você fez uma grande descoberta! Eu o felicito! - disse. - Naturalmente, organiza-remos uma expedição, mas agora não vamos nos deter mais. Adiante, sem demora de espécie alguma!

Mas apesar disto sobreveio uma demora. Já estávamos na extremidade do oceano. Diante de nós elevavam-se as penhas “costeiras” iluminadas pelo sol. Um espetáculo encantador! Sokolovsky parou a máquina sem querer.

Em baixo as rochas eram de pórfiros avermelhados e basaltos dos mais variados coloridos e matizes: verde esmeralda, rosa, cinza, azul, cor de palha e amarelo... pa-recia um tapete mágico oriental, iridescente com todas as cores do arco-íris Em al-guns lugares se viam contrafortes de um branco níveo e obeliscos rosáceos. Sobres-saíam nas rochas enormes cristais que resplandeciam com lua cegante. Como gotas de sangue, pendiam rubis alaranjados. Qual flores transparentes, luziam em sua for-mosura os jacintos, os pirones vermelho sangue, as escuras safiras melanitas, a al-madina roxa. Ninhos inteiros de safiras, esmeraldas, ametistas... Em um dos lados, em uma borda aguda do penhasco, brotou um feixe de vivos raios irisados. Somente os diamantes poderiam brilhar assim. Com certeza eram rupturas recentes da rocha, e por isto seu brilho ainda não havia sido empanado pelo pó cósmico.

O geólogo freou em seco. Tiurin por pouco não voltou a cair. Paramos. Soko-lovsky, tirando o martelo de geólogo da sua bolsa, já descia pelas rochas fulguran-tes. Depois dele ia eu, e logo após, Tiurin. Sokolovsky foi presa da loucura “geológi-ca”. Não era a cobiça do caçados de pedras preciosas. Era a cobiça do cientista que encontra uma jazida de minerais raros.

O geólogo golpeava com o martelo nos blocos de diamantes, com a fúria de um mineiro preso por um desmoronamento abrindo caminho para sua salvação. Sob seus golpes, os diamantes saltavam em todas as direções com fagulhas iridescentes. A loucura é contagiosa. Tiurin e eu recolhíamos pedaços de pedras diamantíferas e as atirávamos ali mesmo para voltar a recolher outras melhores. Enchemos nossas bolsas; nós as rolávamos em nossas mãos, expondo-as aos raios do sol ou as lançá-vamos para o ar. Ao nosso redor tudo cintilava e brilhava.

Lua! Lua! Da Terra te vemos de uma cor uniforme prateada. Mas quantas e varia-das cores se descobre quando se chega a pisar em tua superfície!...

Fomos surpreendidos muitas vezes com tais descobertas. As pedras preciosas, como um orvalho policromático, sobressaíam nas rochas de montanhas e picos. Os diamantes, as esmeraldas, as pedras preciosas mais caras na Terra, não são raras na Lua... Quase já nos acostumamos a tais espetáculos. Não lhes dávamos valor. Mas jamais esquecerei a “febre de diamantes” de que fomos presa nas margens do Mar das Tormentas...

Novamente voamos para leste, saltando através de montanhas e fendas. O geólo-go recupera o tempo perdido.

Tiurin, aferrado com uma mão ao espaldar do seu assento, levanta solenemente

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seu outro braço. Este gesto significa nossa passagem pela fronteira da superfície lu-nar visível da Terra. Entramos nas regiões desconhecidas. Nem um só homem jamis viu o que vemos agora. Minha atenção se esforça até o limite.

Mas os primeiros quilômetros nos desiludiram. É a mesma sensação que se apode-ra de nós quando vamos pela primeira vez ao estrangeiro Sempre parece que ao atravessar a fronteira tudo será diferente. Mas você se dá conta de que vê a mesma paisagem, os mesmos campos, a mesma vegetação... Somente a arquitetura muda, em alguns casos, e as vestimentas das pessoas variam. Depois, pouco a pouco se vai descobrindo as particularidades do novo país. Aqui a diferença era ainda menos ma-nifesta. As mesmas montanhas, circos, crateras, vales, cavidades de antigos mares...

Tiurin estava extraordinariamente inquieto. Não sabia o que fazer. Em cima do va-gão-foguete fia-se tudo melhor, mas no interior era mais cômodo para tomar notas. O que ganhava em um, perdia no outro. Por fim decidiu sacrificar as notas; de qual-quer forma, a superfície da parte “traseira” da Lua será, em um futuro próximo, es-tudada e medida cuidadosamente, e finalmente levada a um mapa. Agora era so-mente necessário ter uma ideia geral desta parte do relevo lunar ainda desconhecido para o homem. Decidimos passar pelo equador. Tiurin anotava somente os circos de maiores proporções, as crateras mais altas; e ao mesmo tempo lhes dava nomes. Este direito de primeiro explorador era para ele motivo de grande satisfação. Entre-tanto era tão modesto, que não tinha pressa em por seu nome às crateras e mares que descobríamos. Com certeza já tinha preparado todo um catálogo e agora o en-chia com nomes de cientistas, heróis, escritores e exploradores célebres.

- Que lhe parece este mar? - me perguntou, com ar de um rei que se dispõe a re -compensar seu vassalo com títulos e terras. - Gostaria de batizá-lo com o nome de “Mar de Artiomov”?

Olhei para a profunda cavidade cheia de fendas que se estendia até o horizonte. Este mar não se diferenciava em nada dos outros mares lunares.

- Se me permite - respondi-lhe, após um momento de hesitação, - nós o chamare-mos de “Mar de Antonino”,

- Antônio? Marco Antônio, o ajudante de Júlio ?César? - perguntou Tiurin, estra-nhando. Não havia ouvido bem, e pelo visto sua cabeça estava cheia de nomes de grandes homens e deuses antigos. - Bom, está bem. Marco Antônio! Não soa mal e me parece que é um nome ainda não utilizado pelos astrônomos. Que seja. E ano-tou: “Mar de Marco Antônio”.

Era violento corrigir o professor. Assim, Marco Antônio recebeu umas posses, a tí-tulo póstumo, na Lua. Bom, ainda restam bastantes mares para mim e para Tonia.

Tiurin pediu para fazer uma parada. Estávamos na região onde os raios do sol ain-da não chegavam.

Descemos e o astrônomo tirou o termômetro e afundou-o no chão. O geólogo des-ceu do foguete depois de Tiurin. Passado um tempo, Tiurin tirou o termômetro do chão e, após observá-lo, entregou-o a Sokolovsky. Aproximaram seus escafandros e pelo visto compartilharam suas impressões. Então subiram precipitadamente à plata-forma do foguete e ali começaram novamente a falar. Olhei para Sokolovsky com um olhar interrogativo.

- A temperatura do solo é de cerca de duzentos e cinquenta graus abaixo de zero, na escala Celsius - disse-me Sokolovsky - Por isto Tiurin está de mal humor. Acha que isto é devido a que neste lugar há poucos materiais radioativos, cuja desintegra-ção esquentaria o solo. Disse que também na Terra os oceanos se formaram ali onde o solo era mais frio. No fundo dos mares tropicais, a temperatura é inclusive menor que nos mares de latitude norte. Afirma que ainda acharemos zonas aquecidas pela

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desintegração radioativa Apesar de que, aqui entre nós, devo dizer-lhe que no regi-me térmico da Terra a desintegração radioativa tem uma magnitude insignificante. Penso que na Lua ocorre o mesmo.

Sokolovsky propôs subir em um lugar mais elevado, para poder observar melhor o relevo da superfície lunar da região em que nos encontrávamos.

- Teremos todo um mapa diante de nós. Inclusive, será possível fotografá-lo - dis-se Tiurin.

O astrônomo aceitou, nos seguramos firmemente e Sokolovsky aumentou as ex-plosões. O foguete começou a tomar altura. Tiurin tirava fotografias sem descanso. Em um lugar, em uma pequena elevação do terreno, vi um monte de pedras ou ro-chas em forma de ângulo reto.

“Será por acaso uma construção dos habitantes lunares? Dos que possivelmente existiram antes que o planeta se transformasse neste desolado satélite sem atmosfe-ra?”, pensei eu, e em seguida descartei esta ideia absurda De qualquer forma, a for-ma geométrica regular ficou gravada em meu cérebro como um dos enigmas a ser decifrado no futuro.

Tiurin estava inquieto em seu assento. Pelo visto o fracasso com o termômetro ha-via-lhe causado grande desgosto. Quando voamos sobre o “mar” seguinte, exigiu que Sokolovsky baixasse até a parte sombria do mesmo e mediu novamente a tem-peratura do solo. Desta vez o termômetro marcou cento e oitenta graus abaixo de zero. Uma diferença enorme, a não ser que fosse causada por um maior aquecimen-to do solo pelo sol. Mesmo assim Tiurin contemplou Sokolovsky com olhar de vence-dor e declarou categoricamente:

- “Mar Caloroso”, é assim que se chamará.Um calor de cento e oitenta graus abaixo de zero! Entretanto, isto é pior que o

“Mar das Chuvas” ou o “Mar da abundância”? São uns brincalhões, esses astrôno-mos!

Tiurin propôs-nos percorrer algumas centenas de quilômetros “sobre rodas”, para poder voltar a medir a temperatura em dois ou três lugares.

Já estávamos indo pelo fundo de outro mar, ao qual eu, de bom grado, lhe teria dado o nome de “Mar das Sacudidas”. Todo o fundo estava coberto de montículos, alguns dos quais tinham uma superfície oleosa. Seriam camadas petrolíferas? Éra-mos sacudidos sem piedade, mas continuamos a marcha. Tiurin media a temperatu-ra frenquentemente. Quando em uma paragem o termômetro marcou duzentos graus abaixo de zero, o astrônomo aproximou solenemente o termômetro dos olhos do geólogo. Que está acontecendo? Uma vez que a temperatura desceu novamente, apesar de nos aproximarmos do dia lunar, isto quer dizer que as causas não têm que ser procuradas somente no aquecimento do sol. Talvez o professor tenha razão.

Tiurin ficou de bom humor. Saímos da zona, demos uma volta para passar por uma fenda, atravessamos a cadeia rochosa de um circo e, percorrendo a suave pla-nície, levantamos voo para as montanhas.

Voando através delas, vimos uma grandiosa parede de montanhas de uns quinze quilômetros de altura. Esta parede nos abrigava do sol, apesar deste já se achar muito alto no horizonte. Quase tropeçamos nessa barreira imprevista. Sokolovsky teve que circular para adquirir altura.

- Isto sim, que é um achado! - exclamou Tiurin admirado. - A esta cadeia de mon-tanhas não podemos chamar de Alpes, nem de Cordilheiras, Isto... Isto...

- Tiurineiros! - sugeriu Sokolovsky. - Sim, Tiurineiros. Um nome suficientemente sonoro e digno de você. Dificilmente encontraremos uns montes mais altos.

- Tiurineiros - repetiu Tiurin atônito. - Bem... Bem... um pouco imodesto... Mas soa

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bem. Tiurineiros! Seja o que você quiser - assentiu. Através do escafandro vi seu ros-to radiante.

Foi necessário fazer dum grande círculo para adquirir altura. Estas montanhas che-gavam mesmo até o céu... Finalmente vimos o sol novamente. O cegante sol azul!

Instintivamente fechei os olhos. E quando os abri, parecia que havíamos deixado a Lua e que voávamos pelo espaço celeste... Voltei-me e vi atrás a radiante parede vertical dos montes Tiurineiros. Sua base se perdia abaixo no negro abismo. E adian-te... nada. Abaixo, nada tampouco. Um negro vazio... O reflexo da luz se apaga à medida que avançamos, e mais além... trevas.

Que aventura! Acontece que a Lua, em sua parte posterior, não tem forma de he-misfério, e sim de uma espécie de corte na esfera. Vejo que meus companheiros não estão menos alarmados que eu. Olho à esquerda, à direita. Vazio. Relembro de algu-mas hipóteses de como podia ser a parte invisível. Uma era que esta parte seria igual à outra, apenas com outros mares e montanhas. Alguém emitiu a opinião que a Lua tinha forma de pera. Que a parte visível a partir da Terra, tinha forma esférica, mas que a invisível era alongada como uma pera. E que, devido a isto, a Lua sempre mostra sua face esférica, mais pesada, para a Terra. Mas nós encontramos algo ain-da mais verossímil: a Lua é a metade de um globo. O que foi feito da segunda meta-de?

O voo continuou por mais alguns minutos e nós continuávamos sobre o negro abismo. Tiurin estava sentado, como que aturdido Sokolovsky pilotava em silêncio, aumentando a velocidade do foguete; estava impaciente para ver em que acabaria tudo isto.

Não sei por quanto tempo estivemos voando entre a escuridão do céu estrelado, mas logo, para o lado do leste, se insinuou uma faixa iluminada da superfície lunar. Nos alegramos, como navegantes em um mar desconhecido e que de repente avis-tam a terra esperada. Não caímos da Lua? Então, o que é que havia sob nós?

Tiurin foi o primeiro a adivinhar.- Uma fenda! - exclamou, batendo no meu escafandro. - Uma fenda de extraordi-

nária profundidade e largura.E assim era, realmente.Logo chegamos ao outro lado da fenda.Quando voltei a vista para trás, não vi os Tiurineiros. Haviam desaparecido atrás

do horizonte. Às nossas costas estava somente o espaço vazio.Nós três estávamos muito impressionados pela nossa descoberta. Sokolovsky es-

colheu um lugar para pousar, desceu e assentou o foguete não muito longe da borda da fenda.

Nos olhamos em silêncio. Tiurin coçou o escafandro com a mão; queria coçar a nuca, como fazem as pessoas completamente desconcertadas. Juntamos nossos es-cafandros; todos queríamos comunicar nossas impressões.

- Pois bem, eis aqui o que acontece - disse finalmente Tiurin. - Isto já não é uma fenda vulgar, como existem uma infinidade na Lua. Esta depressão vai de um extre-mo ao outro da superfície posterior da Lua. E sua profundidade, é provável que não seja menor que uma décima parte do diâmetro do planeta. Nosso querido satélite está enfermo, e até seriamente, e nós não sabíamos. Ah! a Lua é um globo rompido, meio rachado.

Recordei as diferentes hipóteses sobre a destruição, sobre o fim da Lua. Uns afir-mavam que a Lua, ao girar ao redor da Terra, se distancia mais e mais dela. E por isto, as gerações futuras verão a Lua cada vez menor. E finalmente nosso fiel satélite fugirá para sempre para o espaço universal. Outros, ao contrário, afirmam que a Lua

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será atraída pela Terra e que cairá nela. Algo similar parece que já aconteceu com um segundo satélite terrestre: uma pequena lua, que em tempos remotos caiu na Terra. Esta queda, segunde eles, provocou a cavidade do Oceano Pacífico.

- Que vai acontecer com a Lua? - perguntei alarmado - Cairá na Terra ou partirá para o espaço interplanetário, quando se desintegrar em pedaços?

- Nem uma coisa nem outra. O mais seguro é que girará ao redor da Terra por uma infinidade de tempo, mas com outro aspecto. Se ela se romper em dois peda-ços, então a Terra terá dois satélites, em vez de um. Duas “meias luas”. Mas o mais fácil é que ela se desintegre em pequenos pedaços e então se formará, ao redor da Terra, um anel luminoso como o de Saturno. Um anel de pequenos pedaços. Eu já havia previsto isto, mas, francamente, não achava que este perigo estivesse tão per-to. Mal... Mal... Sim, dá lástima nossa velha Lua - continuou, olhando para as trevas da fenda. - Mal... Mal... E se não se esperasse pelo seu inevitável final e se precipi -tasse: Se nesta fenda fosse colocada uma tonelada do nosso “potental”, com certeza seria suficiente para parti-la em pedaços. Se já está condenada a morrer, pelos me-nos que isto aconteça por nossa vontade e no hora que nós decidamos.

- É interessante. Quão profundamente penetra a fenda na crosta lunar? - falou Sokolovsky. A ele, como geólogo, não interessava a sorte da Lua, e sim a possibilida-de de penetrar quase até o centro do planeta.

Tiurin aprovou efetuarmos esta expedição.Começamos a discutir o plano de ação. Tiurin propôs descer lentamente com o fo-

guete-vagão pela pendente inclinada da fenda, freando a descida por meio de ex-plosões.

- Podemos fazer paradas e medições da temperatura - disse.Mas Sokolovsky considerou que esta descida seria difícil e até perigosa. Além dis-

so, ao fazê-la devagar se gastaria combustível demais.- Melhor será descer diretamente até o fundo. Na volta se poderá fazer duas ou

três paradas, no caso de acharmos lugar adequado para isto.Sokolovsky era nosso capitão e Tiurin, desta vez, teve que se conformar. Somente

pediu que ele não descesse depressa demais e que o fizesse se aproximando o máxi-mo possível da borda da fenda, para poder examinar a composição geológica do de-clive.

E assim começamos a descida.O foguete se elevou sobre o negro abismo da fenda e, descrevendo um semicírcu-

lo, começou a descer. O sol, que já estava bastante alto, iluminava parte do declive até uma considerável profundidade. Mas a descida contrária da fenda ainda não se via. O foguete ia perdendo altura, inclinando-se mais e mais. Nós tínhamos que nos inclinar para trás, apoiando os pés. Tiurin fotografava.

Vimos umas rochas negras, quase lisas, que às vezes pareciam azuladas. Logo apareceram avermelhadas, amarelas, com matizes esverdeados. Eu interpretei isto como um sinal do fato de que aqui a atmosfera demorou mais em desaparecer e os metais, sobretudo do ferro, sofreram uma maior influência do oxigênio e, como na Terra, se oxidaram. Mais tarde Tiurin e Sokolovsky confirmaram minha suposição.

De repente nos submergimos em uma profunda escuridão. O foguete entrou na zona de sombra. A mudança foi tão brusca, que a princípio ficamos como cegos. O foguete girou à direita. Nas escuridão era perigoso voar perto das rochas. Foram acesas as luzes dos projetores. Dois tentáculos de luz esquadrinhavam na escuridão sem encontrar onde pousar. A descida se fez mais lenta. Passavam-se os minutos e continuávamos voando no vazio. Se não fosse pela ausência das estrelas, se poderia dizer que voávamos pelo espaço interplanetário. Inesperadamente, a luz do projetor

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resvalou por uma afiada penha. Sokolovsky diminuiu ainda mais a velocidade de voo. Os projetores iluminavam as angulosas capas dos extratos. À direita se apresentou uma parede e giramos para a esquerda. Mas também ali encontramos uma parede. Agora estávamos voando por um estreito desfiladeiro. Montes de pedras pontiagudas se acumulavam por todos os lados. Não havia onde assentar a nave. Voávamos qui-lômetros e quilômetros, mas o desfiladeiro não se alargava.

- Me parece que teremos que nos contentar com este exame e subirmos novamen-te - disse Sokolovsky.

Nele recaía toda a responsabilidade das nossas bidas e da integridade do foguete; não queria arriscar-se. Mas Tiurin pôs sua mão sobre a dele, como se o proibisse, com este gesto, agir com a alavanca de altura.

O voo se prolongou uma hora, duas, três... não posso dizer com exatidão.Por fim vimos um terraço, bastante inclinado, por certo, mas no qual, apesar de

tudo, pudemos pousar. O foguete parou no espaço, então foi baixando devagar. Pa-rada! A nave “alunizou” com uma inclinação de uns trinta graus.

- Bem - disse Sokolovsky, - conseguimos chegar, mas não sei como vamos sair da-qui.

- O importante é que alcancemos nosso objetivo - respondeu Tiurin.Ele agora não queria pensar em mais nada e ocupou-se me medir a temperatura

do solo. Com imenso prazer, comprovou que o termômetro marcava uma temperatu-ra de cento e cinquenta graus abaixo de zero. Não era uma temperatura muito alta, mas de qualquer forma parecia que sua hipótese se justificava.

O geólogo já estava batendo com seu martelo. Dele saíam chispas, mas nem um só pedaço de rocha se desprendia. Afinal, cansado por seu trabalho em vão, levan-tou-se e, aproximando seu escafandro do meu, disse:

- Hematitas puras. O que se podia esperar. Teremos que nos contentarmos com fragmentos já quebrados - e se pôs a procurar amostras pelos arredores.

Olhei para cima e vi as estrelas, faixas da Via Láctea e as bordas radiantes da nos-sa fenda, vivamente iluminados com fulgores de diferentes cores. Então dirigi o olhar para onde os projetores do foguete estavam iluminando. Me pareceu que perto de uma pequena fenda da parede a luz oscilava. Aproximei-me do buraco. Com certeza, uma corrente imperceptível de gás ou vapor saía das profundezas. Para comprovar se era verdade, peguei um punhado de cinzas e atirei-o no buraco. A cinza saltou para um lado. Isto estava ficando interessante. Encontrei uma pedra perto do abismo e atirei-a nele, para que o tremor do solo chamasse a atenção dos meus companhei-ros, que vieram até mim. A pedra caiu no abismo. Passaram-se menos de dez segun-dos antes que eu sentisse um leve tremor do solo. Logo seguiu-se outro, um tercei-ro, um quarto... mais e mais fortes. Não podia entender o que estava acontecendo. Algumas sacudidas eram tão fortes que a vibração só solo se transmitia ao todo o corpo. Ao passar por uma faixa de luz, brilhou como um meteorito e desapareceu no escuro abismo. As penhas tremiam. Compreendi que havia cometido um equívoco fa-tal. Aconteceu o mesmo que nas montanhas, quando a queda de uma pequena pe-dra provoca imensos desprendimentos de rochas. E eis que aqui, de todas as partes, pedras, rochas e pedaços de penhas. Precipitavam-se golpeando as rochas, saltando, chocando-se umas com as outras e soltando chispas... Se estivéssemos na Terra, te-ríamos ouvido um troar, um estrondo parecido a tiros de canhão repercutindo inter-minavelmente pelo eco das montanhas. Mas aqui não havia ar e por isto reinava um silêncio absoluto. O som, ou melhor, a vibração do solo, era transmitida unicamente através dos pés. Era impossível adivinhas para onde correr, de onde veria o perigo... Gelado de espanto, com certeza teria morrido de medo se não visse Sokolovsky que

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agitava freneticamente os braços, no terraço em que estava a nave, para que eu fos-se para lá. Sim, claro! Somente o foguete podia nos salvar!

Dei alguns saltos, cheguei ao foguete, sem parar saltei na plataforma e, no mesmo instante, Sokolovsky puxou a alavanca. Fomos achatados bruscamente para trás e durante alguns minutos voamos com as pernas para cima, tão brusca era a subida, pela posição vertical que Sokolovsky havia dado ao foguete. Fortes explosões nos bi-cos de escape faziam-no estremecer.

O geólogo dirigiu o foguete em ascensão para a direita, longe da vertente da fen-da. Era assombroso como conseguia dirigir o foguete em uma posição tão incômoda! A julgar por sua impetuosidade, era um homem experimentado, que nunca perdia o domínio de si próprio. E entretanto parcia um simples homem “caseiro”, engraçado e alegre.

Somente quando nossa nave entrou no espaço iluminado pelo sol e se afastou o suficiente da borda do desfiladeiro, Sokolovsky diminuiu a velocidade e o ângulo de voo.

Tiurin subiu na poltrona e coçou o escafandro. Pelo visto o professor havia magoa-do a nuca.

Como frequentemente acontece às pessoas que acabam de passar por um grande perigo, sobreveio-nos repentinamente uma alegria nervosa. Olhávamos uns para os outros, através dos escafandros, e ríamos, ríamos...

Tiurin apontou para o iluminado declive da fenda lunar. A casualidade nos brinda-va um locar para tocar terra. E que lugar! Diante de nós havia um enorme terraço, no qual, sem grandes trabalhos, poderiam se alojar dezenas de naves. Sokolovsky girou o foguete e logo corríamos por ele sobre as rodas, como em uma pista de as-falto. Rodando quase até a parede, paramos. A parede rochosa, ou férrea, tinha umas fendas enormes em sentido vertical. Em cada uma, fendas enormes em senti-do vertical. Em cada fenda poderiam entrar vários trens.

Descemos ao solo do “cosmódromo”. Nossa excitação ainda não havia passado. Sentíamos necessidade de nos movermos, de trabalhar, para acalmar nossos nervos.

Relatei a Tiurin e a Sokolovsky sobre o achado do “gêiser” lunar e me confessei culpado pela avalanche de pedras que tinha havido, e que por pouco não nos des-truiu. Mas Tiurin, interessado pelo “gêiser”, não fez caso do meu ato temerário.

- Mas isto é uma descoberta grandiosa! - exclamou - Ei sempre disse que a Lua não é um planeta tão morto como parece. Nela ainda devem existir, por insignifican-tes que sejam, restos de gases, seja qual for sua composição, da sua vida anterior. Estas serão, com certeza, saídas de gases sulfúricos. Em algum lugar da massa lunar aina resta magma quente. As últimas batidas, o último fogo do grande incêndio que se extingue. Nas profundezas desta fenda, que com certeza penetra até o interior da Lua, não menos de um quarto do seu raio, os gases encontraram saída. E nós não o analisamos. É necessário fazê-lo, aconteça o que acontecer. Isto produzirá sensação entre os cientistas do mundo. O “Gêiser de Artiomov”! Não, não ponha objeções! Você tem direito a isto. Voltemos agora mesmo.

E saltou para o foguete, mas Sokolovsky moveu a cabeça negativamente- Por hoje tá tivemos o bastante - disse. - É necessário descansar. - O que quer dizer com “por hoje”? - protestou Tiurin. - O dia na Lua dura trinta

dias terrestres. E você pensa em ficar imóvel durante trinta dias?- Eu me moverei - respondeu Sokolovsky, em tom conciliador. - Mas se você esti-

vesse pilotando quando saímos da fenda do diabo, compreenderia meu estado de ânimo e pensaria de outra forma.

Tiurin olhou para o rosto cansado de Sokolovsky e calou-se.

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Decidimos renovar a reserva de oxigênio dos nossos escafandros e depois nos dis-persar-nos para explorar por diferente lados, sem sem nos distanciarmos muito uns dos outros.

Eu me dirigi para a garganta mais próxima, a qual era interessante por seu colori-do. As penhas tinham tons avermelhados e rosáceos. Sobre este fundo se destaca-vam manchas de uma espessa cor verde de forma irregular, pelo visto capas de ou-tros minerais. Formava uma combinação de cores muito formosa. Gradualmente fui entrando no desfiladeiro. Uma de suas paredes estava brilhantemente iluminada pelo sol e na outra seus rais resvalavam obliquamente, deixando em sua parte inferior um ângulo agudo de sombra.

Eu me sentia com um humor excelente. O oxigênio penetrava em meus pulmões até o ponto da embriagues. Sentia em todos meus membros uma leveza extraordiná-ria. Havia momentos em que me parecia que via tudo em u sonho. Um sonho atra-ente, prodigioso!

Em um do cânions laterais brilhava uma “cascata” de pedras preciosas. Elas cha-maram minha atenção e dobrei à direita. Logo desviei outra vez, e outra. Finalmente cheguei a um completo labirinto de cânions. Nele era fácil perder-se, mas eu procu-rava lembrar bem o caminho. E em toda parte aquelas manchas. De um verde vivo na luz, à sombra tinham um matiz amarelo escuro, e `ameia luz, uma tonalidade marrom claro. Estranha mudança de cores: pois na Lua não há atmosfera que possa mudar os matizes das cores. Aproximei-me de uma dessas manchas e observei-a atentamente. Não, esta não é uma saída de minerais. A mancha era proeminente e parecia macia como feltro. Sentei em uma pedra e continuei a observação.

Logo me pareceu que ela havia se movido um pouco em direção à luz. Será uma ilusão de ótica? Eu olhava a mancha com muita atenção, fixamente. Fazendo mental-mente um sinal em uma da dobras do mineral, continuei a espreitar. Depois de uns minutos já não podia duvidar: a mancha havia se deslocado. Sua borda havia ultra-passado o limite da sombra e estava se tornando verde diante dos meus olhos.

Levantei-me e corri para a parede. Segurando-me em um ângulo da rocha, esti-quei meu braço até a mancha mais próxima e arranquei um pedaço do “feltro” ma-cio. Era composto de pequenos fios em forma de abeto. Um vegetal”. Claro, é um vegetal! São musgos lunares. Que descoberta! Arranquei outro pedaço da mancha amarronzada. Estava completamente seco. Voltei-o do lado contrário e vi algumas “avelãzinhas” esbranquiçadas que em sua parte inferior terminavam em uma espécie de ventosa almofadada.

Um enigma biológico. Por seu aspecto, este vegetal poderia ser catalogado entre os musgos. Mas, e as ventosas? Raizes-pernas! Um vegetal que pode se deslocar pe-las rochas seguindo os raios solares. Sua cor verde, claro, depende da clorofila. Mas... e a respiração? E a umidade? De onde ela tira?... Relembrei as conversas em Ketz sobre pedras celestes das quais se pode obter oxigênio e água. Com certeza, também nas pedras haverá, em combinação com outros elementos, oxigênio e hidro-gênio, elementos que entram na composição do ar e da água. E porque não?... Não são também as plantas terrestres verdadeiras “fábricas” milagrosas com produção química muito complexa? E nossas plantas terrestres, como por exemplo, a “Rosa de Jericó”, não possuem a faculdade de adormecerem com o calor e a seca e logo a se-guir reviverem novamente quando as põem na água? Os vegetais lunares “dormem” durante a longa e fria noite e a luz do sol faz funcionar novamente a “fábrica quími-ca”, elaborando todo o necessário para sua vida. Movimento? Bem, mas os vegetais terrestres também não estão completamente privados de movimento. A adaptabilida-de dos organismos é ilimitada.

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Enchi a bolsa de musgos e, com o ânimo excitado, me dispus a regressar para me vangloriar do meu achado.

Andei até o final do desfiladeiro, virei à direita, outra vez à direita. Aqui eu devia encontrar a jazida de rubis e diamantes, mas não os vi... Voltei atrás, dobrei em ou-tro desfiladeiro... Um lugar completamente desconhecido!

Acelerei minha marcha. Eu já não andava, saltava. Logo parei na borda do abismo, estupefato. Uma nova paisagem lunar se abria diante de mim. No outro lado do abis-mo se elevava uma cadeia de montanhas. Entre elas se descavam três picos de altu-ras iguais. Brilhavam como pães de açúcar. Nunca havia visto cumes tão brancos. Estava claro que não era neve. Na Lua não podia haver neve. Podia ser que essas montanhas fossem de gesso ou cal. Mas as montanhas não vinham ao caso. Estava claro que eu me havia extraviado por completo.

A inquietação se apoderou de mim. Como se todo este extraordinário mundo lunar me tivesse voltado as costas de repente. Que hostil era ao homem! Aqui não haviam nossos bosques terrestres, nem campos, nem as pradarias com suas flores, gramas, pássaros e animais, onde sob cada árvore já temos preparados “casa e mesa”.

Aqui não há rios e lagos com pesca abundante. A Lua é avara, não dá de comer nem de beber ao homem. Os que se extraviam na Terra podem se manter dias e dias, mesmo que seja com raízes vegetais. Mas aqui? Somente rochas nuas, sem contar o musgo. Com certeza não será mais comestível que a areia. Mesmo que cor-ressem ao meu redor rios de leite com margens de pão, de toda forma morreria de sede e de fome, sofrendo os tormentos de Tântalo, já que não posso tirar o escafan-dro.

O escafandro! Quando me lembrei me pus a temer como se o frio do espaço tives-se penetrado no meu corpo. Toda a “atmosfera” que me possibilitar respirar e viver está resumida `pequena garrafa que levo nas costas. Tem capacidade para seis ho-ras; não mais. Já se passaram umas duas horas desde que renovei a provisão de oxi-gênio. E depois? A morte por asfixia... Tenho de sair daqui enquanto não se esgotem minhas forças e a reserva de oxigênio!

Voltei atrás novamente e comecei a dar saltos, como um salta-montes Menos mal que a pessoa aqui não se fadiga tanto como na Terra...

Cheguei ao final do desfiladeiro. Diante de mim outro desfiladeiro vivamente ilumi-nado pelo sol e coberto totalmente por um tapete verde. Pelo visto, todos os musgos se arrastaram até aqui vindo dos lugares sombrios. Musgos asquerosos! Não queria vê-los, mas meus olhos se encontravam de cor verde, devido ao que via confusa-mente...

Mas, poderia ser o mesmo desfiladeiro pelo qual eu vim, embora agora não possa reconhecê-lo, devido a que se tornou verde?

Nova virada para uma estreita garganta submersa na escuridão. Através das mi-nhas vestes esquentadas pelo sol, senti frio. Ou os nervos me falham?

Para onde ir? Atrás, após duas voltas está o abismo. Adiante, um escuro e estreito desfiladeiro desconhecido.

Senti uma fraqueza aterradora e me deixei cair sobre uma pedra quebrada, desfa-lecido. Subitamente, abaixo de mim a pedra se moveu e começou a se arrastar... Dei um pulo como se tivesse sido picado por uma vespa. Meus nervos estavam tensos demais. Uma pedra viva! Um novo animal! Uma nova descoberta sensacional! Mas naquele momento eu não estava para descobertas. Deixei o novo ser vivo se arrastar sem nem mesmo olhá-lo. E como um autômato segui adiante.

Eu nem mesmo pensava para onde ia. Algumas vezes me parecia que o oxigênio da garrafa se esgotava. Sentia asfixia. Então eu parava e agarrava o peito. Logo tudo

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passava. Nervos, nervos! Se na Lua houvesse atmosfera, um meio ambiente elástico, embora não fosse apto para a respiração, ou poderia bater pedra contra pedra para pedir auxílio. As atmosfera poderia transmitir os reflexos, o “resplendor! Dos projeto-res do foguete. Mas isto não poderia me ajudar agora: do céu se derramava a luz ce-gante do sol, a qual queimaria meus olhos se não fosse pelo vidro esfumado do meu escafandro.

No momento em que eu já havia perdido as esperanças e me preparava para o fim, vi o grande desfiladeiro. Tive uma alegria tão grande como se houvesse saído na Grande Avenida da ilha Vasilevskaia em Leningrado.

Que sorte! Terá sido o instinto que me trouxe aqui?Mas minha alegria logo se transformou em alarme. Para que lado seguir? Para a

direita ou para a esquerda? Perdi completamente a orientação! Tentei pôr à prova meu “instinto”, mas desta vez ele estava silencioso. Dei um passo para a esquerda - o instinto não se opunha, - para a direita, o mesmo.

Foi preciso que eu dirigisse novamente uma pedição de ajuda ao cérebro. Vamos pensar. Quando saí do foguete segui para a direita. Ou seja, agora vou dobrar à es-querda. Vamos pela esquerda.

Segui nessa direção por pelo menos uma hora. A fome já se deixava sentir. E o fi -nal do desfiladeira ainda não se via. Ou seja, não havia visto bem. Voltar atrás? Quanto tempo perdido! Segui adiante, tenazmente. Subitamente o desfiladeiro se es-treitou. Está claro que não fui bem, me equivoquei de lado. Para trás, rápido!

O sol queimava sem compaixão. Tive que me cobrir com a capa branca. A fome me atormentava, começavam a me faltar as forças, mas eu saltava e saltava, como se atrás de mim viessem monstros me acossando. Logo uma fenda fechou meu ca-minho. Não era muito grande, podia ser ultrapassada. Mas eu não vi esta greta quando vim! Ou não me dei conta dela por estar pensando? Um suor frio cobriu meu corpo. O coração batia febrilmente. Estou morrendo! Tive necessidade de sentar para descansar um pouco e voltar a mim. Do céu negro me olhava o sol azul, o sol morto. Assim, indiferente, iluminará meu cadáver... Não! Ainda não morri! Ainda te-nho reservas de oxigênio e energia... Pondo-me de pé com um salto, ultrapassei a fenda e pus-me a correr... Para onde? Para a frente, para trás, tanto faz, o que im-porta e me mover!

O desfiladeiro se alargou. Saltei sem parar por não menos que uma hora, até que caí exausto. Aqui, pela primeira vez, senti que me faltava o ar. Isto já não era um engano. Com minhas corridas e tinha gasto oxigênio demais e a provisão estava ter-minando antes do tempo.

É o fim... Adeus, Tonia... Armênia.Minha cabeça começou a turvar-se...Inesperadamente, vi acima de mim, vivamente iluminado pelo sol, um dos lados

do nosso foguete. Estão me procurando! Estou salvo! Reunindo minhas últimas for-ças, dou um salto, agito os braços, grito, esquecendo completamente que meu grito não sairá do escafandro... Ai, minha alegria se apagou com a mesma rapidez com que tinha-se aceso; não me viram. O foguete voou sobre o desfiladeiro e se perdeu atrás das montanhas...

Era o último traço de energia. A indiferença se apoderou de mim. A insuficiência de oxigênio se fazia sentir. Milhares de sois azuis cintilaram diante dos meus olhos. Senti um barulho nos ouvidos e perdi a consciência.

Não sei por quanto tempo estive estendido sem sentidos.Logo, sem abrir os olhos, aspirei profundamente. O vivificante oxigênio penetrava

nos meus pulmões. Abri os olhos e vi, acima de mim, Sokolovsky Com a preocupação

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em seu semblante, olhava através do meu escafandro. Eu estava estendido no chão, no interior do foguete, para onde, pelo visto, haviam me levado. Mas, por que não me tiraram o escafandro?

- Estou com sede... - pronunciei fracamente, sem pensar que não me ouviam. Mas Sokolovsky havia compreendido meu rogo pelo movimento dos lábios. Me sentou em uma poltrona e, aproximando seu escafandro do meu, perguntou:

- Está com fome e com sede, não é verdade?- Sim.- Infelizmente terá que esperar. Estamos avariados. A avalanche de pedras causou

alguns defeitos no foguete. Alguns vidros das vigias estão quebrados.Lembrei dos golpes “do lado”, que eu havia sentido quando saíamos do “desfila-

deiro da Morte”. Mas no momento não havia prestado atenção.- Temos vidros de reposição - prosseguiu Sokolovsky, - mas para colocá-los e sol-

dá-los é preciso muito tempo. Em uma palavra, vamos rapidamente para nosso gran-de foguete. A expedição lunar terá que terminar.

- E por que me levaram para o interior do foguete?- Foi porque - respondeu Sokolovsky - terei que desenvolver uma grande velocida-

de cósmica para ir até o foguete em duas ou três horas. As explosões serão fortes, o aumento da gravidade será extraordinário. E você ainda está muito fraco para poder resistir. Ademais, o professor Tiurin também estará aqui.

- Não sabe como estou contente que você esteja vivo! - ouvi a voz de Tiurin. - Já havíamos perdido as esperanças de encontrá-lo...

Em sua voz havia um calor insuspeitado.- Agora deite-se melhor no chão. Eu também vou fazer isto e o camarada Soko-

lovsky se sentará no comando.Depois de um minuto, nosso, com os vidros quebrados, já havia se elevado sobre

os cimos das montanhas. Virada para o oeste. Por um momento o foguete quase fi-cou de lado. Abaixo vi o abismo da grande fenda lunar, que por pouco não nos per-de, com o terraço e o desfiladeiro. O foguete vibrava com as explosões. Meu corpo estava pesado como chumbo. O sangue afluía tão rapidamente para a cabeça como para os pés. Senti que novamente perdia a consciência... Caí em um leve desfaleci-mento, mas desta vez o superei por mim mesmo. O oxigênio é um magnífico meio vivificante. Notava-se que Sokolovsky havia se preocupado porque meu escafandro tinha sofrido muita pressão. Mas a pressão não devia ultrapassar uma atmosfera, pois do contrário eu poderia ficar sem o traje. E tanto havia inchado, que dava a im-pressão de que eu havia engordado.

Ao final desta viagem eu já havia me recobrado bastante, a ponto de poder sair por mim mesmo do pequeno foguete e transferir-me para a grande nave interplane-tária.

Com que gosto me desfiz da roupa de “mergulho”! E comi e bebi por cinco!Logo voltou nosso bom humor Eu já contava minhas aventuras rindo, minhas des-

cobertas científicas, e não podia me perdoar por ter deixado escapara a “tartaruga lunar” que eu havia tomado por uma pedra. Por outro lado já começava a duvidar da sua existência. Talvez isto tenha sido somente uma brincadeira da minha imaginação transtornada. Mas os “musgos” estavam na minha bolsa, como um troféu trazido do “País dos Sonhos”.

Nossa expedição para a lua, apesar da sua breve duração, deu imensos resultados científicos. Estes dariam, sem dúvida, muito que falar aos cientistas terrestres.

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A viagem de retorno se fez sem dificuldades. Já não havia a depressão natural que sempre colhe o homem ante o desconhecido. Voávamos para a Estrela Ketz, como se voltássemos “para casa”. Mas onde ela está? Olhei para o céu. No alto pendia sobre nós a foice da “terra nova”. Abaixo, a Lua ocupava a metade do horizonte. Apesar do fato de que por pouco eu morria nela, sua vista não me causava medo.

Havia caminhado por esta Lua e as pegadas dos nossos pés haviam ficado em sua superfície. Levávamos para Ketz e para a Terra, “pedaços” da Lua... Este sentimento nos aproximava dela.

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XV. DIAS DE TRABALHO EA ESTRELLA - Vamos ver, mostrem-se, mostrem-se! - dizia-nos Meller,, olhando sobretudo para

Tiurin por todos os lados. - “A aranha” está curtida e voltou mais jovem. Parece com um noivo! E os músculos? Bom, não salte, não presuma. Deixe-me apalpar seus músculos. Os bíceps estão fraquinhos. Mas as pernas se reforçaram bem. Por quan-tos anos vai se encerra de novo na sua teia de aranha?

- Não, agora não vou me amarrar - respondeu Tiurin. - Vou voltar à Lua. Há muito trabalho ali. E também quero ir para Marte e Vênus.

- Ora, que brio! - brincava Meller, - Deixe que eu faça uma análise de sangue. Quantos glóbulos vermelhos lhe agregou o sol lunar...? Os habitantes lunares são pacientes raros.

Terminada a revisão médica, me apressei em ver Tonia. Eu tinha a sensação de que ele já havia voltado para a Estrela. Somente agora sentia quanto ansiava por ela.

Saí disparado pelo longo corredor. A gravidade de Ketz era menor que na Lua e eu, quase sem tocar o solo, revoluteava como um peixo voador. Os amigos de Ketz me paravam para perguntar-me sobre a Lua.

- Logo, logo, camaradas! - respondia, e voava para ela.Eis aqui sua porta. Bati. Uma jovem desconhecida abriu a porta. Cabelos casta-

nhos marcavam seu rosto de grandes olhos cinzas.- Bom dia - pronunciei, confuso. - Eu queria ver a camarada Gerasimova. Ela

transferiu-se de quarto?- É o camarada Artiomov? - perguntou a jovem e sorriu como para um antigo co-

nhecido. - Gerasimova ainda não voltou do seu serviço e parece que não voltará logo. Estou ocupando o quarto enquanto isso. Ela agora trabalha no Laboratório Físi-co Técnico

Com certeza notou minha cara de desgosto e acrescentou:- Mas você pode falar com ela por telefone. Vá à cabine de rádio.Agradeci precipitadamente e corri para a estação radiotelefônica. Entrei como uma

bala na sala do operador de radio e gritei:- Laboratório Físico Técnico!- Agora mesmo! - respondeu ele, e começou a girar a manivela do aparelho. - A

camarada Gerasimova? Rápido... Alô! Alô! Por favor...- Sou eu, Gerasimova. Com quem estou falando? Artiomov?Se o éter não mente, nota-se alegria em sua voz.- Bom dia! Estou tão contente de voltar a ouvi-lo! Por pouco não morreu? Já soube

disto antes que você chegassem. Comunicaram do foguete lunar... Bem, está bem o que bem acaba. E eu aqui faço um trabalho muito interessante no Laboratório do frio absoluto. Está no balcão da parte sombria do nosso foguete. Também tenho que tra-

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balhar com traje interplanetário. É um pouco incômodo. Mas em troca tenho o frio absoluto, como diríamos, à mão. Fiz algumas descobertas no domínio da resistência dos semicondutores a baixas temperaturas.

E começou a falar sobre suas descobertas. Quando dirá algo sobre o barba negra e Paley? Mas é embaraçoso eu mesmo perguntar. Ela queria vir para Ketz, mas não antes de um mês terrestre.

- E como vai a busca? - perguntei, sem poder conter-me.Mas ah!, precisamente neste momento o operador de rádio disse:- Uma chamada urgente do foguete “Ketz-oito”. Desculpem mas tenho que cortar

a ligação.Saí da estação de rádio desconcertado. Tonia havia ficado alegre ao me ouvir, isto

estava claro. Ou seja, para ela não é indiferente. Mas havia falado sobretudo dos seus trabalhos científicos. E nem uma palavra sobre Paly. E não a verei logo...

No corredor um jovem me parou.- Camarada Artiomov, eu o estava procurando. O diretor lhe chama.Não houve outro remédio senão ir ver Parjomenko, que me perguntou com todos

os detalhes sobre nossa expedição à Lua. E eu lhe respondi bastante estupidamente.- Vejo que está descansado - disse o diretor. - Descanse e amanha comece a tra-

balhar. Nosso biólogo, o camarada Shlikov já o está esperando com impaciência.Eu queria ficar sozinho, mas estava com fome e me dirigi ao refeitório. Ali tive que

relatar minha expedição. Eu era uma celebridade. Um dos primeiros homens que ha-viam estado na Lua! Escutavam-me com grande atenção, me invejavam. Em outra ocasião eu teria ficado lisonjeado, mas agora eu estava com desgosto por não ter visto Tonia. Sem dilação, relatei a parte mais interessante e, desculpando-me pelo cansaço, me retirei para meu quarto. Durante minha ausência haviam trazido uma cama dobrável bem leve. Não havia necessidade de colchão. Deitei nela e submergi em meus pensamentos... Assim dormi, entrelaçando a Lua, a ilha Vasilevskaia, o la-boratório, Tonia e o desconhecido Paley...

- Camarada Artiomov! Camarada Artiomov!...Acordei com um salto. Na porta do meu quarto havia um jovem com a cabeça pe-

lada.- Desculpe tê-lo acordado. Mas de qualquer forma parece que já é hora de se le-

vantar. Já nos conhecemos. Lembra do refeitório? Sou o aerólogo Kistenko. Fui eu quem perguntou sobre os musgos lunares. Esta notícia já chegou à cidade de Ketz, onde pediram que lhes mandemos uma amostra. E precisamente agora eu tenho que enviar um foguete aerológico à cidade.

- Pegue por favor - respondi, tirando da bolsa um pedaço do “feltro lunar” - Estupendo. É um musgo mais pesado que o terrestre, mas, bem, não creio que

pese demais. Estranha que eu lhe fale do peso? É que meu foguete voará para a Ter-ra. Todo dia nós mandamos um foguete para a cidade de Ketz. Durante o caminho, realiza automaticamente anotações aerológicas, composição da atmosfera, intensida-de das radiações cósmicas, temperaturas, umidade, etc... a diferentes distâncias da Terra. Por aproximadamente três quartos do caminho é dirigido por rádio, da Estrela Ketz. Com um paraquedas automático, o foguete cai em um ponto determinado da cidade, em uma pracinha de um metro quadrado. Não está mal, hein: Transportamos a correspondência com esse foguete... Seu peso deve ser exato. Por isto é importan-te o peso do musgo. Muito obrigado.

Saiu. Olhei meu relógio. Segundo a hora terrestre de Leningrado, já era de manhã.

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Tomei café e me dirigi ao trabalho.Ao abrir a porta do gabinete de trabalho do biólogo Andrev Pavlovich Shlikov, fi-

quei surpreendido. Era muito diferente, este gabinete de “chefe” dos gabinetes ter-restres. Se podíamos comparar Tiurin com uma aranha, escondido em sua escura fenda e enredado em sua teia de aranha, Shlikov parecia um verme em um jardim verde. Todo o gabinete estava cheio de trepadeiras de folhas diminutas. Parecia uma caverna verde, iluminada pelos vivos raios do sol. Ao fundo, em uma espécie de ca-deira trançada, estava Shlikov, meio deitado: um homem robusto, bronzeado, de idade mediana. À primeira vista, me pareceu um pouco indolente e meio adormeci-do. Tinha as pálpebras pesadas e inchadas. Quando me apresentei, levantou as pál-pebras e vi uns olhos cinzas, muito vivos e inteligentes. Sua vivacidade não se har-monizava com a lentidão dos seus movimentos.

Nos cumprimentamos e Shlikov começou a me fazer perguntas sobre a Lua. Uma amostra do musgo já estava ali, sobre uma longa mesa de alumínio

- Não vejo nada de extraordinário que você tenha encontrado este musgo na Lua - disse pausadamente e em voz baixa. - Há esporos de bactérias e mofos, conhecidos na Terra, que podem suportar temperaturas muito baixas, até duzentos e cinquenta graus abaixo de zero, conservando a viabilidade. A respiração? Pode ser intramuscu-lar e ao mesmo tempo o oxigênio não é absolutamente necessário, nem mesmo em forma ligada. Lembre nas nossas azotobactérias. A alimentação? Lembre das nossas amebas. Nem boca têm. Se encontram alguma coisa “comestível”, a envolvem com seu corpo e a assimilam. Já com sua “tartaruga” a coisa é mais complicada. Mas não nego a possibilidade da existência na Lua de animais ainda mais complexos. A adap-tabilidade dos organismos é quase infinita... Muito bem, já temos uma base. Logo saberemos sobre o passado da vida orgânica da Lua, não menos que sobre o passa-do da nossa Terra.

Shlikov anotou algo em sua caderneta de notas e continuou:- Agora ao trabalho. Nossa primeira tarefa na Estrela Ketz diz respeito a nós os bi-

ólogos e consiste na máxima utilização das plantas para nossas necessidades. O que podem nos dar os vegetais? Antes de tudo, os alimentos. Depois a purificação do ar e da água e, finalmente, o material dos seus resíduos, que temos que utilizar até a última molécula.

Temos que transformar, mudar e melhorar as plantas ao nosso gosto, de forma que sejam úteis. Podemos fazer isto? Sem dúvida. E mais facilmente que na Terra. Aqui não há nevascas, nem secas, não há queimaduras causadas pelos raios do sol, nem ventos. Nós podemos criar, artificialmente, qualquer clima para qualquer planta. A temperatura, a umidade, a composição do solo e do ar, a força dos raios solares; tudo está em nossas mãos. Na Terra, nas estufas , se pode criar somente algo relati-vamente parecido ao que temos na Estrela Ketz. Aqui temos raios curtos ultravioletas que nunca chegam à superfície da Terra. Falo dos raios cósmicos. E, finalmente, a falta de gravidade. Você, claro, já sabe como atua a atração terrestre no crescimento e desenvolvimento dos vegetais, como reagem a esta atração.

- Geotropismo - falei.- Sim geotropismo. As raízes sentem a direção da força de atração terrestre, como

a agulha da bússola, o norte. E se a raiz se desvia dessa direção, é somente em sua busca de umidade e alimento. E como se opera a divisão das células, o crescimento e a formação das plantas quando falta a força de gravidade? Temos aqui laboratórios em que está ausente, completamente, a força de gravidade. Por isto, nós podemos fazer experiências que na Terra são impossíveis. Resolvidos os problemas ainda não esclarecidos das plantas, transferimos nossa experiência para as condições da pon-

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derabilidade terrestre. Eu queria que você começasse seu trabalho com o estudo do geotropismo. Na Grande Estufa, Kramer trabalha como assistente e no laboratório você será ajudado pela nova colaboradora Zorina.

Shlikov calou-se. E já me dirigia para a porta, mas ele me deteve com um gesto de mão.

- Os vegetais.., não é tudo. Fazemos trabalhos interessantíssimos com nos ani-mais. Nisto trabalha Falieev. Não estou muito contente com ele. A princípio, ele tra-balha bem, mas nos últimos tempo parece como se o tivessem mudado. Se você se interessar, poderia mudar-se para lá. Visite o laboratório, como se por acaso, e veja o que ali se faz. Agora dirija-se à Grande Estufa. Kramer lhe deixará ao corrente de tudo.

As pesadas pálpebras desceram. Com um movimento de cabeça ele se despediu e voltou a se concentrar em suas anotações.

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XVI. MODIFICA-SE O CARÁCTER DE KRAMER Saí para o corredor.- Camarada Artiomov! Tem carta para você! - ouvi uma voz atrás de mim. A jovem

carteira me estendia um envelope, que eu peguei com avidez. Era a primeira carta que recebia em Ketz. O carimbo era de Leningrado. Meu coração saltava de emoção.

- Uma carta de Leningrado - disse a jovem. - Eu nunca estive lá. Diga-me, é boni-ta?

- Uma cidade extraordinária - respondi com veemência. - É a melhor cidade depois de Moscou. Mas eu gosto mais dela que de Moscou.

E comecei a descrever-lhe com ardor os maravilhosos novos bairros de Leningra-do, perto de Stellne, e dos morros de Pullkovsky, seus admiráveis parques, pitores-cos canais que a fazem parecer com Veneza, seu metropolitano, o ar de Leningrado, livre de todo o pó e da fuligem das fábricas, as coberturas de vidro que protegem o pedestre do ar em suas numerosas pontes, os parques de inverno para as crianças, seus museus de primeira categoria, seus teatros, suas bibliotecas...

- Até o clima melhorou - dizia eu. - Secaram os pântanos de turfa que haviam em centenas de quilômetros ao redor, os pantanosos rios e lagos foram postos em con-dições, alguns canais ao redor da cidade foram tapados e transformados em passei-os, ou cobertos por pontes que servem de autopista. A umidade do ar diminuiu e sua nitidez deu aos habitantes de Leningrado a possibilidade de receberem mais sol. Cada automóvel que chega à cidade, tem suas rodas lavadas antes de entrar, para que não carregue com ele barro e poeira. Para que falar! Leningrado... é Leningrado.

- Tenho que ver Leningrado sem falta - exclamou a jovem e, movendo a cabeça em sinal de despedida, “voou”.

Abri a carta. Meu assistente me comunicava que estavam terminando os reparos no laboratório. Estava sendo instalado um novo equipamento E que quando termi-nasse iria para a Armênia junto com o professor Gabel, já que haviam perdido a es-perança de que eu voltasse logo.

Estava agitado. Eu poderia deixar tudo e voltar para a Terra?...O aparecimento de Kramer mudou o rumo dos meus pensamentos. E quando vi a

estufa, esqueci de tudo. Me causou uma forte impressão.Mas não foi para lá tão logo. Kramer propôs que eu me vestisse com o traje de

“mergulho”, um pouco mais leve que o da saída para o espaço interplanetário. Além disto era dotado de radiotelefone.

- No inverno a pressão é muito menor que aqui - explicou-me Kramer. - E em sua atmosfera há muito mais anidrido carbônico. Na atmosfera terrestre o gás anidrido carbônico compõe tão somente três milésimos de parte; na estufa, três centésimos e em alguns departamentos, mais ainda. Isto já é daninho para o homem. Mas para as plantas... Crescem como no período carbonífero.

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De repente Kramer começou a rir sem motivo, um riso um pouco estranho, segun-do me pareceu.

- Nestes escafandros - disse, depois que terminou de ria, - há telefone, e assim não há necessidade de nos aproximarmos para falar. Breve os escafandros dos trajes interplanetários também serão providos deles. É muito cômodo, não lhe parece? Creio que foi construído por sua amiga, a que veio da Terra com você.

Kramer piscou o olho para mim e novamente soltou uma gargalhada.“Não se sabe quem trouxe quem - pensei eu. - E por que Kramer está rindo dessa

maneira?...”Passamos pela câmara atmosférica e, sem pressa, nos dirigimos por um longo cor-

redor que unia o foguete à estufa.- Temos várias estufas - Kramer falava sem parar. - Um longo que você já viu

quando chegou. Rá, rá, rá! Lembra como você por pouco voou e eu lhe amarrei como um cachorrinho? Agora vamos para a nova estufa, ele é cônica. Nela, como no foguete, existe peso, mas muito insignificante. Um total de um milésimo do terrestre. Uma folha que cai de uma árvore, à altura de um metro do solo, cai durante vinte minutos. Esta força de gravidade é suficiente para que o pó e os resíduos se sedi-mentem no solo e para que os frutos maduros não flutuem no espaço... Ainda não tomou banho na falta de gravidade? É estupendo! “Verly foi tomar banho”... pôs-se logo a cantar, rindo selvagemente de novo. - Temos também alguns laboratórios ex-perimentais, onde a força de gravidade falta por completo. Ali está o banheiro... Já chegamos. “O véu está corrido...” - declamou, enquanto abria a porta.

Primeiro a luz me cegou. Então, ao olhar, vi um túnel de colossais dimensões, um funil que se alargava. A porta de entrada estava situada na parte estreita do funil. Na parte oposta se unia a uma enorme esfera de vidro.

Através do vidro caíam torrentes de luz. Sua força era incalculável. Como se mi-lhões de projetores vertessem sua luz nela. As paredes do túnel estavam cheias de verde, vegetação com matizes desde o verde esmeralda até o quase negro. Este ver-de tapete era atravessado por estreitas passarelas de alumínio O espetáculo era ex-traordinário. Mas minha admiração cresceu quando me inteirei mais a fundo sobre o tipo de plantas que haviam ali. Eu, biólogo, botânico, especialista no estudo da fisio-logia dos vegetais, não tinha a menor ideia de até que ponto podem ser maleáveis, “plásticas”, estas matérias, de como pode mudar seu aspecto externo e a estrutura interna.

Eu queria ver tudo depressa e detalhadamente, mas Kramer não me deixava tran-quilo e sussurrava no meu ouvido:

- Tudo isto foi feito por Shlikov! É um gênio. Breve ele vai conseguir que as plan-tas dancem e cantem como os rouxinóis. Ele as domesticará! Os cerais, disse ele, uti-lizam sessenta porcento da energia solar e as bananas cem vezes mais. E isto não depende do clima. Pode-se obrigar que aumentem seu consumo centenas de vezes.

- Você já me disse isto - eu disse, tentando pôr fim à euforia de Kramer, mas ele não se calava.

- E Shlikov conseguiu isto. E os resultados? Não quer ver este exemplar? Que me diz dele? Rá, rá, rá.

Parei admirado. Diante de mim havia uma planta da altura de uma pessoa; as fo-lhas eram como a palma da mão e seus frutos, de dimensões parecidas a uma gran-de melancia, lembravam morangos. Com efeito eram morangos de um tamanho monstruoso. O arbusto já não se arrastava pelo solo e sim subia. Do seu fraco talo pendiam essas enormes bagas. (O que significa a ausência da gravidade!) Algumas delas eram completamente vermelhas, outras ainda não tinham amadurecido.

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- Cada dia recolhemos dez dessas “bagas” somente deste pé - falava Kramer. - Co-lhemos umas e as outras já amadurecem. Saem sem interrupção. Nossas plantas não têm o descanso de duas semanas que têm na Terra as plantas tropicais. Dão e dão! Absorvem os raios do sol, os resíduos e a água do solo, convertendo-os nestes sabo-rosos frutos. E o sol não penetra aqui. Primeiro, a atmosfera da estufa é sempre diá-fana. Segundo, a atmosfera daqui tem uma grande quantidade de anidrido carbôni-co, como nos tempos do período carbonífero.

- Você já me falou do anidrido carbônico.- Dê uma olhada nessas folhas - continuou Kramer, sem parar. - São quase negras

e por isto absorvem quase completamente a energia solar, sem que tenha lugar o esquentamento da planta. Só diminui a evaporação da água. Você sabe quanta ener-gia gastam as plantas na evaporação? Trinta ou quarenta vezes mais que em traba-lho útil. Aqui esta energia vai para o fruto. As folhas são grossas, carnosas. Algumas delas nem têm base. E os frutos, como são enormes! Em troca, olhe este exemplar que não faz nada mais que segregar água - disse, mostrando uma planta em cujas extremidades da folhas gotejava água. - Não parece uma planta, e sim uma fonte de Baichisaray.

Já viu a “fonte das lágrimas”? Goteja e goteja! Isto é nosso filtro natural.- Aqui também tem uma planta original - continuou, avançando pela estreita pas-

sarela. - O “Quiosque de água de frutas”, ou melhor dizendo, um ferimento que emana suco. Vê o corte no tronco? É um tubinho por onde goteja. Prove. Saboroso? Doce? Limonada! Preste atenção no terreno; é ideal que sejam partículas pequenas. Em cada milhar de partículas duras, há algumas dezenas de bactérias úteis. E por isto olhe esta ervilha, favas e feijões. São como maçãs!

- E nestes compartimentos envidraçados - continuou dizendo - existem para criar algumas plantas em condições especiais: o ambiente gasoso da composição mais conveniente, a melhor temperatura. Os parasitas não existem. As ervas daninhas tampouco. Os filtros de luz dão uma propícia composição de raios...! “Ira”! “Ira”! Que estás fazendo, louca? - gritou de improviso, assustado, saltou e começou a voar pela estufa. - “Ira”! “Ira”! - gritou não sei de onde, atrás de umas plantas, como se estivesse sendo despedaçado.

Que aconteceu com este homem? Não faz muito tempo, ele era um rapaz tranqui-lo, tranquilo. E agora está com um elevado grau de irritabilidade. Não podia com-preender o que o tinha excitado. Ouvi um ruído, um chiado e vi como as folhas caí-am e voavam da extremidade larga do funil na direção da estreita.

- Por que pôs o ventilador com tanta força? Quer formar um furacão? - clamava. - Quer destroçar as plantas?... Diminua sua força se não quer que eu o lance na Terra.

O ruído e o movimento das folhas cessou. Ouviu-se uma voz fina que dizia:- Ontem mesmo você ordenou que ligasse os ventiladores a vinte e seis...- Você sonhou!Eu me aproximava pouco a pouco da esfera de vidro, entretendo-me com as plan-

tas que ofereciam um maior interesse. Nos finos troncos, ardiam como chama viva as flores da papoula. Suas “caixinhas” eram do tamanho da cabeça de um bebê.

- Está vendo? Vê como balançam e caem as sementes de papoula? - gritava ele.Estas sementes eram como ervilhas.Ervilhas autênticas, de muitos metros de altura, subiam pela metade do funil. Uma

flor de girassol de meio metro de diâmetro quase não se erguia do solo. Pepinos, ce-nouras, batatas, morangos, framboesas, uvas, groselhas, ameixas, aveia, trigo, be-terraba, cânhamo... A duras penas eu os reconhecia, tanto haviam mudado suas me-didas e formas.

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Mais de uma vez parei completamente desorientado. Que era aquilo?Os anões terrestres haviam se transformado em gigantes e, ao contrário, as gran-

des árvores lenhosas da Terra haviam se transformado em anões. Em lugares espe-ciais, escuros, cresciam setas, setas enormes...

Aqui há trópico e subtrópico. Figueiras anãs com frutos gigantes, árvores de café, de cacau, palmas e coqueiros do tamanho de um sombrinha, mas com frutos com o dobro do tamanho dos terrestres.

Em uma armário envidraçado vi um autêntico bosque tropical de anões. Palmas, bananas, samambaias, cipós... Só faltavam elefantes do tamanho de um rato, para eu poder imaginar que era Gulliver no país de Liliput.

Quão insignificantes me pareciam todos meus êxitos terrestres!Quão facilmente se resolvem aqui os problemas com os quais eu havia quebrado a

cabeça por tantos anos! Aqui há frutas e verduras frescas durante todo o ano e as fábricas que as elaboram podem trabalhar sem interrupção...

Será que as experiências da Estrela Ketz não podem ser levadas para a Terra? Por exemplo, no Pamir Nas alturas do Pamir há menos raios ultravioletas que na Estrela, mas muito mais que nos lugares situados ao nível do mar. A meseta do Pamir pode ser transformada em uma estufa. Todos os gastos com investimento seriam plena-mente cobertos. Nas estufas poderiam ser criadas as condições necessárias de at-mosfera, aumentar a quantidade de anidrido carbônico..

E nos claros céus dos trópicos, com seu clima quente e abundância de raios sola-res?... Quando se pensa na selva por completo, milhões de pessoas acharão ali casa e alimentos.

E os desertos terrestres: Ali já se luta com êxito contra os areais e a falta d'água. Mas quantos desertos ainda existem na Terra! Obrigaremos o sol a nos ajudar, da mesma forma que na Estrela Ketz. O sol, que evaporou a água, que matou de calor a vegetação, fará renascer a vida nos desertos, que se transformarão em verdes jar-dins...

Não, no globo terrestre nunca existirá o perigo da superpopulação! A Humanidade pode olhar com valentia para o futuro!...

- Que foi, Artiomov, ficou pasmado? - ouvi a exclamação de Kramer.- Desculpe, eu estava sonhando - respondi, estremecendo pela surpresa.Olhei ao meu redor; o cone da estufa havia mudado de aspecto. Pelas estreitas

passarelas voavam jovens mulheres com cestas. Seus vestidos de cores vivas e vari-adas destacavam-se no fundo verde, como flores. As jovens recolhiam os frutos. Uma suave música acompanhava seu trabalho.

- Um quadro mitológico! - prorrompeu em gargalhadas Kramer. - Garotas estela-res! Um conto dos nossos dias! Logo vão ser substituídas por autômatos... Mas já é hora de irmos. Você ainda não viu o laboratório. Ele não está na Estrela Ketz. Ali há falta de gravidade completa. Será necessário trocar de traje e voar por uma longa distância. Você já deve dominar o foguete portátil. Saiba que se desta vez se extravi-ar, eu não irei atrás para buscá-lo!

Mas desta vez eu já “disparava” com mais destreza e não me separava de Kramer. Apesar disto, a travessia celeste me causou algumas emoções. Notei que minha per-na direita se esfriava. Não haverá alguma deterioração no traje, pela qual penetra o fio espacial? Mas acontece que era a perna que estava na sombra. Girei a perna para a luz e ela esquentou.

Chegamos ao laboratório. Tem a forma de um cilindro. O interior estava dividido por tabiques de vidro. De um compartimento a outro tínhamos que passar através de uma câmara de “isolamento”, visto que a pressão e composição do ar em cada com-

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partimento eram diferentes. Em um dos lados do cilindro, em toda sua extensão, ha-via janelas, e no lado oposto haviam plantas. Algumas delas estavam plantadas em recipientes de vidro, para poderem observar o desenvolvimento das raízes. Isto me chocou; as raízes não amam a luz. Parte das plantas estavam em prateleiras, outras em vasos enfileirados no ar. E elas cresciam de uma maneira estranha. Os ramos e as folhas cresciam em forma radial, dos potes para as janelas. Em algumas delas, as raízes se desenvolviam “para cima”, e outras “para baixo”. Mas quase todas as raízes se encontravam na parte escura. A falta de força de gravidade havia anulado a força do geotropismo, e aqui, pelo visto, a “direção”do crescimento era regido somente pelo heliotropismo, ou seja, a força que dirige as plantas para as fontes de luz.

- Deixe-me! Vá embora! Estou dizendo que vá! - ouço uma voz feminina e o riso de Kramer.

Olho para o final do laboratório e vejo através dos vidros uma jovem com um ves-tido lilás. Está voando ali perto do “teto” e Kramer está atrás dela, empurrando-a. A jovem vai de um lado para outro, bate nas “paredes” e no “teto” sem poder parar. Pelo visto ela tem que ir para um arbusto verde escuro, mas no mundo da falta de gravidade não é tão fácil achar a posição necessária.

Me aproximo deles. Parece que já a vi em algum lugar. Sim, claro, é a que vive no quarto de Tonia! Ou seja, com a qual terei que trabalhar. Eu a olho de lado e para cima, ela e Kramer riam ao ver meus movimentos absurdos. Me sinto como um peixe fora d'água. Mas a jovem não faz melhor que eu. Somente Kramer tem a destreza necessário, como um peixe na água. Ele continua girando ao lado dela, colocando-a ora de cabeça para baixo, ora de cabeça para cima. Ela se irrita e ri. Então Kramer me olha e diz:

- Apresento-os. Esta é Zorina.- Já nos conhecemos - responde ela, e me cumprimenta com a cabeça.- Ah, já se conhecem? Muito melhor - exclama com raiva Kramer. - Bem, vamos

Artiomov. O banheiro está ao lado. Antes e depois do trabalho nos banhamos aqui.Por estreitas passagens chegamos a um novo cilindro - “banheiro” - com um diâ-

metro de cerca de quatro metros e com um comprimento quase igual. Ali tiramos as roupas, passamos por um buraco redondo e chagamos ao “banheiro”. Este é um ci-lindro do mesmo diâmetro, mas muito mais comprido. Paredes lisas de alumínio, ilu-minação lateral e nem uma gota de água. Paro mesmo no centro do cilindro e não posso imaginar maneira alguma de chegar a suas paredes. Estou flutuando no ar, no vazio. Kramer está ocupado na entrada. Então ele gira uma alavanca, ouve-se um ruído e, a torneira situada no fundo do cilindro, começa a sair água. O jorro de água a pressão me golpeia, transformando-se em gotas e bolinhas. Fui disparado para o lado. As bolinhas de água saltavam ao meu redor, chocavam-se umas com as outras e aumentavam de volume.

Neste mesmo instante o cilindro começou a girar sobre seu eixo, mais e mais rápi-do e assim originou-se uma força centrífuga. As gotas e bolinhas começaram a se juntar e se sedimentar nas paredes. E logo estas estavam cobertas por um metro de água. A água estava em todos os lados, à direita, à esquerda, para cima, formando um teto. Somente a parte central do cilindro estava vazia. Sentia que começava a me “atrair”. Depois de uns segundos, pus meus pés no “fundo” Kramer estava na parede contrária do cilindro, com o rosto voltado para mim. Nós nos sentíamos plenamente estáveis; caminhávamos pelo fundo, nadávamos, submergíamos. Encantou-me este banho singular. O peso do corpo era mínimo e nadava-se com facilidade.

Kramer foi para a abertura de entrada e girou a alavanca. A água começou a sair por uns orifícios diminutos, o movimento do cilindro diminuiu. Quando parou por

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completo, já não havia água no banheiro e nossos corpos estavam sem peso nova-mente.

No vestiário, ao fazer um movimento brusco, minha roupa escapou e passei por apuros para alcançá-lo. Neste mundo sem gravidade as coisas se portam de maneira estranha. Ao menos golpe, se vão, começam a voar de um ângulo para outro, de uma parede para outra e... Tente pegá-los!

- Que achou de Zorina? É bonita, não é verdade? - perguntou-me de imprevisto Kramer, com a cara maliciosa e sombria. - Vá com cuidado! - terminou em tom ame-açador.

Terá ciúmes de mim com Zorina? Que extravagância!- Bem, agora eu o acompanharei ao laboratório zoológico - disse Kramer, olhando-

me com desconfiança. - Podemos chegar até ele pelos “túneis”. Eu o levarei lá e vou embora.

E assim o fez. Me deixou mesmo na porta do laboratório e, ao despedir-se repetiu de forma significativa:

- Portanto, mantenha isso em mente!- O que é que eu tenho que manter em mente? - perguntei, sem me conter.Seu rosto logo se contraiu.- Se você não levar isto em conta, eu levarei! - murmurou entredentes e se afas-

tou.- Que se passa com esse homem?Eu já havia pegado no trinco da porta, quando Kramer voltou. Segurando-se na

correia da parede com as pontas dos pés, ficou em um ângulo de sessenta graus, e disse:

- E além disto, aí vai. Eu não acredito em você. Para que veio para cá? Não será para ficar ao corrente dos trabalhos de Shlikov e voltar outra vez para a Terra, apre-sentando estes trabalhos como seus? Shlikov é um gênio! E eu não admitirei que ninguém...

- Ouça, Kramer! - falei indignado. - Ou você está doente, ou deve responder pelos seus atos. Você me ofende sem fundamento algum. Pense bem nas idiotices que está dizendo! Quem pode apresentar como seus os trabalhos de outro? E para que? Você não se dá conta em que tempo e onde vivemos?

- Pois lembre-se! - interrompeu ele e, dando um enorme salto, desapareceu no tú-nel.

Fiquei desconcertado. Que será isto? Maquinalmente abri a porta e entrei no labo-ratório.

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XVII. O LABORATÓRIO ZOOLÓGICO No mesmo instante vi um homem, com seus grandes olhos abertos, me olhando

perplexo. Estava pendurado de cabeça para baixo.- Que é que você ordena fazer? - exclamou o homem, como se lesse meus pensa-

mentos.Eu estava completamente confuso. De hora a hora a coisa ficava pior! Até agora,

havia encontrado em Ketz pessoas normais, sãs, alegres. E de repente dois psicopa-tas!

- Que se passa, camarada?- Eu não sei o que fazer com o cabrito, ou melhor, com suas patas. Mudamos o es-

tábulo duas vezes, mas as pernas do cabrito crescem e crescem. Não catem, se tor-cem, se enrolam. Não sei o que fazer!... Você é Artiomov? Eu sou Falieev. É muito bom que você seja um biólogo. Pensaremos juntos. O laboratório zoológico é o mais inquieto. Todo tipo de chifrudos, quadrúpedes... Os problemas são infinitos. Shlikov dá mais e mais tarefas. E como pô-las em prática quando os resultados das experi-ências são completamente inesperados? Primeiro, a ausência de força de gravidade; segundo, a ação dos raios cósmicos. Graças à influência desses raios, acontecem tais saltos nas mutações que você fica parado. Olhe você mesmo.

Falieev girou no ar com grande agilidade e, empurrando o ar com suas grandes mãos, voou pelo laboratório. Eu fui atrás dele como pude.

Não ouvia os animais. Pelo visto, a limpeza e a ventilação dos estábulos era ideal. Estes eram simples tabiques construídos com redes de arame. Perto de um estábulo vi um enorme porco que parecia um balão, ou melhor, um ovo gigantesco. Entretan-to, suas patas eram longas e finas como macarrão. Se levasse este animal para a Terra, ele logo ficaria esmagado sob seu peso, como uma baleia fora d'água.

O cabrito me surpreendeu mais ainda. Seu focinho era extraordinariamente alon-gado, os chifres eram longos e curvados, como espadas turcas, as patas eram delga-das, com um metro e meio de comprimento, e terminavam em dois débeis apêndices abertos em um ângulo de trinta graus, como as patas das aves. Seu tamanho era como o de uma ovelha grande, mas nele não havia pelo algum.

- Pelado como um cão africano - exclamou Falieev. - É um cabrito “para carne”. Mais adiante você verá outro que é produtor de lã. O desenvolvimento do seu corpo é mínimo, mas sua lá cresceu um metro. E que lã! Uma fábrica viva!

- Mas o cabrito lanífero não estará nesta temperatura, certo? - perguntei.- Nem se fala. Para ele temos uma temperatura fria, mas o alimentamos bem. O

da lá é coisa fácil, mas Shlikov dá tarefas mais difíceis. Precisamos de cordas para os instrumentos musicais e para as raquetes de tênis. Ele quer criar um tipo de cordeiro com tripas longuíssimas. Shlikov não que dar importância às dificuldades. Diz que não há nada impossível. E as instruções são breves. “se é preciso alongar os intesti-

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nos” ele disse, “tentem diferentes alimentos, mudem a ração”. A ração é a ração, mas o cordeiro, em lugar de alongar as tripas, seu estômago se alarga. Aqui agem não sei que fatores... Por exemplo, com as patas do cabrito não sei o que fazer. É possível que trocando novamente seu alimento?... Aqui acontece como no contos das ervilhas: romperam o teto, o telhado e continuam crescendo. Só que aqui não podemos quebrar o telhado.

- Não rompa o telhado nem troque nada - eu disse. - Supõe-se que os raios cósmi-cos tiveram um papel preponderante na evolução dos animais na Terra. As mutações extraordinárias das quais você fala, confirmam esta hipótese. Pelo visto, aqui aconte-ce uma adaptação dos organismos para as alterações da condições a “saltos”. A for-ça de gravidade não existe e os corpos não estão de pé, não têm apoio. Os animais estão flutuando no ar. Eles pretendem sair desta posição. São-lhes necessárias gran-des extremidades.

- Sim claro! - interrompeu-me Falieev. - Os primeiros cães aqui uivavam lastimosa-mente. Passavam horas inteiras movendo as patas para poder chegar à parede ou até o pedaço de carne amarrado. E, claro, não saíam do lugar.

- Aí está porque as patas crescem. Vocês não aumentam as dimensões dos luga-res. Se as patas chegarem a ser tão longas que possam chegar a qualquer parede, eu creio que seu crescimento parará. Ou façam grades para que os animais possam se agarrar. Troque essas redes finas por outras com buracos maiores, com barrotes de madeira Então eles desenvolverão os órgãos para se agarrarem. Seus cabritos e cordeiros chegarão a ser “quadrúmanos”, como os macacos, se acostumarão a esses movimentos. Treparão pelas jaulas. Com uma ou duas de suas extremidades eles se sustentarão e com as outras pegarão o que lhes faça falta.

- É verdade!... - exclamou Falieev. - Com você as coisas andarão. De outra forma eu me via perdido. Ultimamente estava desconcertado, na verdade me sentia inca-paz de fazer alguma coisa... Sabe - disse com voz medrosa, - aqui não é muito difícil de se tornar louco, quanto diante dos seus olhos nascem esses monstros horríveis... Só que... Para onde será melhor dirigir sua adaptabilidade? É possível, diretamente, fazer com que se transformem em animais voadores? Em nossas condições seria o mais prático. Cabritos voadores! - soltou uma gargalhada. - Não, mas para os qua-drúpedes você acertou. Em um dos meus gatos a cauda cresceu tanto, que agora ele se serve dela como os macacos. Se não dá para fazer com as patas, ele põe sua cau-da em ação. Agarra-se com a ponta e estira suas patas até que consegue seu objeti -vo. Além disso, durante seus saltos a cauda lhe serve de timão, como o esquilo voa-dor. Parece que entre suas garras está se formando uma membrana. Logo ele vai voar como um pássaro! E o cachorro “Dgipsi”? É horrível, de verdade... Espere um instante... “Dgipsi”! !Dgipsi”!

De algum lugar ouviu-se o ladrar de um cão. Subitamente vi um monstro que voa-va para nós. Movia as patas como um cão em uma corrida, mas se aproximava deva-gar. Entre os delgados dedos da sua garra se notavam delgadas membranas. Essas membranas o ajudavam a empurrar o corpo para diante, repelindo o ar. O cão era um pouco maior que um buldogue, seu corpo estava coberto de pelo ralo e casta-nho, a cauda era longa e grossa, a cabeça completamente pelada, curta, com a man-díbula inferior pouco desenvolvida, quase plana. Era alguma coisa intermediária en-tre o focinho de cachorro, macaco e o rosto do homem. Verdadeiramente tinha um aspecto horrível! O cão chegou muito perto e me olhou diretamente nos olhos. Sem querer, estremeci. “Dgipsi” tinha grandes olhos castanhos, completamente humanos em seu triste olhar e plena inteligência... Balançou a cauda, girou seu corpo e se agarrou com as extremidades dos dedos sem unhas na borda do tabique. Então mu-

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dou seu olhar para Falieev. Em seus olhos havia uma interrogação.Falieev de imediato ficou perturbado, como se não se tratasse de um cão e sim de

uma pessoa que não conhecesse. Esses olhos humanos no “rosto” do cão eram es-pantosos. Eu mesmo fiquei confuso.

- Bem, “Dgipsi” - disse Falieev, sem olhar para os olhos atentos do cão. - Te apre-sento nosso novo camarada Artiomov.

Eu achava que Falieev se dirigia ao cão de brincadeira, como muitos amantes dos cães. E eu fiz um movimento com a mão para acariciar a cabeça do cachorro. Mas, qual não foi meu assombro quando o cachorro assentiu com a cabeça e me estendeu sua pata. Fiquei tão surpreso, que meu braço estendido ficou no ar por um instante. E em lugar de acariciar “Dgipsi”, como a um cão vulgar, superando minha surpresa, apertei cortesmente sua quente e pelada pata, apesar de que os apertos de mão não estavam em voga em Ketz.

- Os filhotes de “Diana” já comeram? - perguntou Falieev.O cão balançou a cabeça negativamente.- Por que? Ainda não trouxeram as mamadeiras?“Dgipsi” assentiu com a cabeça.- Então voa, “Dgipsi”, aperta o sétimo botão. Chama “Olia” e apresse-a.O cão, abarcando-me com uma olhada, partiu. Senti que meu coração batia acele-

radamente.- Você viu? Perguntou Falieev em voz baixa. - Agora compreende tudo. Ele só não

pode responder. Devemos nos entender pelo sistema de pergunta/resposta. Entre-tanto, em matéria de desenvolvimento seu cérebro deu um grande salto. Na verda-de, este cachorro me dá medo. Eu procuro estar bem com ele. Parece que me ama, mas não pode ver Kramer. Ao vê-lo, olha-o irritado e sai do seu lado. Pelo visto, ele sofre por não poder falar. Não tenho outra solução senão estudar sua língua canina.

Nas profundezas do laboratório ouviu-se um latido entrecortado.- Está vendo, é ele que está me chamando. Alguma coisa não vai bem ali. Vamos!Um filhote de patas membranosas havia metido um dedo na rede e não conseguia

tirá-lo. Gania desesperadamente, olhando-nos com olhos de uma criatura inteligente. “Dgipsi” afanava-se ao seu lado, sem conseguir extrair a pata presa do filhote com seus dedos. Chegamos lá e, unindo nossos esforços, o livramos da armadilha.

Decidi “falar” com “Dgipsi”.- Dgipsi! - como é edifício sustentar o olhar desses olhos! - Você não sabe falar?

Quer que eu o ensine?“Dgipsi” rapidamente assentiu com a cabeça e me pareceu ver em seus olhos uma

centelha de alegria. O cão veio para meu lado e lambeu minha mão.- Isto quer dizer que está muito satisfeito. Vejo que vocês serão amigos - disse Fa-

lieev. - Pois bem, camarada Artiomov, onde você pensa em trabalhar? No laboratório de fisiologia dos vegetais ou aqui?

- Que Shlikov decida - respondi. - Enquanto isto terei que trabalhar na estufa. Adeus, camarada Falieev! Adeus, “Dgipsi”!

Passei o resto do dia na estufa. Kramer estava com um humor sombrio e não fala-va comigo. Estava em silêncio, ocupado entre os pés de orango. Quando Zorina vi-nha a mim com qualquer pergunta, Kramer seguia nossos movimentos. Não era fácil trabalhar naquele ambiente! Decidi pedir a Shlikov minha transferência para o labo-ratório de fisiologia de animais.

Quando lhe comuniquei minha petição, Shlikov ficou muito contente.- Eu decidi aumentar o tamanho do zoo laboratório - disse ele. - Enviarei para a

estufa novos colaboradores que chegaram hoje da Terra. E você vai trabalhar com

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Falieev. Não compreendo o que se passa com ele. Cada dia que passa está mais tor-pe e distraído. Alguma coisa está lhe acontecendo.

- Pelo meu modo de ver, ele não é o único - repliquei.- Quem mais? - perguntou Shlikov, levantando-se.- Kramer. Ele foi a primeira pessoa com quem travei conhecimento em Ketz. Na-

quele tempo era completamente diferente. Agora eu não o reconheço. Tornou-se irascível, desconfiado, desequilibrado. Me parece que sua psique não está em ordem - eu disse.

- Não sei... Eu o vejo pouco. Mas se você acha assim será preciso que Meller, o veja. Transferirei a nova colaboradora, Zorina, para trabalhar com Falieev.

- Zorina? - exclamei.- E porque não? Você tem alguma coisa contra ela?- Contra ela não, não tenho nada - respondi. - Mas parece que Kramer sentiu hos-

tilidade comigo justamente devido a esta jovem. E se tem que trabalhar em um mes-mo laboratório comigo...

- Ah, já sei o que se passa! - sorriu Shlikov. - Começaram os ciúmes na Estrela Ketz. Agora compreendo porque Kramer está desequilibrado. Mas não precisamos dar importância a isto.

O que eu podia fazer? E tive que contar a Shlikov que não era somente o caso de Zorina. Kramer suspeitava que eu tinha a intenção de roubar e me apossar das des-cobertas do próprio Shlikov, e que ri se motivo... Mas Shlikov disse que tudo isto ti -nha sua origem nos ciúmes de Kramer. Eu decidi esperar e ver como se portaria Kra-mer daqui para a frente.

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XVIII. UM NOVO AMIGO Começou a vida de trabalho.Eu trabalhava nos laboratórios com entusiasmo.Nas tardes e nos dias festivos nós nos divertíamos no clube, no jardim, no cinetea-

tro e na sala de ginástica. A juventude organizava “charadas”, fazia “camelos” com três pessoas cobertas com lençóis. Zorina subia no camelo e passeava nele pelo cor-redor. Em uma palavra, divertiam-se como crianças. Mas tampouco os “velhos” fica-vam atrás.

Somente Kramer continuava se comportando de maneira estranha. Em um mo-mento ria como um louco, em outro afundava em profundas meditações. Não, isto não era somente ciume. Ele me deixava em paz, mas continuava vigiando cada pas-so meu.

Travei conhecimento com muitos e até ganhei novos amigos. Eu entrava mais e mais no sabor da vida “celeste” e adora somente a Tonia.

De vez em quando eu falava com ela pelo telefone. Ela me comunicou que o sujei-to da barba negra ainda flutuava em algum lugar entre Marte e Júpiter, no anel de asteroides, mas logo voltaria para Ketz, e que ela havia feito outra “descoberta” ex-traordinária.

Meus novos amigos me apresentaram a toda colônia celeste. O jovem engenheiro Karibaev me convidou a visitar a fábrica onde ele trabalhava.

- Uma obra notável - dizia, com um pouco de sotaque. - Todo um planeta. Um glo-bo. Um grande globo! Só que nós não vivemos na superfície e sim no interior. Tem dois quilômetros de diâmetro O globo gira devagar e deste giro recebe força de gra-vidade, uma centésima da terrestre. A gravidade fraca nos tem permitido empreen-der as mais complicadas produções. As leis da alavanca, dos corpos líquidos e gaso-sos não se complicam com o peso. Os sons e, em geral, as diferentes vibrações, não se transmitem como na Terra. É verdade que o barômetro não funciona, mas não nos faz falta. Os relógios e as balanças funcionam com molas. A massa pode ser de-terminada na máquina centrífuga. As forças magnéticas, elétricas e outras, atuam com mais nitidez na Terra. Para os processos das máquinas de estampar, a força de gravidade não é necessária. Evitamos os combustíveis líquidos e sólidos. Para obter-mos energia elétrica, utilizamos o Sol, com a ajuda das mais diversas máquinas.

Imagine dois cilindros. Um deles na sombra e o outro iluminado pelo Sol. O calor solar converte em vapor o líquido encerrado em seu interior. O vapor segue por um tubo e faz girar uma turbina. Logo o vapor chega ao cilindro frio, que está na som-bra, e esfria. Quando todo o líquido do cilindro quente passa, em forma de vapor, para o frio, os cilindros trocam de lugar automaticamente. Aquele que servia de refri-gerador, passa a ser caldeira de vapor e vice versa. A diferença de temperatura en-tre a parte iluminada pelo Sol e a escura é enorme. A máquina trabalha automatica-

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mente e sem falhas. É quase uma máquina de “moto contínuo”, sem contar com o desgaste das partes em fricção.

Outra das instalações solares tem a forma de uma grande esfera com um pequeno orifício. A esfera em seu interior é negra. Através do pequeno orifício, passam para o interior da esfera os raios solares concentrados por um espelho e esquentam a su-perfície interna da mesma. Podemos utilizar este calor como força motriz para nossos trabalhos metalúrgicos. Recebemos um calor de seis mil graus com facilidade, ou seja, tanto como na superfície do Sol. Você viu nosso globo/fábrica quando estava voando para a Lua?

- Vi sim - respondi. - Parece um pequeno planeta.- E não viu atrás do globo um enorme quadrado que tapa parte do céu?- Não prestei atenção.- Talvez vocês estivessem voando de outro ângulo e o “quadrado” estivesse por

trás. Quando está iluminado pelo Sol, ele é visto de longe, como uma estranha lua quadrada. É um foto elemento É uma delgadíssima lâmina de cobre de dez mil me-tros quadrados, coberta com óxido cúprico. Dela saem finíssimos cabos condutores invisíveis de longe. Em cima dela há uma construção ainda mais grandiosa, parecida com um radiador de calefação a vapor. É uma instalação termoelétrica. Tubos de fe-rente metais soldados pela metade. Quando o Sol esquenta os pontos de solda, ori-gina-se corrente elétrica.

Em resumo, temos energia em quantidades ilimitadas. Não foi difícil criar máquinas especiais para trabalhar os metais. Não podemos, claro, utilizar a forja, já que os martelos não pesam nada ali. Mas podem ser substituídos por estampado de pren-sas. E por isto em nossas fábricas não existem absolutamente a fumaça, ou a cinza e a sujeira. Limpeza, silêncio e ar limpo. O transporte de grandes pesos é feito com grande facilidade. Nossos captadores de meteoros acumularam milhares de tonela-das de ferro, cobre, chumbo, estanho, irídio, platina, cromo e volfrâmio, que “flutu-am” ao lado da esfera. Quando precisamos de material, nós o arrastamos para a fá-brica por meio de cabos delgados. É simples assim nosso transporte interno. Algu-mas vezes utilizamos também pequenos foguetes. De preferência utilizamos a “solda solar”; Se você se interessa pela técnica, venha sem falta visitar nossa fábrica... A propósito, onde você estava hoje às doze horas segundo nosso tempo?

- Creio que no laboratório, ou na estufa.- Não ouviu o alarme?- Não.- Então era porque estava no laboratório, distante de Ketz, ou de outro modo teria

ouvido. A sirene uivava furiosamente. Naquele momento, eu me encontrava com Parjomenko. Se você tivesse visto que confusão foi armada na Estrela!

- E o que foi que provocou o alarme?- Um acontecimento raríssimo, o primeiro na história da Estrela. Um pequeno me-

teoro, talvez menor que um grão de areia, traspassou de lado a lado nossa Estrela, furando em sua passagem as folhas das plantas e o ombro de uma das colaborado-ras. O meteoro era insignificante. Isto é o que parece, já que a brecha que abriu no envoltório de Ketz soldou-se por ela mesma, depois de fundir-se primeiramente pelo impacto. Mas Goreva, que teve o vestido e o ombro traspassados, disse que viu como uma fagulha e um estalido como de um relâmpago. Imediatamente se deu o alarme, pois o meteoro podia ter perfurado uma grande brecha e o gás teria saído e o frio do Universo penetraria na Estrela. Eis porque nosso satélite está dividido em compartimentos selados. As portas se fecham instantaneamente e assim se evita que a atmosfera escape. Foram mandados especialistas ao compartimento onde existe a

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varia e, neste caso, vão providos de escafandros. Goreva teve tempo de sair do seu quarto antes que as portas se fechassem automaticamente. Em todo caso, também existem chaves para quando não se teve tempo de sair e poder abrir as portas. Ape-sar do sobressalto, todos responderam com grande disciplina e serenidade. Meller, examinou a lesão de Goreva, manifestando que nunca havia visto um ferimento tão “esterilizado”. Claro que não sei se se pode chamar de ferida a um buraco um pouco maior que a furada de uma agulha. Não foi nem necessário fechá-la. Mas eu o estou cansando - disse o engenheiro, olhando para o relógio. - Sim, eu o espero.

Prometi-lhe que visitaria a fábrica sem falta. Embora esta promessa não pudesse ser cumprida, pois me ocuparam outros acontecimentos.

Quase se pode dizer que fui viver no zoo laboratório, pois muitas vezes não ia co-mer em Ketz, pois ter que vestir o escafandro, e a câmara atmosférica, levava muito tempo, e eu aproveitava cada minuto. Pois um só minuto neste laboratório rendia mais que horas inteiras na Terra, tão rápido transcorriam aqui os diferentes proces-sos biológicos, durante os experimentos. A mutação das moscas drosófilas aconteci-am literalmente diante dos meus olhos. Eu me admirava da diversidade de novas e novas variedades. Estava completamente absorvido pelo estudo das leis que dirigiam todas essas variações Compreendê-las supunha-se ser uma nova arma para dirigir à vontade o desenvolvimento dos animais. Estudei os núcleos das células e os cromos-somos nelas encontrados - portadores dos sinais de herança - e também os conjun-tos de cromossomos completos. Depois disto, já podia receber gerações de moscas drosófilas de qualquer gênero ou tamanho.

Que perspectivas para o desenvolvimento do rebanho na Terra! Claro, lá não há raios cósmicos de tal intensidade, mas já foram descobertos métodos artificiais para a obtenção de raios cósmicos. Lá é muito mais caro, mas as experiências podem ser realizadas aqui e os resultados seriam transmitidos. E então, na Terra vão submeter os animais a uma radiação artificial em câmaras especiais, já certos de obter os re-sultados requeridos. Nos rebanhos se vão obter tantos touros e vacas quantos sejam necessários, e não os tipos que a natureza quer. Poderemos obter animais gigantes. A vaca “elefante” dará, a cada dia, dezenas de baldes de leite. Isto não é uma tarefa sedutora?

Apesar do trabalho, eu não me esquecia de “Dgipsi”. Ele, decididamente, havia de-senvolvido afeto por mim e não se separava de mim. Com ele eu não tinha tempo de me entediar. Verdade que não era fácil me acostumar à sua aparência extraordiná-ria, mas eu já me habituei, e seu aspecto monstruoso atenuou-se. Mesmo os olhos de “Dgipsi” ficaram mais alegres.

As pessoas nem sempre são amáveis com seus amigos quadrúpedes, sobretudo esse Kramer. “Ei você, gato pelado”, cumprimentava ele grosseiramente a “Dgipsi”, quando se encontrava com ele. “Não se aproxime”, ameaçava-o com o punho. Com-preendia-se então que “Dgipsi” não pudesse nem vê-lo.

Ensinar “Dgipsi”a “falar” se resumia na criação de uma “língua convencional”. Eu devia lembrar aqueles sons que “Dgipsi” emitia e para que finalidade. Esses sons pouco se pareciam com os humanos, mas apesar de tudo se diferenciavam entre si. O próprio “Dgipsi” me ajudou, prestando atenção na entonação, força de tom e pau-sas. Assim, progressivamente, começamos a nos entender bastante bem. O principal inconveniente foi que, apesar de tudo, “Dgipsi” continuava sendo um “estrangeiro” ao qual mal se podia entender. Devido a isto, valorizava ainda mais a amizade. Fre-quentemente lambia minha mão. Este costume canino havia continuado com ele. En-tretanto, de que outra forma o pobre cão poderia exteriorizar seu sentimentos cani-nos?

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Era divertido ver “Dgipsi” quando, com imensa solicitude e paciência ensinava os filhotes a se moverem, a “voar” no espaço sem gravidade. Uma pena que essas ce-nas não foram filmadas!

Olhando-me, ele me dizia: “ como ainda utilizamos mal os animais a serviço do ho-mem!”. “Dgipsi”, com suas garras membranosas, está pouco adaptado para mover-se na Terra. Seus músculo e esqueleto são, com certeza, fracos. Mas nada mais fácil que criar aqui um tipo de cão de grande desenvolvimento, úteis para as condições terrestres. Seria necessário tão somente mantê-los em câmaras especiais com força de gravidade artificial. O desenvolvimento de seu cérebro, sob a ação dos rais cósmi-cos intensivos, é muito mais rápido aqui que na Terra. Notei em “Dgipsi” um extraor-dinariamente fino olfato e ouvido. E poderia ser, não somente um excelente guarda, que poderia ligar luzes e sinais, ligar a campainha, ou chamar ao telefone com seu ladrido, como também uma espécie de reativo vivo na produção. Ele sente a mínima mudança de cheiro, temperatura, som e cor, podendo a seguir apontá-los. Isto, cla-ro, fazem de forma ideal nossos autômatos, mas “Dgipsi” não é um autômato, ele pode mais: não somente distinguir, como também variar a direção do trabalho com ajuda daqueles autômatos.

Gostava muito que o mandassem em diferente missões, cumprindo-as, quase sem-pre, sem equívocos Se não me entendia, balançava a cabeça. “Sim” e “não” ele transmitia com os sons “vvi” e “vvo”.

Sua fidelidade era infinita. Em uma ocasião, veio ao nosso laboratório um empre-gado chegado a pouco da Terra e agitou as mãos em leque diante de mim. “Dgipsi” pensou que o rapaz queria atacar-me, lançou-se sobre ele e jogou-o para um lado. O pobre rapaz por pouco não morre do susto, ao ver aquele monstro em cima dele.

Não será fácil me separar de “Dgipsi”, mas levá-lo para a Terra é impossível. Lá ele se sentiria muito mal.

Em resumo, eu estava muito satisfeito com “Dgipsi”. Já Falieev me deixava cada vez mais preocupado. Este homem mudava extraordinariamente diante dos meus olhos. Cada dia se fazia mais torpe. Algumas vezes “flutuava” um longo momento di-ante de mim, não compreendendo coisas simples. Seu trabalho não andava, esqueci-a-se de tudo, cometia mil equívocos Tinha inclusive abandonado os cuidados pesso-ais, não se barbeava, não trocava suas roupas e eu tinha que levá-lo para tomar ba-nho a força. O mais estranho é que começou a mudar fisicamente. Eu não queria acreditar nos meus olhos, mas finalmente me convenci que na verdade estava fican-do mais alto... Seu rosto também se havia alongado. A mandíbula inferior sobressaí-a-se mais e mais. Os dedos das mãos e dos pés se estiravam, as cartilagens e ossos engrossavam. Em poucas palavras, acontecia com ele o mesmo que nas pessoas com acromegalia. Em uma ocasião eu o levei diante do espelho, no qual fazia meses que ele não se olhava, e disse:

- Olhe, o que lhe parece?Ele olhou para o espelho por um longo momento e depois perguntou.- Quem é?Está completamente louco!- É você.- Não me reconheço - disse Falieev. - Será possível que este seja eu? Mais feio que

Dgipsi. - Disse com uma indiferença completa e, afastando-se do espelho, começou a conversar sobre outros assuntos.

Não, este homem tem que ser levado para tratamento de imediato.Decidi naquele mesmo dia voar para Ketz e falar com Meller,Mas naquele dia houve outro acontecimento que me obrigou a informar Meller,,

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não apenas de um, mas de dois enfermos.

XIX. EXTRANHA ENFERMIDADE Nosso relógio de corda (os relógios de pêndulo não trabalham no mundo da im-

ponderabilidade) marcava seis da tarde. Falieev havia voado para a Estrela Ketz. Zo-rina ainda estava no laboratório zoológico. Esta jovem era cativada pelo trabalho como eu e frequentemente ficava ali até a janta. Sempre alegre e cordial, não era somente uma trabalhadora excelente, era também uma companheira ideal.

Ela frequentemente se dirigia a mim com diversos problemas científico e pergun-tas, que eu procurava atender e solucionar.

Assim aconteceu desta vez.Vera Zorina estudava a ação do frio no crescimento da lã. Os animais em observa-

ção encontravam-se em uma câmara a temperaturas bastantes baixas, pelo que era necessário trabalhar ali com roupas térmicas. Esta câmara encontrava-se no final do nosso laboratório.

Eu estava sentado sozinho diante de uma vitrine, contemplando uma imensa mos-ca drosófila do tamanho de uma pomba. Apesar desse crescimento, as asas da mos-ca eram um pouco mais desenvolvidas que as de uma abelha. Visto que essas asas não lhe ajudavam em seu voo, ela preferia trepar pelas paredes da sua casa de vi -dro. Mas esta gigantesca mosca não era assexuada. Era fêmea, segundo o que se queria. Meditando sobre as consequências do meu êxito, não notei de imediato a presença de “Dgipsi”, que começou a explicar-se em sua língua canina. Logo com-preendi: Zorina estava me chamando.

Levantei-me. “Dgipsi” voava adiante de mim, “remando” com suas garras membra-nosas. Eu o segui. Ao chegar no final do laboratório, pus o traje e entrei na câmara. Perto do teto flutuava uma ovelha. Tinha uma lã tão longa que não se viam suas pa-tas. Apalpei a suave lã. Era verdadeiramente um velo de ouro! A lã envolvia a ovelha como uma nuvem.

- Não está mal! - falei. - Você terá êxito.- E tenha presente - exclamou Zorina, contente, - que faz muito pouco tempo que

a tosquiei. E a lã cresceu novamente, mais longa que a anterior, embora um pouco mais áspera. Isto me preocupou.

- Mas... nem a seda pode ser mais suave - objetei.- Mas os fios são mais delgados que a seda - replicou Zorina, por sua vez. - Veja,

peque este velo. - E me estendeu uma mecha de lã branca como a neve, leve como o gás.

Zorina tinha razão, a lã cortada era mais delgada.- Será possível que depois da tosquia a lã saia mais rústica? - perguntou a jovem.Eu não pude responder de imediato.- Faz frio aqui - observei. - Saiamos daqui e conversaremos.Passamos da câmara para o laboratório, tiramos os abrigos e os “penduramos no

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ar”, começamos a conversa. Pela janela entrava a luz azul do Sol. Lá em baixo flutu-ava o luminoso “quarto” da Terra. Como uma jazida de brilhantes, via-se brilhar a Via Láctea Via-se as manchas brancas das nebulosas. Um quadro habitual, conheci-do... Zorina me escutava, agarrada com o dedo do pé na correia do teto. Eu, abra-çando “Dgipsi” pela cabeça, estava escanchado perto da janela.

De repente, “Dgipsi” pronunciou com alarma: “Grrrr...” Neste mesmo instante ouvi a voz de Kramer.

- Um idílio celestial! Dueto na Estrela!Troquei um olhar com Zorina. Suas sobrancelhas se franziram. “Dgipsi” grunhiu

novamente, mas eu o acalmei. Kramer, agitando a mão direita, dava voltas lentas no ar, aproximando-se de nós.

- Tenho que falar com Vera! - disse ele, parando e olhando-me nos olhos.- Eu lhe estorvo? - perguntei.- É preciso que diga? - respondeu Kramer, com rancor. - Falarei com você depois.Empurrei a perna contra a parede e voei para o lado oposto do laboratório.- Onde você vai, Artiomov? - ouvia atrás de mim a voz de Zorina. Olhei para trás, no meio do caminho, e vi que “Dgipsi” hesitava: voar atrás de mim

ou ficar com a jovem, da qual ele gostava não menos que a mim.- Vamos, “Dgipsi”! - gritei.Mas “Dgipsi”, pela primeira vez em todo o tempo, não cumpriu minha ordem. Res-

pondeu-me que ficava com Zorina para protegê-la. Esta resposta, claro, Kramer não compreendeu. Para ele, as “palavras” de “Dgipsi” eram um conjunto de grunhidos, latidos e ruídos com as mandíbulas. Tanto melhor”

Cheguei à câmara das moscas drosófilas e parei, prestando atenção ao que se passava na outra extremidade do laboratório. O estranho aspecto de Kramer e a conduta do cachorro, que havia pressentido o perigo, me predispuseram ao alarme.

Mas tudo estava silencioso. “Dgipsi” não grunhia, não ladrava. E a voz de Kramer não se ouvia. Com certeza ele estava falando muito baixo. A atmosfera do nosso la-boratório não era tão densa como a da Terra, e por isto os ruídos eram apagados. Passaram-se minutos de espera, com todos meus nervos tensos. Subitamente che-gou a amim um ladrar raivoso de socorro. Logo cessou e só se ouvia um grunhido surdo.

Fiz um esforço e voei até eles, agarrando-me em meu voo nas saliências dos tabi-ques para conseguir mais impulso.

Um horrendo quadro se apresentou à minha vista.Kramer estrangulava Zorina. Vera tentava afrouxar suas mãos, mas não podia.

“Dgipsi” mordia o ombro de Kramer. E este, querendo livrar-se do cão, fazia movi-mentos bruscos com seu corpo. “Dgipsi agitava suas patas desesperadamente. E os três davam voltas no meio do laboratório.

Eu caí sobre o grupo de corpos entrelaçados e me aferrei a Kramer pela garganta. Outra coisa não podia fazer.

- “Dgipsi”, peça socorro”. A campainha! O telefone! - gritei.Kramer estava avermelhado, seu semblante estava avermelhado, mas ele não sol-

tava o pescoço de Zorina. Suas mãos estavam crispadas. Seu rosto estava disforme, seus olhos eram de louco.

“Dgipsi” correu para o comando de campainhas e apertou o botão de alarme. En-tão voltou novamente para mim e aferrou-se no nariz de Kramer. Este gritou e afrou-xou as mãos.

Mas ainda era muito cedo para cantar vitória. Menos mal que eu pude empurrar Vera para longe de Kramer. Mas uma instante depois este golpeou fortemente na

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“cara” de Dgipsi” e lançou-se contra mim. Então começou uma luta singular Eu agita-va desesperadamente meus braços para me esquivar de Kramer. Entretanto, meu inimigo, mais ágil e prático em seus movimentos, trocava rapidamente de posição e eu não conseguia me desfazer dele. Então “Dgipsi” se lançou em um novo ataque, ameaçando morder-lhe o rosto com seus dentes.

Kramer, frenético, me batia com os punhos e com os pés. Por sorte, os punhos do meu inimigo não tinham peso algum e eu senti somente um golpe forte, quando Kra-mer se lançou contra mim, empurrando-me contra a parede.

Finalmente pude me agarrar por trás e suas mãos começaram a se aproximar do meu pescoço. Então “Dgipsi” mordeu sua mão direita. Kramer teve que liberar sua mão esquerda para afugentar o cão, mas neste momento Vera se uniu ao nosso bando. Ela agarrou Kramer pelos pés.

- Deixe disso, já basta Kramer! De qualquer forma você não poderá com nós três! - gritava eu, em tom persuasivo.

Mas ele estava furibundo.No laboratório ouviram-se vozes de outras pessoas e logo cinco jovens nos separa-

ram. Kramer continuava lutando, gritando como um louco. Foi necessário prendê-lo entre quatro, enquanto outro ia em busca de uma corda. Amarraram-no.

- Atirem-me do vazio! Lancem-me no espaço! - resmungava entredentes.- Que vergonha! - exclamou um dos recém-chegados. - Isto nunca aconteceu an-

tes em Ketz!- Nosso diretor, o camarada Parjomenko, tem poderes judiciais. Creio que este ato

de incivilidade será o último - disse outro.- Não o julguem antes do tempo, camaradas - falei, em tom conciliador. - Me pare-

ce que não temos que julgar Kramer, e sim curá-lo. Ele está doente.Kramer apertou os dentes e calou-se.Temendo que ele começasse de novo a brigar, vestiram-lho o traje sem desatá-lo,

e o levaram para Ketz como um pacote. Eu e Zorina o seguimos para lá. No laborató-rio ficou um de guarda e “Dgipsi”.

Quando chegamos em Ketz, insisti para que Kramer fosse imediatamente examina-do por Meller, Contei-lhe sobre seu comportamento, desde que o conheci até os acontecimentos recentes. Lembrei a Meller, que Falieev também, conforme me pare-cia, havia adoecido corporal e psiquicamente e que a causa das suas doenças podi-am ser as mesmas.

Meller, escutou atentamente e disse:- Sim, é possível. As condições de vida na Estrela são muito extraordinárias. Já ha-

víamos tido casos de alienação mental. Um dos primeiros “habitantes celestes” ima-ginou que se encontrava no “outro mundo”. Você pode imaginar que vestígios do passado ainda existem em nossa psique?

Ela exigiu que levassem primeiro Kramer e depois Falieev. Kramer não respondeu as perguntas, estava sombrio e somente uma vez repetiu

sua frase:- Lance-me no espaço!- Falieev deu mostras de uma “perplexidade tranquila” - disse Meller,, como que

brincando. Das respostas de Falieev posso ainda tirar algumas conclusões. E quando os levaram, ela falou.- Você tinha plena razão. Os dois estão seriamente doentes. Não se deve nem fa-

lar em julgar Kramer. Deve-se sim compadecer-se dele. É uma vítima do dever cien-tífico. Mas eu me pergunto: Como você, um biólogo, não adivinhou a causa?

- Aqui eu sou somente um hóspede recente e não sou médico... - respondi confu-

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so.- Mas você podia facilmente se dar conta. Por outro lado eu, velha tonta, não fui

melhor. Também me descuidei... Tudo está nos raios cósmicos! Pense bem, à altura de vinte e três quilômetros sobre a superfície da Terra, a força dos raios cósmicos é trezentas vezes maior que na Terra. Através da atmosfera terrestre infiltram-se so-mente um quantidade ínfima desses raios Nós estamos fora dos limites da atmosfera terrestre e estamos submetidos à ação contínua de raios cósmicos, milhares de vezes mais forte que na Terra...

- Permita-me - interrompi-a. - Então todos os habitantes de Ketz deviam ter enlou-quecido ou se degenerado em monstros. Entretanto isto não acontece.

Meller, balançou a cabeça em tom de reproche.- Você ainda não me entendeu! Para isto podemos agradecer aos construtores de

Ketz. Apesar do fato de que existia a opinião que os raios cósmicos não representa-vam perigo algum, os que construíram esta base utilizaram capas isolantes que nos resguardam da ação das radiações cósmicas mais fortes. Compreende?

- Eu não sabia disto...- Ao contrário, parte dos laboratórios, o de fisiologia das plantas e o zoo laborató-

rio, foram criados de forma que suas paredes deixassem passar a máxima quantida-de de raios cósmicos. Nós devíamos determinar que influência podiam ter no orga-nismo dos animais e dos vegetais. Assim, todas nossas experiências em moscas e demais animais se baseiam nisto. Todas essas mutações, de onde vêm? Da influên-cia das radiações cósmicas. Você sabia?

- Sim, eu sei. E agora compreendo...- Finalmente. As moscas drosófilas mudam; os cães, os cabritos, as ovelhas, etc,

se transformam em monstros. E mesmo vocês, será que são feitos de outra matéria? Neles os raios influenciam e em vocês não? E eu sabia disto! Sabia e advertia. Mas alguns biólogos, como você, me persuadiam: não há perigo! E levamos um à loucura e outro à deformidade. Os raios cósmicos afetaram as glândulas, as glândulas influ-enciaram as funções fisiológicas e psíquicas. Isto está claro... Falieev sofre de acro-megalia. Com esta doença eu espero poder lutar, mas com Kramer a coisa já é mais séria. Sim, e se você ficasse trabalhando nesse laboratório por uns dois anos, com certeza lhe teria acontecido uma coisa parecida.

- E como vamos prosseguir? Não posso deixar o trabalho começado.- E não deixe, pensaremos em algo. Os radiólogos trabalham bem com radiações

perigosas. Precisam tão somente saber se isolar. Trajes isolantes. Os animais em ex-perimentação podem encontrar-se sob a ação diretas dos raios, mas os cientistas e assistentes devem ficar embaixo de “telhados” que não deixem passar a “chuva” cós-mica. E entrar nas câmaras de experimentos somente vestidos com os trajes isolan-tes. Darei ordens para que nossos engenheiros preparem todo o necessário.

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XX. O BARBA NEGRA EVGENEV-PALEY Tinham passado oito meses desde que saí da Terra.A Estrela Ketz se preparava para a festa. Aqui, todo ano se festejava o dia da fun-

dação da Estrela com grande solenidade. Seus velhos habitantes me contaram que para este dia se reuniam na Estrela todos os colonos celestes, estivessem onde esti-vessem. São feitos discursos, escuta-se o balanço anual de trabalho, comunicações sobre seus êxitos, compartilham suas experiências e são feitos planos para o futuro. Este ano se preparava uma festa extraordinária. Eu a esperava com grande impaci-ência; sabia que finalmente veria, não somente Tonia, como também o escorregadio barba negra.

Já começaram os trabalhos preparativos na Estrela. Das estufas trouxeram flores e plantas e a sala principal foi decorada. Os artistas desenharam cartazes, retratos e diagramas. Os músicos estudaram novas canções, os comediantes novas obras, os dirigentes dos trabalhos científicos compunham seus relatórios.

Era divertido voar nas “tardes” ao longo do “túnel”, entre o verde das plantas, adornado por lâmpadas coloridas. Em toda parte havia agitação, ouviam-se canções, música, vozes juvenis. Todo dia apareciam novos rostos. Predominava a juventude. Os conhecidos se encontravam de novo com calorosas saudações e entabulavam ani-madas conversas.

- Você, de onde vem?- Lá da banda dos asteroides.- Esteve no anel de Saturno?- Claro.- Conte-nos! Conte-nos - ouviam-se algumas vozes.Ao redor do narrador logo se formavam grupos compactos, ou melhor dizendo, en-

xames. A força de gravidade era mínima e muitos dos ouvintes flutuavam por cima da cabeça do que contava suas aventuras.

- O aneis de Saturno, como vocês sabem, compõe-se de miríades de fragmentos que voam em uma direção. Com certeza são restos de algum planeta desintegrado, um satélite de Saturno. Há pedrinhas muito pequenas, mas também há enormes blo-cos e montanhas inteiras.

- E se pode andar pelo anel, saltando de pedra em pedra? - algum perguntou.- Claro que se pode - respondeu rindo o narrador. Não se sabia se ele dizia a ver-

dade ou se estava brincando. - Eu fiz isto. Alguns fragmentos voam tão perto dos outros que se pode passar de um para outro. Mas em geral a distância entre eles não é pequena. Entretanto, com a ajuda dos nosso foguetes portáteis, voávamos fa-cilmente de um fragmento para outro. Que riqueza, camaradas! Alguns pedaços eram compostos de ouro, outros de prata, mas a maioria era de hematita.

- Você, claro, trouxe ouro.

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- Trouxemos amostras. O anel de Saturno é suficiente para centenas de anos. Nós iremos tirando pedra após pedra desse magnífico colar. Primeiro as pedras peque-nas, depois pegaremos as grandes.

- E Saturno perderá seu magnífico adorno. Isto é uma lástima - disse alguém.- Sim. Com efeito, o espetáculo é maravilhoso. Chegando ao anel, no mesmo pla-

no dele, vê-se somente sua borda, uma linha fina e luminosa que corta o também iluminado planeta. Se você olhar de cima, vê um resplandescente aneis de beleza ini-gualável. De lado, um arco de ouro que cinge metade do céu, que pode ser regular ou estirado em elipses, ou inclusive em parábola. Acrescente a isto as dez luas satéli-tes e terão uma imagem do surpreendente espetáculo que espera o viajante.

- E não desceram no planeta Saturno?- Não, isto nós deixamos para você - respondeu o narrador. Todos riram. - Estive-

mos em Febe e também em Japetus. São pequenas luas sem atmosfera e nada mais. Mas a vista do céu em todos os lugares é maravilhosa.

- Em resumo: estudamos a estratosfera como a atmosfera da nossa própria casa. Para nós já não existem segredos... - ouviu-se a voz do aerólogo, que passou voan-do junto com meu amigo Sokolovsky.

Agitei o braço, cumprimentando o geólogo e logo vi Tiurin que caminhava com cui-dado pelo chão ao lado do diretor Parjomenko e falava sobre o movimento. Será que ele pensa em fazer um discurso sobre sua filosofia do movimento?...

Parjomenko vai falar com Zorina. Não é a primeira vez que vejo a jovem junto a ele. Menos mal que Kramer não os está vendo. O coitado ainda está isolado. Tiurin, com a clássica distração dos cientistas, não se deu conta de que havia perdido sem acompanhante e continuava andando devagar, divagando:

- O movimento é um bem, a imobilidade, um mal. O movimento é bom, a imobili -dade...

O som da orquestra afogou o discurso do predicador da nova filosofia.Percorri todo o corredor principal, olhei na grande sala, no refeitório, no estádio,

na piscina. Por todo lugar as pessoas revoluteavam, cantando. Em todo canto, vozes sonoras e risos. Mas entre eles não estava Tonia... Cheguei a ficar triste e me dirigi para o zoo laboratório para conversar com meu amigo quadrúpede...

Por fim chegou o dia da festa. Para que os inumeráveis colonos pudessem se aco-modar, a força de gravidade da Estrela havia sido anulada quase completamente e as pessoas se alojaram regularmente em todo o espaço. Cobriram as paredes, en-cheram as salas, igual às moscas drosófilas na vitrine de vidro.

No final do corredor foi erigida um estrado. Detrás dele foi colocado um telão transparente, onde haviam pintado nossa Terra, a Estrela Ketz acima, e mais acima a Lua. Em um grande oval transparente via-se a estátua em platina de Konstantin Edu-ardovich Tziolkovsky. Estava representado em pose de trabalho, com uma tábua de madeira e um papel em cima dos joelhos Em sua mão direita havia um lápis. O gran-de inventor, que havia mostrado ao homem o caminho para as estrelas, parecia es-tar fazendo uma pausa em seu trabalho, dando atenção ao que diziam os oradores. O artista escultor havia transmitido com extraordinária força a expressão intensa do rosto o velho um pouco surdo e o alegre sorriso do homem “que não viveu em vão” sua longa vida. Esta estátua prata palha, iluminada com efeitos, dava uma impressão imorredoura.

A mesa da presidência era substituída por um anel de ouro flutuando no ar. A re-dor desse aneis, seguros a ele com as mãos, estavam os membros da presidência. No centro, o diretor Parjomenko. A sala o saudou com exclamações e aplausos.

Senti que alguem tocava no meu braço e me virei... Tonia!

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- Tu! - foi somente o que pude dizer. Assim, inesperadamente, chamei Tonia pela primeira vez de “tu”.

Contrariamente às regras de Ketz, apertamos as mãos.- O trabalho me reteve - disse Tonia. - Fiz outra descoberta, muito útil aqui, mas

infelizmente de muita pouca utilidade na Terra... Lembra daquela ocasião em que um pequeno asteroide por pouco não provocou uma catástrofe ao atravessar nossa base? Isto me convenceu do fato de que, apesar de não serem muito prováveis es-ses casos, algumas vezes acontecem. E eu inventei...

- Então não é uma descoberta, e sim um invento?- Sim, uma invenção. Inventei um aparelho que reage à aproximação do menor

asteroide e automaticamente afasta a Estrela do seu caminho.- Algo assim como os aparelhos que avisam os barcos da aparecimento de iceber-

gues na sua rota?- Sim, mas com a única diferença de que meu aparelho não só avisa, ele também

afasta nosso “barco” para o lado. Logo lhe contarei detalhadamente... Parjomenko já está começando seu informe.

Fez-se silêncio.O diretor felicitou a todos pelo “término com êxito do ano estelar”. Uma chuva de

aplausos e novamente o silêncio.Então, fazendo o balanço, disse que a Estrela Ketz, uma obra da Terra, “já começa

a devolver sua dívida à sua mãe”. Disse que tinha no haver enormes progressos, que em seus trabalhos nos domínios da astronomia, da aerologia, da geologia, da física e da biologia, enriqueceram toda a humanidade. Quantas descobertas científicas e pro-blemas solucionados! Problemas insolúveis na Terra. De imenso valor são as desco-bertas feitas por Tiurin. Sua “Estrutura do Cosmos” passará à história da ciência como uma obra clássica que marcará uma época. Seu nome ficara na lista de nomes de titãs da ciência, tais como Newton e Galileo.

Um alto valor receberam os trabalhos do aerólogo Kistenko, do geólogo Soko-lovsky, da “eminente inventora e pesquisadora, camarada Gerasimova”. Foram lem-brados meus modestos trabalhos, ao meu parecer, sobrevalorizados.

- Como um verdadeiro herói conquistador do espaço sideral, revelou-se o camara-da Evgenev - disse Parjomenko, e começou a aplaudir alguém atrás dele.

Evgenev! O barba negra! Eu estiro meu pescoço para vê-lo, mas o herói se escon-de. Não apareceu nem com os aplausos.

- Camaradas, ele é modesto - disse Parjomenko. - Mas o obrigaremos a informar sobre suas extraordinárias aventuras na zona de asteroides. O chefe da expedição deve render contas a nós.

Evgenev apareceu e eu o reconheci de imediato.- E você, o teria reconhecido? - perguntei a Tonia.- Entre outros homens sem barba, sim, mas entre todos esses barbudos, é pouco

provável, já que só o vi uma vez, de forma fugaz, quando ia para o aeroporto.Evgenev começou a falar. Ao ouvir suas primeiras palavras, Tonia repentinamente

ficou pálida.- Que aconteceu? - exclamei, assustado.- Mas... é Paley! Sua voz... Mas como ele mudou! Paley-Evgenev... Não estou en-

tendendo nada!Eu com certeza não empalideci menos que Tonia, tanto me alterou isto.- Quando ele terminar, iremos vê-lo - exclamou Tonia, em tom decidido.- Mas não seria melhor que você fosse sozinha? Vocês têm muito que conversar.- Não temos segredos - respondeu Tonia. Será melhor assim, vamos!

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E quando a ovação terminou e o barba negra afastou-se da “mesa”, Tonia e eu nos dirigimos para ele.

A parte solene da reunião estava terminada. A “nuvem de moscas” pôs-se em mo-vimento. A orquestra tocava. Todos cantavam em coro o “Hino da Estrela”. Começa-va o carnaval de flores.

Penetrando com dificuldade entre a multidão, pudemos por fim chegar perto de Paley. Ao ver Tonia, ele sorriu e exclamou:

- Nina! Camarada Artiomov! Bom dia!- Vamos para algum lugar silencioso. Tenho que falar com você - disse Tonia a Pa-

ley, e pegou um ramo de violetas que flutuava no ar.- E eu também - respondeu Paley.Dirigimo-nos para um canto distanciado da sala, mas ali ainda havia muito ruído.

Tonia nos propôs passarmos à biblioteca.Paly-Evgenev estava de bom humor. Ele propôs que nos “sentássemos” nas cadei-

ras, apesar de que eles não nos sustentavam em nada. Ele próprio, com uma veloci-dade vertiginosa e com uma destreza singular, pegou uma cadeira que flutuava no ar e colocou-a em baixo, sustentando-a com as pernas e “sentando-se”. Nós seguimos seu exemplo, embora não com tanta facilidade. Tonia ficou “sentada” um pouco de lado e Paley pegou sua cadeira e colocou-a a seu lado. Eu flutuava de cabeça para baixo em relação a eles, mas não queria mudar minha posição para não provocar o riso deles com meus movimentos desajeitados

- Assim é mais original - falei.Passaram-se alguns momentos de silêncio. Apesar da sua alegria exterior, Paley

estava emocionado. Tonia tampouco ocultava seu nervosismo. Quanto a mim, a situ-ação era completamente embaraçosa, violenta. Na verdade, eu teria saído com muito gosto, apesar do interesse que tinha em escutar o que iam dizer. Senti-me ainda mais violento quanto Paley, fazendo um movimento de cabeça para mim, perguntou a Tonia:

- O camarada Artiomov é seu prometido?Achei que ia cair. Mas por sorte aqui ninguém cai, embora possa desmaiar. O que

Tonia vai responder? Eu fiquei olhando-a fixamente.- Sim - respondeu ela sem hesitar.Eu respirei mais livremente e me senti mais firme em minha cadeira “aérea”.- Então eu não me equivoquei - disse em voz baixa Paley, e em sua voz acreditei

sentir tristeza.Ou seja, em tampouco havia me equivocado ao supor que entre eles houve algo

mais além do interesse científico.- Eu sou culpado perante você, Nina... - disse Paley; e calou-se.Tonia assentiu com a cabeça.Paley olhou para mim.- Nós somos camaradas - disse ele, - e entre camaradas se pode falar com fran-

queza. Eu te amava, Nina... Você sabia?Tonia baixou um pouco a cabeça.- Não.- Acredito. Eu soube guardar este sentimento. E você, como me via?- Para mim, você era um amigo e camarada de trabalho.Paley assentiu com a cabeça.- Nisto eu me equivoquei. Você era atraída pelo nosso trabalho. E eu sofria muito!

Lembra com que alegria aceitei a proposta de ir ao Oriente Distante? Me parecia que quando eu não estivesse perto de você...

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- Eu tive um grande desgosto quando nosso trabalho foi interrompido na parte mais interessante. Você estava com todas as anotações. Ficou também com as fór-mulas. Seu elas eu não podia ir mais além.

- E era somente por essas fórmulas que você me procurava na Terra e no céu?- Sim - respondeu Tonia.Desta vez Paley sorriu sinceramente.- Tudo o que fazemos, fazemos para melhorar. Mais de uma vez, você Nina, havia

me repreendido por eu ser uma pessoa apaixonada. Ai, este é o meu defeito, mas também minha qualidade... Sem esta paixão eu não teria feito os “doze trabalhos de Hércules”, sobre os quais hoje falou Parjomenko. A propósito, todos nós estamos propostos para uma condecoração. Este será o prêmio por meu caráter apaixonado... Assim - continuou ele, - parti para o distante Oriente, e ali... me apaixonei por Sonia e me casei com ela; e agora já temos uma filha preciosa. Minha mulher e minha filha estão na Terra, mas logo virão para cá.

Meu coração já batia normalmente.- Por que agora você se chama Evgenev? Evgeni Evgenev? - perguntou Tonia.- Isto não é uma casualidade. O sobrenome de Sonia é Evgeneva. E ela é muito

original. “Por que você não poderia usar meu sobrenome”, disse ela antes de casar-nos. “O seu, pois bem, o seu, decidi eu. Não lastimei ter perdido o Paley, ele era uma pessoa apaixonada. Deixava o trabalho no ponto mais interessante... Talvez Ev-genev fosse um trabalhador melhor.

- Mas... bem, por que não mandou suas notas?- Primeiro: eu era tão feliz que me esqueci do mundo. Segundo: eu me sentia cul-

pado perante você. Depois da minha partina inesperada, estive duas vezes em Lenin-grado. E em uma das vezes eu a vi com o camarada Artiomov. Ouvi como você fala-va seu sobrenome. Mas logo a seguir comprendi a a relação de vocês. Naquele tem-po eu já trabalhava no sistema Ketz, o novo trabalho tinha me cativado por completo e vivia somente para os “interesses celestes”. Quanto ao nosso trabalho, eu havia perdido todo o interesse. Eu lembrava que tinha que devolver-lhe nossas notas... E eis que encontro o camarada Artiomov. E tenho que dizer que isto aconteceu em momentos muito especiais. Uma hora antes de partir de Leningrado, recebemos um telegrama no qual nos comunicavam que devíamos comprar uns aparelhos de nova produção. Dividimos as compras com meus camaradas, combinando de nos encon-trarmos na esquina da rua Três de Julho com a Avenida Vinte e cinco de Outubro. Por isto, parti tão depressa que não tive tempo de comunicar meu destino. Só conse-gui gritar “Pamir, Ketz!”. Então cheguei ao Pamir e comecei a dar voltas. Então voei para a Estrela Ketz, e daqui para uma viagem interplanetária... Eis aqui a história toda. Perdão, perdão por tudo!

- Mas, onde finalmente estão essas notas? - exclamou Tonia.- Não puxe minha cadeira, por favor, pode ser que eu caia e me parta em pedaços

- ria Paley - Ai, ai, não era necessário que você fosse ao céu para tê-los. Ficaram em Leningrado, em uma casa quase ao lado da sua, na casa da minha irmã.

- E você não podia ter me escrito isto? - disse Tonia, em tom de censura.- Culpado, mil vezes culpado. Toma... - disse Paley-Evgenev, dançando e aproxi-

mando de Tonia sua cabeça de cabelos negros Ela colocou os dedos em sua espessa cabeleira e, sorrindo, agitou-a.- Eu devia era pegá-lo por isto, e não indicá-lo para um premio!- Há do que me castigar, mas há também do que me premiar - replicou brincando

Paley.Tonia então voltou-se para mim e exclamou:

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- Vem, voltamos para a Terra, Lenia?“Voltamos para a Terra, Lenia?” Como teriam me regozijado essas palavras alguns

meses atrás! Agora só me alegrava a palavra “Lenia”. Mas no que se refere à volta à Terra, isso...

- Falaremos disto depois. Não podemos ir assim tão depressa. Você e eu temos trabalhos ainda não terminados - respondi.

- Como? - estranhou ela. - Agora não quer voar para a Terra comigo?- Quero, Tonia, mas estou perto de uma grande descoberta biológica. E este tra-

balho só pode ser terminado aqui. Além disso, o primeiro é o primeiro.Tonia me olhou como se fosse a primeira vez que me via.- Parece que você amadureceu em Ketz - disse ela, não sei se em tom de brinca-

deira ou de aprovação. - Esta firmeza de caráter eu ainda não tinha notado em você. Bom, assim eu gosto mais. Faça o que quiser, mas eu não posso ficar. Terminei meus trabalhos, como se diz, inclusive fui além do meu plano e não penso em come-çar de novo. Preciso terminar aquilo que comecei há muito tempo com Paley.

- Sim, Nina - incentivou-a Paley. - A propósito, Parece que você é Tonia, como eu sou Evgenev. Tudo muda. Você deve terminar este trabalho. Não se pode deixar este problema pela metade...

- E quem deixou? - exclamou Tonia. - Bem, basta de histórias, vamos nos divertir. Esta é minha última noite na Estrela!

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XXI. FINALMENTE EU AFIRMO MEU CARÁTER No dia seguinte eu estava em meu laboratório e trabalhava junto com Zorina. Já

trabalhávamos com os trajes especiais que nos preservavam dos raios cósmicos. Aci-ma de nós, também havia uma espécie de teto isolante. Somente onde estavam os animais em experimentação se recebia chuva de radiações.

Zorina me comunicou que Falieev estava se recuperando. Seu corpo e seu rosto estavam ficando com o aspecto normal. O estado psíquico também melhorava. Mas Kramer ainda estava mal, apesar de que Meller, tinha fé em que ia curá-lo.

A porta do laboratório se abriu e, inesperadamente, Tonia se apresentou.- Estou indo, Lenia! - disse ela. - Vim me despedir e falar contigo antes de partir.Zorina, para não atrapalhar, foi para a outra extremidade do laboratório. Tonia

olhou sua saía e disse em voz baixa:- Uma pena que você não venha comigo!- Bem, nossa separação não será longa - eu disse.Neste momento, “Dgipsi” se aproximou de nós.- Tonia, lembra o que lhe contei sobre a ação dos raios cósmicos? Pois olhe o que

fizeram com “Dgipsi”.- Que monstro fantástico! - exclamou Tonia.O cão sorriu e balançou a cauda.- Vejo que é perigosa sua estadia aqui - disse Tonia - Pode ser que você volte par

amim transformado em um monstro assim.- Não se preocupe, estou bem protegido por estas roupas e pelas capas isolantes.

Elas protegem meu corpo, meu cérbero... e meu amor por você!Tonia me olhou incrédula.- Faça como achar necessário! - disse ela e, despedindo-se de mim, partiu.- Ah, “Dgipsi”, ficamos os dois sem companhia - exclamei.“Dgipsi” lambeu minha mão.

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XXII. TERRA E ESTRELAS Primavera. As janelas abertas. O vento vespertino cheira a vidoeiro tenro. Terminei

a página do manuscrito e olhei pela janela. Como se estivesse enfiada na agulha do Almirantado, vê-se a Lua cheia. Ouvem-se os sons de um violino através do receptor de rádio. Tudo igual a muitos anos atrás... Mas agora eu olho para a Lua com outros olhos. Ela já não é o distante e inacessível satélite da Terra. Em sua superfície fica-ram as pegadas dos meus pés. Agora estarão tão frescas como se eu acabasse de passar por elas, por aquele solo coberto de cinzas e de pó cósmico milenar.

Algumas vezes tudo me parece um sonho...Ao lado do meu gabinete está o de Tonia. Ela, como eu, já tem título acadêmico.Da cozinha chega a mim o cantarolar do nosso filho.No tapete perto da minha cadeira, está deitado meu cão preferido, um negro cão

d'água chamado “Dgipsi”. Chamei-o assim em recordação daquele outro “Dgipsi” que deixei na Estrela. Quão comovedora foi nossa separação!

Eu não quebrei os laços com meus amigos de Ketz. Todos estão vivos e com boa saúde. Zorina se casou com o diretor Parjomenko. Kramer, que já sarou, tomou isto tal como corresponde a uma pessoa normal, não com muita alegria, mas sem fazer dramas. Paley-Evgenev trabalha como engenheiro chefe, construtor e “testador” de foguetes. Tiurin está preparando uma viagem para fora dos limites do Sistema Solar. Ele se nega categoricamente a envelhecer.

Faz um mês que terminei um volumoso livro: “Experimentos biológicos na Estrela Ketz”. Como material para esta obra, utilizei os trabalhos de Shlikov, de Kramer e os meus. Ficou um livro interessantíssimo. Sua edição já está preparada. Terminado este livro, eu quis novamente reviver todas as aventuras relacionadas com meu sin-gular matrimônio. E agora já terminei este livro.

...Meu filho está cantando a “Marcha da Estrela Ketz”. Quantas vezes lhe contei minhas extraordinárias aventuras! Agora ele só sonha em voar para a Estrela quando se tornar um homem. E ele, com certeza, será um dos habitantes das estrelas.