A Utopia No Tempo o Tempo Na Utopia

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Henrique Estrada

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  • FRUM DE TEORIA E HISTRIA DA HISTORIOGRAFIA

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    A UTOPIA NO TEMPO,

    O TEMPO NA UTOPIA TEXTO APRESENTADO AO FRUM DE TEORIA E

    HISTORIOGRAFIA PARA DISCUSSO (que ser)

    REALIZADA EM 03/08/2015, 14h: CPDA / UFRRJ,

    Av. Presidente Vargas, 417, 6 andar, sala de

    defesas, centro, Rio de Janeiro

    Henrique Estrada Rodrigues

  • 1

    Sumrio

    Prefcio (des)interessantssimo...................................................................................02

    Introduo....................................................................................................................03

    O nauta luso e a viagem indireta................................................................................05

    Oswald de Andrade e o ciclo das utopias..................................................................10

    Haroldo de Campos e o pensamento utpico presentista....................................21

    Anexo: Campo de obras, Campos em obra..............................................................29

    Bibliografia..................................................................................................................39

  • 2

    Prefcio (des)interessantssimo

    O que aqui se ler foi produzido a partir da costura de uma pequena srie de

    textos que poderiam ser reunidos sob o seguinte ttulo: projetos inacabados. E essa srie

    assim o ficou por muitos motivos. Ora se projetou algo muito alm do que seria possvel

    cumprir, deixando para um futuro incerto o que no se fez; a esse futuro incerto caber

    quem sabe um estudo sobre a literatura universal em Haroldo de Campos. Ora foi a

    prpria pesquisa que entortou, alterando a rota que inicialmente se imaginava; a esse

    passado alterado pertence um estudo inconcluso sobre a marcha das utopias em

    Oswald de Andrade. Porm, entre o que foi e o que poderia ter sido, resta um presente

    povoado de rascunhos, anotaes dispersas e resultados parciais que no so apenas

    documentos do inacabado, mas tambm ecos que, hoje, me parecem sugestivos para

    novas pesquisas. Porque, afinal de contas, o que entrou em crise e merece crtica so

    certos projetos, e no a prpria ideia de inacabamento. Esta, ao fim e ao cabo,

    sempre deixa em aberto um horizonte de possibilidades. Mas, entre Oswald e Haroldo,

    que horizonte ainda me parece motivador? Certamente, o mesmo que encontrei na

    origem de alguns daqueles textos e projetos: o das utopias. Esse horizonte no se

    constitui, diga-se de passagem, sem pontos de tenso. Afinal de contas, crtica e crise

    tambm circunscrevem o universo contemporneo da marcha utpica. Pois como notara

    Haroldo de Campos (e no apenas), no foram poucos os que, no intuito de incarnar o

    paraso na terra, terminaram ancorando a utopia em novas tpicas da violncia ou da

    dominao. Um mundo ps-utpico nesse sentido no seria uma m notcia. Seja

    como for, o que me parece bastante notvel na obra deste mesmo poeta, ensasta e

    tradutor que ele, antes mesmo de festejar o fim das utopias, tenha buscado na crtica e

    na crise um flego renovado (a hybris do mnimo / que resta), com o qual reatou sua

    obra com a de Oswald de Andrade e continuou a analisar dialeticamente as

    potencialidades da prpria utopia negada. Potencialidades sem sntese futura, vale

    lembrar, sem projeto fechado de futuro: a utopia no presente deveria ser pensada

    como uma utopia do presente. Por esse motivo, o que agora eu apresento neste novo

    projeto de pesquisa que retoma projetos inacabados, que reimagina, com os fios da

    utopia, o dilogo entre Oswald de Andrade e Haroldo de Campos poderia receber este

    subttulo: por uma utopia sem futuro. Este projeto de pesquisa, portanto, no tem

    futuro. No?

  • 3

    Introduo

    Qual a relao entre o conceito de utopia e temporalidade? Embora as definies

    sobre a utopia no sejam inequvocas, a irrupo do tempo uma questo central na

    histria desse conceito. certo que em Thomas More (14781535), inventor do

    neologismo que deu nome sua obra mais conhecida, publicada em 1516, utopia

    corresponde a um conceito ldico e ambguo, que, seja como ou-topos (lugar-

    nenhum, segundo o advrbio grego ou / no), seja como eu-topos (lugar-feliz, no

    qual eu remeteria ao grego bem), indica nem tanto um tempo especfico, mas uma

    viagem imaginria no espao. De fato, nessa viagem, bem descrita no segundo livro da

    obra, o que est em jogo a narrativa sobre a descoberta de um novo mundo a ilha da

    Utopia , radicalmente divergente do mundo at ento conhecido (More, [1516]1993).1

    Porm, mais de trezentos anos depois dessa viagem, um conterrneo de More,

    William Morris (1834-1896), estruturaria o imaginrio utpico no mais no espao, mas

    no tempo futuro, ou melhor, numa Londres cuja tessitura onrica o romance Notcias de

    Lugar Nenhum ([1890] 2002) remete ao sculo XXII. De fato, entre um autor e outro

    e entre o Renascimento e o sculo XIX , a temporalizao e a irrupo do futuro

    correspondem aos traos mais evidentes dessa histria. E isso no tudo. Como lembra

    Koselleck, a partir da incorporao das utopias no seio das modernas filosofias da

    histria, ou aps as experincias revolucionrias dos sculos XVIII e XIX, utopistas

    empenham-se em construir, no poucas vezes, prognsticos e em outorgar a uma pura

    conscincia o prprio controle sobre o curso da histria (Koselleck, 2014, p.121-138).

    O sculo XX, entretanto, sob o impacto de catstrofes como as guerras mundiais

    e os totalitarismos, parece redesenhar o horizonte temporal das utopias. Esse foi o caso,

    sobretudo, de um universo intelectual de intensa crtica a uma pura conscincia que, sob

    o manto da cincia ou da revoluo, convertera as promessas utpicas de emancipao

    em novas tpicas do poder. Esse um universo, pois, de crtica e crise dirigidas a

    todo um imaginrio futurista. No poucos chegaram, at mesmo, a decretar o fim das

    utopias, notadamente a partir da derrocada do chamado socialismo real. Para um autor

    como Koselleck, por exemplo, as utopias esto condenadas ao equvoco (2014,

    p.138). Este projeto de pesquisa deseja analisar, justamente, esse cenrio de crtica crise.

    Porm, diferentemente de Koselleck, busca-se investigar esse momento como a prpria

    1 Para a etimologia da palavra, ver: PRVOST. L' utopie de Thomas More: prsentation, texte original,

    apparat critique, exgse, traduction et notes. 1978. Sobre a palavra e o conceito de utopia, ver tambm: Carlo GINZBURG. O Velho e o Novo Mundo vistos de Utopia. In: Nenhuma ilha uma ilha. 2004; Marcelo JASMIN. Memria. Palavra. Conceito. In: STARLING et alli. Utopias agrrias. 2007.

  • 4

    condio de emergncia de um novo esprito utpico, orientado por um modo de

    temporalizao sem prvia determinao do futuro.

    A expresso novo esprito utpico retomada da obra de Miguel Abensour

    (1990). Com ela, esse autor identifica toda uma tradio terica que, j na passagem do

    sculo XIX para o XX, realizara uma crtica radical a uma pura conscincia utpica que,

    qual homo faber, pretendera modelar o futuro e controlar o curso da histria segundo

    um plano dado. Autores constitutivos dessa constelao, como Ernst Bloch e Walter

    Benjamin, no teriam elaborado essa crtica para decretar o fim das utopias, mas para

    reinstal-la como uma forma especfica de pensamento, dialgica e no-dogmtica,

    como ensaiara a prpria obra pioneira de Thomas More. Assim, a utopia, enquanto uma

    forma especfica de pensamento, talvez fosse capaz de ainda instigar uma interrogao

    sem fim sobre os modos de implicao do homem no tempo da histria, modos esses

    ancorados no mais no espao de um novo mundo e nem tanto num futuro idealizado,

    mas no presente, no frgil limiar entre repetio e criao.

    Essa mesma interrogao e esse mesmo horizonte de um novo esprito utpico

    constituem uma parte significativa da obra dos dois autores que este projeto deseja

    investigar: Oswald de Andrade (1890-1954) e Haroldo de Campos (1929-2003).

    Nenhum deles chegou a escrever utopias, como fizeram Thomas More ou William

    Morris, nem elaboraram uma obra com as implicaes filosficas de um Bloch ou de

    um Benjamin. Porm, ao menos no Brasil, foram capazes no apenas de testemunhar a

    crise e a crtica do imaginrio utpico, mas tambm de instaur-la a partir de uma

    reflexo persistente e bastante singular sobre as relaes entre a utopia e a histria. Mais

    ainda, entre a antropofagia oswaldiana e uma utpica da traduo derivada da potica

    concretista, os dois autores que aqui se estudar souberam enriquecer o repertrio

    conceitual da utopia, o que justifica uma pesquisa detalhada sobre as formas ensasticas

    e poticas de suas elaboraes. A potica utpica de Oswald e Haroldo o que este

    projeto de pesquisa investigar.

    Conceito polissmico, mas com especificidade e histria prpria, uma potica

    utpica requer critrios de avaliao que impliquem, ao menos, trs pontos: o

    conhecimento de sua historicidade, a anlise de seus textos constitutivos e o

    reconhecimento de diferentes modalidades de elaborao e interpretao do imaginrio

    utpico. Nesse sentido, a via especfica deste projeto para incorporar essas questes

    dirige-se para as obras de Oswald de Andrade e Haroldo de Campos por dois motivos

    bem especficos: de um lado, os dois autores souberam responder, cada qual a seu

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    modo, aos trs pontos acima delineados; de outro lado, interferiram no interior da

    tradio utpica a partir de projetos intelectuais muito singulares, que contriburam para

    alargar o campo semntico das utopias e das formas de representao da temporalidade.

    O que se segue no texto que aqui apresento, porm, no pretende dar conta de tudo isso.

    Trata-se, no momento, de rearticular projetos inacabados sob a luz de uma nova

    cartografia, cujo desenho ainda est bem longe de apreender os principais traos dos

    autores aqui em questo. Seja como for, esse desenho j possui trs pequenos traados:

    o primeiro delineia, a partir da obra fundadora de Thomas More, certa gramtica

    utpica, que servir como ponto de orientao do restante do meu texto; o segundo

    traado reconstitui o modo peculiar como Oswald de Andrade retoma essa gramtica

    inaugural e os seus desdobramentos histricos at o sculo de Marx e Engels sob o

    pathos da antropofagia; o ltimo apenas esboa o modo como Haroldo de Campos

    repensa a linguagem da utopia em meio ao seu sentimento de exausto do projeto

    vanguardista e de certo otimismo que reservava ao futuro um ponto de culminao

    ideal.

    1. O nauta luso e a viagem indireta

    A utopia, tal como descrita no livro homnimo de Thomas More publicado em

    1516 , inseparvel de um dispositivo retrico atravessado por uma profuso de

    personagens e por um jogo oblquo de identificaes.2 Trata-se, no caso, de um jogo

    erudito, construdo a partir da costura de diferentes gneros como o dilogo filosfico

    e as epstolas e de diferentes nveis lingusticos do coloquial ao erudito , embora

    sua enorme recepo seja devida, em boa medida, ao sutil manejo de um gnero em

    expanso na poca dos descobrimentos: o relato de viagem. um nauta luso que teria

    descoberto a Ilha da Utopia; um marinheiro pertencente s hostes de Amrico Vespcio,

    embora seja aproximado, por Thomas More, a Ulisses, ou mesmo Plato (More, 1993,

    p.14) o astucioso Ulisses da odisseia rumo a taca ou o desventurado Plato das

    2 Segue-se, aqui, a leitura de ABENSOUR. L' utopie de Thomas More Walter Benjamin. 2000, p. 09-

    105; sobre os dispositivos retricos do livro, ver tambm GINZBURG. O Velho e o Novo Mundo vistos de Utopia. In: Nenhuma ilha uma ilha. 2004. No Brasil, muitas edies do livro de More tm um problema em comum: apresentam um texto mutilado, frequentemente sem os paratextos que acompanham

    a edio definitiva de 1518 (epstolas, alfabeto utpico, mapa da ilha da utopia, carta-prefcio, ttulo e

    subttulo originais etc). Sem esses paratextos, o ncleo da obra o livro I (um dilogo filosfico) e o livro II (o relato sobre a ilha da Utopia) perde em matiz e sentido, o que dificulta a compreenso do jogo literrio proposto por seu autor. Das edies brasileiras que eu conheo (Martim Claret, Os pensadores, Ediouro, Martins Fontes), a nica que me parece razoavelmente confivel a da Editora Martins Fontes.

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    viagens pelo Mediterrneo rumo Itlia, narradas por Digenes Larcio e tambm

    registradas na chamada Carta VII (que muitos atriburam ao punho do prprio filsofo

    grego). Entretanto, nesse jogo de identificaes, talvez se reconhea uma astcia prpria

    ao humanista ingls, cuja Utopia parece ecoar, sobretudo, a desdita de Plato, quando,

    em Siracusa, enfrentara a apropriao tirnica de suas teses e a transformao de sua

    filosofia numa dogmtica.

    Recorde-se o episdio, especialmente quando o filsofo grego viaja Siclia e

    coloca-se a servio do tirano. Perante a necessidade de dar conselhos, registrara na

    Carta VII: e disse isso [algum conselho] de modo no claro pois no era seguro ,

    mas por enigmas e lutando com as palavras.3 Essa luta, porm, lhe foi de pouca valia

    em Siracusa. Privado da liberdade e tomando cincia de uma obra escrita pelo prprio

    tirano, explica-se: no possvel, na minha opinio, que tenham [os que escrevem o

    que ouviram de mim] compreendido nada do assunto. (...) no considero bom abordar

    aos homens essa questo que estamos a falar, seno a uns poucos, quantos forem

    capazes de descobrir por si prprios, com pequena indicao. Quanto aos outros, a uns

    essa abordagem encheria de um infundado desprezo, a outros, de sublime e frvola

    esperana, como se fossem doutos em coisas venerandas.4 Mas, se possvel retomar

    toda essa histria como fizera Miguel Abensour, que at aqui se segue para medir

    a distncia de Thomas More e sua Utopia em relao "soluo platnica", que, diante

    dos riscos da opinio (tirnica ou no), retorna a Atenas e retira a filosofia da cena

    pblica, reservando a pesquisa da verdade a um pequeno grupo reunido na "Academia.

    Thomas More, sob a persona do nauta luso, tambm no deixa de reconhecer os

    riscos do filsofo como conselheiro real: o que imaginais que aconteceria se eu (o

    nauta luso) comeasse a sugerir a um rei a criao de leis justas, ou pedir-lhe que

    arrancasse de seu esprito os germes da corrupo? evidente que, na melhor das

    hipteses, eu seria escorraado ou me tornaria objeto de riso (Morus, 1993, p.44).5

    Entretanto, se o autor se distancia da soluo platnica, porque continua a lutar com as

    palavras, avanando ideias de maneira teatralizada e indireta: existe uma forma mais

    civilizada de filosofia, e esta, por assim dizer, conhece o contexto dramtico em que

    3 PLATO. Carta VII. 2008, p.63. Ver tambm: Giovanni REALE. Histria da filosofia antiga. 1994,

    p.08 (vol. II). 4 PLATO. Carta VII. 2008, p.89.

    5 Talvez por isso, Erasmo de Roterd, com a pena da ironia, inverte a lgica (o logos) desse risco o risco

    do riso quando pensa curar a loucura dos outros falando como eles. O Elogio da loucura, diga-se de passagem, foi composto em 1509 quando Erasmo estava hospedado na casa de seu amigo Thomas More,

    a quem dedica o livro. E o nauta luso da Utopia ou o prprio More no teria algo da loucura da Moira de Erasmo?

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    est inserida, tenta ajustar-se a ele e representa um papel adequado ao longo da

    encenao (More, 1993, p.53). Assim, conclui o autor:

    A mesma regra se aplica poltica e vida na corte. Se no for possvel

    erradicar de uma vez por todas as ideias erradas, nem lidar com os vcios

    que o hbito j h muito sedimentou, mesmo assim no vejo motivo para

    voltar as costas vida pblica. Seria proceder com a mesma insensatez dos

    que abandonam o navio em meio tempestade s porque no conseguem

    dominar os ventos. Por outro lado, de nada adianta tentar transmitir fora

    ideias inteiramente novas para pessoas que se acham firmemente

    convencidas do contrrio. preciso fazer um trabalho indireto: lidar com

    tudo com o mximo de tato possvel, e tentar errar o mnimo nas situaes

    em que no for possvel acertar como se gostaria (More, 1993, p.54).

    Em outro contexto ao analisar Maquiavel e Guicciardini , Felipe Charbel

    lembra que esse tipo de tato seria o cerne de uma razo prudente. A prudncia

    depende de uma performance retrica (...); por estar associada qualidade elementar

    de toda deliberao, condio de possibilidade para a produo de conselhos

    argumentativos numa Repblica e de bons conselhos no mbito de um principado ou

    regime stretto, ela fundamentalmente retrica (Charbel, 2010, p.89). Vale lembrar,

    nesse sentido, que o Livro I da Utopia tem como um de seus eixos centrais um

    dilogo filosfico sobre o lugar dos humanistas nos conselhos reais, dilogo este

    estruturado a partir de trs pessoas: dois humanistas (Peter Giles e o prprio More, que

    aparece como personagem de seu prprio livro) e o nauta luso. A descrio da ilha, por

    sua vez, corresponde ao Livro II, onde se registra aquilo que, um ano antes, More

    teria ouvido da prpria boca do navegante portugus, cuja viagem teria ocorrido muitos

    anos atrs. No por menos, More lembra na carta-prefcio da obra: a memria pode

    falhar. Porm continua , prefiro dizer enganos que afirmar mentiras (1993, p.06,

    traduo modificada luz da edio crtica de Prvost, 1978, p.349). E a prpria

    utopia no poderia ser pensada como um engano verdadeiro?

    Prvost, em nota para sua edio crtica do livro, lembrava que dizer enganos

    pertence a uma arte da escrita, a uma conveno irnica tipicamente utpica, a

    comear pelos enganos de uma viagem imaginria ou dos paradoxos do prprio

    neologismo utopia. De resto, More retomava, aqui, a enganosa ironia de Luciano de

    Samsata de quem fora leitor e tradutor , cuja Histria verdadeira (uma viagem

    imaginria a regies fantsticas), por exemplo, dizia logo em seu incio que a

    falsidade (psudos) da sua histria era mais verdadeira que muitos outros relatos

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    verdadeiros. Pois, ao menos, h nela uma verdade: assumo estar mentindo. (...)

    Escrevo sobre fatos que nunca vi, nem vivi. De quem nem sequer ouvi falar. Sobre o

    que no existe, nem jamais poderia existir. Fica, em resumo, um aviso a todos os

    leitores: no acreditem em mim (Luciano, 2012, p.15-16).6

    [Pausa para um pequeno parntesis, que podia entrar em nota de rodap ou

    num comentrio oral, mas prefiro colocar aqui: l atrs, vimos como

    Abensour e meu texto a partir do texto dele enfatiza o singular

    platonismo da Utopia em relao mais com a chamada Carta VII do que

    com a Repblica. Seu intuito e o meu era igual ao dele quando comecei a

    estudar esses assuntos o de alicerar a interpretao da Utopia nos

    quadros de uma reflexo sobre o poltico. J a relao entre o nauta luso e o

    Ulisses da Odissia aparece sem muito peso em seu argumento e no meu de

    ento , salvo quando lembra que o heri, sob proteo da deusa Athena, era

    mestre dos enganos (por exemplo, quando ressurge na taca natal disfarado

    de velho marinheiro). Minha leitura, como j disse, comeou ancorada na

    obra de Abensour. Porm, daqui para frente, fica o aviso ao leitor: pretendo

    navegar por mares que, agora, no me levaro de volta para o lugar de onde

    parti: a teoria poltica (Mas no acreditem em mim). Esta pesquisa

    pretender dar um pouco mais de peso figurao da viagem de

    descobrimento (e da utopia enquanto um modo de figurar esse gnero) sob

    o modelo de Ulisses, embora este modelo possa ser pensado de modo pouco

    homrico. Dizendo de outra maneira: a astcia do personagem homrico , de

    certa maneira, aquela que o conduziu de volta terra natal para reassumir

    seus direitos de senhor. Hoje prefiro explorar, como mais prximo ao

    descobridor da ilha da Utopia, o Ulisses do canto XXVI do Inferno de

    Dante, quando a Divina Comdia relembra a ltima aventura do heri: ter

    abandonado a famlia e os deuses do lar para, j velho, provar novas

    experincias. Recorde-se o episdio: Ulisses e seus antigos companheiros,

    todos muito velhos, voltam ao mar, atravessam as colunas de Hrcules [no

    estreito de Gibraltar] e navegam pelo ento desconhecido mar oceano [o

    Atlntico]. Tudo se passa como se o Ulisses de Dante na interpretao

    figural de Piero Boitani prefigurasse aquilo que navegantes como

    Colombo, Vespcio e o nauta luso (bronzeados de sol Atlntico, diria

    Oswald de Andrade) iriam realizar. A leitura de Boitani que desdobra

    Auerbach e a topologia histria da Ernst Curtius sugestiva, uma vez que

    permite explorar o modo como certos personagens (literrios e tambm

    reais, por assim dizer) figuram sua persona aventureira atravs de topoi

    6 Sobre o riso filosfico de Luciano, que significa nem tanto rir do filsofo mas rir filosoficamente,

    e que inscreve o psudos no horizonte de uma reflexo sobre a histria e o poltico, ver: Jacyntho Lins

    BRANDO. A potica do hipocentauro. 2006.

  • 9

    colhidos na leitura da tradio. Alis, Ulisses ou o topos da aventura

    ser personagem central do poema ps utpico (ps?) Finismundo, de

    Haroldo de Campos. Analisarei esse poema no final deste texto. Mas no

    acreditem em mim. Fim do parntesis].7

    O gnero utpico, assim, pode ser pensado como uma forma de trabalho

    indireto, irnico e teatralizado com as ideias, instaurando uma relao especfica entre a

    arte da escrita, a tpica da viagem de descobrimento e a imaginao poltica.8 E

    imaginao o que no faltou arte retrica do texto fundador desse gnero. No livro

    Utopia, o nauta luso que narra aos seus interlocutores More e Peter Giles a

    descoberta da Ilha da Utopia chamado de maneira singular: Hitlodeu, que, em sua

    etimologia, significa contador de disparates. More, por sua vez, no s o autor do

    livro como uma desconfiada personagem, para quem, em muitos casos, as leis e os

    costumes daquele pas pareceram inteiramente ridculos (1993, p.164). Qual, ento, o

    rosto privilegiado para se penetrar na narrativa? O nome completo da obra tambm

    ambguo. Num primeiro momento, ele sugere a filiao do texto clssica investigao

    sobre a melhor forma de regime poltico Sobre a melhor constituio de uma

    repblica e a nova ilha da utopia. Na sequncia, porm, o subttulo sugere uma

    inspirao satrica um livrinho de outro, divertido e no menos edificante. Qual seria,

    pois, a seriedade das teses apresentadas? Enfim, o livro fora publicado junto a uma srie

    de paratextos poemas, alfabeto da ilha, mapa e cartas que comentam,

    complementam ou mesmo desdizem a histria apresentada. Por tudo isso, como se

    More desejasse se prevenir de uma apropriao por demais realista da utopia, sempre

    prestes a congelar o movimento das ideias ao transform-las em dogma ou programa

    poltico.9 E lembre-se, mais uma vez, que a palavra utopia um neologismo formado

    por termos gregos traduzidos numa terminao latina.

    A utopia, pois, ao instaurar um jogo muito especfico entre o sentido do texto e a

    arte da escrita, exige uma ateno especfica sua forma de exposio. De resto, ao

    7 Cf. Piero BOITANI. A sombra de Ulisses. Perspectiva, 2005. Sobre a topologia histrica, ver tambm:

    Srgio Buarque de HOLANDA. Viso do Paraso. 2000. Thiago NICODEMO. Urdidura do vivido:

    Viso do Paraso e a obra de Srgio Buarque de Holanda nos anos 50. 2008; Luiz COSTA LIMA. Srgio Buarque de Holanda: Viso do Paraso. In: MONTEIRO; EUGNIO (orgs.). Sergio Buarque de Holanda: perspectivas. 2008. 8 Cf ABENSOUR. De l utopie de Thomas Morus Walter Benjamin. 2000, p.43-59.

    9 Para tal leitura, o livro I da Utopia um dilogo entre More, Hitlodeu e Giles merece especial ateno,

    como se ele oferecesse o ponto de vista desconfiado e oblquo para a leitura do livro II, onde encontram-se expostos, propriamente, os costumes e as instituies da ilha recm descoberta em algum

    lugar do novo mundo. Cf ABENSOUR. De l utopie de Thomas Morus Walter Benjamin. 2000, cap. I.

  • 10

    argumento exposto at aqui, pode-se

    acrescentar um dado que ter relevncia

    para um autor como Haroldo de Campos, e

    que diz respeito prpria inveno de um

    alfabeto para a ilha da utopia (imagem ao

    lado). Tudo se passa como se a forma de

    exposio do universo utpico, desde seu

    texto fundador, fosse pensado como um

    problema de traduo, vale dizer, de

    aprendizado, trnsito e interpretao entre

    diferentes lnguas e textos: a lngua da

    utopia; o relato oral de um Hitlodeu

    marinheiro (e no um erudito humanista);

    a escrita de todo um livro num latim que conjuga diferentes nveis, do falado ao elevado

    estilo escrito, do modelo ciceroniano profuso de neologismo e de novas sintaxes

    (Prvost, 1978, p.241-253). Tudo se passa, enfim, como se esse trnsito entre diferentes

    registros, lnguas e estilos fosse a razo de ser da viagem pela utopia; como se a prpria

    lngua da utopia fosse uma lngua de lugar-nenhum e de ningum, a exigir, sempre, uma

    particular utpica da traduo.10 Talvez seja possvel pensar a viagem tradutria de

    um Haroldo de Campos, por mais de dez lnguas, nesse registro. Mas a anlise desse

    autor fica mais para frente, afinal, este texto, de tanta viagem, nem chegou ainda ao

    Oswald de Andrade.

    2. Oswald de Andrade e o ciclo das utopias

    No Brasil, a recepo da obra de More privilegiou, frequentemente, uma leitura

    realista do livro, alheia s indicaes da via oblqua dessa viagem rumo utopia. Esse

    o caso, ao menos, de duas matrizes de interpretao. A primeira, advinda das leituras do

    descobrimento, particularmente cara historiografia, quando relaciona a obra do

    humanista ingls ao tema das navegaes e da colonizao da Amrica. Enquanto

    idealizao do novo mundo, a ilha recm-descoberta espelharia os sonhos nostlgicos de

    10

    Utpica da traduo foi a expresso que usei, no artigo Poesia bblica e utopia em Haroldo de Campos, para pensar os intercmbios entre traduo e literatura universal. Esse artigo foi publicado no ltimo nmero de Eixo e a Roda: revista de literatura brasileira (disponvel eletronicamente). O que ficou apenas esboado nesse texto pretendo retomar e desdobrar neste novo projeto de pesquisa.

  • 11

    uma Idade do Ouro, estimulada pelos relatos de viagem aps as grandes navegaes.11

    Nesse sentido, ainda que ambguo, o esprito da utopia seria, sobretudo, pedaggico,

    construdo como um modelo de sociedade ideal.12

    Por outro lado, uma segunda matriz

    de interpretao tambm explora a construo desse modelo, embora inspirado por um

    outro ponto de vista: aquele proposto pelo texto Do socialismo utpico ao socialismo

    cientfico, de Engels. Nessa matriz de leitura, particularmente cara, nos anos 50,

    doutrina do Partido Comunista, More seria precursor do socialismo, sugerindo, com

    meios inadequados utpicos , um modo de produo superior a ser reelaborado,

    adequadamente, com as armas do materialismo histrico.13

    Preservam-se, assim, os

    momentos propositivos da tradio utpica, descolados da forma satrica e ambgua do

    texto fundador do humanista ingls.

    As anlises de Oswald de Andrade perante essas duas matrizes, inscritas numa

    srie de ensaios elaborados a partir de 1950 (ou seja, nos ltimos cinco anos de sua

    vida), colocam-se numa posio especfica. O tema das navegaes e as narrativas dos

    viajantes, assim como a obra de Engels, comparecem, certamente, em sua reflexo sobre

    as utopias. Entretanto, o escritor no privilegia o ponto de vista dos descobrimentos,

    nem procura fazer uma cincia do social. Do prprio intrprete alemo, alis, ele retm

    nem tanto a cincia sobre as condies histricas do movimento comunista. O que lhe

    interessa a homenagem que Engels e Marx fizeram aos utopistas de todos os tempos,

    disposio fantasiosa dos seus sistemas. Do Manifesto Comunista, por exemplo, trata de

    preservar nem tanto as restries a Owen, Fourier ou Saint-Simon, mas as crticas

    dirigidas aos epgonos, que transformaram a obra inventiva dos trs autores em frmula

    ou programa de ao.14

    J do livro sobre as Guerras Camponesas da Alemanha, de

    Engels, Oswald de Andrade recupera, sobretudo, a utopia em ato do telogo alemo

    11

    Cf. DAYRELL. A problemtica da utopia no contexto dos descobrimentos: um contraponto

    Amrica/Utopia/Distopia. In: BLAJ E MONTEIRO (orgs.). Histria e utopias. 1996. O texto de Dayrell

    comenta o ensaio precedente de Ronaldo Vainfas A problemtica das utopias no contexto dos descobrimentos e da colonizao da Amrica , onde o autor analisa o parentesco entre a obra de More e as navegaes para o Novo Mundo. 12

    Cf CAVALCANTI, Berenice. Viagens imaginrias: a Utopia de Thomas More. In: CAVALCANTI

    (org.). Modernas tradies. 2002, p.35-43. 13

    A este respeito, ver, por exemplo: CHILCOTE. Partido comunista brasileiro. 1982, quando lembra, na

    histria da idia socialista no Brasil, que a fundao do "partido" visava, entre outras coisas, superar uma

    prtica poltica at ento inspirada pela tradio utpica (p.45-46). De qualquer maneira, o humanista

    ingls continuara a pertencer ao panteo revolucionrio comunista. Vale lembrar que ele tinha seu nome

    inscrito em um monumento na Praa Vermelha, em Moscou. 14

    A este respeito, ver, no Manifesto Comunista, o captulo sobre o socialismo e o comunismo crtico-utpicos, quando os autores concluem: os pioneiros desses sistemas, em muitos sentidos, foram revolucionrios, mas seus discpulos formaram sempre seitas reacionrias. In: REIS FILHO, Daniel Aaro (org.). O manifesto comunista 150 anos depois. 1998, p.39.

  • 12

    Thomas Mntzer, cujas ideias igualitrias, tais como lidas pelo escritor brasileiro, foram

    alm das vociferaes de Lutero. Atacou mesmo a propriedade privada, a aristocracia

    eclesistica e feudal e os prncipes (Andrade, 1995, p.196). Por fim, Oswald de

    Andrade no se esquecera da via oblqua assumida pela utopia de Morus, um humanista

    eivado de stira e crtica (Andrade, 1995, p.178).

    Mas talvez seja preciso que este novo projeto de pesquisa retome, com pouco

    mais vagar, os passos oswadianos rumo utopia, pois como como se pode ver nesse

    primeiro sobrevoo, o autor atravessou muitos caminhos. De fato, nos ltimos cinco anos

    de sua vida, Oswald de Andrade (1890-1954) entregou-se a uma intensa produo

    ensastica, notadamente voltada para uma reflexo sobre o pensamento utpico, da obra

    de Thomas More crtica s utopias elaborada por Marx e Engels. Esse , certamente,

    um trao bem singular de sua trajetria, delineado por interesses bem diferentes

    daqueles que, at ento, o fizeram notrio. Ao inventivo romancista e poeta pau-brasil,

    ao dramaturgo e iconoclasta modernista, acrescenta-se, agora, um intrprete da natureza

    poltica do imaginrio utpico, da possibilidade de que a utopia um sinal de

    inconformao e um prenncio de revolta (Andrade, 1995, p.209) no se

    apresentasse, num pas como o Brasil, como uma ideia fora do lugar. Esse perodo de

    sua trajetria foi, de fato, bastante fecundo, ganhando expresso, sobretudo, em trs

    ensaios temticos: O homem cordial: um aspecto antropofgico da cultura brasileira

    (1950), A crise da filosofia messinica (1950) e, por fim, A marcha das utopias

    (1953). Entre os trs, uma tnica sempre recorrente: a contnua interrogao sobre

    sonhos de mudana e de transformao social. Para o autor, essa interrogao o que

    estaria na prpria base do imaginrio utpico, do seu entusiasmo por um mundo que,

    divergindo do existente, lanaria uma dvida radical quanto a qualquer representao

    fatalista da histria e do real. Investigar os modos de constituio dessa marcha

    oswaldiana rumo s utopias algo que se deseja fazer neste projeto de pesquisa.

    Projeto este que, por sinal, foi pensado h muito. O interesse por esse tema eu

    comecei a se delinear durante a finalizao da tese de doutorado sobre as Fronteiras da

    democracia em Srgio Buarque de Holanda (2005). Na ocasio, esboou-se um

    primeiro dilogo entre o autor de Razes do Brasil e Oswald de Andrade, em funo

    exclusiva daquele artigo do escritor modernista sobre o homem cordial. Na tese,

    reconheceu-se o ponto de vista heterodoxo desse artigo, resgatando a cordialidade

    herana de um mundo rural e colonial, signo da hipertrofia da vida privada, invadindo

    todos os espaos da vida pblica como um valor no inteiramente incompatvel com

  • 13

    formas de vida mais justas e solidrias. O homem cordial, na leitura oswaldiana, teria

    dentro de si sua prpria oposio. Ele sabe ser cordial como sabe ser feroz (Andrade,

    1995, p.159). Ao mesmo tempo, ao revelar uma dimenso conflituosa com o mundo,

    poderia implicar os homens com uma sociabilidade mais transigente e comunicativa,

    atravessada pelo sentimento do outro, isto , ver-se o outro em si, de constatar-se em si

    o desastre do outro, a mortificao ou a alegria do outro (Andrade, 1995, p.157).

    Em outras palavras, a leitura oswaldiana, apenas indicada na tese, sugeria nem

    tanto um intrprete fiel ao texto de Srgio Buarque de Holanda, mas o autor de um olhar

    muito especfico para a histria, que buscava, na tradio cordial, o horizonte da

    utopia como motor das possibilidades humanas.15 Esse horizonte, por seu turno,

    Oswald de Andrade retoma e desdobra tanto em A crise da filosofia messinica como

    em "A marcha das utopias", quando adentra, especificamente, o universo do

    pensamento utpico. Tratava-se, agora, de incorporar sua reflexo sobre a cordialidade

    o gesto criador de Thomas More. Desse ponto de vista, os ensaios de Oswald de

    Andrade produzidos nos anos 50, quando vistos em conjunto, descortinam uma

    preocupao muito especfica. Para o autor, era o caso de investigar, a partir de More,

    diferentes formulaes da tradio utpica, de forma a reencontrar, na prpria histria

    brasileira e em sua herana cordial, um novo captulo dessa tradio.

    Entretanto, a interpretao dos ensaios oswaldianos sob o ponto de vista da

    prtica histrica da cordialidade um caminho necessrio, mas no inteiramente

    suficiente, para uma anlise sobre a especificidade da sua marcha pelas utopias. Afinal,

    Oswald de Andrade tambm foi autor de um gesto intelectual especfico, ao reencontrar,

    no homem cordial, no apenas um contedo histrico determinado, mas tambm um

    conceito agonstico, resultado de um trabalho crtico e reflexivo quanto ao seu

    significado. Por isso, o projeto de pesquisa agora apresentado pretende retomar os

    ensaios dos anos 50 como abertura para uma busca singular: a de um conceito inventivo

    15

    Cf NUNES, Benedito. A antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald. A utopia

    antropofgica. 1995, p.26. Um segundo dilogo entre o historiador e o antropfago elaborei no captulo Uma histria cordial: Oswald de Andrade leitor de Srgio Buarque de Holanda, publicado em: PEREIRA; NICOLAZZI; SILVA (orgs.). Contribuies histria da historiografia luso-brasileira.

    2014. Esse captulo conclui com as seguintes palavras: seria o homem cordial, pois, um homem utpico? E qual o sentido de uma utopia cujas esperanas estariam enraizadas no no futuro, mas na tradio? Em

    1953 Oswald Andrade comeava a escrever, no por acaso, sua Marcha das utopias, na qual retoma e redireciona o dilogo com Srgio Buarque e tambm com Gilberto Freyre. Mas essa marcha j no assunto para este texto (p.323). No fora assunto na ocasio porque, a bem da verdade, no sabia ainda o que dizer a respeito. Este projeto pretende, pois, reabrir o que no captulo ficou inacabado. Sobre a

    relao entre Oswald de Andrade e Srgio Buarque, ver tambm: MONTEIRO. A queda do aventureiro.

    1999, pag.259-270.

  • 14

    de utopia, capaz de reinterrogar a herana cordial e as formas do social seus costumes,

    princpios ou valores compartilhados do ponto de vista da aspirao por uma

    sociedade melhor. Esse conceito circunscreveria a marcha utpica no apenas no

    campo de uma reflexo sobre a histria, mas tambm no horizonte de uma forma

    especfica de pensamento, de interrogao sem fim sobre os modos de instituio do

    social e de seu horizonte poltico.

    Talvez por isso, o prprio autor tenha encaminhado sua trajetria para o campo

    da reflexo filosfica. O ensaio sobre "Um aspecto antropofgico da cultura brasileira: o

    homem cordial" foi preparado para o Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia"

    (1950), embora a formulao mais sistemtica dessa trajetria seja, primeiramente, "A

    crise da filosofia messinica", tese para um concurso de Filosofia da USP (1950), que

    acabou no fazendo. De fato, desde os anos 40, quando pensou em concorrer a uma

    Cadeira de Literatura, Oswald de Andrade buscava, no meio acadmico, novos

    interlocutores e uma nova possibilidade de insero profissional. Diante disso, o

    concurso de Filosofia do incio dos anos 50 estimulara o tipo de pesquisa que, ento,

    comea a explorar. Entretanto, a inverso na ordem desta ltima frase tambm parece

    plausvel, sugerindo um ponto a ser pesquisado: no seria o incio de um trabalho j

    com implicaes filosficas que o teria estimulado a buscar esse novo caminho

    acadmico?16

    Entretanto, uma interpretao dos ensaios oswaldianos dos anos 50,

    particularmente de sua reflexo sobre as utopias, tem pouco destaque na literatura sobre

    o escritor. Em boa medida, a fortuna crtica dedica-se seja viso potica pau-brasil,

    seja devorao antropofgica, a partir das quais investiga a articulao entre os

    manifestos dos anos vinte e a produo literria do autor da sua poesia de vanguarda

    ao teatro antropofgico, na dcada de 30, passando pela explorao estilstica das prosas

    de Memrias Sentimentais de Joo Miramar ou de Serafim Ponte Grande. Mesmo

    perante o afresco social da obra Marco Zero, projetado no contexto de suas atividades

    polticas junto ao Partido, a literatura sobre o autor tem destacado a tcnica literria o

    procedimento cinematogrfico e fragmentrio, por exemplo , a partir da qual ganharia

    atualidade seu comcio de ideias e as circunstncias histricas desse romance mural.

    Sua marcha rumo s utopias e a ensastica que lhe contempornea os ensaios sobre o

    16

    Sobre esses anos da vida do autor, ver: BOAVENTURA. O salo e a selva: uma biografia ilustrada de

    Oswald de Andrade. 1995. Sobre a utopia como "forma de pensamento", inscrita no horizonte da tica e

    do poltico, ver tambm, ainda que em outro contexto: CHALIER, Catherine. Levinas: l' utopie de l'

    humain.

  • 15

    homem cordial e sobre a crise da filosofia messinica so deixadas para citaes

    de ocasio, quando no so simplesmente ignoradas.17

    Exceo feita, nesse caso, a Benedito Nunes, cuja interpretao fundamental

    para este projeto de pesquisa. Preocupado com a formao ideolgica de Oswald de

    Andrade, ou melhor, atento s fontes intelectuais de sua reflexo sobre o ciclo das

    utopias, o intrprete chamou a ateno, h muito, para os pressupostos filosficos do

    escritor. Para Nunes, a marcha utpica do escritor modernista seria inseparvel de uma

    instrumentao terica vinda das obras de More e Montaigne, Freud e Nietzsche, Marx

    e Bachofen, para citar as principais referncias oswaldianas.18

    Particularmente, o

    intrprete insistira sobre um ponto: Oswald de Andrade no teria abandonado o

    pensamento de Marx e Engels quando abandonou, em meados dos anos 40, o Partido

    Comunista, pelo qual militara desde os anos 30. Afastou-se, sim, dos discpulos obreiros

    inspirados pelo bolchevismo oficial. E jamais fez, na realidade, a distino,

    sabidamente estratgica, entre socialismo utpico e socialismo cientfico. (...) Da ter ele

    assimilado o marxismo ao ciclo das utopias, e isso reagindo ao carter messinico de

    que se revestira na Rssia, como ideologia de Estado.19

    Mas no isso que constituiria, para o autor, a especificidade da "marcha"

    oswaldiana. Para bem compreend-la, era o caso de privilegiar a articulao entre utopia

    e "viso de mundo" antropofgica, reconstruindo os caminhos de constituio daquilo

    que Oswald de Andrade nomeara como uma "revoluo caraba" Maior que a

    Revoluo Francesa. A unificao de todas as revoltas eficazes na direo do homem.

    (...) Filiao: o contato com o Brasil Caraba, dissera no "manifesto antropofgico

    17

    Sobre a verve modernista do escritor, ver, por exemplo: CAMPOS, Haroldo de. Da razo antropofgica:

    dilogo e diferena na cultura brasileira. In: Metalinguagem e outras metas. 1992; NETTO, Adriano

    Bitares. Antropofagia oswaldiana: um receiturio esttico e cientfico. Sobre a tcnica romanesca do

    autor, ver, para citar dois exemplos: a) de Srgio Buarque de Holanda, artigo de 1925 sobre a publicao

    de Memrias Sentimentais de Joo Miramar no ano anterior. In: HOLANDA. O esprito e a letra I. 1996; b) de Maria de Lourdes Eleutrio, o prefcio a ANDRADE, Oswald. Marco Zero I: a revoluo

    melanclica. 1991. Alis, para toda a obra do autor, vale a pena ler os prefcios que acompanham a

    reedio de seus livros pela Editora Globo. 18

    Cf. NUNES, Benedito. Oswald Canibal. So Paulo: Perspectiva, 1979. Do mesmo autor, ver o prefcio

    publicado em: ANDRADE. A utopia antropofgica. 1995. Ver tambm: BRITO, Mrio da Silva. As

    metamorfoses de Oswald de Andrade. 1973, uma das primeiras snteses sobre a obra do escritor

    modernista; CANDIDO, Antonio. Digresso sentimental sobre Oswald de Andrade. In: Vrios escritos.

    1995. 19

    Cf. NUNES, Benedito. A antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE. A utopia antropofgica.

    1995, p.38.

  • 16

    (1995, p. 48). sob a luz dessa revoluo que Benedito Nunes procura compreender a

    perspectiva utpica de Oswald de Andrade.20

    Essa seria uma "utopia antropofgica", continua o intrprete, cuja especificidade

    a de inserir a via utpica numa relao especfica com o tempo. No caso, no se trata

    tanto de projetar um futuro que ainda no veio, mas de retomar, do passado e da

    tradio, aquilo que ainda poderia alimentar, no presente, a insatisfao e a revolta

    diante destes problemas: a herana patriarcal, o colonialismo cultural e as novas formas

    de excluso num pas em vias de urbanizao e industrializao. Para Oswald de

    Andrade, era o caso de reconciliar o tempo presente com uma solidariedade ldica e

    festiva, desenhada, de forma surpreendente, com os traos de certo matriarcado, tal

    como esboado pelo jurista suo-alemo Bachofen.21

    Para o escritor modernista,

    retomar Bachofen significava algo preciso: contrapor-se a um conceito de trabalho e a

    uma noo de "direito paterno" ou patriarcal impotentes em examinar, na

    propriedade privada, nos progressos da tcnica e na dominao da natureza, os

    retrocessos da sociedade, seja na organizao autoritria do Estado, seja na destruio

    do mundo natural, seja na distribuio desigual das riquezas e da terra.

    A fantasia matriarcal, assim, comparece obra oswaldiana com uma natureza

    corrosiva. Tratava-se de corroer a prpria trajetria daquele intelectual modernista

    filiado, desde o incio dos anos 30, ao Partido Comunista. Mas, se abandona o

    "Partido" em meados dos anos 40, em razo do sectarismo poltico de suas lideranas,

    tambm resolve prestar contas no plano das ideias. O passo decisivo. O matriarcado

    testemunha sua recusa antiga moral protestante que, secularizada pelo capitalismo

    moderno, festejaria sua ressurreio onde menos se esperava: num certo marxismo

    vulgar e evolucionista, cuja noo triunfalista do trabalho, inspirada pelo Estado

    20

    Esta perspectiva foi retomada, de relance, por Leyla Perrone-Moiss no artigo Oswald de Andrade em francs. Publicado em 1982, a autora concluiu, a respeito da viso de mundo antropofgica: o golpe de gnio consistiu em no ficar travado na nostalgia de uma Idade do Ouro passada, nem se contentar com vagas promessas de futuro. Ele deu uma toro na histria de modo que essa Idade do Ouro fosse possvel

    a cada instante, pela integrao seletiva do melhor do passado com o melhor do presente. In: PERRONE-MOISS. Intil poesia. 2000, p.209. 21

    bem provvel que o escritor brasileiro tenha chegado obra do jurista a partir de Engels. Cf

    ENGELS. L' origine de la famille, de la proprit prive et de l' tat. 1971. Ver tambm BACHOFEN.

    Du rgne de la mre au patriarcat. 1938; ver, particularmente, a leitura de Bachofen sobre a Ortia, de

    squilo. Para o autor, a absolvio de Orestes, acusado pelo assassinato de sua me Clitemnestra e

    perseguido, desde ento, pelas Erneas, representaria o fim do direito materno. Inspirado por essa leitura,

    Oswald de Andrade conclui: o matricida Orestes, perseguido pelas Erneas, frias vingadoras do Direito Materno, procura acoitar-se junto a Minerva (...). O voto de Minerva decide pelo Direito Novo. Orestes

    absolvido e as Erneas, convencidas de sua inutilidade, sujeitam-se s leis do Estado nascente cujos

    fundamentos esto na herana paterna e em suas reivindicaes. In: A crise da filosofia messinica, p.112. Ver tambm, de Oswald de Andrade, os ensaios: Variaes sobre o matriarcado; Ainda o matriarcado. In: A utopia antropofgica. 1995

  • 17

    obreirista sovitico, ganhava uma particular justificao em partidos comunistas como o

    brasileiro.22

    Num partido como esse, diria Oswald de Andrade,

    toda a crtica naugrafa no sectarismo. O perfeito militante o mesmo

    boneco farisaico do puritanismo socrtico ou americano que se

    apresentou ao mundo para edific-lo, pedante, cretino, faccioso. E no seria

    mais estranho ouvirmos uma noite, pela boca universal da Rdio-Moscou,

    que foi proclamado o Dogma da Imaculada Revoluo.

    Se Lorca foi assassinado em Granada, Maiakowiski suicidou-se em Moscou.

    So os imperativos da ao, explicam os justificadores dos regimes de

    terror. (1995, p.139-140).

    Mas, a fantasia corrosiva de Oswald de Andrade descarta tanto a angstia como

    soluo como a elaborao de um projeto como ideal (1995, p.145). Para o autor,

    preciso adentrar os "novos tempos" afastando solues programticas: o homem, como

    o vrus, o gen, a parcela mnima da vida, se realiza numa duplicidade antagnica

    benfica, malfica , que traz em si o seu carter conflitual com o mundo (Andrade,

    1995, p.147), concluiria em um ensaio como "A crise da filosofia messinica", do

    mesmo ano que aquela conferncia sobre a cordialidade (1950). Alm disso,

    contraposto ao indivduo civilizado pela cultura do progresso, obediente cartilha

    economicista ou a uma razo de Estado, o matriarcado de inspirao oswaldiana

    revelaria o prprio destino do homem cordial: reencontrar, nos arcanos da alma

    ldica, o entusiasmo com um mundo novo que divergisse do ento existente. Pois

    sob esse ponto de vista que Oswald de Andrade, adentrando o ano de 1953, comea a

    elaborar "A marcha das utopias". Para o autor, essa marcha constituiria uma tradio

    especfica do pensamento social e poltico, exposta busca sem fim por uma sociedade

    mais justa.

    De fato, Oswald de Andrade inicia seu ensaio com uma discusso precisa,

    definindo o princpio primeiro que orientaria a tradio utpica. Desde a obra de

    Thomas More, esse seria o princpio de uma justia que destrua os crimes e conserve

    os homens (Andrade, 1995, p.164). Formulao esquiva, mas que retomada ao longo

    22

    Sobre a relao entre marxismo vulgar e a tica do trabalho, ver, mesmo que em outro contexto:

    BENJAMIN. Sobre o conceito da histria. In: Obras escolhidas I. 1987, p. 227-228 (tese n. 11), quando o

    autor recorda, asperamente, o evangelho do triunfalismo: "'O trabalho o Redentor dos tempos

    modernos... No aperfeioamento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode realizar o que no foi

    realizado por nenhum salvador'. Esse conceito de trabalho, tpico do marxismo vulgar, no examina a

    questo de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles no dispem. Seu interesse se

    dirige apenas aos progressos da dominao da natureza, no aos retrocessos na organizao da

    sociedade." Por outro lado, sobre o desligamento de Oswald de Andrade do partido, ver:

    BOAVENTURA. O salo e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade. 1995, p.233-236.

  • 18

    do ensaio em diferentes circunstncias: seja quando recupera distintos movimentos de

    libertao, como as guerras camponesas lideradas por Mntzer (Andrade, 1995, p.196);

    seja quando retoma o ideal parusaico e a herana do messianismo judaico (Andrade,

    1995, p.204-207), indissociveis da ideia da koinonia, da humanidade como um corpo

    coletivo; seja ainda quando interpreta um Proudhon ou mesmo Marx como parte da

    florao utpica do XIX, iniciada com os socialistas do primeiro tero do sculo

    Saint-Simon, Fourier e Owen. a partir de autores ou momentos como estes que

    Oswald de Andrade reinterpela, continuamente, a tradio utpica, buscando as fontes

    intelectuais e as circunstncias histricas que a fizeram desejar justia no apenas para

    os infelizes, mas para todos.

    A ideia de justia, arrancando os homens das relaes de servido, no se reduz

    a fatores contingentes, mas exige uma justificao racional. Razo pela qual Benedito

    Nunes tratou de assinalar, na utopia oswaldiana, a especificidade dessa justificativa

    numa espcie de "metafsica brbara", atravessada por um duplo movimento: de um

    lado, pelo "sentimento existencial de abandono do ser no mundo"23

    ; de outro, pela

    experincia de inacabamento desse mesmo ser, "que mobiliza negaes numa s

    negao, de que a prtica do canibalismo, a devorao antropofgica o smbolo

    cruento, misto de insulto e sacrilgio, de vilipndio e de flagelao pblica, como

    sucedneo verbal da agresso fsica a um inimigo de muitas faces".24

    A utopia o bero,

    portanto, de uma idia de justia que, cancelando a vingana diante da ofensa, faz da

    negao o comeo de algo ainda a ser construdo, rumo, talvez, a formas de

    sociabilidade nas quais dominantes e dominados deixariam de existir.

    Desse ponto de vista, se a utopia uma fonte singular da ideia de justia, uma

    anlise sobre a ensastica oswaldiana, como a pretendida por este projeto, trabalhar

    com um duplo pressuposto: de um lado, e como lembra o prprio escritor modernista, o

    projeto se afasta da fraqueza da viso crtica daqueles para quem a Utopia somente

    obra renascentista de Morus e Campanella (Andrade, 1995, p.205); de outro, tambm

    no o caso de esposar a concepo de uma "eterna utopia", como se todos os utopistas

    escrevessem um s texto uma sociedade fechada e negadora da temporalidade,

    23

    NUNES. Um aspecto antropofgico da cultura brasileira: o homem cordial. In: A utopia antropofgica.

    1995, p.22. 24

    NUNES. Um aspecto antropofgico da cultura brasileira: o homem cordial. In: A utopia antropofgica.

    1995, p.15.

  • 19

    impermevel histria e eivada sempre dos mesmos defeitos.25

    Como sugere Benedito

    Nunes, o prprio escritor modernista estaria sugerindo, naquela tenso entre abandono

    do ser e negao, que a utopia renascera, em feio antropofgica, como fome de

    justia.

    Entretanto, enquanto o Nunes interpreta os ensaios oswaldianos sob o selo de

    uma "metafsica brbara", este projeto, retendo a centralidade do princpio da justia,

    procura explorar outro caminho de leitura e interpretao. Trata-se de investigar a

    ensastica oswaldiana como parte daquela constelao nomeada, por Miguel Abensour,

    como "novo esprito utpico". Essa constelao incluiria duas grandes matrizes: de um

    lado, utopistas do XIX como William Morris ou Pierre Leroux, autores de ensaios,

    panfletos, epstolas e romance que conjugaram imaginrio utpico e imaginao

    literria; de outro, filsofos como Ernst Bloch ou Walter Benjamin, cujas obras

    buscaram dar consistncia terica e dignidade filosfica ao conceito de utopia.26

    Malgrado as diferenas, as duas matrizes comungariam um trao especfico: a

    lembrana de que promessas de emancipao poderiam se converter em novas formas

    de dominao, como testemunharam Leroux e Morris para o golpe de Lus Napoleo

    e Bloch e Benjamin diante do fracasso da revoluo bolchevique em fundar um

    regime poltico livre. Nesse cenrio o de uma "dialtica da emancipao" , esses

    autores fizeram um trabalho crtico sobre o prprio conceito de utopia, de maneira

    ldica ou reflexiva, de forma a recolocar a utopia na via da justia e da emancipao

    moderna.27

    Nesse sentido, o novo esprito utpico se caracteriza, certamente, por

    operar uma crtica aos socialistas do incio do XIX confiana excessiva na arte da

    associao, da qual o Falanstrio seria uma das verses mais singulares. Porm, outro

    trao que lhe prprio o de no cair na mera denncia dos utopistas em proveito de

    uma cincia mais elevada do social, obra, a rigor, do positivismo comteano e da reao,

    deste, ao utopismo saint-simoniano.28

    Em outras palavras, semelhante ao Manifesto

    25

    Cf. ABENSOUR. "Persistente utopia" (disponvel eletronicamente em

    www.sescsp.org.br/sesc/conferencias). 26

    Cf. ABENSOUR. O novo esprito utpico. 1991. Ver tambm, por exemplo: MORRIS. Notcias de

    lugar nenhum: um romance utpico. 2002; LEROUX. Lettre au Docteur Deville. 2000; BENJAMIN.

    Exposio de 1935; Exposio de 1939. In: Passagens. 2006; BLOCH. Princpio esperana. 2006. 27

    Cf ABENSOUR. Utopie et mancipation. In: Le procs des matres rveurs. 2000, particularmente

    quando o autor lembra, a partir de Leroux, que a tradio utpica, como parte da histria da emancipao

    moderna, adentraria o sculo XIX para marcar uma ruptura com o princpio da hierarquia, ruptura mesmo com a construo da sociedade humana sobre a base da dominao, da diviso entre dominantes e

    dominados (p.14). 28

    Cf. BENOT. Sociologia comteana. 1999. Ver, sobretudo, a primeira parte, onde a autora discute a

    relao entre Comte e Saint-Simon.

  • 20

    Comunista de 1848, a crtica no significa a desqualificao da utopia, mas um

    afastamento do epigonismo dos discpulos. Estes, alheios ao tempo e histria, teriam

    pacificado a via exploratria do imaginrio utpico, transformando-o em mero projeto a

    ser executado.29

    Renovar a tradio utpica significa, pois, persistir nesse trabalho crtico

    antevisto desde meados do sculo XIX. Particularmente, esse trabalho busca levar s

    ltimas consequncias a recusa em se compreender a utopia sob o primado da

    fabricao, pela qual o utopista, enquanto homo faber, modelaria a vida de um povo

    segundo um plano dado. Fiel fragilidade e pluralidade dos negcios humanos, o

    novo esprito da utopia talvez seja este: revelar o prprio lugar do poltico; repetio,

    ele ope a aventura da descoberta; manuteno da dominao, que se quer

    conservao, ele ope a insubordinao. "A utopia inaugura uma outra relao com o

    tempo: aquele da instituio poltica. (...) Revelando que o presente no o que ele deve

    ser, ela invoca a legitimidade de criar".30

    Mas, o que justificaria reconhecer a utopia oswaldiana como parte dessa

    constelao? Qual seria o lugar ocupado, em seu interior, pelo autor modernista? Para

    este projeto de pesquisa, trata-se de seguir um caminho preciso: investigar como

    Oswald de Andrade buscou dar consistncia poltica sua marcha para o novo e o

    incerto (Andrade, 1995, p.172). "Marcha", tomada no duplo sentido da palavra: como

    um caminho exploratrio e como uma formao de combate; "utopia", assumida

    segundo a definio de Thomas More: como a viso de uma alteridade radical que no

    faria economia da viso de um mundo melhor. Talvez por isso, para Oswald de

    Andrade, foi o caso de recuperar, em dois recortes especficos, o sentido combativo

    dessa particular inveno do humanista ingls: de um lado, reencontrando, em vrios

    episdios histricos (viagens de descobrimento, luta contra holandeses, Canudos, entre

    outros) utopias em ato; de outro, relembrando tendncias e movimentos filosfico-

    religiosos (o milenarismo de um Mntzer, o utopismo humanista ou o legado marxiano,

    por exemplo) que definem uma longa tradio de pensamento sobre a utopia.31

    29

    Cf. Marx e Engels. Manifesto comunista: In: REIS FILHO, Daniel Aaro (org.). O manifesto comunista

    150 anos depois. 1998. A este respeito, ver tambm: ABENSOUR. A histria da utopia e o destino de sua

    crtica. In: O novo esprito utpico. 1990. 30

    Cf RAULET. Utopie - discours, pratique. In: RAULET (org.). Utopie - marxisme selon Ernst Bloch:

    hommages pour son 90e anniversaire. 1976, p.29. 31

    Cf. NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE. A utopia antropofgica.

    1995, p.35 (Introduo).

  • 21

    Persistente, portanto, seria o esprito utpico, cuja marcha ecoa uma pluralidade de tons

    ao longo da histria.

    Neste projeto de pesquisa, "utopia cordial" pode ser o nome apropriado para um

    desses tons. Com esse nome, pretende-se dar sentido ao modo como Oswald de

    Andrade teria proposto certa articulao entre justia utpica e cordialidade. Se essa

    articulao foi possvel, porque cordialidade como mera censura o escritor procurou

    escapar. Manifestao contingente do humano, e no uma essncia a perdurar no tempo,

    ela nem sempre ficaria encerrada em um mesmo lugar. Na "marcha das utopias", ento,

    talvez se descubra a circunstncia pela qual o homem cordial tambm poderia ser

    pensado como um homem justo.

    2. Haroldo de Campos e o pensamento utpico presentista

    Como se sabe, Haroldo de Campos foi um dos responsveis, a partir dos anos

    60, pela reabilitao da obra oswaldiana, seja atravs reedio de seus livros, seja

    atravs da reinterpretao das bases especulativas de Oswald de Andrade. O texto

    intitulado Da razo antropofgica: dilogo e diferena na cultura brasileira ([1981]

    1992), por exemplo, foi fundamental ao reincorporar a obra oswaldiana no interior de

    uma reflexo ldica sobre a tradio e a histria.32

    Alm disso, elaborado no incio da

    dcada de 80, esse texto incorpora o escritor modernista, definitivamente, no interior do

    prprio paideuma haroldiano. Conceito oriundo de Ezra Pound, o paideuma diz respeito

    a um modo de pensar a tradio literria orientado por uma visada sincrnica, vale

    dizer, pela seleo de obras ou mesmo trechos de obras que ainda pudessem

    fecundar a criao literria presente. A utopia antropofgica parecia ser um desses

    casos, relida, por Haroldo de Campos, como um cdigo de alteridades elaborado num

    estilo ele prprio alterado (Campos, [1981], 1992, p.240).33

    32

    CAMPOS Da razo antropofgica: dilogo e diferena na cultura brasileira. In: Metalinguagem e

    outras metas. 1992 33

    Analisei (mas no muito) a antropofagia como cdigo de alteridades no artigo Alterando Oswald de Andrade. In: Cadernos de leitura nmero 4, disponvel eletronicamente: http://chaodafeira.com/cadernos/extrapolando-oswald-de-andrade/. Sobre o paideuma de Pound, tal como

    interpretado por Haroldo de Campos, consultar, por exemplo, seus prprios ensaios e manifestos dos anos

    50 e 60 (Campos, 1975). Por sua vez, em Texto e Histria publicado em 1969 em A operao do texto, reeditado em 2013 , Campos fala em histria textual em contraposio histria literria; a primeira tomaria o texto, caracterizado por seu contedo informativo (suas componentes inventivas), como ponto fulcral e privilegia uma visada sincrnica; j a histria literria considera a literatura predominantemente num sentido cumulativo-diacrnico (Campos, 2013, p.20, nota 06). Por sua vez,

    lembra Aguilar (2005, p.65-66), paideuma, proveniente do grego, tambm significa aprendizagem, formao; mas para os concretos significaria, sobretudo, aqueles poetas com os quais se pode aprender (Aguilar, 2005, p.65) do ponto de vista de uma histria textual.

  • 22

    Constitutivo do primeiro voo terico e historiogrfico de Haroldo de Campos, a

    ideia de paideuma no o deixou indiferente reflexo sobre a razo antropofgica.

    Mas isso no tudo, e talvez nem o principal naquele incio dos anos 80, quando

    escreve e publica seu ensaio sobre Oswald de Andrade. Pois ao conhecido protagonista

    da poesia concreta, cuja feio mais notria foi a elaborao de uma poesia verbo-

    voco-visual, reunida em Xadrez de Estrelas: percurso textual 1949-1974 (1 edio de

    1976) e em Signantia quasi coelum (1 edio: 1979); ao tradutor de quase dez lnguas,

    entre as quais o francs, alemo, russo, espanhol ou ingls; ao ensasta e terico da

    literatura, cuja obra desenha um arco que se inicia nos manifestos concretistas dos anos

    50-60 e se desdobra em ensaios reunidos em Metalinguagem (1 edio de 1967), A arte

    no horizonte do provvel (1 edio: 1969) ou A operao do texto (1 edio de 1976);

    ao polmico revisor da histria literria, delineada em publicaes como Re-viso de

    Sousndrade (1 edio de 1964); enfim, aps toda uma obra constituda,

    conscientemente, sob o pathos iconoclasta da vanguarda (da, em parte, sua

    identificao com a antropofagia), acrescenta-se, a partir do incio dos anos 80, uma

    trajetria que tambm comea a operar uma intensa reviso crtica desse prprio pathos.

    E justamente no interior dessa reflexo crtica e autocrtica sobre o destino das

    vanguardas que Haroldo de Campos reexamina as prprias condies de possibilidade

    da ideia de utopia antropofgica ou no no horizonte do provvel.

    O ano de 1984 parece ser, nesse percurso, um momento chave. Nesse ano, o

    poeta publica Galxias, longo poema em prosa que, elaborado progressivamente desde

    os anos 60, desafia, a rigor, classificaes de gneros, embora seus 50 cantos ecoem

    uma insinuao pica cujo tema recorrente (riocorrente) seria a viagem como livro

    e o livro como viagem, embora no se trate de um livro de viagem (Campos, 2004,

    p.119). Trata-se, para Haroldo de Campos, de insinuar uma gesta da prpria linguagem

    atravs de uma obra que se constitui por uma multiplicidade de lnguas e idioletos, de

    sintaxes inusitadas e neologismos, de cantos e recantos intercambiveis (por isso as

    pginas do livro no so numeradas). A imagem inserida na prxima pgina deste texto,

    de Mira Schendel (objeto grfico, 1972) e que viria a estampar a capa da 2 edio do

    livro (de 2004), parece notvel como escolha editorial ao imprimir movimento a toda

    essa viagem pela galxia da lngua (pela csmica poeira de palavras, diria Haroldo de

    Campos).

  • 23

    Essa uma viagem

    notvel (a de Haroldo; mas,

    por que no, tambm a de

    Mira Schendel), que instala a

    criao potica num

    sentimento de incerteza quanto

    ao prprio lugar das Galxias

    no mundo literrio no mais

    no passado, vale dizer, nos

    territrios j conquistados pela

    obra precedente e pelo

    concretismo; nem ainda no

    futuro, ou melhor, num

    horizonte a ser descoberto e

    colonizado pela esperana programtica das vanguardas. De fato, o poeta parece, agora,

    experimentar um princpio de incerteza quanto ao prprio lugar de uma nova

    constelao da linguagem. Nesse sentido, no se poderia dizer, com Meschonnic, que

    quem no sabe mais e no tem mais onde se colocar, constri sua prpria utopia?

    (2006, p.193) Talvez, se se lembrar que Haroldo de Campos, em ensaio tambm

    publicado no mesmo ano de 1984, buscou ancorar suas novas descobertas no tempo do

    agora: ao princpio-esperana, voltado para o futuro, sucede o princpio-realidade,

    fundamento ancorado no presente, afirma no ensaio de ttulo longo mas bastante

    sugestivo: Poesia e modernidade: da morte da arte constelao. O poema ps-

    utpico (Campos, 1997).

    Esse ensaio mescla depoimento pessoal a uma reconstruo abrangente da

    histria do modernismo e das vanguardas artsticas, do sculo XVIII quando o sculo

    das Luzes introduz a dimenso do futuro na perspectiva utpica (Campos, [1984],

    1997, p.246) ao ps-moderno e o ps-utpico quando o otimismo projetual da

    vanguarda, entendida como movimento organizado e prtica prospectiva, entra em crise.

    certo que em nenhum momento refutara o legado da vanguarda concretista,

    especialmente sua preocupao em fundar uma poesia de trnsito universal, elaborada

    luz de uma linhagem mallarmaica e poundiana. Tambm no abandonara o antigo tom

    iconoclasta contra uma ideia de literatura marcada pela tpica da cultura nacional,

    sobretudo aquela oriunda de Mrio de Andrade, protagonista da Semana de Arte

  • 24

    Moderna de 1922, e desdobrada por Antonio Candido em A formao da literatura

    brasileira (1 edio de 1959). Porm, no ano de 1984, Haroldo de Campos notava certa

    exausto do projeto vanguardista.34

    Particularmente, no via mais sentido numa ideia de

    vanguarda alimentada pela prtica prospectiva, que reservava ao futuro um ponto de

    culminao ideal. Em outros termos, o poeta parecia recusar qualquer otimismo

    projetual. Nesse sentido, este projeto de pesquisa deseja analisar, de um lado, a

    pertinncia terica de um ensaio que, em 1984, pretendera elaborar um discurso crtico

    e uma prtica potica chamada por Haroldo de Campos de ps-utpica, ou melhor,

    sem futuro; de outro lado, pretende-se avaliar os desdobramentos e a relevncia dessa

    perspectiva na prtica terica e potica desse mesmo ensasta, perspectiva essa

    denominada, por ele mesmo, de uma poesia da agoridade mas que tambm poderia

    ser chamada de uma utopia da agoridade, como a pesquisa que aqui se inicia

    pretender demonstrar.

    Se o ensaio de 1984 pode ser tomado, pois, como eixo central da reflexo

    haroldiana sobre a crtica e a crise das utopias, cabe destacar que ele parece ser o ponto

    culminante de um percurso terico que seu autor vinha tateando h algum tempo. A

    rigor, sua obra comea a elaborar essa reflexo desde, ao menos, suas tradues da

    Comdia de Dante e do Fausto de Goethe (na virada dos anos 70 para os 80), quando

    reformula ou justifica seus novos empreendimentos literrios a partir da ideia

    goetheana de literatura mundial, relida, entre outros, sob tica do fillogo Erich

    Auerbach.35

    Pois justamente nesse contexto de uma reflexo sobre Goethe e a

    literatura mundial que Haroldo de Campos recoloca uma significativa discusso sobre a

    utopia no horizonte do provvel. E assim o faz por dois caminhos complementares:

    pelas vias da traduo e da reflexo crtica, caminhos esses que ele percorre sempre de

    modo paralelo e em intensa permutao, fazendo com que um trabalho especfico

    sempre alimente e fecunde o outro.36

    34

    Esse sentimento de exausto o aproxima, ironicamente, da reviso crtica que Mrio de Andrade fizera

    em 1942 do legado modernista da Semana de Arte Moderna de 22, o mesmo Mrio de Andrade cujo

    projeto literrio, atravessado pela ideia de organizao da cultura nacional, fora um antpoda do projeto haroldiano. Pretendo realizar um estudo paralelo entre o ensaio de Haroldo de Campos e o de Mario de

    Andrade (O movimento modernista, que tambm um texto histrico mesclado a depoimento pessoal), mas deixo apenas a indicao de algo que no comecei o suficiente nem mesmo para esboar,

    aqui, uma hiptese de trabalho mais elaborada. 35A este respeito, ver, de Auerbach, o ensaio Filologia da literatura mundial, publicado pela primeira vez em 1952 (Auerbach, 2007). 36

    A partir de 1985, os intercmbios entre traduo e reflexo crtica ganham desdobramento em sua

    prpria produo potica. A coletnea A educao dos cinco sentidos (1 edio de 1985), o longo poema Finismundo (1 edio de 1990), a coletnea Crisantempo (1 edio: 1998) e o livro pstumo

  • 25

    Esses caminhos foram objeto de anlise preliminar em uma pesquisa que

    desenvolvi ao longo de 2014, cujos resultados parciais foram publicados em Poesia

    bblica e utopia em Haroldo de Campos. Retomo as palavras j publicadas nesse texto,

    uma vez que este novo projeto de pesquisa pretende desdobr-las sob a luz da marcha

    das utopias. Trata-se da passagem em que tentei sintetizar, sob o modo da parfrase,

    alguns traos fundamentais do livro Deus e o diabo no Fausto de Goethe (1 edio de

    1981), dentre os quais a sua aproximao com o universo conceitual da marcha utpica,

    povoada de riscos e promessas (isso tambm poderia ir para o rodap ou para um

    comentrio oral, mas prefiro deixar o registro aqui, ainda que a passagem seja longa):

    (... ) trao fundamental de Goethe, na interpretao de Haroldo de Campos,

    seria o reconhecimento desse estilo mefistoflico como o mais adequado para

    a representao da alma fraturada de Fausto e do prprio esprito

    contraditrio (burlesco-irnico-trgico) de Mefistfeles. Aqui se encontra um

    trao central da leitura haroldiana e que, como se ver neste texto, ter

    intensa repercusso e reformulao na sua prpria obra, notadamente nas

    tradues da Bblia. O poeta brasileiro, pela via da traduo e da crtica,

    destaca no poema fustico uma representao do homem como nunca

    inteiramente simples e uniforme. Em outros termos, o homem que emerge do

    poema sempre atravessado pela reverso de sinais e papeis. Por exemplo:

    o Fausto que questionara o punho frio do Demo, Demo este alheio s

    foras criativas da vida, o mesmo personagem que, mais adiante, terminaria

    por amaldioar o presente, dando passagem, no poema, a um Mefistfoles

    advogado, justamente, das alegrias e sedues do mundo. At mesmo no Cu

    da parte final do segundo Fausto o que se v (na leitura de Campos) no seria

    a viso beatfica de um paraso teolgico, a exemplo da viso do Paraso no

    poema de Dante, mas uma espcie de encarnao do cu, pois a prpria

    serenidade celeste teria capitulado perante a impureza terrestre e seu

    horizonte finito. Na esteira de Adorno, Haroldo de Campos chama isso de

    humanizao do cu. Recorde-se: Margarida, pecadora redimida pelo

    arrependimento e morte, a nova Beatriz do paraso de Goethe, que intercede

    por Fausto e clama para que seja sua guia para o alto. Mas o que haveria

    aqui o triunfo no de um amor platnico relido em chave catlica, mas de

    Vnus, inspirado num amor trovadoresco ainda no cristianizado: o cu

    fustico , assim, uma duplicao, desonerada de pecado (desenturvada), do

    Entremilnios (2009) contm um notvel conjunto de poemas nos quais Haroldo de Campos pensa

    poeticamente a utopia e utopicamente a prpria criao literria. A pesquisa que pretendo realizar

    certamente dedicar boa parte de seu tempo e energia anlise deste corpus potico, embora tempo e

    energia tenham faltado para incorpor-los ao texto que agora o leitor tem diante dos olhos.

  • 26

    percurso terreno (Campos, 2008, p.174). Antes que a divinizao do

    homem, tem-se a finitizao do divino (2008, p.174), rendido quelas

    reverses de papel do mundo terrestre.

    Enfim, Haroldo de Campos, conclui sua anlise reconhecendo, no

    trao sensualista do ltimo Goethe que a traduo, como operao de

    leitura, deveria avaliar uma espcie de autocrtica do cu (Campos, 2008,

    p.176), ou melhor, uma crtica irnica vocao absolutizadora da utopia

    paradisaca, confrontada, poeticamente, com o que haveria de frgil no

    homem e derrisrio nos sonhos de pacificao das contradies humanas.

    Aqui h uma tpica que seria desdobrada na ltima quadra de vida do prprio

    Haroldo de Campos (inclusive por meio da traduo bblica, como se ver):

    pela via da traduo, o poeta deseja inscrever um horizonte demasiadamente

    humano no apenas no absoluto do cu teolgico; o crtico e tradutor

    apontava para a necessidade permanente de crtica e autocrtica contra toda

    tentativa de encarnao do paraso na terra, sobretudo e isto ele diz

    explicitamente ao final do ensaio que acompanha as tradues do Fausto

    contra as utopias direita ou esquerda, regressiva ou progressiva, que

    terminavam por redundar em novas tpicas do poder. utopia da verdade

    teolgica, monolgica ou dos heris positivos, [Haroldo de Campos]

    contrape uma verdadeira hybris: no a detestao das utopias, mas sua

    autocrtica pelos caminhos de uma, pode-se dizer, utpica da traduo.

    Com essa expresso, este artigo pretende dar inteligibilidade prtica

    haroldiana de leitura crtica e reflexiva da tradio, leitura esta que recombina

    uma pluralidade de passados para presentific-los como a verdade de um

    homem humanamente utpico. O cu no h. O que existe homem

    humano, na citao de Guimares Rosa (apud Campos, 2008, p.174).

    Essa passagem, como se pode notar, destaca o modo como Haroldo de Campos

    repensa a condio humana no interior mesmo de seu projeto de traduo da poesia

    bblica. Recorde-se, apenas a ttulo de exemplo, o modo como ele interpreta a

    humanidade do homem pela traduo dos Eclesiastes, vale dizer, do Qohlet (O-

    que-sabe), escrito de Sabedoria cuja persona seria um ctico que questiona os antigos

    sbios. Sob influncia da cultura helenstica do III sculo a.C., a Sabedoria pensada

    como uma experincia individual, embora esta seja nvoa-de-nadas. Para O-que-

    sabe, a existncia nvoa-de-nadas traduo haroldiana de havel havalim, vertida

    por S. Jernimo por Vanitas vanitatum, vaidade das vaidades (Campos, 2004b, p.36).

    Por isso, na leitura do tradutor brasileiro, a felicidade deve ser buscada no agora, nos

  • 27

    dias da vida concedidos por Deus, e no num acmulo de coisas em direo ao futuro

    (2000; 20004b).

    Ora, todas essas questes ganharam uma formulao central, justamente,

    naquele ensaio sobre Poesia e modernidade: da morte do verso constelao o

    poema ps-utpico, de 1984, e que parece ser o eixo reflexivo principal da crtica

    haroldiana a uma imaginao utpica voltada para o futuro. No ano de 1984, quando

    tematiza certa exausto do projeto vanguardista, Haroldo de Campos no via mais

    sentido numa prtica prospectiva literria ou poltica que reservava ao futuro seu

    ideal. Nesse sentido, este projeto pretende analisar, notadamente, a pertinncia terica

    de uma reflexo que, entre 1981 e o ensaio de 1984, gestara um discurso crtico e uma

    prtica potica chamada por Haroldo de Campos de ps-utpica, ou melhor, sem

    futuro. Esse tema merece maior preciso. Afinal, ps no significa recusa, mas

    reinveno do legado utpico sob a luz de outra relao com o tempo da histria,

    orientado no mais pela redeno futura, mas, como j dito, por um princpio-realidade

    ancorado no presente (Campos, [1984] 1997, p.268). O ensasta pensava, pois, nas

    condies de possibilidade de uma utopia do agora da agoridade , que no

    conhece seno snteses provisrias, e o nico resduo utpico que nele pode e deve

    permanecer a dimenso crtica e dialgica que inere utopia (1997 [1984], p.269).

    Fortemente marcado pelas obras de Octvio Paz como Os filhos do barro e,

    sobretudo, Walter Benjamin de A tarefa do tradutor s Teses sobre o conceito de

    histria, passando pelo ensaio sobre As afinidades eletivas de Goethe e pelo livro

    sobre o barroco alemo , Haroldo de Campos buscava pensar um conceito de presente

    no como transio, mas como infinito em todas as direes e incompleto em todos

    os momentos (Benjamin, 1985, p. 256).37 Sem fim no significa sem comeo, pois

    todo instante pode ser o primeiro. Nesse sentido, uma teoria da histria consciente disso

    elabora um conceito do presente como um agora no qual se infiltram estilhaos do

    messinico (Benjamin, 1987, p.232). Benjamin se preocupava, certo, com um

    conceito de presente que se revestia de um aporte teolgico intudo da tradio judaica

    (Alter, 1992; Scholem, 1994). Mas, antes de ser abordada como uma espcie de origem

    cronolgica do pensamento da criao, a teologia retomada com a mise-em-scne de

    37

    Sobre a relao entre Octvio Paz e Haroldo de Campos, ver: CAMPOS; PAZ. Transblanco: em torno

    de Blanco, de Octvio Paz. 1986. Esse livro contm o original e a traduo (por Haroldo de Campos) do

    longo poema Blanco, bem como comentrios, notas e correspondncias do poeta mexicano e do seu

    tradutor brasileiro. Sobre a relao entre Haroldo de Campos e Walter Benjamin, ver: Gunter Karl

    PRESSLER. Benjamin, Brasil: a recepo de Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a

    formao da intelectualidade brasileira. 2006.

  • 28

    uma questo eminentemente terica, na qual um ser finito como o homem capaz de

    pensar o infinito, um ser criado capaz de continuar a obra da criao (Moss, 1993).

    Haroldo de Campos, por sua vez, tradutor da Bblia hebraica e leitor de Benjamin,

    lembrava que a

    ideia de gnese uma ideia que se tem a partir da Bblia, mas da Bblia

    no mbito helenstico, com a traduo para o grego que se deu no sculo

    III antes de Cristo, j em mbito alexandrino, com a chamada traduo

    dos Setenta, que de onde vem a palavra gnese, como ttulo do livro da

    Bblia em que esto as duas histrias da criao e os primeiros racontos

    bblicos. Esse livro, em hebraico, chama-se Bere shith (No comear)

    (...). Essa palavra, inclusive, tem uma conotao sexual, envolve uma

    reminiscncia do fundo mtico que est por trs da histria da criao, da

    chamada primeira histria da criao, fundo mtico segundo o qual o

    mundo criado atravs de uma cpula entre entidades mticas, uma

    masculina e outra feminina. (...) Existe esse lado importante e essa

    palavra acaba sendo interessante para a gente pensar em alguns aspectos

    da teoria da histria, inclusive alguns aspectos que foram relevantes na

    teoria messinica da histria, tal como pensada por Walter Benjamin

    (1996, 11-12).

    Tudo se passa, pois, como se a reflexo sobre uma utopia da agoridade fosse a

    condio de um dispositivo crtico capaz de articular as categorias do passado, presente

    e futuro no mais segundo um esquema histrico-evolutivo. Nesse sentido, caberia

    levantar a seguinte questo: qual a relao entre esse dispositivo e um regime de

    historicidade presentista, expresso esta que Hartog (2003) mobiliza para interpretar a

    crise de um esquema temporal orientado para o futuro? Mas, nesse caso, esse

    dispositivo crtico no parece reinvestir o prprio presente da fora crtica e criadora do

    imaginrio utpico, ainda que este imaginrio esteja ancorado num presente sem fim?

    Estas questes definiro o ponto de partida da pesquisa que aqui se inicia. Em outros

    termos, busca-se investigar, a partir de agora, os modos de constituio de um

    dispositivo crtico e reflexivo que, entre Oswald de Andrade e Haroldo de Campos,

    repensara a temporalizao das utopias num horizonte presentista.

  • 29

    Anexo: Campo de obras, Campos em obra38

    A ideia de futuro utpico, como se sabe, foi um motor central de mudanas e

    transformaes histricas. Ao mesmo tempo, a prpria ideia de mudana, mais que as

    prprias mudanas lembrava Octvio Paz foi o fundamento da poesia moderna; a

    arte de hoje deve ser diferente da arte de ontem (Paz, 2013, p.161). Nesse sentido,

    Haroldo de Campos sabia que a tarefa central de uma potica da agoridade seria a de

    abandonar o otimismo projetual da vanguarda concretista sem recair em imobilidade.

    Mas o que fazer, como fazer para no decair numa potica da abdicao? Em um

    depoimento de 1996, em que explica a gnese de seu longo poema Finismundo (1

    edio de 1990), assinalava:

    Como fazer? Por que fazer? At onde possvel fazer o novo, na medida

    em que a poesia engloba uma prtica e uma histria? Para mim tem sido

    assim e eu acho que o poeta est sempre diante de novos desafios. (...) e o

    poeta que tinha 19 para 20 anos nos anos 50, tem agora 61 nos anos 90

    isso se coloca cada vez mais fausticamente, quer dizer, h uma constante

    tentativa de se recuperar aquele pique inicial e se colocar novamente

    diante da questo do enfrentamento com a dificuldade de fazer o

    novo...(1996, p.14-15).

    Em Finismundo, Haroldo de Campos retoma o personagem de Ulisses, o do

    Canto XXVI do Inferno de Dante, que, como assinalado algumas pginas atrs, teria

    abandonado taca para se lanar, j velho, rumo ao desconhecido. Continua Haroldo de

    Campos:

    esse poema tem sua gnese no seguinte: em certo momento eu estava

    interessado, mais uma vez, em fazer alguma coisa que para mim mesmo

    no fosse aquilo que eu poderia fazer com mais facilidade; alguma coisa

    que estivesse dentro do meu projeto de trabalho, mas fosse um certo

    desafio para esse projeto, um poema mais longo, um poema em que eu

    tematizasse alguma coisa que eu vinha mais de uma vez tematizando,

    mas que no tinha nunca apresentado, encenado, desta maneira to

    dialeticamente entrosada. O risco da criao pensado como um problema

    de viagem e como um problema de enfrentamento com o impossvel,

    38

    Esta seo formada por um pequeno glossrio (composto de citaes) sobre o que se projeta

    desenvolver. O que aqui se mostra so os andaimes de um edifcio que mal saiu do alicerce. Como o

    objetivo do Frum a discusso (incluindo a discusso sobre os futuros possveis de um projeto sem futuro), pensei que os andaimes no precisariam sair do que aqui se apresenta. E talvez no saiam nunca, se se lembrar que obra aberta, antes de ser formulado por Umberto Eco, fora enunciado pelo prprio Haroldo de Campos como o horizonte do provvel, vale dizer, como um horizonte de integrao do provisrio estrutura, do incompleto ao horizonte do fazer. Assim, esta obra em progresso que aqui se apresenta (o meu campo de obras e o Campos em obra) reverbera o que j disse no Prefcio (des)interessantssimo: pretendo retomar e costurar projetos incompletos no contra a incompletude, mas a seu favor.

  • 30

    uma empresa que, se por um lado punida com um naufrgio, por outro

    recompensada com os destroos do naufrgio que constituem o prprio

    poema. (1996, p.15).

    No deixa de ser interessante pensar que Haroldo de Campos, j septuagenrio

    no momento desse depoimento, figure sua prpria persona potica sob o espelho de um

    velho marinheiro em viagem rumo ao desconhecido. E que ainda tenha imaginado essa

    viagem como uma aventura fustica. Mas, quem j leu Deus e o Diabo no Fausto de

    Goethe sabe bem da importncia desse tipo de aventura para o autor, embora, nesse

    livro, ela fosse enunciada como uma aventura pela traduo pela transcriao dos

    ltimos versos do Segundo Fausto (quando Goethe, j no fim da vida, confrontou-se,

    ele prprio, com a empresa de terminar seu longo poema). De resto, quem j leu o livro

    de Haroldo de Campos sobre o poeta alemo tambm sabe que foi ali que o brasileiro

    inicia seu dilogo com outra aventura intelectual, a de Ernst Bloch em torno das utopias,

    aventura esta que tambm fora pensada como uma empresa fustica. De Bloch,

    Haroldo de Campos parece ecoar, sobretudo, o captulo Figuras-modelo da

    transgresso de limites; Fausto e a aposta no instante plenificado (Bloch, 2006, p.83-

    116), do livro O princpio-esperana.

    Nesse captulo, Fausto a figura exemplar da transgresso de limites. E o

    prprio Ulisses de Dante nomeado, pelo filsofo, como uma espcie de Fausto do

    mar. Mas Goethe teria feito mais, segundo Bloch. Seu longo poema teria dado forma

    literria no ao contedo do utpico, mas inteno para o utpico, vale dizer, ao

    instante plenificado, inteiramente dentro do instante humano e seu mundo (2006,

    p.105). Haroldo de Campos tambm se interessava pela busca, sempre recomeada, por

    tal instante. Mais ainda, ele tinha interesse em pensar, poeticamente, o tipo de fora

    que seria capaz de levar o homem humano a essa busca renovada. Por isso, entre

    Ulisses e Fausto, reconhecera sempre a mesma hybris: essa desmesura orgulhosa com

    que o ser humano intenta, de certa maneira, confrontar-se com o impossvel (Campos,

    1996, p.18). E entre Dante e Goethe, descortinara sempre a mesma capacidade de

    manter, at o fim da vida, ativa, a entelquia (a fora que nos conduz ao telos,

    completude) (Campos, 1997, p.20). Hybris e entelquia: entre essas duas palavras

    parece se insinuar o resduo utpico de uma potica da agoridade cuja plenitude estaria

    em experimentar novas experincias esse fazer que se faz de fazer

  • 31

    Entelquia

    A concepo de Goethe quanto imortalidade da alma (ou, mais exatamente, da

    entelquia, a fora que conduz ao telos, completude) obedece a uma dialtica

    metamrfica de fundo pantestico, com nfase especial na capacidade transformadora do

    fazer humano. Em fevereiro de 1829, j beira dos oitenta anos, dizia ele a Eckermann:

    A convico de nosso perdurar nasce para mim do conceito de factividade; pois se eu,

    at o fim, ajo infatigavelmente, a natureza assim obrigada a atribuir-me uma outra

    forma de existncia, quando a atual no mais possa