7
Rachel Gazolla A tirania na República - o outro em si mesmo Abstract. This paper attempts to develop certain of tyranny in Plato's Republic, Book IX. It takes into account not only the pleasures as principle of the dissolution of "logisrnos" but also the platonic intention of structuring the man's negative paradigm, its thinking, its affections, its actions -the tyrant-, as the oppo- site of the philosophical soul in its "celestial paradigm" or the man's paradigm, who uses "logismos", who has autarky and who knows what one's care is. Key words: Plato, tyranny, pleasures, epiméleia. Resumo. Este artigo procura avanfar em alguns aspectos do estudo sobre a tirania em Platdo, livro IX da República, levando em conta nao só os prateres como base para a dissoluciio do poder do lógismos, mas como a tentativa platánica de estruturar um "paradigma nega- tivo" para o homem, seu pensar, seus afetos, suas acoes -o tirano-, como o oposto da alma filosófica e seu "paradigma celeste", isto é, do homem que usa bem o lógismos, tem autarquia e sabe o que é o cuidado de si. Palavras-chave: Platdo, tirania, prazeres, epiméleia. l. Dos dez livros da República, a maiona nao focaliza especificamente a estrutura da cidade justa, mas a difícil formacáo dos homens a partir de conhecimentos e ensinamentos possí- veis, que venham a propiciar a conversáo de cada um, tema que pretendo esclarecer. Cada homem, eventualmente convertido para viver na cidade justa - deve portar-se de modo diverso do vivido pelos gregos de entáo - questáo que implicaria em demonstrar o contexto histórico e a crítica que Platáo faz a ele em vários diálogos, o que deixamos de fazer aqui. No livro VII, após a primeira imagem para urna paidéia, -a alegoria da caverna-Platáo afir- ma a necessidade da forrnacáo da alma de cada um por meio de urna periagogé (.... ) Sua reflexáo neste ponto é bem mais o que hoje chamamos Ética e que, entre os gregos, nao se aparta do propriamente político, como se sabe. Trata-se, portanto, de pensar urna paidéia específica, que procura cada um (to ekastón) para formar corpo- ral e animicamente. Pressupñe o filósofo que urna sociedade inadequada ao cuidado de cada um e do con he- cimento necessário para a conversáo citada, nao faz de fato um conjunto cívico que seja justo. Se urna cidade e seu tipo de governo se estruturam sem a preocupacáo de saber sobre cada um, e seus cidadáos nada sabem sobre si mesmos, isso inviabiliza a prática da justica como Platáo a compreende. Nesse caso, tal sociedade nao verá o belo e o bem, e há pelo menos tres possibilida- des de vislumbrar como ela pode: l. se ao fazer regras para a obediencia de todos, e sem que todos conhecam aquilo pelo que sáo feitas (suas causas), cada homem (singu- larmente) terá um exercício vazio de cida- dania, pois obedecerá regras externas por medo, cuidado, interesses próprios, hábito ou indiferenca; Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, XLVI (117/118),87-93, Enero-Agosto 2008

A tirania na República - o outro em si mesmo - inif.ucr.ac.crinif.ucr.ac.cr/recursos/docs/Revista de Filosofía UCR/Vol.XLVI/Num.117... · Rachel Gazolla A tirania na República

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A tirania na República - o outro em si mesmo - inif.ucr.ac.crinif.ucr.ac.cr/recursos/docs/Revista de Filosofía UCR/Vol.XLVI/Num.117... · Rachel Gazolla A tirania na República

Rachel Gazolla

A tirania na República - o outro em si mesmo

Abstract. This paper attempts to developcertain of tyranny in Plato's Republic, BookIX. It takes into account not only the pleasuresas principle of the dissolution of "logisrnos"but also the platonic intention of structuringthe man's negative paradigm, its thinking, itsaffections, its actions -the tyrant-, as the oppo-site of the philosophical soul in its "celestialparadigm" or the man's paradigm, who uses"logismos", who has autarky and who knowswhat one's care is.

Key words: Plato, tyranny, pleasures,epiméleia.

Resumo. Este artigo procura avanfar emalguns aspectos do estudo sobre a tirania emPlatdo, livro IX da República, levando em contanao só os prateres como base para a dissoluciiodo poder do lógismos, mas como a tentativaplatánica de estruturar um "paradigma nega-tivo" para o homem, seu pensar, seus afetos,suas acoes -o tirano-, como o oposto da almafilosófica e seu "paradigma celeste", isto é, dohomem que usa bem o lógismos, tem autarquia esabe o que é o cuidado de si.

Palavras-chave: Platdo, tirania, prazeres,epiméleia.

l. Dos dez livros da República, a maionanao focaliza especificamente a estrutura dacidade justa, mas a difícil formacáo dos homensa partir de conhecimentos e ensinamentos possí-veis, que venham a propiciar a conversáo de cada

um, tema que pretendo esclarecer. Cada homem,eventualmente convertido para viver na cidadejusta - deve portar-se de modo diverso do vividopelos gregos de entáo - questáo que implicariaem demonstrar o contexto histórico e a críticaque Platáo faz a ele em vários diálogos, o quedeixamos de fazer aqui.

No livro VII, após a primeira imagem paraurna paidéia, -a alegoria da caverna-Platáo afir-ma a necessidade da forrnacáo da alma de cadaum por meio de urna periagogé (....) Sua reflexáoneste ponto é bem mais o que hoje chamamosÉtica e que, entre os gregos, nao se aparta dopropriamente político, como se sabe. Trata-se,portanto, de pensar urna paidéia específica, queprocura cada um (to ekastón) para formar corpo-ral e animicamente.

Pressupñe o filósofo que urna sociedadeinadequada ao cuidado de cada um e do con he-cimento necessário para a conversáo citada, naofaz de fato um conjunto cívico que seja justo. Seurna cidade e seu tipo de governo se estruturamsem a preocupacáo de saber sobre cada um, eseus cidadáos nada sabem sobre si mesmos, issoinviabiliza a prática da justica como Platáo acompreende. Nesse caso, tal sociedade nao veráo belo e o bem, e há pelo menos tres possibilida-des de vislumbrar como ela pode:

l. se ao fazer regras para a obediencia de todos,e sem que todos conhecam aquilo pelo quesáo feitas (suas causas), cada homem (singu-larmente) terá um exercício vazio de cida-dania, pois obedecerá regras externas pormedo, cuidado, interesses próprios, hábitoou indiferenca;

Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, XLVI (117/118),87-93, Enero-Agosto 2008

Page 2: A tirania na República - o outro em si mesmo - inif.ucr.ac.crinif.ucr.ac.cr/recursos/docs/Revista de Filosofía UCR/Vol.XLVI/Num.117... · Rachel Gazolla A tirania na República

88 RACHEL GAZOLLA

2. se as estruturas cívicas deixarem de existircom suas regras, cada homem singular vive-rá seu s desejos entre muitos outros homenssingularmente pensados, assumidas todas asdiferencas entre eles e vivendo cada um porsi, o que logicamente é impossível, pois nestecaso nao há urna cidade mas mera soma desingulares;

3. se todos os homens acreditarem que sáoiguais por natureza - quer seja tal crencaadvinda de um mito de origem ou de umdogma teórico -, neste caso nao há qualquerexercício prático de cidadania por absolutafalta de necessidade, como um rebanho, porexemplo, que nao sente falta de acóes depen-dentes de escolhas, pois todos fazem umconjunto uniforme.

É evidente que, neste último caso, esvazia-se eticamente a nocáo de philia, porque o que éobedecido deve-se a própria natureza de cada um,a philia nao é fruto de urna conquista interna decada um e de todos. Tal possibilidade foi pensadapelos estóicos, com delicados problemas quantoa reflexáo sobre a escolha ética, como se sabe.Platáo, de um lado, nao negaria urna sociedadede iguais como desejável, porém, para ele nao háigualdade por natureza; assim sendo, sua inves-tigacáo sobre a cidade justa e o cidadáo justohabitam outro solo. A busca de um corpo cívico,digamos assim, implica em aceitar sernelhancase diferencas que vém a estar em simetria e boaproporcáo, o que nao é indicativo da igualdade.Do mesmo modo, os lacos de philia nao estáo nadependencia de urna doacáo natural e térn quepressupor fundas diferencas entre os homens,além de um forte aprendizado para a koinonía.

É urna pretensáo e tanto de Platáo, bem dis-tante da idéia de amizade civil entre iguais, porcontrato, como pensou o liberalismo Ocidentaldos século XVII e XVIII>(I). Lembremos que anocáo de cidadáo livre, igual e fraterno nao temapoio em Platáo, evidentemente, e a base parasua República está em urna teoria específica daalma com suas dynámeis, expostas nos primeiroslivros. Ora, exatamente aqui está nosso ponto dequestionamento, urna vez que essa base esclareceo que pode ser o contrário de urna cidade justa,

que será a tirania exposta no livro IX: nela emer-ge um estudo profundo quanto ao significadodo total desconhecimento do que seja o ético,o político, em outras palavras, é exibido o totaldesconhecimento de si mesmo (de sua alma) e aprática da inimizade.

2.

Platáo deixa claro, somente em 592a-b, nolivro VIII, o que pensa sobre a koinonía entrecoisas éticas e políticas embasado na sua reflexáosobre a alma. É digno de nota que já estaremos aofinal da sua República. Nesse livro, e sem ter emconta os modelos históricos como faz Aristótelesna sua Politéia, o filósofo apresenta os tipos decidades e cidadáos numa espécie de "decadenciatopológica": os modos de governo possíveis e aforrnacáo e transforrnacáo dos homens nessesgovernos, vinculadas a mimética como sendo oterreno para qualquer paidéia: por irnitacáo deparadigmas provenientes, no caso, dos adultos oudas regras da cidade, o aprendiz, desde a infan-cia, saberá sobre os valores que tem a seguir. Talformacáo implica em manejar as forcas da almaque exprimem variados desejos e podem estaradequadas ou nao urnas as outras: a potencia epi-timética, a timocrática e a logística. (2)

Sabemos que a alma nao é definida naRepública nem sáo explicitados detalhes sobresua imortalidade e primariedade, o que ocorreem diálogos tardios (Timeu, Philebo e parte dasLeis). Na cidade justa, Platáo aponta para o modode acáo dos homens e seu processo educativo,acóes que anunciam o ser anímico de cada um, eaté onde a educacño vem a ter forca para se exer-cer: da crianca animosa, a que tem gula, a indo-lente, a violenta, as que tém propensáo ou naopara a música, para a ginástica e saberes outros,tudo isso assoma durante a formacáo, conformelivros 11, 111 e IV. Ora, como todos os homenstém a mesma estrutura anímica enquanto genero(Timeu ...), trata-se de entender as diferencas deatitudes, de acóes, de impulsos para o conhecer, etais diferencas mostram o porque de as forcas aní-micas serem atualizadas de táo variadas maneirassingularmente, pois havendo desigualdade por

Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, XLVI (1171118), 87-93, Enero-Agosto 2008

Page 3: A tirania na República - o outro em si mesmo - inif.ucr.ac.crinif.ucr.ac.cr/recursos/docs/Revista de Filosofía UCR/Vol.XLVI/Num.117... · Rachel Gazolla A tirania na República

A TIRANIA NA REPÚBLICA - O OUTRO EM SI MESMO

natureza, deve a educacáo contornar o que lhefor possível modificar, como é indicado no livroVIII. Sendo assim, a paidéia é o campo nuclearpara a periagogé do homem apontada no livroVII, e abre a perspectiva para a aprendizagemdo que pode estar oculto por natureza e só entáosaber o que é possível transformar.

No livro VIII, é exposto o que costumacorromper uma politéia e cada cidadáo, reflexáoque nao faremos com cuidado nesta ocasiáo, eprontamente Platáo vai ao livro IX para arre-matar o que iniciou no VIII, para expor a almatiránica, quer de um homem, quer de uma cidade,ou melhor seria dizer, para expor urna cidadeque é "quase urna náo-cidade". Por questáo deeconomia, aponto urna passagem do livro IXonde Sócrates diz a Glauco que o homem devevoltar os olhos para a cidade edificada si mesmoe cuidar dos excessos e faltas tpléthos ousíashén di'oligáteta - 59Ie), de modo a ter em seupoder um bom estado anímico, mesmo sem tero desfrute de honras e prazeres. Esse desfrute éimprescindível na timocracia, na oligarquia e nademocracia ajuizadas no livro VIII. Quando naose está em bom estado de alma, diz ele, o homemdeve fugir do grupo e do todo o social (pheú-chetai idia kai demosía, 592a), porque é urnainadequacáo absoluta viver entre semelhantesem tal estado. No passo seguinte (592b), Glaucopergunta a Sócrates sobre a bela cidade em lógose impossível de efetivar-se:

"(Glauco) oo. tu falas de urna cidade quetracarnos, estabelecida em argumentos e semterra, pois em lugar algum ela é., (Sócrates).;mas há um paradigma semelhante no céuaos que querem ve-la e guiar seu governo.Distinta de qualquer coisa que é em qualquerlugar... essas mesmas e só coisas se ocupará(o governante) e de nenhuma outra."

Nesta citacáo estáo o pensamento sobre ocosmos, o homem e a cidade, nesta ordem, edepois de explanar a cidade justa e o conheci-mento necessário ao governante-filósofo (IivrosV-VI), e havendo determinado que os seres a con-hecer se dividem em campos interconectados - ovisível e o inteligível (cf. símile da linha em 509c)-, Platáo orienta a cidade, o cidadáo, a paidéia e o

89

conhecimento de si em urna só direcáo: nao maispara dizer que o filósofo é o único governantejusto, que deverá conhecer a si mesmo e a justicanele, mas para ter o ángulo apropriado para tecero seu contrário: o homem que nada sabe de si oude outros.

3.

Lembremos de modo sucinto, e antes desaber o que é a tirania, o movimento decadentedas constituicóes do livro VIII, tendo como para-digma a cidade justa:

1. Aristocracia, governo dos melhores que pordescuido destes vem a declinar para a (2)timocracia, governo dos amantes da honraque se perdem em desejos e acóes contraalguns, iniciando o gosto pelas riquezascomo um primeiro divisor de águas entretimocratas e plutocratas, o que leva a (3)plutocracia, governo dos amantes de riquezascrematísticas que expandem a todos os ricoso mesmo tipo de desejo (ambicáo e avareza),e a cidade cinde-se em dois tipos de cida-daos, os ricos e os pobres e ex-ricos, dege-nerando para a (4) democracia, governo quese prop6e a alcancar para o grande número aobtencáo das riquezas crematísticas e igual-dade de condicóes para viver como cadacidadáo quiser para, finalmente, arruinar-see instaurar-se a (5) tirania, governo em quecada um dos homens, ao imitar o tirano emtudo e rodeá-lo a busca de benesses, vive osprazeres mais inauditos e a busca constanteobté-los,

Esse movimento obedece ao ciclo de geracáoe corrupcáo como obedece m todas as coisas gera-das, fato que indica o homem impotente diantedesse ciclo kath'physin que as Musas determinam,no dizer metafórico de Platáo, ainda no livro VIII.Isso nos remete ao mito do diálogo Político e aomovimento necessariamente retrógrado de todasas coisas. Ao degenerar a alma de cada um, acidade se degenera, as famílias, as criancas.G) Seo filósofo evidencia essa moldura para pensar atirania, há urna argumentacáo firme, sinalizadora

Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, XLVI (117/118), 87-93, Enero-Agosto 2008

Page 4: A tirania na República - o outro em si mesmo - inif.ucr.ac.crinif.ucr.ac.cr/recursos/docs/Revista de Filosofía UCR/Vol.XLVI/Num.117... · Rachel Gazolla A tirania na República

90 RACHEL GAZOLLA

de como a organizacáo humana figurada no livroVIII chega a destruicáo dos modos estabelecidosde organizacáo e, ao mesmo tempo, dos limiteshumanos para se constituir na vida em funcáo dafixidez parcial que olhe imp6e a natureza. Esteúltimo ponto é o mais enigmático, pois as Musas(ou a physis, no caso) vaticinam tal decadencia,por rnudancas eventuais nos bons cálculos, para aconstituicáo a mais permanente possível das coi-sas geradas. O enigma aumenta quando a tiraniase liga a tais cálculos que, para nós, sáo obscuros.Entáo, nao é o trace cultural somente que estápresente no perfil da tirania, como a delineiaPlatáo: ele está construindo, no livro IX, urnanocáo específica de tirano(4), cujo solo é a almae seus pathémata, algo já apontado no livro 1, porocasiáo da fala de Céfalo (32ge-330a).

Também Aristóteles detalha os defeitos datirania na sua Politéia (Iivro V), colocando-acomo governo vicioso. Usando do pan o de fundoempírico, ve como possível um tirano astutofazer, eventualmente, algo interessante a urnacidade (5). Nao é o ángulo de Platáo. Há urnanotícia do próprio Aristóteles, ainda na Politéia V(136Ia, 5-10), que interessa. Diz ele que Sócrates,na República, nao expós bem as transforrnacóesdos governos ((Iivro VIII) por que pensava que:

" ...a transformacáo dos governos pode sercalculada (segundo Sócrates) com urna fór-mula numérica segundo a qual a base epí-trita, a proporcáo de quatro para tres com onúmero cinco produz urna dupla harmonia,de tal modo que o resultado dessa com-binacáo em determinado momento podegerar seres perversos e mais fortes que aeducacáo ...".

Essa notícia é correta segundo o estagirita,e se deduz que ele sabe de que cálculo se trata,mas nós, seus leitores, se nao tivermos urna boainvestigacáo do Timeu e da alma cósmica, naoadivinharemos. O fato é que, sem a explicacáoclara do por que de maus cálculos nas coisas quenascem, tem-se que o cosmos ele mesmo, inco-rruptível, mantém nele mesmo cálculos imperfei-tos, apesar de ser perfeito, e que alguns singularesnele, como os homens, no caso, podem nascercom graves imperfeicñes a ponto de nenhuma

educacáo transformá-Io. Entáo, se já há dificul-dade em educar e ainda há a impossibilidadeda permanencia, nós, humanos, ternos ainda asubmissáo ao gasto inevitável da geracáo, mesmoque haja bom cálculo por nascimento. (6) Urnapaidéia bela e boa auxilia a contornar o que forpossível, apenas contornar.

Em sendo assim, pensar a melhor forrnacáopara o homem é o mais importante poder deconhecimento que ternos para aprimorar a vidano que nos é for possível, e a cidade justa plató-nica seguirá tal caminho evitando, parcialmente,a destruicáo de cada um e dela mesma. É claroque nesse panorama, nao seráo os poetas os edu-cadores, pois nem sequer podem ver esse fundomatricial exposto por Platáo (Iivro 11 e X). Sea educacáo nao transforma a natureza até ondese deseja, ao menos pode preservar e melhoraro que for possível em quem for possível. E naosáo poucos os que melhoram, já que nao se trata,aqui, da educacáo somente de filósofos. Estes sáopoucos, mas artesáos e guerreiros sáo muitos epodem ser educados justamente.

E o tirano? É um tópos específico em que sealoja m a desordem, a desmedida. Parece incon-gruente que um tirano seja gerado, por natureza,desproporcionado, feio, assimétrico, mas é o queafirma Platáo: a tirania e o tirano sáo "expres-sóes" de um homem ou de urna cidade do queé injusto, feio, mau; entáo, algo disso tudo deveexistir no próprio cosmos em possíveis cálculosgerativos erróneos, apesar da perfeicáo com quefoi fabricado(7). Apesar de a má educacáo tam-bém burilar um tirano por imitacáo, há os que osáo naturalmente, com foi dito. Se pensarmos noTimeu e no Politico, a desordem cabe na physis,porém ocorrer que esta sempre se regenera, e atirania e o tirano, nao. Nas palavras de Platáo, otirano é pleno de males, amétron te kai álogon,é o ponto absoluto de ruptura com a afirrnacáo,em Rep.504a, do mégisthos génos como generosupremo a que tudo tende. Ele radical iza, natirania, algo que preserva em todos os diálogos:os homens erram e podem consertar seus erros, oque é impossível ao tirano.

Será que o tirano é a própria idéia do Malem Platáo? Nao me parece e nada há nos diá-logos que firme isso. Coisas e acóes podem serditas más enquanto pertencentes ao campo da

Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, XLVI (117/118), 87-93, Enero-Agosto 2008

Page 5: A tirania na República - o outro em si mesmo - inif.ucr.ac.crinif.ucr.ac.cr/recursos/docs/Revista de Filosofía UCR/Vol.XLVI/Num.117... · Rachel Gazolla A tirania na República

A TIRANIA NA REPÚBLICA - O OUTRO EM SI MESMO

multiplicidade e nao a unidade da Idéia; os males,sempre presentes em toda a geracáo, sáo a possi-bilidade de destruicáo das coisas que estáo nelasmesmas, conforme se le no livro X da República,quando Platáo define o mal do seguinte modo emdiálogo com Glauco (609a sgts):

s - ...Há algo a que chamas bem e a outro,mal?G-Há.S - Porventura pensas o mesmo que eu?G-O que?S - Que tudo o que destrói e corrompe émau, ao passo que o que salva e preservaé bom?G - É o que penso.S - ...afirmas que há para cada coisa beme mal? por exemplo, a oftalmia e a doencapara os olhos ...o verdete e a ferrugem parao bronze e o ferro ...? ..quando algum destesmales sobrevérn a urna dessas coisas, naodeteriora aquela em que surgiu e nao acabapor dissolvé-la e destruí-la completamente?G - Claro!S -...para a alma, nao há nada que a tornemá? .."

Glauco enumera, entáo, a injustica, a intem-peranca, etc., como males da alma e na seqüénciadirá que os males do corpo se devem a sua pró-pria constituicáo, por exemplo, como a doencaque se dá pela via dos alimentos, e que os da almatambém se devem a sua constituicáo. Em 61Oa,desenvolve parcialmente esse problema e afirma:

••...se o mal do corpo nao provoca na alma omal da alma, nao pretendamos jarnais que aalma seja destruída por um mal que Ihe sejaalheio, sern a ajuda de seu próprio mal..." .

Ora, a complexidade do homem tiránico está,portanto, no que se chamaria de sua psicologia.Ele nao é urna pessoa mas duas, dirá Platáo, estácindido em sua alma e se move-se sem saber desi mesmo:

... (o tirano) escoltado pelo delírio (manía)é agarrado pelo frenesí, e se encontrar emsi mesmo algumas opiniñes ou desejos sen-satos lanca-os fora para, distanciado de simesmo tirar da alma o ajuste até completá-Iacom um tipo de manía importada ... "

91

Pleno de alteridade: esta é a expressáo da mágeracáo, do mau cálculo que nao se arredonda.No cosmos há um nome para esse movimento decizánia que rompe qualquer unidade: Anánke. Asalmas dos homens sob Anánke, diz o filósofo em46e do Timeu, estáo sob o movimento alógico eanoético, estáo no acaso desordenado (to tychónatákton). Na alma de raca mortal, mescla de sen-sacáo alógica (aistései de alógo) e de eros comoimpulso que ataca (epicheireté éroti) (8), anánkese exp6e com alguma facilidade, acolhe o prazerenquanto o maior dos males, a dor, a temeridade,os conselhos insensatos, o animo intranqüilo, omedo, a esperanca (69c sgts).

Eis, no Timeu, a ponte clara para o livro IXda República. É da alma mortal do tirano quePlatáo fala, de seu álogos e de seu eros kakós.(9) Seu contrário, segundo passagem das Leis, éa alma no bom uso do lágismos, conforme a inte-ressante metáfora das marionetes - que cito emparte - indicativa da boa prática humana:

••... nossas afeccñes, como tendóes ou fiosestáo em nós e nos empurram e se ernpurramurnas as outras em sentido contrário porserern contrárias, sobre acóes contrárias, noponto em que sáo separadas nossas afeccñes,como tendóes ou fios que estáo em nós enos empurram e se empurram urnas com asoutras em sentido contrario, porque sao con-trárias, sobre acóes contrárias, no ponto ernque sáo separado o vício e a virtude ..."

Para bem manejar tais fios é preciso usarbem o lágismos; ele discerne vício e virtude. Ora,a alma tiránica nada discerne e é o contrário daalma que melhor sabe usar do lógismos, a filosófi-ca. Esta é, no dizer de Platáo, graciosa, nobre, temboa medida e claridade (485 ); a outra nao temconhecimento nem quanto aos bens, nem quantoaos males, e é frutificada por múltiplos desejosque a transtornam sem interrupcáo, O que é dignode nota é o comando que lhe é imposto por umaespécie de hóspede que nela se aloja, um zangáoque toma para si o lugar em que é recebido. Comessa colocacáo, Platáo inova. A alma do tirano étomada por um ser exigente que imp6e desejosde modo a criar ininterrupta carencia. Sem o usodo logístico, essa alma nao sabe de si e é forcoso

Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, XLVI (117/118),87-93, Enero-Agosto 2008

Page 6: A tirania na República - o outro em si mesmo - inif.ucr.ac.crinif.ucr.ac.cr/recursos/docs/Revista de Filosofía UCR/Vol.XLVI/Num.117... · Rachel Gazolla A tirania na República

92 RACHEL GAZOLLA

que (575a) possuída por um Eros terrível venha aviver com esse hóspede comandante

"... a maneira de um tirano na sua alma,numa total anarquia e ausencia de leis, e(este eros) é soberano único, conduzirá ohomem no qual habita como numa cidade, atoda espécie de audácias ..".

Nao é táo simples, portanto, investigar atirania em Platáo, relacionada que está a urnateoria da alma que venha a receber afeccóesdestruidores e as hospeda, exposicáo complexadesenvolvida na segunda metade do diálogo eicó-nico Timeu. Tirania, afinal, é outro nome paraakosmía. Quando se pensa que a tirania nadamais é que urna cidade que busca só os prazeres,o que em geral se procura sem sabermos o queseja prazer, nao se avalia o outro lado dela, comoquer Platáo: que a busca incessante de um sentirque "lernos" como prazeroso é a-cósmico, poisnada é "sernpre" para os seres gerados; a vivenciada dor, da angústia, da destruicáo, ou qualqueroutro nome que se queira dar ao que é contrárioa nossa interpretacáo linear de prazer vem aser a busca da falta de boa medidan (arilhmós- Philebo,17d sgts), que tema que nao é possíveldesenvolver aqui.

Longe de ser apenas um homem marcadopelas paixóes, o tirano se define pela figura dacisáo: sua alma nao é mais sua mas de outro,de éros kakós, despedacador, que ele hospeda eo comanda como urna enfermidade. Esse perfiltransforma em muito a leitura mais simplificadaque se faz da tirania como lugar do desejo exacer-bado do poder para obter prazeres. Nesse caso, háum sentido para ser tirano que exige o lógismos,o que o tirano platónico sequer temo O hóspede-comandante que usurpa o lugar do exercício dológismos nao é o Eras do Banquete ou do Fedro,mas parece significar aquele de Hesíodo na Teo-gonia, o Eras solta-membros, o

A tirania é urna reflexáo notável de Platáo.Na desmedida como aperreton está sinalizadoo inorgánico, a ausencia do cosmos como zooempsychon noetón (Timeu ...) (10) Conforme Rep.564a e 573a e seq., nao há saída da dor, que é suapertenca. Por isso, Platáo pode afirmar, em 573e,que a manía na alma determina o outra em si

mesmo, o que na linguagem mítica seria a pos-sessáo de Dioniso Zagreus. Nao sem razáo é dadoa Eras kakós essa figuracáo de hóspede anímicono tirano. (11)

Para finalizar, os habitantes da politéia tira-nica teráo como características serem convulsio-nados, furiosos, ávidos, desleais, injustos, ímpiose com maldades de toda sorte, adjetivos constan-tes em 570 a e 580a). Nesse quadro, conforma-seo que a Iíngua latina nomeou alienatio, ou seja,alienacáo como cessáo de si mesmo a outro, a umestranho que encontra terreno fértil para instalar-se e dominar a interioridade de cada um. Note-seque afora a existencia do tirano por natureza,há o governo anterior, o democrata, que ajuda aforjar esse tipo pela educacáo. Da democracia atirania é perdido, de vez, qualquer trace de philía,e se a metáfora do kakós Eras (12) surpreendenessa reflexáo platónica, algo semelhante é ditoPolítico, 263e que se relaciona ao livro IX daRepública:

...0 que ultrapassa a medida ou permaneceinferior a ela, seja em nossos argumentos,seja na realidade ... nao é exatamente, a nossover, o que melhor aponta a diferenca entre osbons e os maus ...?"

Qualquer que seja o ángulo que se leia Platáo,a medida é o parámetro para a conduta prática eteórica, porém, como somos seres que, na maiorparte das vezes, nos aproximamos da medida e deseu contrário, manter na alma a imagem do tiranoe da tirania nao deixa de ser um modo de auxiliara formacáo melhor da alma, manter um para-digma que seja o mais sombrio. Pelos contráriosaprendemos mais do que pela sernelhanca.

Notas

1. Todos os homems térn, para Platáo, a mesmaalma e potencias, de modo que, no geral, o que aalma é, assim é para todos os homens enquantogenero. No particular, as diferencas aparecemno uso das potencias, o que depende do ser-agirde cada homem - do corpo e alma -, e da edu-cacáo recebida. Este é um tema amplo que naocabe avancar aqui, pois é preciso explicara novareflexño platónica de psyché (veja-se GAZOLLA,

Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, XLVI (117/118),87-93, Enero-Agosto 2008

Page 7: A tirania na República - o outro em si mesmo - inif.ucr.ac.crinif.ucr.ac.cr/recursos/docs/Revista de Filosofía UCR/Vol.XLVI/Num.117... · Rachel Gazolla A tirania na República

A TIRANIA NA REPÚBLICA - O OUTRO EM SI MESMO

r. Rev. Hypnos 7,"Alma mortal e alma imortal",ed.Triom, Educ, SPaulo ....; GAZOLLA R. "Sobreo ser da dor e a tirania" -.p. 53-88, Estudos sobreo diálogo Philebo, org. H. BENOIT, H., Ed. Ijuí,RGS,2007.

2. República, livros III e IV3. A imitacáo tem, aqui, seu campo de acáo -rnode-

los, cópias-, já apresentado por Platáo no livro IIe III, quando da censura aos poetas, em 377b,emdiante. Cf. GAZOLLA, R .

4. Essa palavra, tirania, é importada pela culturagrega que nao parece compreendé-la bem. Apesarde a Grécia ter passado por períodos tiránicos, ouseja, por usurpadores do poder por vezes violentos,o sentido de tirano nao se caracteriza para indicarum homem cruel, terrível, necessariamente,

5. A lembranca de Maquiavel e seu Príncipe éevidente.

6. Interessante essa notícia que, sem entrar em detal-hes, indica que a natureza como a pensa Platáotem um modo de ser equilibrado em cálculo emedida, como de fato é explicitado no Timeu; aomesmo tempo, há geracáo e corrupcáo de todosos seres, conforme explicitado no Philebo (pelavia dos princípios péras, apeíron), que nao podegarantir o bom calculo e medida sempre (videF.BRAVO, Las ambigüidades del Placer ..., Aca-demia, Sankt. Agustin, 2003; tb. ed,Paulus, SáoPaulo, 2008).

7. Que se recorde que, no Timeu, a alma cósmica éfeita bela e boa pelo divino fabricador na medidado possível, havendo incidencia de Ananke.

8. Epicheireté é termo usual para indicar o combatecom argumentos, daí a traducáo por "atacar", ouseja, que incide violentamente, que tenta. F.Lisi ,tradutor do Timeu para a ed. Gredos, consideraque o sentido mais adequado para epicheireitééroti é "o amor que é tentado a tudo " (cf. L.Scott), ou " ...0 prazer, a incitacáo maior ao mal".(cf. sua pp.traducáo para a ed.Gredos).

93

9. As reflex6es de Platáo sobre o cosmos e a inci-dencia da Necesidad -como ruptura possívelmas nao absoluta- sáo encontradas em diálogosespecíficos como o Timeu, Philebo, Político. Ocosmos sempre se restaura, sempre sofre parcialdestruicáo, novamente se restaura. Isso nao oco-rre com seres particulares, como nós.

10. Corroborando essa afirmacáo, diz ele no Philebo(32 b): " ... quando a forma vital criada da uniáonatural do ilimitado com o limite vem a destruir-se, tal destruicáo é a dor. .. desde que o caminhovolte para a restauracáo da ousía própria, essavolta, que é a mesma em todos os seres, se esta-belece como prazer."

11. O exemplo da música é bom. Nao há músicasem arithmos, lógismosey diásthema. A dor seapresenta, assim, em ligacño direta com o exces-so porque a ausencia de stas tres nocóes citadassignificam amétron. e é dito no Philebo (27d,e):" ...Todo o que parece a nós passar do mais aomenos ... tudo isto se debe juntar sob a unidadeque constitui o genero ilimitado (ápeiron) ... tudoo que se comporta de número a número e medidaa medida, fa remos bem em considerar tudo istolimite (péras) ...". Que a norma antiga repetidapor Sócrates "nada en exceso" (méden agán)"seja corroborada nessa reflexáo. nao surpreende.SÓ o fluxo lógos, arithmos y diasthema geravida (Phil. 27c sgts). A pregunta, entáo, é: comoo cosmos que está em cada um -que é aberturapara o cuidado de si- é resgatado na educacáo,de modo a que também a cidade possa cuidar desi mesma?

12. Kakós éros é um significado que, no filósofoamante do belo e bom, indica desmedida, dores,males. Platáo pensa em Hesíodo, Teogonia, quan-do o poeta fala, na primeira cosmogonia, sobreEros terrível, deinás, kakós, solta-mernbros. Nastragédias ele aparece quando da hybris do heroiou de sua "incuria".

Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, XLVI (117/118), 87-93, Enero-Agosto 2008