A PSICANÁLISE FREUDIANA E O ATUAL CONTEXTO CIENTÍFICO DA BIOLOGIA DA MENTE

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

    CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E METODOLOGIA DAS

    CINCIAS

    Josiane Cristina Bocchi

    A PSICANLISE FREUDIANA E O ATUAL CONTEXTOCIENTFICO DA BIOLOGIA DA MENTE

    Uma discusso a partir das concepes sobre o ego

    SO CARLOS2010

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    A PSICANLISE FREUDIANA E O ATUAL CONTEXTO

    CIENTFICO DA BIOLOGIA DA MENTE

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOSCENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E METODOLOGIA DASCINCIAS

    Josiane Cristina Bocchi

    A PSICANLISE FREUDIANA E O ATUAL CONTEXTOCIENTFICO DA BIOLOGIA DA MENTE

    Uma discusso a partir das concepes sobre o ego

    Tese apresentada ao Programade Ps-Graduao em Filosofiada UFSCar, para a obteno do

    ttulo de doutor em Filosofia

    Orientador: Prof. Dr. Richard Theisen Simanke

    SO CARLOS2010

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    Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT daBiblioteca Comunitria/UFSCar

    B664pfBocchi, Josiane Cristina.

    A psicanlise freudiana e o atual contexto cientfico dabiologia da mente : uma discusso a partir das concepessobre o ego / Josiane Cristina Bocchi. -- So Carlos :UFSCar, 2010.

    255 f.

    Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de So Carlos,2010.

    1. Psicanlise freudiana. 2. Metapsicologia. 3. Ego(Psicologia). 4. Neurocincia. I. Ttulo.

    CDD: 150.1952 (20a)

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    JOSIANE CRISTINA BOCCHIA PSICANLISE FREUDIANA E O ATUAL CONTEXTO CIENTFICO DA BIOLOGIA

    DA MENTE: UMA DISCUSSO A PARTIR DAS CONCEPES SOBRE O EGO

    Tese apresentada Universidade Federal de So Carlos, como parte dos requisitos para obteno dottulo de Doutor em Filosofia.Aprovada em 06 de maio de 2010

    NC EX MIN DOR

    Presidente Dr. Bento Prado de Almeida Ferraz Neto)

    1 Examinador Dra. Carla Laino Cndido - UFSCar)

    2Examinador Dr. Hlio Honda- UEM\.,..

    3Examinador --.~ a Dra. Ftima Siqueira Caropreso - UFGD)4 Examinador Dra. Monah Wingrad - PUC-RJ)

    Univenidade Federal de 510 CarlosRodovia WashingtonLuis, Km 235 - Cx. Postal 676Tel./Fax: 16) 3351.8368www.opszfil.ufscar.br/[email protected]: 13.565-905 - Silo Carlos - SP - BrasilPrograma de Ps-GraduaAo em Filosofia

    Centro de Educaao e Cincias Humanas

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    Como sempre, para meuspais, Walter e Irani,

    por me ensinarem ointeresse por uma busca

    constante, desde os primeiros passos

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    Agradecimentos

    Agradeo ao meu orientador, Prof. Dr. Richard Theisen Simanke, pelaoportunidade do doutorado e pela confiana, mas principalmente pela orientao

    descomplicada, lcida e instigante, da qual mesmo as conversas mais triviais foram

    brilhantes e sempre agradveis. Gratido especial ao Pr. Prado de Oliveira (Directeur de

    Recherches cole Doctorale Recherche en Psychopathologie et Psychanalyse, Paris

    7), pela recepo atenta, amvel e espirituosa durante o estgio doutoral em 2008/2009,

    pela participao em seu seminrio e por contribuir para meu desenvolvimento

    acadmico.Agradeo banca examinadora da qualificao, aos professores

    Francisco Bocca e Hlio Honda, pelas observaes valiosas daquela ocasio. Agradeo

    tambm Ftima Caropreso, Monah Winograd, Carla Cndido e Helio Honda por

    aceitarem o convite para compor a banca da defesa.

    Agradeo FAPESP(processo: 05/51663-3), pelo apoio financeiro to

    fundamental, o qual possibilitou o encontro com os mais diferentes interlocutores.

    Agradeo fortemente respectiva Assessoria Cientfica, pelo acompanhamento

    cauteloso e competente, cujas sugestes foram sempre precisas.

    Agradeo s assistentes bibliotecrias, Mme. Sandrine Neuville e Mme.

    Marie-Christine Gayffier, da Biblioteca Sigmund Freud (Socit Psychanalitique de

    Paris), pela infinita gentileza e pacincia. Agradeo aos assistentes administrativos do

    Departamento de Filosofia da UFSCar, Robson, Aron e Fbio, pelo auxlio eficiente em

    diversos momentos.

    Enfim, grata aos amigos, Cris Munaretti, Aline, Marco, Vinicius, Joana,

    Mary, Erika Yoda e Renata, que estiveram presentes e continuam na minha vida.

    Agradeo aos meus pais e aos meus irmos, Janaina e Juliano, pela

    lucidez, pelo carinho e o respeito com relao s minhas escolhas, mesmo as mais

    longas e difceis, como a do doutorado. Grata ainda Silvana Lopes Andrade, cuja

    escuta me fortaleceu nos ltimos anos.

    E por que no? Agradeo vida, pelo trabalho e pelo prazer que esta tese

    me proporcionou.

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    SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 12

    PARTE I PSICANLISE E NEUROCINCIASCaptulo I - Formulaes neuropsquicas e psicossociais no mbito dainterdisciplinaridade entre a psicanlise freudiana e as neurocincias..................................................................................................................................................... 20

    1) A interface entre a pesquisa no campo psicolgico e os estudos neurocientficos sob a ticade Kandel .................................................................................................................................... 221.2) Uma nova biologia da mente .............................................................................................. 241.3) Resultados preliminares da pesquisa integrada .................................................................. 282) O dilogo inicial com algumas antinomias ............................................................................ 30

    3) Novos parmetros para a psiquiatria e para a psicanlise ...................................................... 333.1) Princpios do framework para as neurocincias .............................................................. 343.2) A crise da psicanlise e da psiquiatria ............................................................................. 423.3) Primeiras aproximaes ...................................................................................................... 464) O modelo psicanaltico no cenrio cientfico ........................................................................ 52

    Captulo II -A Neuro-psicanlise .......................................................................................... 611) Uma histria recente ............................................................................................................ 632) Proposta metodolgica ......................................................................................................... 663) Aplicaes do mtodo neuro-psicanaltico ............................................................................ 763.1) A neurodinmica do sonho ...................................................................................................78

    3.2) Casos clnicos da literatura neuro-psicanaltica .................................................................. 833.2.1) Sndrome ou psicose de Korsakoff .................................................................................. 84Vinheta clnica ............................................................................................................................ 853.2.2) Perturbaes da auto-imagem na sndrome do hemisfrio direito ............................... 913.2.3) Das neuroses narcsicas de Freud a uma metapsicologia da cognio espacial ......... 102

    Sntese - Primeira parte ........................................................................................................ 106

    Captulo III - A recepo dos estudos neurocientficos pela psicanlise: crticas, limites ealgumas ponderaes............................................................................................................. 1111)Crticas mais freqentes..................................................................................................... 113

    1.2) Problema dos estudos correlativos .................................................................................. 1182) Repercusso na psicanlise: um caso de rigidez parcial .....................................................124

    PARTE II - O EGO EM FREUDCaptulo IV - Interaes ente eu-corpo e eu-intersubjetivo no pensamento freudiano.................................................................................................................................................. 132

    1) Caracterizao geral do ego ................................................................................................. 1331.1) Uma via privilegiada para o eu-social ou intersubjetivo .................................................. 1361.2) A no linearidade do ego................................................................................................... 1382) Ego-corporal ........................................................................................................................ 1403) O ego-neural/ego-corporal ................................................................................................... 145

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    3.1) O ego no Projeto de uma psicologia (1895/1950) ......................................................... 1453.2) Premissas do aparelho neuronal ........................................................................................ 1473.3) Uma massa de neurnios e sua face psquica ................................................................ 1533.4) Relaes entre o ncleo e o manto do ego......................................................................... 1563.5) Processos primrios e processos secundrios ................................................................... 1573.6) As regras biolgicas da defesa primria e da ateno................................................. 1583.7 A vivncia de satisfao ..................................................................................................... 1604) O papel das representaes corporais nos processos de pensar e no reconhecer ............. 1644.1) Fragilidade do ego e moralidade ...................................................................................... 170

    Captulo V - Concepes sobre o ego e oself na psicanlise contempornea .................. 1731)Os pontos de vista adaptativo e gentico para as neurocincias ......................................... 1762)O ego estilhaado e o ego alienado ..................................................................................... 180

    Sntese Segunda parte ........................................................................................................ 185

    PARTE III O EGO NAS NEUROCINCIASCaptulo VI -Oselfneuropsicolgico em Antnio Damsio ............................................. 1931) Um modelo do corpo no crebro: a excomunho do homnculo ........................................ 1982) Self autobiogrfico e relao entre conscincia central e conscincia ampliada: o transitrio eo permanente ............................................................................................................................ 2033) Aproximaes entre a concepo freudiana do ego e a teoria do selfem Antnio Damsio.2073.1) Proto-self e instncia egica na seo 14 do Projeto (1895) ......................................... 2083.2) Self central e ego narcsico ............................................................................................... 2123.2.1) O carter de auto-referncia do ego e do self central .....................................................2133.2.2 Funo de sntese do narcisismo e o papel convergente da conscincia central .............2143.2.3 Self-autobiogrfico e ego intersubjetivo ......................................................................... 2164) Consideraes finais ............................................................................................................ 217

    Captulo VII -Outros modelos neurocientficos do eu e doself ..................................... 2201)Ego ou Self? ......................................................................................................................... 2212) Pesquisas empricas............................................................................................................. 2243)Default mode of brain network: a atividade cerebral intrnseca ...................................... 2303.1) Sobre uma escuta permanente ........................................................................................... 234

    4) Consideraes finais ............................................................................................................. 238

    CONCLUSO......................................................................................................................... 240

    Referncias bibliogrficas......................................................................................................... 246

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    Resumo

    As pesquisas sobre o crebro passaram por modificaes importantes no final dos anos90, quando se comea a discutir os benefcios de um alinhamento de interesses entre asreas de Neurocincia, Psiquiatria, Psicologia Cognitiva e Psicanlise. Fato que esteveligado mudana de enfoque investigativo nas Cincias da Cognio e nasneurocincias, indo de uma perspectiva cognitivista para uma viso dinmica emotivacional, em tese, mais municiada para incluir os aspectos da subjetividade nomoderno cenrio do estudo da mente. A literatura psicanaltica ortodoxa deverasresistente a uma rediscusso cientfica da metapsicologia, contudo no h como negar aconstruo de uma noo de interdisciplinaridade entre as cincias do crebro e a

    psicanlise (e cincias psicolgicas em geral). O presente trabalho prope-se a discutiralgumas propostas contemporneas de convergncia entre as formulaes

    neuropsquicas e psicossociais, no panorama de uma interface entre a neurocinciacognitiva e a psicanlise, utilizando as concepes freudianas sobre o ego (Ich) comoeixo temtico. A busca por uma maior integrao entre estas formulaes na teoriafreudiana do ego talvez possa contribuir na reflexo sobre o debate em torno daaproximao entre a psicanlise e as neurocincias. Apresentamos a interlocuo quealguns programas neurocientficos propem para a psicanlise. Ser que o Freud dosculo 19 tem alguma contribuio a oferecer para o que se reivindica atualmente comouma nova biologia da mente? De que modo a recuperao de seu pensamento poderiasuprir algumas lacunas conceituais e metodolgicas desses programas neurobiolgicos?Estaria a psicanlise na iminncia de perder sua identidade em meio ao atual cenriointelectual das cincias cerebrais? As aspiraes desse quadro multidisciplinar nas

    investigaes sobre a mente e o crebro poderiam abrir novos horizontes para apsicanlise? O fato que a explorao das origens neuropsicolgicas da metapsicologiafreudiana tem aberto um leque de discusses, tanto na comunidade neurocientfica,como na psicanlise. Ao invs de assumir um apoio imediato ou uma recusa a essainterface ou ao que muito globalmente se prope como integrao, esse trabalhosugere que os questionamentos sejam remetidos ao prprio enquadre conceitual emetodolgico dos programas neurocientficos e ao exame das teses freudianas, parasaber se estas tm ou no elementos favorveis a esse tipo de leitura -, evitando assimconcluses apressadas e at simplificaes daquelaproposta.

    Palavras-Chave: Psicanlise freudiana. Metapsicologia. Ego. Neurocincias.

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    Abstract

    There were substantial changes in the 90s decade in brain researchs, when one begins todiscuss the benefits of an alignment of interests between the areas of Neuroscience,Psychiatry, Cognitive Psychology and Psychoanalysis. Fact that it was linked to the

    change of perspective in sciences cognition and neuroscience, from a cognitiveperspective to a dynamic and motivational view, in theory, more able to include aspectsof subjectivity in the modern field of the study of mind. The psychoanalytic literature isvery resistant to a renewed discussion of metapsychology, however there is no denyingthe construction of a notion of interdisciplinarity between the brain sciences and

    psychoanalysis (and psychological sciences in general). This Thesis intends to discusssome contemporary proposals of convergence between the neuropsychiatric and

    psychosocial formulations, in view of an interface between cognitive neuroscience andpsychoanalysis, using Freudian concepts about the ego (Ich) as head theme. The searchfor the greatest integration between these formulations of the ego in Freudian theorycould possibly contribute in reflecting on the debate on the rapprochement between

    psychoanalysis and neuroscience. We present the dialogue that some programs offerneuroscience for psychoanalysis. Does Freud's 19th century has to offer somecontribution to what is named today as a new biology of mind? How to recover histhought could supply some conceptual and methodological shortcomings of these

    programs neurobiological? Psychoanalysis would be on the verge of losing its identityamid the current intellectual scene of the brain sciences? The aspirations of thismultidisciplinary research about the mind and brain could open new horizons for

    psychoanalysis? The search of neuropsychological origins of Freudian metapsychologyhas opened a range of discussions, both in the neuroscience community, as in

    psychoanalysis. Instead of taking immediate support or a refusal to this interface is

    proposed that much like integration, this work suggests that the inquiries are referredto their own conceptual and methodological frame of neuroscience programs andexamination of the Freudian theories, for knowing whether these concepts are open tothis kind of reading - thus avoiding hasty conclusions and simplifications to that

    proposal.

    Keywords: Psychoanalysis Freudian. Metapsychology. Ego. Neurosciences

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    Como se v, trata-se aqui de um empreendimento hbrido por incluir uma

    diversidade de temas que extrapolam o domnio da metapsicologia freudiana e da sua

    teoria do ego. Todavia, esta parece ser a natureza de um trabalho que pretende, como parte

    de seus objetivos, apresentar o panorama de questes endereadas psicanlise na

    atualidade.

    O que primeiro chama a ateno no contexto atual do debate

    epistemolgico em torno da psicanlise, o notrio o espao crescente da releitura de

    algumas teses freudianas desde o ponto de vista das neurocincias. Ao mesmo tempo,

    assistimos emergncia de uma literatura voltada interseco de disciplinas

    historicamente divergentes quanto ao objeto de estudo, mtodo e objetivos, como a

    psicologia, a psiquiatria, a neurocincia e a prpria psicanlise. At mesmo uma busca

    superficial, em revistas eletrnicas, websitese peridicos dessas reas, tem revelado um

    pluralismo de discusses sobre uma suposta interface multidisciplinar que, num primeiro

    momento, mais podem confundir do que esclarecer, j que encontramos muitas posturas

    extremas ou simplificadoras - de pronta aceitao acrtica ou de uma imediata recusa.

    O estudo do crebro e da mente, como pensado hoje em dia, diversifica-se

    pela importao de estratgias e de conceitos de reas vizinhas, sendo at representado por

    um neologismo, neurocincia, de modo que quase no se fala mais apenas em

    neuroanatomia, neurofisiologia ou neuroqumica, o que traduz a caracterstica

    multidisciplinar das cincias do crebro, adquiridas na segunda metade do sculo 20

    (IMBERT, 2004, p. 55).

    Constata-se uma ascenso das neurocincias em setores do conhecimento

    que extrapolam os campos da biologia e da filosofia da mente, tais como na antropologia,

    nas artes ou na educao. Para se ter uma idia aproximada, h uma absoro desseimpacto pela sociedade contempornea e pela mdia em geral, como mostram as

    discusses recentes sobre a noo de sujeito cerebral (brainhood). Essa nova figura

    antropolgica prefigura que o crebro deixe de ser visto apenas como um rgo para ser

    tambm um corolrio de atributos relativos individualidade e identidade. O brainhood

    caracterstico de uma poca na qual nunca se ouviu falar tanto em conexes, sinapses,

    neurotransmissores e na expectativa dos benefcios de uma neurofarmacologia molecular.

    Desvendar o crebro e a mente projeta-se como a grande promessa cientfica do sculo 21,o sculo da memria e do desejo, nas palavras do geneticista francs, Franois Jacob

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    (1998), um dos ganhadores do Prmio Nobel de Medicina de 1965. Essa temtica como

    um todo certamente inaugura um desafio s vrias disciplinas envolvidas, qual seja, o de

    discutir a respeito das implicaes scio-culturais e cientficas de uma neurocultura

    crescente, bem como sobre as eventuais contribuies positivas das neurocincias.

    A literatura psicanaltica, por seu turno, apresenta uma certa resistncia

    releitura cientfica da metapsicologia, como a que prope a neurocincia cognitiva e a

    neuropsicologia. Contudo, nas trs ltimas dcadas, no h como negar a construo

    progressiva de uma noo de interdisciplinaridade nos estudos sobre a mente, assim como

    a atualizao do questionamento sobre o antagonismo entre os enunciados psicolgicos e

    neurobiolgicos e, simultaneamente, o questionamento de uma srie de dicotomias que

    acompanham o problema das relaes entre mente, corpo e crebro: sujeito-natureza,

    natureza-cultura, biolgico-funcional, gentica-ambiente. Desde 1980, uma literatura

    especfica tem sido incorporada aos livros e peridicos de psicologia cognitiva, de

    neuropsiquiatria, de neurocincia e de psicanlise, sugerindo aproximaes gradativas

    entre a neurobiologia e as cincias psicolgicas, particularmente daquela com a

    psicanlise freudiana e/ou com a teoria das relaes objetais ou destas com a

    neuropsicologia (REISER, 1984; ERDELYI, 1985; CLYMAN, 1991; SEMENZA, 2001;

    IMBASCIATI, 2003; BEUTEL et al., 2003; LEEMAN & LEEMAN, 2004;

    SANDRETTO, 2004; LANE & GARFIELD, 2005; MODELL, 2005; ANDRIEU, 2007;

    PIRLOT, 2007; SIKSOU, 2007; CARHART-HARRIS et al., 2008). Parece que se coloca

    em questo at que ponto aquelas diferenas metodolgicas so realmente inconciliveis

    e, no limite, qual a funo da rgida distino formal entre cincias humanas e cincias

    naturais.

    Deparamo-nos com a formulao concreta de alguns programas depesquisas sobre o intercmbio de conhecimentos entre essas reas afins, atravs de um

    esforo em gerar modelos neurocientficos para temas tradicionais do campo psicolgico,

    como a conscincia, a aprendizagem, sistemas motivacionais, sobre o papel do

    desenvolvimento precoce na psicopatologia e alguns conceitos freudianos caros

    psicanlise, como inconsciente, pr-consciente, ego, represso, a funo desiderativa

    sonhos, entre outros. H quem diga que do mesmo modo como a leitura filosfico-

    estrutural da psicanlise foi marcante no sculo 20, o sculo 21 presenciar um retorno

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    mais amplo e radical ao Freud cientista natural, com sua obra total sendo esquadrinhada

    luz da neurocincia (ANDRADE, 2003, p. 26).

    O presente trabalho prope-se a discutir algumas solues contemporneas

    para uma convergncia entre as formulaes neurobiolgicas e psicossociais no mbito de

    uma interdisciplinaridade entre a neurocincia cognitiva e a psicanlise, utilizando as

    concepes freudianas sobre o Eu (Ich) como eixo temtico. Essa noo adotada como

    operador conceitual por ser central psicanlise e possuir vrias significaes na escrita

    freudiana: o ego j foi o agente da represso, o escravo de trs senhores, bem como a

    sede da razo e da prudncia, o reservatrio da libido ou o mais enaltecido objeto de

    amor do sujeito. As concepes sobre o ego esto presentes em todo o percurso do

    pensamento freudiano e so marcadas por oscilaes curiosas. Na primeira teoria das

    neuroses, ele est no ncleo dadefesapsquica; no perodo posterior (entre 1895 e 1914

    aproximadamente), o ego deliberadamente omitido por Freud e s ressurge com

    importncia na dcada de 20, na virada para a teoria estrutural do aparelho psquico. H

    tambm momentos de sensvel contraste em sua apresentao: como uma formulao

    explicitamente neuropsicolgica no Projeto de uma psicologia (1895/1950), enquanto

    no mbito da teoria do narcisismo, na medida em que esta admite ser interpretada como

    uma modalidade de relaes com o objeto, com destaque para o conceito de identificao,

    o ego e seus desdobramentos narcsicos revestem-se de uma significao intersubjetiva e,

    a partir de trabalhos como Psicologia das massas e anlise do ego(1921), ele adquire

    uma formulao quase que psicossocial, na contramo, aparentemente, da sua

    significao inicial.

    No obstante a diferenciao progressiva das formulaes sobre o ego, que

    muda conforme o foco dos problemas metapsicolgicos abordados por Freud, acreditamosque esta noo conserve uma complementaridade essencial entre a dimenso

    neuropsquica e uma dimenso mais psicossocial. Vamos abordar essas formulaes

    aparentemente conflitantes do conceito freudiano de ego e discutir a possibilidade de sua

    integrao em uma linha terica mais unificada. Espera-se que esta espcie de estudo de

    caso sobre os fundamentos neurobiolgicos e psicossociais do ego contribua com

    elementos de reflexo, a partir do prprio pensamento freudiano, para o novo debate

    epistemolgico em torno da aproximao entre a psicanlise e a neurocincia cognitiva.

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    No se buscou uma epistemologia das neurocincias, mas sim apresentar o

    contexto atual sobre o encontro da psicanlise com tais estudos. Alm disso, o enfoque da

    tese no abordar especificamente a viabilidade terico-metodolgica e a sustentabilidade

    prtica de um tal programa de integrao, tampouco discutir as repercusses deste para a

    psicanlise contempornea, o que talvez nos levaria somente a um manancial de

    especulaes. Entendemos que a primeira discusso necessria, mas ser includa na

    medida em que for pertinente aos temas trabalhados e s propostas apresentadas. Est

    muito em voga questionar se a neurocincia pode ou no ser uma legtima fonte de

    validao externa para a psicanlise, uma vez que a psicanlise utiliza-se da

    interpretao e do sentido, e no de enunciados explicativos, ao contrrio das cincias

    cerebrais que trabalham com o princpio da causalidade1. Assim, as chamadas hard

    sciences e light sciences deveriam permanecer restritas aos seus domnios distintos e

    inconciliveis. Antes de discutir a viabilidade terica e o alcance do que muito

    globalmente se prope como integrao, assumindo um imediato apoio ou rechao,

    parece-nos necessrio que questes como estas sejam remetidas ao enquadre conceitual-

    metodolgico do programa interdisciplinar neurocientfico e ao exame das teses

    freudianas se elas tm ou no elementos favorveis a esse tipo de leitura -, evitando

    assim concluses apressadas e at simplificaes daquela proposta que, em princpio, no

    se limita a confirmar ou refutar os princpios psicanalticos. provvel que a recuperao

    do naturalismo da metapsicologia freudiana traga conseqncias para a psicanlise,

    todavia no se sabe quais, porque as pesquisas sobre um dilogo esto ainda em fases

    iniciais. No mais, h muita especulao a esse respeito.

    Pretendemos, de fato, explicitar alguns programas de aproximao entre as

    cincias neurais e a psicanlise, como o programa do neurocientista Eric Kandel, aproposta da Neuro-psicanlise e apresentar algumas teorias neuropsicolgicas, como a de

    Antnio R. Damsio, os quais, no limite, filiam-se todos proposta mais abrangente,

    surgida no ltimo tero do sculo 20, no campo das cincias da cognio, de incluir na

    abordagem cientfica a dimenso subjetiva da mente (os aspectos qualitativos da

    experincia), designada como mente fenomenolgica e que se exprime como um

    verdadeiro projeto de naturalizao da intencionalidade devido busca de integrao

    1Referncia tradio de leitura que se segue ao Linterprtation: essai sur Freud (1965), de Paul Ricoeur, quefaz uma leitura da psicanlise a partir de uma linha da hermenutica e que usada, de modo geral, como apoio

    para assimilar a psicanlise ao campo exclusivo das humanidades.

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    com a fenomenologia (ROY et al., 1999; CHANGEUX, 2001). Vamos apresentar o tipo

    de interlocuo que cada programa prope para a psicanlise e, eventualmente, levantar

    pontos de como esse dilogo pode vir a ser interessante nas duas direes.

    Ser que o Freud do sculo 19 tem alguma contribuio para uma nova

    biologia da mente? De que maneira a recuperao de seu pensamento pode clarear as

    dificuldades ou suprir algumas lacunas conceituais e metodolgicas desses programas?

    Estaria a psicanlise na iminncia de descaracterizar-se em meio a esse turbulento cenrio

    neopositivista ou as aspiraes deste podem abrir novos horizontes psicanlise, ampliar

    sua esfera de atuao e exigir aprimoramentos na teoria e na tcnica, numa linha de

    contribuies diferente do que a psicanlise recebeu ao longo do sculo 20?

    Apresentaremos, por fim, alguns estudos especficos sobre a correlao entre as funes

    psicanalticas do ego e alguns sistemas cerebrais, a fim de elucidar o contexto operacional

    desses trabalhos alguns de natureza emprica - e na medida do possvel, verificar se

    certos resultados experimentais das neurocincias retomam o conceito freudiano, se o

    sustentam, complementam ou contestam-no.

    No se trata de defender ou de criticar os trabalhos de convergncia, as duas

    posies seriam ainda prematuras, principalmente se considerarmos os impasses da

    cincia da mente. Em princpio, acreditamos que a discusso (e negociao) de alguns

    parmetros cientficos para a psicanlise possa contribuir para a continuidade de seu

    desenvolvimento, atravs de novos conhecimentos sobre o sistema nervoso, no sentido

    prximo ao que Freud idealizava quando projetou as bases para sua psicologia cientfica,

    importando da fsica e da prpria biologia os postulados de quantidade e neurnio,

    portanto, num naturalismo estrito.

    As neurocincias tm recursos tecnolgicos a seu favor, como nos estudossobre neuroimagem funcional, mas apresentam tambm lacunas em termos de

    formulaes conceituais e uma necessidade de aprimorar sua compreenso sobre as

    categorias mentais. A produtividade desta cincia carece, mais do que nunca, de um

    enquadramento terico geral para, na medida do possvel, alinhar a diversidade de

    achados sobre o crebro. A psicologia freudiana apresenta um esforo de sistematizao e

    embora ela at possa ter alguns princpios contestados, seu quadro conceitual bastante

    elaborado. Por esse motivo, talvez haja aspectos em que as neurocincias e a psicanlisefreudiana possam se complementar e, de novo talvez, numa aposta interessante.

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    No limite, nem essa tese pode responder quelas questes de maneira

    satisfatria. A posio aqui adotada est sujeita a revises, seja pelos caminhos que o

    nosso prprio trabalho apontar, seja pelo desenrolar dos estudos sobre a integrao ou

    pela imprevisibilidade inerente ao conhecimento. O fato que no pecamos pelo

    anacronismo. Parafraseando um dos autores a ser consultado, no h motivo para

    envergonhar-se em ser desmentido pela cincia2. sabido que o prprio Freud no se

    poupou reviso de conceitos basilares, como a teoria das pulses e a prpria noo de

    sexualidade, tantas vezes quanto julgou necessrio.

    A primeira parte da tese (Psicanlise e Neurocincias) tem dois captulos

    que introduzem o debate em torno da convergncia entre a psicanlise e os estudos

    neurocientficos e conta com uma concluso parcial, discutindo alguns pressupostos e

    problemas dessa aproximao. O primeiro captulo apresenta o enquadre proposto por E.

    Kandel para uma maior interao entre as neurocincias, a psiquiatria e a psicanlise. Os

    novos parmetros conceituais (new intellectual framework) deste autor encontram-se na

    vanguarda da sistematizao de um programa de estudos multidisciplinares da

    neurocincia. O segundo captulo apresenta o programa de estudos da neuro-psicanlise,

    um enquadre neuropsicolgico e clnico, mas em continuidade com o anterior.

    A segunda parte (O ego em Freud) apresenta a no-linearidade e a

    ambigidade fundamental das concepes freudianas sobre o ego, assinalando momentos

    relevantes para suas formulaes neuropsquicas e psicossociais: a caracterizao do ego

    no Projeto... (1895), as contribuies advindas da teoria do narcisismo e da

    identificao em Psicologia das massas, fechando com O ego e o id (1923) que

    explicita a dupla interface do ego.

    Essa segunda parte conta com um captulo sobre algumas elaboraes ps-freudianas sobre o ego, como a da escola da Psicologia do Ego e uma distino entre as

    noes de ego e deself. Apresenta-se, de modo geral, as contribuies de Melanie Klein e

    Jacques Lacan ao tema, concebendo-o ora num contexto mais prximo da biologia, como

    em Klein e psiclogos do ego, ora num contexto puramente intersubjetivo, como na

    leitura de Lacan.

    A terceira e ltima parte (O ego nas neurocincias) traz uma bibliografia

    especfica para demonstrar o modo como tem se realizado alguns estudos empricos mais

    2SOLMS, M. (2004). O que neuro-psicanlise ..., p. 101.

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    pontuais sobre o link entre as funes egicas e as funes cerebrais. H estudos, por

    exemplo, que equiparam as atividades de auto-reflexo e julgamento,

    neurobiologicamente, vinculadas ao crtex pr-frontal e, psicanaliticamente, s funes

    executivas do ego. Seu primeiro captulo dedicado teoria neuropsicolgica do selfem

    Damsio, no qual propomos um ntido paralelo entre o selfneural deste autor e os vrios

    aspectos das concepes freudianas sobre o ego.

    A juno dos dois primeiros captulos com o penltimo configura os trs

    enquadramentos tericos e metodolgicos que utilizamos como ferramentas para a

    discusso sobre a interface entre as neurocincias e a psicanlise.

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    PARTE I PSICANLISE E NEUROCINCIAS

    Captulo I

    FORMULAES NEUROPSQUICAS E PSICOSSOCIAIS NO MBITODA INTERDISCIPLINARIDADE ENTRE A PSICANLISE

    FREUDIANA E AS NEUROCINCIAS

    Para discutirmos sobre a possibilidade de uma releitura cientfica da

    psicanlise, no mbito da convergncia entre esta e as neurocincias, apresentaremos trs

    perspectivas tericas. Esse procedimento adotado em funo da complexidade das novas

    questes relacionadas ao atual debate entre as neurocincias e o campo das teorias

    psicolgicas de modo geral. Alm do ritmo crescente das publicaes sobre o tema, aparticipao de diferentes campos do conhecimento torna o quadro abrangente e

    complexo: so discusses dentro dos crculos psicanalticos, nos laboratrios de

    psicologia e entre os diversos grupos de pesquisa em neurobiologia, biologia molecular e

    neuropsicologia. So teorias emergentes e noes de difcil assimilao, para as quais

    acreditamos que a escolha de determinados referenciais terico-investigativos permite um

    melhor desdobramento.

    Na recente literatura neurobiolgica, principalmente na neurocinciacognitiva, vem sendo discutido a procura por um novo quadro conceitual para as cincias

    da mente, como em diversos trabalhos de Eric Kandel especificamente um new

    intellectual framework3. Essa a primeira perspectiva a ser apresentada; a segunda a

    neuro-psicanlise, a qual prope uma abordagem psicodinmica para os distrbios

    psquicos decorrentes de leses neurolgicas. Tentaremos mostrar como se d a

    investigao de algumas neuropatologias, para as quais se tem recorrido teoria freudiana

    do narcisismo e etiologia das neuroses narcsicas. No penltimo captulo,3 Tambm freqente uma traduo mais literal, como novos parmetros intelectuais. Optamos por usarquadro conceitual ou quadro de referncia pelo seu sentido mais programtico.

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    apresentaremos o conceito de selfneuropsicolgico em Antnio Damsio. Identificamos

    algumas correspondncias entre seu conceito de self e o conceito freudiano de ego. As

    duas ltimas abordagens podem ser pensadas como tentativas de por em prtica os novos

    princpios gerais sugeridos pela primeira.

    Recorremos a estes trs enquadres conceituais que serviro como

    ferramentas para desenvolver o tema das relaes entre as formulaes neuropsquicas e

    psicossociais, com base nos novos achados em neurocincias e no recente panorama de

    integrao entre esses dados de pesquisa e alguns conhecimentos do campo psicolgico.

    Indiretamente, reacende-se tambm um debate interno psicanlise, referente s

    teorizaes iniciais de Freud, de cunho neuropsicolgico, e ao programa naturalista de sua

    psicologia. Segundo Ortega e Bezerra Jr. (2006), essa espcie de atualizao no

    estranha ao encontro das neurocincias com outras disciplinas no contexto atual, pois o

    crebro adquiriu significados diferentes em reas diversas (anatomia, psiquiatria,

    antropologia, psicologia e arte), nas quais vem sendo incorporado como forma de exprimir

    ou encarnar princpios e programas prprios a cada uma delas4.

    Como discutiremos nesse captulo, pensamos que o teor do encontro entre a

    psicanlise e o moderno cenrio das neurocincias vai alm da simples convalidao ou

    refutao dos princpios psicanalticos, mas sim trata-se da busca por uma maior unidade

    nas cincias da mente. Essa tentativa surge no ltimo tero do sculo 20, no contexto das

    chamadas cincias da cognio5, atravs de um programa de investigao naturalista da

    mente que, em essncia, propunha aproximar as abordagens cognitivas fenomenologia6.

    Hoje em dia, a neurocincia est bastante alinhada com as diversas articulaes das

    cincias da cognio e ela exprime esse programa atravs da proposta de um quadro de

    referncia comum s cincias psicolgicas e s cincias do crebro, capaz de incluirdeterminantes psicossociais e biolgicos do comportamento humano.

    4 ORTEGA, F. & BEZERRA Jr., B. (2006). O sujeito cerebral. Fonte: URL:http://www.ibneuro.com.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=32&Itemid=25. Consultadoem 16-11-2007 s 18h27.5 Essa rea, globalmente designada, abrange um conjunto de diferentes disciplinas: a psicologia cognitiva, a

    psicolingstica, a inteligncia artificial, a lgica e as cincias cognitivas tambm interagem com as

    neurocincias e a prpria filosofia. A aproximao entre cincias da cognio e neurocincias deu origem neurocincia cognitiva, que se prontifica a fazer uma abordagem sistemtica das bases neurobiolgicas dasfunes cognitivas.6ROY, J-M. et al.Beyond the gap: an introduction to naturalizing phenomenology, 1999.

    http://www.ibneuro.com.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=32&Itemid=25http://www.ibneuro.com.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=32&Itemid=25
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    1. A interface entre a pesquisa no campo psicolgico e os estudos neurocientficos soba tica de Kandel

    Em dois trabalhos polmicos poca de sua publicao, fim da dcada de

    90, o psiquiatra e neurocientista Eric Richard Kandel prope um enquadre conceitual

    comum s cincias psicolgicas e s cincias do crebro, sugerindo a construo de um

    programa multidisciplinar de investigao que inclusse neurocincia, biologia

    molecular,psiquiatria, psicologia e a psicanlise, na tarefa de investigar o crebro e a

    mente como um mesmo objeto de estudo7. Grosso modo, a inteno que este quadro de

    referncia (framework) funcione como uma grande base de dados para elaborar

    hipteses sobre as funes mentais e seus correlatos neurolgicos, bem como meios de

    test-las experimentalmente. As diversas comunidades cientficas colaborariam com a

    especificidade de suas reas ao mesmo tempo em que fariam uma abertura metodolgica

    adotando novas estratgias de pesquisa, inclusive de natureza emprica e, se

    necessrio, tambm uma abertura epistemolgica, revisando determinados pressupostos

    de suas teorias.

    A plataforma de idias sugerida por Kandel parece ser uma referncia para

    pensarmos o que freqentemente tem sido denominado, de modo genrico, como

    integrao da psicanlise com as neurocincias. A nosso ver, um quadro conceitual

    mais unificado, como o que proposto, adquire importncia mediante a proliferao de

    trabalhos sobre a interseco dessas reas e tambm pela necessidade de discutir qual o

    tipo de multidisciplinaridade pretendida: ser possvel falarmos em umainterdisciplinaridade entre as cincias cerebrais e as disciplinas psicolgicas ou, ao menos,

    uma atitude conciliatria?

    Atualmente, assistimos a uma crescente produtividade sobre o encontro

    entre aqueles campos historicamente divergentes, como a psicologia, a psiquiatria e a

    neurocincia. Uma ligeira busca em websites e peridicos especficos j revela um

    pluralismo de idias potencialmente confusas, na medida que exprimem argumentos

    7Trata-se de A new intellectual framework for psychiatry, publicado originalmente no American Journal ofPsychiatry, vol. 155, n. 4, 1998, p. 457-469. O segundo artigo, Biology and the future of psychoanalysis: a newintellectual framework for psychiatry revisited (1999), foi publicado na mesma revista, complementando o

    primeiro e respondendo ao abundante volume de crticas suscitado por ele.

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    muito gerais, como a crena de que uma disciplina vir a englobar a outra no caso, as

    cincias exatas viriam substituir as cincias humanas ou a crena exagerada no

    empirismo, isto , que os avanos em neuroimagem funcional solucionaro os impasses

    tericos anteriores e, principalmente, de que um dilogo fica invivel por envolver

    cincias humanas e cincias naturais. Tais idias exprimem tambm mal-entendidos ou

    pontos de vista mal colocados, como o fato de que o escrutnio do mtodo clnico pelos

    modelos experimentais implique automaticamente no reducionismo biolgico e na sua

    substituio pelas investigaes quantitativas ou por uma suposta psicofarmacologia de

    ponta. O fato que a descoberta de que a psicoterapia tambm atua estrutural e

    funcionalmente no crebro e de que o desenvolvimento influncia a expresso gentica

    tem gerado um significativo volume de especulaes, tanto nas neurocincias como no

    campo psicolgico.

    Atravs do quadro de referncia proposto por Kandel, esperamos

    problematizar a relao da metapsicologia freudiana com o atual contexto cientfico a

    partir de um foco mais preciso, sem nos aprofundarmos nos fundamentos epistmicos do

    programa neurocientfico, e apenas elucidando seus princpios de interesse para a

    psicanlise. O que chama a ateno no framework que a psicanlise convidada a ter

    um papel ativo, enquanto teoria psicolgica, na construo do que alguns neurocientistas

    cognitivos aspiram que venha a ser um novo modelo na investigao da mente. Kandel

    tornou-se um dos autores mais comentados quando o assunto interface psicanlise-

    neurocincia ao dizer que ... a psicanlise ainda representa o mais coerente e satisfatrio

    ponto de vista sobre a mente (KANDEL, 1999/2005, p. 64) e, ao mesmo tempo,

    sugerindo para esta o desenvolvimento de uma relao estreita com a biologia em

    geral e a neurocincia em particular(p. 64).Antes de apresentar as diretrizes do framework e sua relao com a

    psicanlise, vamos contextualizar o surgimento, no ltimo quarto do sculo 20, do que,

    hoje em dia, uma corrente da neurocincia cognitiva reivindica como uma nova biologia

    da mente.

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    1.2. Uma nova biologia da mente

    A dcada de 1990, considerada no meio acadmico como a dcada do

    crebro, assistiu a uma avalanche de descobertas em neurofisiologia, neuroanatomia e

    indcios promissores em gentica molecular cujo marco data do Projeto Genoma

    Humano (1990-2003) -, alm da progressiva melhora na tecnologia de neuroimagem,

    permitindo a construo de modelos mais dinmicos sobre a atividade cerebral. Tudo isso

    confere renovado flego s pesquisas sobre o crebro, de modo que no final dos anos de

    1990 surge, no campo das neurocincias, o interesse por uma viso mais global da mente,

    bem como a busca por uma proximidade com a psicologia cognitiva e com a psicanlise

    em particular, alm de uma reaproximao entre a neurologia e a psiquiatria. Configura-se

    o interesse por uma teoria geral que complementasse as novas descobertas empricas, j

    que o modelo farmacolgico falhara justamente nesse aspecto. Esse modelo surgiu na

    dcada de 50 com a descoberta da clorpromazina e da imipramina, drogas que

    revolucionaram o tratamento dos transtornos mentais graves; e embora tenha representado

    o primeiro grande impulso da neurobiologia moderna na psiquiatria e at reabastecido a

    viso biolgica da mente em declnio naquele perodo pela expanso do pensamento

    psicanaltico nos EUA -, o modelo farmacolgico mostrou-se simplista, pois a etiologia da

    doena era pensada a partir do efeito da droga8.

    Comea-se, ento, a discutir os benefcios de um alinhamento de interesses

    entre as neurocincias e o campo da investigao psicolgica; o que est ligado ao prprio

    contexto da mudana de enfoque nas cincias da cognio, indo de uma perspectiva

    cognitivista para uma viso dinmica e motivacional. Richard Simanke (2006) aponta que

    comea a haver um reconhecimento nas cincias da cognio, nas neurocincias e nafilosofia da mente de que o mental no se restringe cognio. O estudo desta, em seus

    aspectos inconscientes e conscientes, fica distorcido sem a referncia s emoes. Os

    trabalhos de neurocientistas, como Joseph LeDoux, Antnio Damsio, Howard Shevrin,

    8 Steven Pliszka (2004) coloca que por que os antipsicticos bloqueavam a dopamina no crebro, ospesquisadores formularam uma teoria da dopamina para a esquizofrenia. Se os antidepressivos aumentavam aquantidade de serotonina e norepinefrina (pelo menos agudamente), ento isso sugeria que nveis baixos dessesneurotransmissores causavam a depresso (p. 15). Pliszka acredita que a neurocincia tenha condies de

    ultrapassar esses modelos mais lineares, atravs do desenvolvimento das tcnicas de neuroimagem e da genticamolecular, e sugere que tambm devemos integrar dados das cincias psicolgicas aos nossos modelos(ibid., 2004, p. 16). Sua fala exprime um discurso que comeou a ganhar contornos nas neurocincias naquele

    perodo.

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    Rodolfo Llins e o prprio Kandel foram responsveis pela gradativa reinsero da

    problemtica dos afetos nos estudos da neurobiologia: no comeo da dcada de 80, o

    estudo do medo e de outras emoes era uma pesquisa contracorrente; a neurocincia

    estava muito mais entrelaada com a idia de estudar a cognio superior do que a

    emoo (LEDOUX, 1983/2005, p. 114). A partir de ento, temas como emoo,

    conscincia,self, personalidade e o aspecto qualitativo da experincia subjetiva, os quais

    haviam permanecido marginais s cincias da mente na maior parte do sculo 20,

    ganharam visibilidade na agenda das neurocincias. Neste sentido, encaminha-se uma

    tentativa de por fim ao isolamento histrico que marcou aquelas reas afins. A

    neurocincia cognitiva estaria, em parte, realinhando-se com uma tendncia do final do

    sculo 19, onde Freud e William James, por exemplo, j tratavam estas questes num

    projeto filosfico e cientfico igualmente abrangente.

    Na Europa, houve um movimento correspondente. As discusses pioneiras

    conduzidas por Jean-Pierre Changeux estimularam a interlocuo entre a cincia e as

    questes do campo filosfico, protagonizadas atravs de seus clebres dilogos com o

    psicanalista Jacques-Allain Miller e depois com Paul Ricoeur9.Monah Winograd (2004)10

    assinala que o francs Andr Comte-Sponville pode ser inserido na mesma linha de

    mudanas. A autora levanta outros fatores que conduziram ao enfoque motivacional nas

    neurocincias, como a ascenso da viso conexionista nas cincias cognitivas e a melhor

    resoluo computacional para explorao do sistema nervoso. Alm disso, novas

    descobertas cientficas - como a plasticidade neural e a regulao da expresso gentica

    por fatores ambientais, que ainda abordaremos nesse trabalho, contriburam para o

    questionamento do antagonismo entre as explicaes biolgicas e as explicaes

    psicolgicas sobre o comportamento.Na linha do estudo dos processos dinamicamente motivados, uma nova

    literatura ganha corpo em neurocincia cognitiva, em neuropsicologia e nas cincias

    cognitivas em geral. Destacam-se tpicos de convergncia, como inconsciente cognitivo,

    neurobiologia da conscincia, substrato corporal das emoes, psicoterapia e mudanas

    estruturais no crebro. Apenas como exemplo, Damsio publica O erro de Descartes

    9Essas discusses deram origem, respectivamente, ao Lhomme neuronal (1983/1997) e La nature et la rgle:

    ce qui nous fait penser (1998/2001). Este em co-autoria com Ricoeur.10WINOGRAD, Monah. Matria pensante - a fertilidade do encontro entre psicanlise e neurocincia. ArquivosBrasileiros de Psicologia, Braslia, DF, 56, n.1, 2004. Disponvel em:. Acesso em: 28-02-2008.

    http://seer.psicologia.ufrj.br/seer/lab19/ojs/viewarticle.php?id=32http://seer.psicologia.ufrj.br/seer/lab19/ojs/viewarticle.php?id=32
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    (1995) e o Mistrio da Conscincia (2000), ambos defendendo a importncia das

    representaes corporais para a formao dos estados emocionais e da auto-conscincia.

    Joseph LeDoux publica The emotional brain (1996), Gerald M. Edelman (1993) traz

    para a neurocincia um modelo da mente desenvolvido no campo da imunologia, os

    trabalhos do psiclogo Howard Shevrin ganham mais relevo nesse novo cenrio11. Ainda,

    grupos comeam a se organizar institucionalmente, como o Grupo de Estudos em

    Neurocincias e Psicanlise, fundado em 1994, no Instituto de Psicanlise de Nova York,

    que se tornar a Sociedade Internacional de Neuro-psicanlise em 2000.

    Kandel (2005) retoma a verso integral de seus diversos trabalhos,

    publicados desde 1979 at 2001, dando corpo ao que ele visualiza como uma nova

    biologia da mente no seu livro Psychiatry, psychoanalysis and the new biology of mind

    (2005), uma coletnea de artigos que foram publicados originalmente em datas distintas12.

    Nesta obra, ele descreve como se deu o impacto da biologia molecular na neurobiologia,

    trazendo para um primeiro plano o estudo dos canais inicos de sdio, clcio e potssio

    (KANDEL, 1983b/2005)13. Nestes artigos, o autor tambm aborda a eficcia da

    psicoterapia atravs de sua ao morfolgica nas sinapses, e demonstra a

    operacionalizao de modelos experimentais da ansiedade e da aprendizagem, atravs de

    procedimentos desenvolvidos na pesquisa psicolgica, como habituao e sensibilizao,

    para mostrar o modo como a psicologia e a psiquiatria podem encaminhar questes

    neurobiologia. O fato mais importante que, nesses trabalhos, Kandel discute questes de

    grande complexidade que extrapolam o campo cientfico em direo filosofia da cincia,

    como a sua projeo de que a biologia fornecer o impulso para um novo humanismo no

    sculo 21, principalmente pelos avanos da biologia molecular e da gentica que, sendo

    assimilados pelas cincias cerebrais, podem trazer novos insightspara a compreenso doindivduo.

    11Howard Shevrin demonstrara, desde o final da dcada de 1960, que estmulos visuais subliminares podiam sercaptados pelo crebro, mesmo sem serem percebidos conscientemente, sinalizando as bases experimentais para oconceito de inconsciente.12Para as citaes, usaremos, por exemplo, 1983/2005, 1999/2005, e assim por diante.13 Na viso de Eric Nestler (2005), comentando esse artigo de 1983, Kandel anuncia um ramo que s seriadesenvolvido nas prximas dcadas, revelando a natureza inovadora de seu trabalho. Kandel foi reconhecido

    pela pesquisa sobre as bases moleculares da memria e da aprendizagem, sendo um dos contemplados com oPrmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 2000.

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    Kandel pode ser lido como um visionrio ao esperar que a psicoterapia do

    futuro seja monitorada pela neuroimagem funcional14 e que o cuidado mdico e

    psicolgico com o outro seja personalizado com base na singularidade do cdigo

    gentico. Contudo, boa parte da comunidade neurocientfica compartilha da aposta de que

    este ser o sculo da mente para a biologia. Parafraseando Franois Jacob (1998), Kandel

    coloca que:

    Tem ficado claro que o ltimo grande mistrio que confronta a biologia anatureza da mente humana. Este o ltimo grande desafio, no s para abiologia, mas para toda a cincia. Por esta razo que muitos de nsacreditamos que a biologia da mente ser para o sculo XXI o que a

    biologia do gene foi para o sculo XX. (KANDEL, 2001/2005, p. 379)

    Enfim, a nova biologiadiscutida nos trabalhos de Kandel prope diferentes

    nveis de integrao de saberes, isto , entre as investigaes biolgicas e as psicolgicas

    sobre a relao entre comportamento, cognio e a atividade cerebral, bem como tambm

    dentro das ditas cincias positivas, prescrevendo, por exemplo, uma fuso entre a

    neurobiologia e a gentica molecular para chegar na resoluo celular dos fenmenos

    cerebrais. Nessa nova biologia da mente, a neurobiologia molecular vem representar apromessa de elaborar descries sobre a vida mental que sejam mais coerentes do ponto

    de vista biolgico (KANDEL, 1983/2005, p. 197) e, quem sabe, promover um novo

    conceito de mente ou, pelo menos, alguns consensos sobre a investigao deste problema.

    Em termos prticos, a integrao se faz entre o campo da pesquisa emprica

    em neurocincia e os temas tradicionais do campo da psicologia, como a memria, a

    aprendizagem, sistemas motivacionais e, sobretudo, conceitos freudianos, como

    inconsciente, pr-consciente, ego, represso, o papel da experincia precoce na

    14Tecnologias como Tomografia por Emisso de Psitrons (PET) e Ressonncia Magntica Funcional (fMRI).Na primeira, monitora-se os istopos radioativos de oxignio que so previamente injetados no sangue, nveiselevados indicam fluxo sanguneo aumentado. Na ressonncia, um potente pulso eletromagntico faz com que ostomos alinhem-se numa certa direo. Dependendo da forma e do tempo em que os tomos so excitados, asimagens variam de acordo com as propriedades do tecido cerebral. Segundo Pereira Jr. (2003), tais mtodos

    permitem investigar indivduos saudveis, em contraposio ao uso de animais e ao estudo do efeito de lesesgraves em humanos, alm do relato lingustico do processamento cognitivo.A fMRI mais promissora paraestudar os efeitos da psicoterapia no crebro, porque no envolve substncia radioativa e possibilitaacompanhamentos longitudinais, embora ainda tenha certas limitaes quanto comunicao com os sujeitosdurante exame (BEUTEL et al.2003, p. 778).

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    psicopatologia, entre outros. Esse programa interdisciplinar esfora-se para gerar modelos

    empricos para esses problemas e j conta com alguns resultados parciais.

    1.3 Resultados preliminares da pesquisa integrada: viso emergente sobre a

    plasticidade nervosa

    Algumas formas de aprendizagem e de ansiedade so mais acessveis s

    anlises experimentais do que a esquizofrenia, a conscincia e o pensamento, por

    exemplo. No incio dos anos 80, verificou-se que mesmo comportamentos simples

    (aprendidos) apresentavam variao da fora das conexes sinpticas em modelos

    animais. Na continuidade destas pesquisas, novos procedimentos experimentais

    permitiram indagar sobre os resultados da interveno psicoterpica tambm em nvel de

    sistema nervoso, e o mais surpreendente foi a convergncia de resultados, qual seja, da

    concluso de que a relao afetiva e dialgica entre duas pessoas repercute no mesmo

    nvel que o da ao farmacolgica (KANDEL, 1979/2005, p. 06) ou ainda, como coloca

    Beutel et al.(2003): tambm possvel que tratamentos farmacolgicos e psicoterpicos,

    quando efetivos, atinjam circuitos semelhantes via mecanismos diferentes (p. 789).

    Kandel trabalhou com a lesma-marinha (Aplysia californica) a fim de

    investigar se algumas formas de aprendizagem surtiam efeitos na formao da memria

    no mbito das sinapses15.Foi possvel montar um modelo animal para a aprendizagem,

    testando o dado observacional sugerido nos anos 50 pelo psiclogo canadense Donald

    Hebb, de que a repetio de uma experincia torna a sua consecuo mais fcil, dado que

    o aprendizado faria variar a fora da conexo neuronal. Quando se borrifa gua, a Aplysiaencolhe-se no manto devido ao seu reflexo de proteo das guelras, mas quando este

    estmulo aplicado vrias vezes ela deixa de consider-lo por completo (habituao),

    porque aprendeu a no o associar a algo nocivo. Depois de uma nica sesso com 10

    estmulos, houve uma diminuio do comportamento de encolher-se por um curto perodo

    (variando de alguns minutos at horas): entretanto, depois de 4 sesses repetidas de

    treinamento em dias consecutivos, a memria para a habituao foi prolongada,

    15A lesma-marinha tem um sistema nervoso muito simples, com pequena quantidade de neurnios, os maioresdo reino animal, o que facilita sua observao. As associaes simples desses animais sinalizam o aprendizadode relaes cognitivas surpreendentemente complexas, segundo Kandel (2007).

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    persistindo por mais de 3 semanas (KANDEL, 1979/2005, p. 18). Com isso, deduziu-se

    que a habituao de curto-prazo (nica sesso) leva a uma queda transitria na fora

    sinptica, enquanto que a habituao de longo-prazo produz uma profunda e prolongada

    inativao das conexes funcionais pr-existentes. Esses dados forneceram evidncias

    de que a mudana de longo-prazo na fora sinptica pode subsidiar uma instncia

    especfica de memria de longo-prazo (1979/2005, p. 19, grifos nossos). Concluiu-se,

    ento, que o padro de estmulos (se breve ou persistente) pode levar a uma plasticidade

    funcional das sinapses e, no caso da habituao, as conexes neuronais tornaram-se

    funcionalmente inativas ou mais fracas, porque uma menor quantidade de

    neurotransmissor foi liberada nos neurnios motores.

    Tambm foi borrifado gua junto com choque doloroso, produzindo o

    mecanismo oposto (sensibilizao), de modo que o animal encolhia-se ao menor toque, ou

    seja, havendo um aumento do reflexo de retrao das guelras, o qual ficou mais forte e

    tambm foi mantido por semanas devido ao padro estimulatrio persistente. Nesse caso,

    foi observado, no mesmo neurnio, uma maior liberao de neurotransmissor, restaurando

    o comportamento anteriormente extinto, bem como a efetividade das sinapses (KANDEL,

    1979/2005, p. 19). Essa descoberta de que a consolidao de novas memrias modifica o

    sistema nervoso foi importante para abrir caminho para a rediscusso da interao entre

    genes e ambiente e mostrar o papel da sinalizao sinptica na neurognese. Kandel

    tornou-se pioneiro no estudo da plasticidade nervosa, proporcionando novos dados para se

    pensar a relao entre os fatores herdados e os fatores aprendidos, bem como a relao

    entre os processos biolgicos e os processos psicossociais na gerao do comportamento.

    O estudo com a lesma-marinha mostrou que vias neuronais complexas e geneticamente

    determinadas poderiam ser suspensas no apenas por alguma doena, mas tambm pelaexperincia; e elas tambm podem ser restauradas pela experincia (KANDEL,

    1979/2005, p. 21). Estes fatos apontaram para a possibilidade de extrair provas empricas

    da ao psicoterpica na atividade cerebral, j que a psicoterapia tambm uma forma de

    aprendizagem duradoura, como na correo de falsas crenas, por exemplo, e na aquisio

    de novas estruturas cognitivas, ampliando os padres de interao afetiva. At ento, os

    benefcios da psicoterapia eram discutidos exclusivamente no mbito do comportamento,

    na dimenso da experincia qualitativa e singular dos agentes envolvidos: psicoterapeuta e

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    cliente. E, como se sabe, o efeito das intervenes psicolgicas era bastante questionado

    at ento pelas abordagens empricas e pelas pesquisas quantitativas.

    Em outro estudo, Kandel aponta que as alteraes comportamentais da

    Aplysia,por inferncia, assemelham-se ansiedade em animais superiores; de modo que a

    modelao laboratorial pelo condicionamento aversivo (pavloviano) e pela sensibilizao

    de longa-durao podem tambm fornecer modelos para pensar a ansiedade antecipatria

    e a ansiedade crnica, respectivamente (KANDEL, 1983a/2005). Estas formas de

    ansiedade so, ao menos em parte, resultantes da aprendizagem e esta considerada por

    Kandel como o modelo para a compreenso do modo como a experincia age no

    sistema nervoso (1979/2005, p. 15, grifos nossos), como em seus estudos acima

    descritos.

    Em 1979, Kandel afirmara que a aprendizagem no provoca um rearranjo

    anatmico drstico no sistema nervoso, porque nenhuma clula ou sinapse criada ou

    destruda. Todavia, os avanos em gentica e biologia molecular, como a descoberta do

    segundo mensageiro (RNA) e a queda do dogma central sobre o fluxo de informao

    entre DNA, RNA e sntese protica, ampliaram o conhecimento sobre como o ambiente

    age na transmisso neural16. O aprimoramento dos estudos sobre a memria revelou que a

    plasticidade de curta-durao implica na modificao das protenas e das conexes

    sinpticas j existentes, enquanto que as mudanas sinpticas de longa-durao

    envolvem ativao da expresso dos genes, novas snteses proticas e a formao de

    novas conexes(KANDEL, 2000/2005, p. 364).

    2. O dilogo inicial com algumas antinomias

    A maneira pela qual essas mudanas morfolgicas ocorrem no clara, mas

    a resposta fica mais prxima se levado em conta o papel da expresso gentica

    (KANDEL, 1998/2005, 1983a/2005). As propriedades de um neurnio seriam

    16De acordo com este dogma, proposto por Francis Crick e James Watson, descobridores da estrutura do DNA,

    pensava-se que o sentido da informao para a codificao de protenas era sempre do DNA para a molculaintermediria (RNA mensageiro), que faria a traduo para protenas. A descoberta dos retrovrus, entretanto,mostrou que o DNA tambm pode ser sintetizado a partir de um molde de RNA e, desse modo, o diagrama seriaDNA RNA Protena (AMARAL & NAKAYA, 2006).

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    determinadas tanto pelo seu programa gentico inerente, como pelas mudanas na

    expresso gentica: em outras palavras, a plasticidade de um neurnio reflete no s

    propriedades celulares, mas uma conseqncia de suas relaes (LEEMAN &

    LEEMAN, 2004, p. 654). preciso entender, primeiro, a dupla funo dos genes:

    transmisso e transcrio. Os genes so moldes (template) estveis para fazerem

    cpias de si mesmos, funo exercida por cada gene, em cada clula do corpo. Essa a

    transmissogentica - uma funo que est aqum de qualquer experincia individual ou

    social -, sendo regulada apenas por mutaes raras e aleatrias. Contudo, a informao do

    DNA no traduzida diretamente em uma protena; a seqncia para a codificao desta

    dada pelo RNA mensageiro (RNAm), atravs de um mecanismo denominado transcrio.

    A molcula de RNAm carrega a informao da seqncia de aminocidos necessrios

    para construir a protena; e se um gene contiver mutao, esta ser transcrita pelo

    mensageiro, originando protenas alteradas. Todavia, apenas uma parte dos genes ser

    transcrita (10%-20%), enquanto os demais so suprimidos. A transcrio, portanto, o

    que determina quais genes tero ou no expresso, confeccionando, assim, o fentipo das

    clulas (se sero hepticas ou nervosas, por exemplo) e a transcrio tambm caracteriza o

    importante fator da expresso gentica, que afetada por varveis, como hormnios,

    desnutrio ou outras protenas: ao passo que a funo template (a habilidade do

    organismo para replicar a seqncia do gene) no afetada pela experincia ambiental, a

    transcrio, por sua vez, altamente regulada e esta responde a fatores ambientais

    (KANDEL, 1998/2005, p. 42, grifos nossos). Essa descoberta do papel do RNAm

    ameniza a concepo determinstica sobre a gentica, a qual, freqentemente, deriva de

    uma compreenso errnea do modo de ao dos genes (PLISZKA, 2004; KANDEL,

    1998/2005). Os estudos em neurobiologia celular tm mostrado que os transtornosmentais so poligenticos; os genes e o ambiente interagem, e este tambm se mostra

    capaz de produzir mudanas duradouras no crebro.

    Chega-se, por exemplo, a supor uma diferena em termos de mecanismos

    genticos na base da gravidade dos transtornos mentais. Grosso modo, as psicoses

    poderiam envolver alterao na estrutura especfica dos genes, enquanto certos

    transtornos neurticos, como a ansiedade crnica, surgiriam de alteraes naregulao da

    expresso gentica,por isso esto suscetveis aos efeitos da aprendizagem e respondem psicoterapia, ao contrrio da psicose. Psicoses e neuroses implicam em alteraes na

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    funo sinptica, porm uma por transmisso gentica e a outra por modulao

    ambiental(KANDEL, 1983a/2005)17.

    Assim, em suma, Kandel e colegas afirmam que certos padres de

    aprendizagem tambm provocam mudanas estruturais no sistema nervoso: as memrias

    de curto-prazo modificam sinapses existentes e as de longo-prazo envolvem a criao de

    novas sinapses, ou seja, nos processos de longa-durao a resposta da sinapse no

    determinada simplesmente pela sua histria de atividade (como na plasticidade de curta-

    durao), mas tambm pela histria de ativao transcricional no ncleo (KANDEL,

    2000/2005, p. 364).

    Desenvolvimentos neurocientficos recentes, impulsionados pela viso

    emergente sobre a plasticidade cerebral, oferecem alternativas para reduzir ogap histrico

    entre as abordagens psicodinmicas e as biolgicas em psiquiatria (BEUTEL et al.2003,

    p. 794). Divises aparentemente insuperveis esto podendo ser revisadas, como entre

    natureza e cultura, leso biolgica e leso funcional, viso organicista e viso

    psicossocial, transtorno orgnico e transtorno psquico, medicamento e psicoterapia.

    importante ressaltar que esses estudos moleculares sobre a funo nervosa, dos anos 80 e

    90, apontaram que tanto os processos ambientais como os genticos produzem conexes

    cerebrais, contestando aquela to difundida concepo de que os determinantes sociais e

    os determinantes biolgicos atuam em nveis separados da mente, o que fundamentou at

    recentemente a tradicional classificao entre transtornos orgnicos e transtornos

    funcionais. Mesmo aps a reviso conceitual do DSM-IV, que exclui o critrio da

    presena ou ausncia do dano cerebral, essa diviso continua impregnando as discusses

    no campo psicolgico e psiquitrico, pois to forte a tenso entre a psiquiatria biolgica

    e a psiquiatria psicodinmica

    18

    .Tambm vale destacar que, com estas descobertas recentes no campo das

    neurocincias, ficou demarcado um caminho para investigar o potencial da experincia na

    17Essa terminologia foi abolida do DSM-IV, mas era vigente poca da publicao do artigo, em 1983.18Diga-se de passagem, que esse critrio adotado pela psiquiatria, nos anos 60 e 70, j era obsoleto na medidaem que se originou na neuropatologia dos sculos 18 e 19, cuja clnica mdica dispunha de um nico granderecurso para o diagnstico dos transtornos mentais: o mtodo clnico-patolgico ou anatomopatolgico. Fazia-seuma correlao entre os sintomas clnicos (perda de certas funes) e as leses neurolgicas, as quais s eramidentificadas no exame de autpsia (KAPLAN-SOLMS & SOLMS, 2001). Com a prtica clnica, certassndromes eram relacionadas a certas representaes anatmicas. Como ficou consolidado na psiquiatria do

    sculo 20, as sndromes em que se encontravam evidncias anatmicas eram classificadas como orgnicas(demncias, mal de Alzheimer) e as que faltavam esse aspecto eram tidas como funcionais (depresses,transtornos de personalidade).

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    morfologia nervosa, qual seja, atravs da fora sinptica e da regulao da expresso

    gentica: a aprendizagem normal, o aprendizado da ansiedade ou seu no-aprendizado

    atravs da psicoterapia podem envolver mudanas estruturais e funcionais de longa-

    durao no crebro, as quais resultam da alterao da expresso gentica (KANDEL,

    1983a/2005, p. 150). Ao transpor esses resultados para o campo da interveno

    psicolgica, plausvel concluir que a psicoterapia atua fisicamente no crebro, assim

    como a farmacoterapia no nvel dos neurnios, clulas gliais e suas sinapses, contestando

    tambm a viso ortodoxa sobre tratamento medicamentoso e tratamento psicolgico.

    Enfim, a partir dos estudos integrados entre neurobiologia, gentica molecular e

    psicologia cognitiva surge a possibilidade de um novo olhar para a relao entre os

    aspectos biolgicos e os aspectos psicossociais da mente, bem como um novo nvel de

    anlise o da resoluo celular , cujos recursos comeam a ficar disponveis e podem ser

    integrados ao mbito da anlise comportamental e da experincia subjetiva.

    Ao longo dos anos de 1980 e 1990, a palavra de ordem parecia ser

    interdisciplinaridade entre as pesquisas psicolgicas e as pesquisas neurobiolgicas.

    Neste sentido, identificamos duas linhas de investigao que ganharam fora a partitr

    desse perodo: uma de pesquisa terico-experimental a exemplo dos modelos

    laboratoriais de Kandel, dos estudos sobre o medo em LeDoux e da formulao do self

    neural em Damsio -, dialogando predominantemente com a psicologia cognitiva e com a

    clnica no-psicanaltica. A outra linha de pesquisa, representada pela neuro-psicanlise,

    predominantemente terico-clnica, porm em permanente interlocuo com a pesquisa

    experimental e com os estudos em neuroimagem, elaborando seu modelo interpretativo

    principalmente atravs da psicanlise e da neuropsicologia.

    3.Novos parmetros para a psiquiatria e para a psicanlise

    Atravs desse percurso terico-investigativo que se desenvolve e estende-se

    pelas dcadas de 80 e 90, foram estabelecidas algumas diretrizes para um novo quadro

    conceitual nas cincias da mente: um framework que inclui tanto determinantes sociais

    como biolgicos (KANDEL, 1998/2005, p. 54). Em A new intellectual framework for

    psychiatry (1998), Kandel sugere que a psiquiatria assimile esses novos parmetros

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    conceituais em vista de se atualizar com o emergente cenrio neurobiolgico e desvencilhar-

    se da estagnao intelectual que herdara da influncia do pensamento psicanaltico nos

    ltimos 50 anos. Esse autor coloca, exaustivamente, a necessidade de reviso da formao

    psiquitrica luz dos atuais conhecimentos neurocientficos, sugerindo, para o residente de

    psiquiatria e para todos os clnicos em sade mental, um novo currculo que levasse em

    conta que: 1) Todos os processos mentais so neurais; 2) Genes so determinantes

    importantes do padro de conexes neurais; 3) Experincia altera a expresso dos genes; 4)

    Aprendizagem muda conexes neurais e 5) Psicoterapia tambm altera a expresso gentica.

    Esses princpios so deduzidos a partir daquelas descobertas apuradas nas duas ltimas

    dcadas do sculo passado, esto bastante interligados e alguns deles soaram provocativos

    em 1998. Note-se que a noo central de que a experincia gera mudanas fsicas na

    conduo nervosa e isso no antagnico com a expresso gentica, pelo contrrio.

    3.1 Princpios do framework para as neurocincias

    3.1.1Todos os processos mentais so neurais

    De acordo com esse princpio, todos os processos mentais, desde a

    locomoo at as aes cognitivas complexas, conscientes e inconscientes, como pensar e

    falar, em ltima instncia, tm seu fundamento nas operaes cerebrais: a tnica dessa

    viso que o que freqentemente chamamos de mente uma extenso das funes

    executadas pelo crebro... (KANDEL, 1998/2005, p. 39). Embora, hoje em dia, esta

    premissa seja consensual para as neurocincias, a questo que permanece sobre os

    termos dessa relao e sobre o fato de que ela fica menos bvia e torna-se controversaquando generalizada para todas as esferas do comportamento, inclusive entre grupos

    (KANDEL, 1998/2005, p. 40). Visto desse modo, toda sociologia deve, em algum grau,

    ser sociobiologia, pois os processos sociais tambm refletem funes biolgicas. Como

    veremos no terceiro captulo, esse reducionismo biolgico no implica que a biologia se

    torne a nica explicao possvel para os fenmenos de grupo, nem sequer a explicao

    biolgica a mais adequada, mas caracteriza to somente um patamar bsico de anlise.

    Embora hoje se conheam algumas propriedades da resoluo subatmica, a fsica departculas no se tornou o nvel mais adequado para compreenso da maior parte dos

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    problemas biolgicos (KANDEL, 1998/2005). Ento, a questo passa primeiro pela

    escolha dos patamares de anlise; por outro lado, no difcil perceber que toda uma

    problemtica filosfica instala-se a partir do princpio de que amente reflete o trabalho do

    crebro o mesmo que um continnum entre mente e crebro -, extrapolando o prprio

    horizonte da cincia, para uma discusso sobre a concepo da relao crebro-mente.

    At a dcada de 70, as doenas eram classificadas como orgnicas ou

    funcionais o primeiro nvel tinha base emprica clara e o outro no -, porque os

    determinantes sociais e biolgicos eram interpretados como sendo excludentes. Agora,

    essa distino parece tornar-se artificial em face dos indcios de que:

    a experincia sensria, a privao sensorial e a aprendizagem podemenfraquecer as conexes sinpticas em uma circunstncia ou fortalec-lasem outras (...). A base do novo quadro de referncia para a psiquiatria que todos os processos mentais so biolgicos e, portanto, umaalterao naqueles processos necessariamente orgnica. (KANDEL,1998/2005, p. 47, grifos nossos)

    Esse princpio prescreve que a ausncia de mudanas estruturais no

    descarta a ocorrncia de outras mudanas biolgicas mais sutis, no detectveis pelas

    atuais ferramentas diagnsticas. A investigao da natureza biolgica dos processosmentais requer uma metodologia mais sofisticada, acredita-se que as tcnicas atuais no-

    invasivas aproximam-se do que ser necessrio para a compreenso dos mecanismos

    fsicos dos transtornos mentais e elas j esto sendo utilizadas no estudo da esquizofrenia

    e do TOC, por exemplo. Assim, Kandel refere que mesmo os distrbios mentais que so

    fortemente determinados pelo social possuem componentes biolgicos, j que a atividade

    cerebral est sendo modificada de alguma forma.

    De acordo com essa primeira premissa, no correto perguntar se um

    evento orgnico ou funcional, mas sim em qual grau o processo determinado pela

    gentica ou pelo desenvolvimento psicossocial, em qual grau este social ou ambientale,

    ao mesmo tempo, qual o papel de cada um, j que condies ambientais interagem com

    condies genticas19.Assim, o horizonte que se abre a partir do princpio de que o mental

    neural de uma realidade mais complexa e duplamente transitvel: a questo como o

    social modula a estrutura biolgica e como os processos neurais geram o dado mental.

    19 A propsito da relao entre nutrio e estatura: em momentos crticos do desenvolvimento infantil, adesnutrio (ou a exposio a agentes txicos) provoca perda no crescimento mesmo em indivduos que tm uma

    programao gentica para serem altos.

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    Esse ltimo aspecto permanece como o grande problema epistemolgico

    (ou o limite epistemolgico, de acordo com algumas verses) para o desenvolvimento

    satisfatrio da relao entre as formulaes neurobiolgicas e psquicas. Nas cincias

    cognitivas e nas neurocincias, essa dificuldade tem sido formulada atravs do argumento

    da explanatory gap20 (lacuna explicativa), ou seja, em um programa de naturalizao do

    mental, tal como empreendido pela neurocincia cognitiva, por mais que se conheam os

    substratos neurais do processamento cognitivo isto , ao identificar objetivamente a

    atividade eltrica de uma regio cerebral envolvida no processamento da cor, por exemplo

    -, no se tem clareza sobre como ocorre a passagem para o dado fenomnico, ou seja, para

    a dimenso da experincia subjetiva, qual seja, como surge o sentimento em relao cor

    vermelha). Falta algo sobre o nexo entre as propriedades materiais do crebro e as

    propriedades qualitativas do mental, ou seja, como explicar satisfatoriamente o

    surgimento da qualidade na experincia sensorial. Alguns autores, como David Chalmers,

    colocam que os qualias constituiriam o problema difcil da conscincia, por isso

    propem modelos de tratamento da informao exclusivamente cognitivos, por

    acreditarem que os limites impostos pela qualia nunca sero transpostos (CRICK &

    KOCH, 2000, p. 3). Para outros neurocientistas, como Damsio, um programa

    interdisciplinar empenhado em estabelecer parmetros cientficos para a psicologia ficaria

    incompleto caso deixasse de fora o aspecto fenomenolgico da experincia consciente,

    como fizeram as cincias cognitivas ao longo de quase todo sculo 20. Neste sentido, os

    autores que representam esta corrente de pensamento apostam que o problema dos

    qualias pode ser abordado conceitualmente e experimentalmente.

    3.1.2 Os genes so importantes determinantes do padro de interconexes entre os

    neurnios

    Kandel discute que importante ter claro qual o papel do fator gentico,

    pois uma das razes para que as explicaes biolgicas sejam negativamente recebidas

    pela viso humanista que a gentica mal compreendida, e alguns movimentos

    20 O termo foi criado por Joseph Levine no artigo Materialism and qualia: the expalnatory gap (1983),publicado na Pacific Philosophical Quartely 64 (p. 354-361), mas essa dificuldade j fora apontada, porexemplo, por Thomas Nagel (1970) e John Searle sobre o estudo cientfico da conscincia.

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    pseudocientficos contriburam para isso. A eugenia e o darwinismo social so exemplos

    infelizes de como os princpios cientficos podem ser empregados para fins polticos e

    ideolgicos, mesmo entrando em contradio com a prpria lgica cientfica21.

    Atualmente, os crticos da psiquiatria biolgica retomam tais conseqncias socialmente

    danosas como argumento contrrio nfase nos estudos dos mecanismos cerebrais e

    genticos, entretanto, esquecendo que essas distores extrapolaram o campo dominante

    da cincia para fins de controle social e de manipulao.

    Boa parte da antipatia para com a gentica prende-se a uma concepo

    errnea que, freqentemente, associa-a a um determinismo unidirecional e fatalista

    (PLISZKA, 2004; KANDEL, 1998/2005). Todavia, como dissemos ao discutir a nova

    biologia, os genes tm duas funes e uma delas uma janela para a influncia de fatores

    sociais. A transmisso s afetada por mutaes, enquanto que a transcrio

    determina quais genes sero ou no expressos, e esse segundo processo regulado por

    fatores ambientais. Essa descoberta sobre o modo de atuao dos genes indica que os

    processos biolgicos esto longe de serem estritamente determinados pelos genes, nem a

    funo destes apenas a transmisso dos caracteres de uma gerao para outra. De acordo

    com o modo de expresso gentica e as combinaes entre os genes, direciona-se a

    produo de protenas, o que importante para um ou outro passo no desenvolvimento

    dos circuitos neurais que subsidiam o comportamento (KANDEL, 1998/2005). O

    comportamento jamais est relacionado a um nico gene, mas sim a uma rede de circuitos

    neurais.

    3.1.3A experincia altera a expresso dos genesVimos que as principais evidncias empricas para a noo de que o

    ambiente modifica os genes surgiram dos modelos sobre memria e aprendizagem na

    Aplysia californica(KANDEL, 1979/2005,1983a/2005, 2000/2005). Foi constatado que a

    distribuio das conexes funcionais entre as sinapses (de um mesmo neurnio) desse

    21Pliszka (2004) aponta que esses movimentos no eram sustentveis nem sequer pela cincia de sua poca; foio abandono do mtodo cientfico que permitiu que aquelas ideologias se disseminassem. As atrocidades

    cometidas em nome da eugenia, como a erradicao de judeus e a esterilizao em massa de doentes edeficientes mentais foram produtos de uma poltica deliberada para a qual a pseudocincia da eugenia no foium pr-requisito necessrio (p. 12).

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    animal pode ser expandida ou retrada, dependendo do padro de estmulos a que ele

    submetido. As mudanas de curta durao influem apenas temporariamente na

    funcionalidade das sinapses, enquanto que somente os processos de longa durao

    formam novas memrias, uma vez que mobilizam o ncleo celular e a produo de novas

    protenas e novas sinapses (KANDEL, 2000/2005, p. 364). Sendo assim, a experincia,

    subentendida como um tipo de mudana de longo prazo, promove a plasticidade nervosa

    atravs da regulao da expresso gentica que, conseqentemente, repercute na fora

    sinptica. Por extenso, o mesmo pode ser esperado dos processos aprendidos e da

    psicoterapia, provedores de mudanas permanentes por excelncia, e que constituem os

    dois ltimos princpios doframework.

    3.1.4Aaprendizagem muda conexes neurais

    Demais evidncias objetivas de que as mudanas de longo prazo (memrias

    de longo prazo) modificam a prpria anatomia cerebral, bem como a expresso gentica e

    tambm podem ser encontradas em estudos sobre a representao neurolgica de partes do

    corpo em indivduos adultos, alm do mais os mapas corticais para as sensaes so

    dinmicos, mesmo em animais maduros22. Como cada pessoa criada num ambiente

    diferente, exposta a diferentes combinaes de estmulos e junto com uma combinao

    gentica singular, pode-se dizer que cada crebro modificado de um modo nico ao

    longo da vida e isso delineia as bases biolgicas da individualidade, segundo Kandel

    (1998/2005).

    Kandel relata o estudo de Edward Taub e colegas que escanearam o crebro

    de msicos instrumentistas de corda. Os resultados apontaram diferenas com relao aocrtex do grupo controle (no msicos), isto , a representao cortical dos dedos da mo

    esquerda (aquela que faz movimentos mais diferenciados) era maior nos msicos.

    Tambm foi identificado que aqueles que aprenderam a tocar por volta dos 12 anos

    tinham uma maior representao dos dedos da mo esquerda que aqueles que aprenderam

    a tocar mais tarde, sugerindo que tais habilidades so adquiridas mais prontamente nos

    22Merzenich et al. (1988 apud KANDEL, 1998) treinaram macacos adultos para usarem apenas os trs dedos

    mdios para obter comida. Depois de vrias tentativas, a rea do crtex referente a estes dedos foi bastanteexpandida em detrimento da rea relativa aos outros dois dedos: a prtica, portanto, pode no apenas fortalecera eficcia dos padres de conexo existentes, mas tambm mudar conexes corticais para acomodar novos

    padres de ao (KANDEL, 1998/2005, p. 51).

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    primeiros anos. Ento, nota-se que a representao corporal nas reas motoras e sensoriais

    do crtex cerebral depende do seu uso e, portanto, da experincia individual, talvez

    Johann Sebastian Bach era Bach no somente porque tinha os genes certos, mas

    provavelmente porque comeou a praticar habilidades musicais em um tempo em que seu

    crebro era mais sensvel para ser modificado pela experincia (KANDEL, 1999/2005, p.

    91-2).

    3.1.5Psicoterapia tambm altera expresso dos genes.

    Como j vimos, de acordo com o quadro de referncia da abordagem de

    Kandel, as mudanas mentais so tambm mudanas cerebrais. intrigante pensar que na

    medida em que a psicoterapia consegue trazer mudanas substanciais para o

    comportamento, ela tambm pode estar operarando geneticamente, ao produzir mudanas

    funcionais e estruturais no crebro (KANDEL, 1998, 1999). Esse autor refere ainda que

    essas alteraes tambm so verificadas em funo do tratamento psicofarmacolgico.

    Desse modo, a psicoterapia e a farmacoterapia podem induzir alteraes semelhantes na

    expresso