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A natureza jurídica do Ministério Público 1 Bernardo Ladeira Ferreira Bacharel em Direito – IPTAN E-mail: [email protected] Telefone: (32)88442428 / (32)33723245 Data de recepção: 02/03/2010 Data da aprovação: 15/06/2010 Resumo: O presente artigo objetiva discorrer sobre a base conceitual e a tipologia científica do Ministério Público como órgão indispensável no Estado Democrático de Direito. Seu principal escopo é avaliar a natureza jurídica do referido órgão, como seus traços fundamentais, suas bases epistemológicas e gnosiológicas a estrutura administrativa do Estado brasileiro. Isso se justifica pela importância do órgão no bojo do Estado Democrático de Direito. Instituição independente e permanente destaca-se na defesa dos direitos transindividuais, da ordem jurídica, do efetivo cumprimento da lei e da sociedade. A partir da nova ordem constitucional de 1988, o Ministério Público merece profunda atenção acadêmica e científica, sobretudo sob o enfoque jurídico. Palavras-chave: Ministério Público – Direito Constitucional – Natureza jurídica – Epistemologia 1 Este artigo é resultado de monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) para a obtenção de título de Bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves – IPTAN – em 2009.

A Natureza Juridica Do Ministerio Publico

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A natureza jurídica do Ministério Público1

Bernardo Ladeira Ferreira Bacharel em Direito – IPTAN E-mail: [email protected] Telefone: (32)88442428 / (32)33723245 Data de recepção: 02/03/2010 Data da aprovação: 15/06/2010 Resumo: O presente artigo objetiva discorrer sobre a base conceitual e a tipologia científica do Ministério Público como órgão indispensável no Estado Democrático de Direito. Seu principal escopo é avaliar a natureza jurídica do referido órgão, como seus traços fundamentais, suas bases epistemológicas e gnosiológicas a estrutura administrativa do Estado brasileiro. Isso se justifica pela importância do órgão no bojo do Estado Democrático de Direito. Instituição independente e permanente destaca-se na defesa dos direitos transindividuais, da ordem jurídica, do efetivo cumprimento da lei e da sociedade. A partir da nova ordem constitucional de 1988, o Ministério Público merece profunda atenção acadêmica e científica, sobretudo sob o enfoque jurídico.

Palavras-chave: Ministério Público – Direito Constitucional – Natureza jurídica – Epistemologia

1Este artigo é resultado de monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) para a obtenção de título de Bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves – IPTAN – em 2009.

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Introdução

O Estado Democrático de Direito é uma construção histórica que se

processou aos poucos na consciência da sociedade brasileira, principalmente

com o advento da Carta Magna de 1988. As lutas, as conquistas, as

discussões e as transformações da coletividade constroem um processo de

consolidação dos valores fundamentais, função jurídico-política do Estado.

Uma das maiores expressões desse fenômeno, na efetiva transformação

do direito em realidade, é o Ministério Público. De fato, a sua atuação no seio

do Estado Democrático, impulsionado pelo Texto Constitucional de 1988, tem

contribuído para o fortalecimento da democracia e dos sentimentos de respeito

à ordem jurídica brasileira.

Dessa forma, diante seu destaque e indispensabilidade na busca dos

preceitos de justiça, faz-se mister a compreensão de sua natureza jurídica, isso

é, do que consiste e em que está baseado tal órgão, para melhor abstrair sua

real função na ordem estrutural do Estado. Todavia, tal compreensão ainda não

se vê pacífica e uniformizada entre aqueles que discorrem sobre o tema.

Muitos defendem a ideia de que a referida instituição pertence e vincula-

se ao Poder Executivo, devido promover e dar eficácia às normas. Outros, por

sua vez, advogam ser o Ministério Público pertencente ao Poder Legislativo, ou

até mesmo ao Poder Judiciário. Ainda, poucos afirmam ser o “Quarto-Poder”

da República, amparado por suas garantias, funções e prerrogativas

constitucionais.

A diversidade conceitual e a temeridade de concluir sobre a natureza do

aludido órgão ministerial criam disfunções no universo acadêmico-científico,

tornando ainda mais difícil tal entendimento e ofuscando a nitidez do Ministério

Público no bojo da democracia.

Neste trabalho serão discutidos conceitos sobre a instituição do Ministério

Público e sua epistemologia dentro do ordenamento jurídico brasileiro. O

desenvolvimento do trabalho se pautará pela observação dessa natureza face

à estrutura organizacional do Estado, e como tal instituição está nela inserida,

principalmente à luz da filosofia jurídica e dos conceitos da ciência do direito.

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1. Ministério Público

1.1. Visão Geral

A expressão Ministério entende-se, semanticamente, o exercício de

determinada função ou profissão; já o vocábulo Público significa tudo que

pertence à coletividade ou ao povo em geral, sob domínio do Estado. “A

expressão Ministério Público significa ‘um ofício pertencente à essência do

Estado’”. (MIRANDA apud SANTANA, 2008, p. 21)

Inserido na posição de destaque no sistema jurídico brasileiro, o

Ministério Público2 é umas das principais instituições de defesa dos interesses

sociais e da promoção da mudança social.

Diz o art. 127, caput, da Constituição Federal de 1988 que “O Ministério

Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,

incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime e dos interesses

individuais indisponíveis”, consagrando, além da reserva da persecução

criminal, à sustentabilidade das liberdades públicas constitucionais em defesa

da sociedade, com liberdade, unidade, indivisibilidade, autonomia e

independência funcional da instituição e de seus órgãos. (MAZZILLI, 1991, p.

41-42)

Como bem registra Edilson Santana, o órgão é “permanente, porque é

parte integrante do Estado; essencial à função jurisdicional, porque, sem a

mesma, essa ficaria mutilada”. (SANTANA, 2008, p. 21)

Sendo um ente eminentemente voltado para a sociedade e para suas

necessidades sociais, ele transcende o direito positivo, desenvolvendo-se

significativamente para concretizar umas das suas grandes aspirações: a

realização da justiça, da proteção e da servidão àquela sociedade que o criou.

(MACHADO, 1989, p. 25)

Ora, responsável pela transformação da realidade social e da guarda da

ordem jurídica, e considerado indispensável ao Estado Democrático de Direito

e às funções essências à justiça, o Parquet, tratado no Título IV (‘da

organização dos poderes’), no Capítulo IV da Constituição Federal de 1988 nos 2 Neste trabalho, Ministério Público é expressão equivalente a MP, Instituição Ministerial, Parquet e Magistratura de Pé.

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artigos 127 a 130-A, não participa do processo de elaboração das leis, mas

vela pela sua observância; não integra o ato jurisdicional, mas é essencial à

sua prestação; não se subordina ao poder executivo, mas seus atos têm

natureza administrativa. (MAZZILLI, 2007, p.42)

Dessa forma, funciona o órgão ministerial em proteção do regime

democrático sem, contudo, assumir qualquer forma de subordinação e de

vínculo a qualquer dos poderes, seja executivo, seja legislativo, seja judiciário.

1.2. Origens Históricas

Não é possível uma exata precisão sobre o aparecimento do Ministério

Público na história. Muitos foram os processos de aperfeiçoamento, e inúmeras

as transformações que a instituição sofreu para chegar ao modelo atual, na

migração da tutela do Estado para a tutela da sociedade. Alguns autores

procuram sua origem no Antigo Egito, há cerca de quatro mil anos, na figura do

funcionário real Magiaí3.

Outros, inspirando-se nos ‘Éferos de Esparta’, referem-se à figura de um

funcionário grego, chamado de tesmoteti ou desmodetas, espécie de agente

judicial, militar e religioso, como sendo a fonte de surgimento da instituição,

“cuja missão precípua era vigiar pela correta aplicação das leis, pois tinham a

função de contrabalancear o poder real e o poder senatorial, exercendo a

acusação pública” (MORAES, 2003, p. 490).

Alguns autores encontram o embrião do Ministério Público na Roma

Antiga, nos Procuratoris Caesaries, defensores do Estado Romano.

Ocorre que no decorrer dos anos, a instituição do Parquet sempre

defendeu os interesses do Rei, as vontades do soberano e do império,

principalmente após a Revolução Francesa, quando a referida instituição

assume oficialmente o papel de acusador oficial do Estado e fiscal da lei

(SANTANA, 2008, p. 29), o que vai sendo ao longo dos anos, num processo 3 Segundo textos descobertos em escavações do Egito, tal funcionário era a língua e os olhos do Rei; castigava os rebeldes, reprimia os violentos, protegia os cidadãos pacíficos; acolhia os pedidos do homem justo e verdadeiro, perseguindo o malvado mentiroso; era o marido da viúva e o pai do órfão; fazia ouvir as palavras da acusação, indicando as disposições legais que se aplicavam ao caso; tomava parte das instruções para descobrir a verdade. (VELLANI apud MAZZILLI, 1991, p. 1 e 2).

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evolutivo, aperfeiçoado através de lutas e conquistas, certo de que, em seu

advento, o órgão não fora criado para a defesa incontestável dos

hipossuficientes, dos oprimidos e dos direitos sociais.

A temeridade de ver o Estado julgar sem imparcialidade, corroborado

com os ideais franceses de uma Instituição Constitucional no século XIV, faz

surgir um órgão multifacetário, institucionalizando sua vontade em prol da

justiça, da liberdade, da igualdade e da fraternidade, deixando o Ministério

Público formalmente destinado às atividades essenciais da prestação

jurisdicional.

Em sucinto desfecho, preciosas são as palavras de Hugo Nigro Mazzilli

(2003, p. 17): O mais comum é indicar-se que o Ministério Público moderno tem origem nos procuradores do Rei da França, ou, mais especificamente, na Ordenança de 1302, de Felipe IV. Entretanto, verdade seja dita, contemporaneamente na Itália e em Portugal (Ordenações do Reino), existiram Procuradores do Rei, com atribuições semelhantes. (...) A verdade é que a origem do Ministério Público está ligada à defesa do Rei e à acusação penal (grifo nosso).

1.3. O Ministério Público no Direito Brasileiro A trajetória do parquet no direito brasileiro e sua evolução institucional

não foram diferentes da sua própria história no mundo, trajetória essa marcada

pela transição do ‘advocatus rei’ para ‘advocatus civilis-societatis’.

No Brasil-colônia, antes da independência, e até mesmo no Brasil-

império, afirma Edilson Santana (2008, p. 32): A 10 de novembro de 1937, sob o argumento de que os comunistas iriam iniciar um levante no País, o Governo fechou o Congresso Nacional, as Assembléias Estaduais e as Câmaras de Vereadores, impondo censura aos meios de comunicação de massa, suprimindo garantias constitucionais. Getúlio Vargas sacramentou um golpe de Estado e, com o apoio das Forças Armadas, outorga uma nova Constituição. O Ministério Público sofreu com o golpe. Houve retrocesso institucional.

Procurador da Coroa e da Fazenda exercia a função de Promotor de

Justiça, cujas atribuições eram estritas e unicamente cuidar dos interesses do

Rei, não se podendo falar propriamente de uma instituição e nem de

autonomia.

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A Constituição Imperial de 1824 não se referiu à Instituição do Ministério

Público, tratando-o tão-somente nas disposições do juízo criminal, na qual

registrava o dito Procurador como dominus litis (senhor da ação penal)4, o que

não foi diferente anos depois, na primeira Constituição da República (1891),

fazendo simplesmente referência ao procurador-geral, um ‘bacharel-idôneo’

escolhido dentre os membros do Supremo Tribunal Federal.

Somente após algumas décadas de república e passado pouco mais de

um século de independência, a Constituição de 1934 trouxe a lume a primeira

referência constitucional do Ministério Público 5 , instante quando se pode

afirmar o seu aparecimento no Brasil como Instituição6, num momento marcado

por enfraquecimentos e distúrbios democráticos, como relata Edilson Santana

(2008, p. 32): A partir daí, novas constituintes marcaram a evolução republicana brasileira, vindo a instituição ministerial alcançar sua autonomia, a obrigatoriedade de concurso público para o ingresso na carreira (na qual só poderiam perder a referida função por sentença judicial ou processo administrativo, sendo-lhes assegurado o contraditório e a ampla defesa), e sua inamovibilidade7.

Da mesma forma, a Lei Fundamental de 1967 (e sua emenda de 1969)

trouxe expressivas transformações ao órgão, ao tratá-lo no capítulo do Poder

Judiciário e inspirada na conceituação de que ‘O Ministério Público é instituição

essencial à função jurisdicional do Estado’, transformações essas fundamentais

para as conquistas de princípios indispensáveis para o correto e eficaz

exercício do parquet, como a unidade, indivisibilidade e independência

funcional e autonomia administrativa.

Atentamente, Edilson Santana (2008, p. 32) leciona sobre tal evolução: Observa-se, contudo, que, embora topograficamente, no âmbito do Poder Judiciário, a Instituição não se libertou das amarras do Poder Executivo, posto que os Procuradores da República, Procuradores de Justiça e Promotores de Justiça (em primeira e

4 Código de Processo Criminal do Império de 1832. 5 Sem, contudo, dedicar-lhe título autônomo, considerando-o como órgão de cooperação nas funções governamentais. 6 Em que pese a nomeação de seus membros ser feita de forma discricionária pelo Presidente da República. 7 Estrutura organizacional contida na Lei Maior de 1946.

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segunda instância) ainda estavam incumbidos de representar certos interesses de governantes.

Ora, o posicionamento constitucional da instituição sempre causou

perplexidade na doutrina, devido às mudanças nos próprios textos

constitucionais e as evoluções jurídico-sociais que sofreu o Ministério Público,

resistindo para a construção de um poder democrático, o que foi consolidado

no moderno texto de 1988 (MORAES, 2003, p. 494).

Sob a atual ótica constitucional, não restam dúvidas sobre a significante

evolução que passou o Ministério Público no Brasil, inserido dentro de um novo

conceito institucional de defesa dos anseios sociais e da democracia,

abandonando o antigo papel que possuía, onde não mais luta pelos interesses

do Estado singular, mas por aqueles de uma sociedade formadora desse

Estado democrático.

1.4. Funções Institucionais

Examinando-se as últimas três décadas, percebe-se que a consciência

social do conceito da referida instituição se aperfeiçoou, despindo-se daquela

visão limitada e simplista de um ‘Promotor8 de acusação’ no processo penal.

Tal aperfeiçoamento concretiza a típica instituição pública como uma

organização aceita universalmente pelos povos como defensora e guardiã dos

valores mais relevantes da sociedade (custos societatis9) e do direito (custos

juris 10 ). De fato, sendo o Ministério Público titular privativo da ação penal

pública, seu mister acusatório é pioneiro na defesa das liberdades individuais,

ao assegurar o contraditório na acusação, possibilitando um juízo imparcial.

Atualmente, inspirado pelas novas necessidades tangíveis da sociedade,

valendo-se da nova ordem constitucional trazida pelo constituinte de 1988, e

pelo avanço da salva-guarda dos direitos humanos, exigida por todas as

culturas, o Ministério Público é instituição ampla, preocupada com a 8 A expressão ‘Promotor de acusação’ ainda é difundida na linguagem social, visto que o profissional, membro da instituição ministerial, é denominado “Promotor de Justiça’. Esse é livre para fazer justiça, e não está vinculado ao pedido de condenação do suposto réu, podendo, inclusive, requerer o arquivamento dos autos (investigatórios ou processuais) diante elementos que demonstrem a descriminalização de sua conduta.

9 Defensor da sociedade. 10 Defensor do Direito.

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concretização do bem-comum, funcionando na proteção da ordem jurídica, do

regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis,

provocando o judiciário em inúmeras ações11, em defesa do meio-ambiente, do

idoso, do consumidor, do patrimônio público, do patrimônio histórico-cultural, da

legalidade, eficiência e moralidade na administração pública, zelando,

sobretudo, pela sociedade e seu bem-estar. Pode ainda, visto seu caráter

interveniente, atuar como custos legis12, defendendo, seja a indisponibilidade

dos interesses de determinada comunidade (devido a qualidade de uma parte),

seja o interesse público (devido a natureza da lide).

Essa missão materializa-se no art. 129 da Lei Fundamental, que

preconizou o zelo pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de

relevância pública aos assegurados na Constituição, promovendo as medidas

necessárias à sua garantia; o inquérito civil e a ação civil pública; a ação de

inconstitucionalidade ou a representação para fins de intervenção da União e

dos Estados; o direito-dever de expedir notificações nos procedimentos

administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos

para instruí-los; o controle externo da atividade policial; o direito de requisitar

diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial; além de exercer

outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua

finalidade (vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades

públicas), estabelecendo, por conseguinte, atuação direita e independente do

órgão ministerial junto à atividade social e estatal, sustentando seu papel no

cenário constitucional.

Em conclusão, importa-nos registrar as doutas palavras de Antônio

Cláudio de Costa Machado (1989, p. 25): O Ministério Público é, portanto, esse ser jurídico permanente, posto que extrapola o indivíduo no tempo e no espaço, e que possui vida e disciplina próprias, forças e qualidades particulares e uma vocação especial de bem servir a própria sociedade que o criou.

11 Órgão Agente; demandista. 12 Fiscal da lei.

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Dessa forma, hoje o Ministério Público é a instituição que mais tem

atuado para a defesa dos interesses e direitos massificados, no campo extra-

jurisdicional e no jurisdicional, tornando-se parte do próprio Estado para a

concretização da realização da justiça13.

2. Natureza Jurídica: conceito

Dizer qual seja a natureza14 de um determinado instituto, é dizer sua

epistemologia15 (ou gnosiologia), é saber o que é esse instituto, conhecendo

sua essência, ou seja, identificar seu conceito basilar sob a ótica científica,

dogmatista16 e apriorística17. O termo expressa o sentido de qualidade, espécie

do ser, identificando suas características peculiares, sua estrutura e em que tal

objeto se consiste, seja de per si, seja condicionado, seja inserido dentro de um

contexto específico.

In casu, a conceituação epistemológica se dará no universo jurídico18,

aplicando-se aos institutos dessa ciência.

Ao tratar o tema, faz-se indispensável fazer alusão às palavras do ilustre

professor Miguel Reale (2002, p. 301 e 305, visto que tal conceito pertence ao

campo da Filosofia do Direito. A Ontognoseologia Jurídica é parte geral da Filosofia do Direito destinada a determinar em que se consiste a experiência jurídica, indagando de suas estruturas objetivas, bem como a saber como tais estruturas são pensadas, ou seja, como elas se expressam em conceitos.

(...)

13 Minas Gerais. Ministério Público. Procuradoria-Geral de Justiça. Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional. Manual de Atuação Funcional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais / Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional. Belo Horizonte: CEAF, 2008, p. 68-69.

14 Etimologia latina – naturae.

15 Estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas; teoria da ciência; teoria do conhecimento. Busca tratar um problema nascido de um pressuposto filosófico específico (ABBAGNANO, 2000, p. 183). 16 Doutrina estabelecida. O conhecimento do sujeito sobre o objeto já é pré-estabelecido (MESSEN, 2000, P. 29). 17 Mediação entre o racionalismo e o empirismo. Considera tanto a experiência quanto o pensamento como fontes do conhecimento (MESSEN, 2000, P. 62). 18 Relativo ao direito: conforme os princípios do direito (FERREIRA, 2004, p. 410).

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É, pois, o estudo crítico da realidade jurídica e de sua compreensão conceitual, na unidade integrante de seus elementos que, como veremos, são suscetíveis de serem vistos como valor, como norma, e como fato, implicando perspectivas prevalecentemente éticas, lógicas ou histórico-culturais.

A partir dessa indagação, é possível questionar qualquer elemento

componente do objeto estudado, e como esses elementos se poem em relação

aos outros, ou seja, que é que, em suma, nessa realidade o torna

“compreensível” como jurídico. Assim, como fator essencial, será possível

diferenciar um objeto do outro, dividi-los e organizá-los sistematicamente para

sua melhor compreensão, e para, metodologicamente, inseri-lo dentro de

campos tipológicos distintos na ciência estudada.

A sistematização de divisões dos diversos institutos estudados na ciência

jurídica proporciona a visão universal da árvore jurídica, oferecendo a

perspectiva de estudo e aplicabilidade. Essa setorização de classes e ramos

(obra da Ciência do Direito e da Dogmática Jurídica) torna prático seu

conhecimento, as investigações científicas e o aperfeiçoamento de suas

instituições (NADER, 2005, p. 347) 19.

Sobre o assunto, ensina-nos Miguel Reale (2002, p. 306): Uma das tarefas primordiais da Epistemologia Jurídica consiste, aliás, na determinação do objeto das diversas ciências jurídicas, não só para esclarecer a natureza e o tipo de cada uma delas, mas também para estabelecer as suas relações e implicações na unidade do saber jurídico.

Como forma de aclarar, destarte, a questão, de forma com que o objeto

estudado (a instituição do Ministério Público) fique de tal modo classificado e

determinado como instituto jurídico, bem como explicado epistemologicamente,

mister se faz a conceituação de três institutos (jurídicos) no deslinde do tema:

instituição20, órgão e poder.

2.1. Instituição

19 Um claro e simples exemplo desse fenômeno é a clássica divisão entre Direito Público e Direito Privado, ensejando fundamentos para identificar em que se consistem determinados institutos jurídicos. O Direito Constitucional, por exemplo, insere-se no ramo do Direito Público. Essa conceituação traduz, genericamente, sua base epistemológica, portanto, qual seja sua natureza jurídica. 20 Aqui em sentido de coisa instituída.

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O conceito de instituição traduz-se em ser um ente abstrato,

convencionado e legitimado pela sociedade21 a fim de estabelecer relação de

ordem, relacionamento, ou autoridade. É um mecanismo social que controla os

indivíduos, sendo um produto de seus interesses que refletem suas

experiências, organizado sob a forma de regras e normas, visando,

principalmente, a ordenação entre suas interações.

Dentro da órbita político-constitucional 22 , as instituições podem ser

personalizadas e despersonalizadas, estabelecidas e legitimadas para,

organizadamente e estruturadamente, concretizar certo objetivo, ou seja, tornar

real e eficaz determinada necessidade.

2.2. Órgão

Por sua vez, órgão (aqui entendido também sob a perspectiva político-

constitucional) seria toda e qualquer micro-unidade inserida dentro de um

macro-sistema capaz de gerenciar seus objetivos. São eles supremos (constitucionais) ou dependentes (administrativos). Aqueles são os a quem incumbe o exercício do poder político, cujo conjunto se denomina governo ou órgãos governamentais. Os outros estão em plano hierárquico inferior, cujo conjunto forma a Administração Pública, considerados de natureza administrativa. Enquanto os primeiros constituem objeto do Direito Constitucional, os segundos são regidos pelas normas do Direito Administrativo (SILVA, 2006, p. 107).

Etimologicamente, órgão é uma unidade com atribuição específica dentro

da organização do Estado. É composto por agentes públicos que dirigem e

compõem o órgão, voltados para o cumprimento de uma atividade estatal. Eles

formam a estrutura do Estado, mas não têm personalidade jurídica, uma vez

que são apenas parte de uma estrutura maior, essa sim detentora de

personalidade. Como parte da estrutura maior, o órgão público não tem

vontade própria, limitando-se a cumprir suas finalidades dentro da competência

funcional que lhes foi determinada pela organização estatal (SILVA, 2006, p.

760).

21 Ou por um grupo social. Não cabe discutir a amplitude que esta instituição deva abranger. 22 Excluído o conceito filosófico.

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3.3. Poder A etimologia da expressão ‘poder’23, do latim, potere, revela a capacidade

de imposição da vontade, do direito de deliberar, agir, decidir, exercer sua

autoridade, soberania, domínio, influência ou força.

Da análise do verbete descrito por Norberto Bobbio, podemos perceber

um conceito diferente do julgado por uma ideia geral, entendo o poder social

não como uma coisa ou a sua posse, mas sim uma relação interpessoal: O poder é entendido como algo que se possui: como um objeto ou uma substancia (...) que alguém guarda num recipiente. Contudo, não existe ‘poder’, se não existe, ao lado do individuo ou grupo que o exerce, outro individuo ou grupo que é induzido a comportar-se tal como aquele deseja (BOBBIO, 2000, p. 933 a 942).

Festejada conceituação de José Afonso da Silva sobre o tema, quando

diz que “o poder é um fenômeno sócio-cultural. (...) Define-se como uma

energia capaz de coordenar e impor decisões visando à realização de

determinados fins” (SILVA, 2006, p. 106/107).

No modelo constitucional atual, o Estado Brasileiro exerce tal soberania

através dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, conforme previsão no

artigo 2º da Lei Fundamental de 1988.

3- A natureza jurídica do Ministério Público

A fim de alcançar melhor compreensão e visualização do Ministério

Público, da sua classificação e disposição na atual estrutura organizacional da

República, devemos citar aqui as três funções nas quais o Estado exerce sua

soberania, o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário,

especificando a atuação, o papel e os limites de cada uma dentro desse

mesmo Estado, relacionando-as, finalmente, com a instituição ministerial.

Essas funções são divididas, segundo o critério funcional, consagrado

pelo pensador francês Montesquieu. Baseando-se na obra Política, do filósofo

Aristóteles, e na obra Segundo Tratado do Governo Civil, publicada por John

Locke, Montesquieu escreveu a obra O Espírito das Leis, traçando parâmetros

23 Conceito Sociológico: habilidade de impor a sua vontade sobre os outros, mesmo se estes resistirem de alguma maneira. Conceito Político: capacidade de impor algo sem alternativa para a desobediência; o poder político, quando reconhecido como legítimo e sancionado como executor da ordem estabelecida, coincide com a autoridade.

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fundamentais da organização política liberal. O filósofo iluminista foi o

responsável por explicar, sistematizar e ampliar a divisão dos poderes que fora

anteriormente estabelecida por Locke. Montesquieu acreditava também que,

para afastar governos absolutistas e evitar a produção de normas tirânicas,

seria fundamental estabelecer a autonomia e os limites de cada poder, criando-

se, assim, o sistema de freios e contrapesos, o qual consiste na contenção do

poder pelo poder, ou seja, devem eles ser autônomos e exercerem

determinada função, porém o exercício desta função deve ser controlado pelos

outros. Assim, pode-se dizer que estes são independentes, porém harmônicos

entre si24 (PIÇARRA apud MORAES, 2003, p. 369).

Com base nessa premissa, o legislador constituinte originário afirmou no

artigo 2º da Carta Política que são poderes da União, independentes e

harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, estabelecendo

que o Legislativo, por meio de seus representantes eleitos diretamente pelo

povo, funciona tipicamente legislando e fiscalizando25 dentro dos limites e dos

ditames legais; o Executivo, por sua vez, representado pelo Chefe de

Governo 26 , funciona precipuamente na prática de atos de administração,

executando e dando efetividade à lei, gerindo a coisa pública, realizando e

definindo a política de ordem interna (e as relações exteriores); finalmente,

pois, o Judiciário, representado por seus membros independentes, inamovíveis,

e vitalícios, cabe a função típica de julgar, a administração da justiça,

solucionando os conflitos que surgirem no seio de sua jurisdição, “aplicando a

lei a uma hipótese controvertida mediante processo regular, produzindo, afinal,

coisa julgada, com o que substitui, definitivamente, a atividade e vontade das

partes” (ALVIM apud MORAES, 2003, p. 448).

Registre-se, ainda, que inexiste no atual modelo constitucional, a

exclusividade funcional absoluta, possibilitando, a cada poder, o exercício das

24 Essa divisão clássica está consolidada atualmente pelo artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e é prevista no artigo 2º na nossa Constituição Federal de 1988. 25 Controle político-administrativo e financeiro-orçamentário. 26 No sistema presidencialista (nosso modelo de sistema de governo estabelecido pela Constituição Federal de 1988), a figura de Chefe de Estado se mistura com a de Chefe de Governo, em se tratando da Função Executiva Federal.

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funções que lhe são típicas, e das que lhe são atípicas, no exercício dos

misteres constitucionais (MORAES, 2003, p. 420), permitindo, ao Legislativo,

administrar e julgar; ao Executivo, legislar e julgar; e ao Judiciário, legislar e

administrar, nos limites legais.

Contudo, o Ministério Público, sendo participante da divisão funcional do

Estado, é elemento indispensável no sistema de freios e contrapesos na

contenção do poder estatal, como os são o Legislativo, o Executivo e o

Judiciário. Ora, tanto esses como aquele (o Ministério Público), assemelham-se

em virtude da autonomia, independência e finalidades constitucionais,

exercendo todos, funções únicas do Estado.

Ocorre é que o posicionamento constitucional do Ministério Público

sempre provocou impasses na doutrina, principalmente devido à transformação

e à evolução que a instituição sofreu ao longo dos anos, restando perplexidade

ao defini-lo como órgão atrelado (ou vinculado) a algum poder, seja ao

Legislativo, seja ao Executivo, seja ao Judiciário.

Sobre o tema, Hugo Nigro Mazzilli (1997, p. 19 e 20) discorre: Há quem sustente que o Ministério Público estaria atrelado ao Poder Legislativo, a esse incumbida a elaboração da lei e ao Ministério Público, a fiscalização do seu fiel cumprimento. Há quem defenda que a atividade do Ministério Público é eminentemente jurisdicional, razão pela qual estaria ele atrelado ao Poder Judiciário. E há, ainda, quem afirme que a função do Ministério Público é administrativa, pois ele atua com o fim de promover a execução das leis e estaria atrelado ao Poder Executivo.

Alexandre de Moraes continua (SLAIBI FILHO; MELLO FILHO;

FERREIRA FILHO apud MORAES, 2003, p. 494): Analisando a Carta Anterior, que colocava o Ministério Público como órgão do Poder Executivo, Celso de Mello já apontava que seus membros sujeitavam-se a regime jurídico especial, gozando, no desempenho de suas funções, de plena independência. Por sua vez, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, concordando com a independência ministerial, colocava-o como órgão administrativo, destinado a zelar pelo cumprimento das leis, cabendo-lhe a defesa do interesse geral de que as leis sejam observadas. Da mesma forma, José Afonso da Silva afirma que a Instituição ocupa lugar cada vez mais destacado na organização do Estado, em virtude do alargamento de suas funções de proteção aos direitos indisponíveis e de interesses coletivos, tendo a Constituição Federal dado-lhe relevo de Instituição permanente e essencial à função jurisdicional, mas que ontologicamente sua natureza permanece executiva, sendo

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seus membros agentes políticos, e como tal, atuam com plena e total independência funcional.

Todavia, na Carta Atual, baseada na tendência internacional, o Ministério

Público consagra-se plenamente independente, desvinculado de qualquer

poder, tornando-se um “estranho no ninho” no Legislativo, no Executivo e no

Judiciário, comportando todos os requisitos, garantias e vedações atinentes

aos clássicos poderes do Estado, contudo, sem a função precípua de julgar, de

administrar, muito menos de legislar. Como bem observa o Ministro do

Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, A seção dedicada ao Ministério Público insere-se, na Constituição Federal de 1988, ao final do título IV – Da Organização dos Poderes, no seu capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça 27 . A colocação tópica e o conteúdo normativo da Seção revelam a renúncia, por parte do constituinte de definir explicitamente a posição do Ministério Público entre os Poderes do Estado.

(...) A razão subjacente à crítica contemporânea da integração do Ministério Público no Poder Executivo [ou no Poder Legislativo e até no Poder Judiciário] esta, na verdade, na postulação da independência política e funcional do Ministério Público, pressuposto da objetividade e da imparcialidade de sua atuação nas suas funções sintetizadas na proteção da ordem jurídica28 (MORAES, 2003, p. 494 e 495).

Portanto, observa-se que a relação que o Ministério Público tem para

com os outros poderes é eminentemente independente, complementando-as

tão somente naquilo que lhes foram conferidos: funcionar para que a soberania

do Estado se exteriorize, a fim de cumprir seu papel pelo qual foi criado.

Independência essa é essencial e indispensável à sobrevivência da instituição,

sobretudo à viabilidade e à eficácia de sua atuação, sendo que seu papel

institucional restaria prejudicado e inócuo, se, de fato, a instituição ministerial

fosse de tal modo subjugada ou atrelada a qualquer outro órgão. 27 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - Capitulação separada dos três ‘poderes’: Título IV (Da Organização dos Poderes) Capítulo I (Do Poder Legislativo) Capítulo II (Do Poder Executivo) Capítulo III (Do Poder Judiciário) Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça) Seção I (Do Ministério Público) 28 RTJ 147/129-30

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3.1. Ministério Público: “Quarto Poder”?

Discussão que ainda se estende de forma heterogênea entre os

cientistas jurídicos, sendo pertinente sua breve abordagem nesse artigo, é

sobre a visualização e a conceituação do Ministério Público como um ‘Poder,’

ou melhor, o ‘Quarto Poder’.

Muitas são as abordagens e os argumentos que sustentam tal

conceituação. Passados vinte anos da promulgação da Carta Magna de 1988,

a doutrina discute onde se situaria a Instituição no quadro definido pela

Constituição Federal. Por conseguinte, para alguns, o Ministério Público,

atualmente, constitui um verdadeiro ‘Quarto Poder’. É o que vaticina Alfredo

Valladão (1954, p. 33-39) nas palavras de Edilson Santana: As funções do Ministério Público subiram, pois, ainda mais, de autoridade, em nossos dias. Ele apresenta como a figura de um verdadeiro poder Estatal. Se Montesquieu tivesse escrito hoje O Espírito das Leis, por certo não seria tríplice, mas quádrupla a divisão dos poderes. Ao órgão que legisla, ao que executa, ao que julga, um outro órgão acrescenta ele – o que defende a sociedade e a lei, perante a Justiça, (sic!) parta a ofensa donde partir, isto é, dos indivíduos ou dos próprios poderes do Estado.

Outros consideram que a Instituição constitui órgão dotado de autonomia,

participante do sistema de freios e contra-pesos29 fixados pelo constituinte, e,

portanto, não integra o quadro de nenhum dos poderes.

Autores como Hugo Nigro Mazzilli e Clèmerson Merlin Cléve apontam

que o constituinte poderia ter evitado essas discussões se tivesse colocado o

Ministério Público, lado a lado com o Tribunal de Contas, entre os órgãos de

fiscalização e controle das atividades governamentais, ou como já o fizera a

Carta de 1934, entre os Órgãos de Cooperação nas Atividades

Governamentais (MAZZILLI, 1997, p. 142).

29 A decantada tripartição de poderes estabelecida por Montesquieu, com independência e igualdade de garantias entre eles, visava apenas a um objetivo: assegurar o Estado de Direito, através da existência de um poder sempre capaz de frear os outros. Com isto, Montesquieu preleciona a máxima outrora dita: ‘para que se não possa abusar do poder, urge que o poder detenha o poder’. Faz-se necessário que os poderes cedidos ao Estado estejam dispostos de tal forma que mutuamente se travem (checks and balances). É nessa evolução que Montesquieu distingue três poderes dentro do Estado: Legislativo, Executivo e Judiciário, sustentando que esses poderes devem ser independentes uns dos outros e confiados a pessoas diferentes.

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Ora, o Ministério Público está inserido na Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988 no Título IV — Da Organização dos Poderes —;

porém, em seção própria (arts. 127 a 130 da CRFB/88), dentro do Capítulo Das

Funções Essenciais à Justiça. Está, portanto, separado dos demais Poderes do

Estado, não possuindo, ainda, tal “status” pela Lei Fundamental, deixando de

ser conceituado como poder.

Cabe ressaltar que a própria definição feita pelo legislador constituinte

originário do Ministério Público como “Instituição” e como “Órgão”, exclui sua

caracterização como ‘Poder’, por ser etimologicamente incompatível dentro do

atual modelo constitucional de estrutura estatal, estando o Ministério Público

funcionando como um mecanismo legitimado pela sociedade a fim de refletir

seus interesses –instituição –, estruturado como uma unidade inserida nesse

Estado – órgão.

Com efeito, vislumbramos que a Constituição Federal de 1988 não o

elevou à categoria de ‘Poder’, mas dispôs que ele, no exercício de suas

funções, é órgão obrigatoriamente independente. Por conseqüência, tem,

como os três poderes, funções independentes, sem a interferência de qualquer

um deles e sem posicioná-lo em nenhum dos poderes públicos.

Considerações finais

Nessa perspectiva, considerando os diversos posicionamentos elencados

ao longo dessa reflexão, funda-se nosso entendimento na ressalva de um

Ministério Público representante de uma sociedade político-juridicamente

organizada no Estado, não sendo, portanto, qualquer espécie de pessoa

jurídica pertencente a seus governantes, defendendo os interesses sociais da

comunidade a que serve, salvaguardando os bens e os valores essenciais à

prevalência da cidadania e do estado de direito. Encarrega-se, dentre outras

atribuições, de fazer com que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no

uso de suas atribuições, respeitem os direitos que a lei maior assegurou,

exigindo uma completa e absoluta independência e autonomia para funcionar,

sendo que nesse Estado Republicano de Direito, representativo e democrático,

cabe ao Parquet a principal tarefa da defesa de sua integridade, e, sobretudo,

da sociedade a quem se destinam os seus serviços e cuidados, mostrando-se

incompatível tal vinculação.

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Importa registrar que, ao longo das duas últimas décadas do século

passado, essa autonomia torna-se ainda mais tangível, ao ponto que a

instituição conseguiu romper barreiras que a prendiam junto ao Poder

Executivo, tornando visível a processo de judicialização do país. Tal ascensão

paradoxal, realizada num contexto marcado por ideologias anti-Estado, só se

deu porque, no curso de redemocratização do país, o Ministério Público lutou

para se desvincular do Poder Executivo e construir uma imagem de agente da

sociedade na fiscalização dos poderes políticos. Nesse sentido, por mais

contraditório que pareça, o Ministério Público soube captar o sentido da

mudança da época e, na virada dessa redemocratização, posicionou-se ao

lado da sociedade e de costas para o Estado, apesar de ser parte dele.

Assim, antecipando-se à consolidação da democracia, viu sacramentado

o seu perfil institucional no corpo da Lei Maior do país, em capítulo próprio,

gozando de total autonomia, independente dos clássicos poderes da

República, judicializando os conflitos que antes ficavam à mercê de um

tratamento exclusivamente político ou administrativo, transmutando um órgão

tipicamente de justiça em defensor do povo, traduzindo um ofício integrante da

essência do Estado, exercendo parcela de soberania, imprescindível à própria

sobrevivência da sociedade, dada a sua tamanha importância no atual

paradigma.

Por tudo isso, torna-se evidente que o Ministério Público é possuidor, no

exercício de suas funções, dos qualificativos das clássicas funções

fundamentais do Estado: Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, sendo de

significante importância registrar que sua função administrativa não se

confunde com a tradicional função administrativa efetivada pelo Poder

Executivo, não se achando subordinado aos demais poderes, posto que foi

elevado à posição de órgão constitucional autônomo, gozando de equivalência

no tocante à qualidade do regime jurídico-constitucional, podendo exercer suas

atribuições inclusive contra esses poderes estatais, na plenitude de suas

garantias e prerrogativas.

Destarte, entendemos que, das concepções sobre a natureza

institucional do Ministério Público, a que melhor explica a sua postura

institucional é a que o desloca da sociedade política, como órgão repressivo do

Estado, para a sociedade civil, como legítimo e autêntico defensor da

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sociedade. Esse deslocamento se justificaria por três razões fundamentais. A

primeira seria a social, que se originou com a vocação do Ministério Público

para a defesa da sociedade: ele assumiu paulatinamente um compromisso com

a sociedade no transcorrer de sua evolução histórica. A segunda seria a

política, que foi surgindo com a vocação da Instituição para a defesa da

democracia e das instituições democráticas. A terceira seria a jurídica, que se

efetivou com a Constituição de 1988, que concedeu ao órgão autogestão

administrativa e funcional e lhe conferiu várias atribuições para a defesa dos

interesses primaciais da sociedade.

Em verdade, o deslocamento do Ministério Público da sociedade política

para a sociedade civil é muito mais funcional que administrativo, pois

administrativamente, o Ministério Público ainda permanece com estrutura de

instituição estatal, com quadro de carreira, lei orgânica própria e vencimentos

advindos do Estado, o que é fundamental para que ele tenha condições de

exercer o seu papel constitucional em igualdade com os Poderes estatais por

ele fiscalizados.

Importa ressaltar, de forma conclusiva, que o constituinte originário não

alçou o Ministério Público à categoria de Poder, mesmo porque não era o caso,

mas, indubitavelmente, disse e bradou que ele, no exercício de suas funções é

órgão necessariamente independente, sem a ingerência de qualquer um deles,

a fim de assegurar a defesa não do Estado, mas da ordem jurídica e do Direito,

em prol do povo, verdadeiro titular do poder.

Referências DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. FIÚZA, César. Direito Civil: Curso Completo. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. MACHADO, Antônio Cláudio de Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1989. MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. São Paulo: Saraiva, 1997. MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do Promotor de Justiça. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à Justiça e o Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003. NADER, Paulo. Introdução ao estudo de Direito. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. SANTANA, Edilson. Instituição do Ministério Público. 2 .ed. Leme: J.H. Mizuno, 2008. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

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The legal nature of the Prosecuting Counsel

Abstract: The present article aims at studying the conceptual basis and the scientific typology of the Prosecuting Counsel as an indispensable structure in the democratic state of law. The main objective of this paper is to evaluate the legal nature of that structure, such as its fundamental aspects and its epistemological and gnosiological basis. This is justified due to the importance of that structure in the ambit of the democratic state of law. As an independent, permanent institution it distinguishes itself in protecting the transindividual rights, the juridical order, the effective accomplishment of the law and the society. From the establishment of the 1988 new constitutional order, the Prosecuting Counsel starts to deserve special scientific and academical attention, especially under the juridical scope. Keywords: Prosecuting Counsel – Constitutional Law – Legal Nature - Epistemology