a invenção da tradição

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O PASSADO CRIADO: A INVENO DA TRADIO Leandro Santos de Lima Luiz Carlos Borges Miriam Della Posta de Azevedo Raquel Lisboa Renata Ferreira Costa Vanuza Luiz

1. Introduo Discutir a temtica da inveno da tradio sobre a histria de So Paulo, significa antes de qualquer coisa, refletirmos sobre duas questes: a primeira diz respeito, como nos lembra Raquel Glezer1, importncia de conhecermos como se constituiu em nossa historiografia a produo do conhecimento histrico, a segunda, refere-se sem dvida nenhuma em recuperar o que se constituiu ideologicamente como tradio, engendrando-se prticas sociais que vincularam comportamentos e a edificao de personagens situados no mbito das representaes do passado paulista, sendo assim, apresentamos a seguir os critrios em que nosso trabalho foi concebido. Num primeiro momento, para tratar dessa imagem histrica construda de So Paulo, apresentaremos como itinerrio procedimental/ terico-metodolgico escolhido para a fundamentao deste trabalho, as contribuies de Eric Hobsbawm e de Roger Chartier2, o primeiro por problematizar a questo da tradio inventada no conjunto de suas prticas, que desenham e do forma ao passado histrico. O segundo, por tratar da representao, como noo edificada no estudo da historiografia contempornea, situada no campo da Histria da Cultura, o que nos permite um referencial analtico significativo para a anlise crtica dos modos de pensar, de sentir e de se produzir s tradies inventadas. Nesta perspectiva, a partir dessas possibilidades tericas articuladoras, pode-se pensar a questo da inveno da tradio, como significativo eixo temtico de anlise, o que nos permite retomar a dicotomia discutida introdutoriamente pela Prof Raquel Glezer, quo seja, o que todo mundo sabe e o que ningum conhece sobre So Paulo. Certamente, os muitos hiatos sobre sua

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Veja Historiografia Brasileira em Debate: Olhares, Recortes e Tendncias. Organizado por Eni de Mesquita Smara, CEDHAL/ FFLCH/ USP, p. 26. 2 Veja referncias ao final do trabalho.

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histria, nos fazem questionar os sensos comuns, ampliando nossa perspectiva analtica sobre este eixo analtico. Como campo de discusso para este trabalho, trataremos da histria tradicional de So Paulo, analisando iconografias em que a figura do Bandeirante se apresenta solidificada, concretizada, como canal representativo dessa tradio inventada, tanto pelo horizonte arquitetnico atravs de monumentos, quanto pelas artes plsticas, edificada atravs de quadros, repetidamente encontradas em diferentes territrios por todo Estado de So Paulo, bem como nos livros didticos de histria do Brasil, lembrando-se que sua relevncia, tambm pertinente ao momento de sua produo, concebendo-se uma narrativa condicionada. Focalizando analiticamente, a Histria como processo de compreenso do presente, vale lembrar que dessa histria tradicional relevante destacar que a grandeza do territrio foi um feito da bravura herica do Bandeirante, forjado para o engrandecimento da ptria e de So Paulo (CHAUI, 2001, pp 5 - 6), assim sendo, no pode escapar aos olhos o que ou no significativo para um tempo, uma sociedade. Entretanto, ao falarmos de uma tradio inventada, precisamos levar em considerao que na linearidade construda de muitos relatos e nas variadas tentativas de explicao de dados e fatos ocorridos, a produo de obras, correspondem ao momento em que foram produzidas, sendo relevante que situemos a partir desta problemtica, o relativismo destas produes. Logo, torna-se fundamental que olhemos as fontes como possibilidades permanentes de anlise crtica, pensando-se na perspectiva de quem as produziu e de onde as produziu. Nesse sentido, partimos num segundo momento para uma definio de modelos explicativos como sustentao e subsdios instrumentais para a posterior anlise da tradicional imagem de So Paulo e de suas personagens, tendo-se como referencial, o Bandeirante, no sentido de se compreender a dinmica da representao que produziu diferentes imagens sobre estes e que se cristalizaram no mbito das tradies. Assim, numa tentativa do grupo de aproximar a produo historiogrfica paulista e brasileira s tendncias poltico-econmicas de seus respectivos contextos histricos, discutimos uma periodizao, que percorre os sculos XVIII, XIX e XX (at 1970), em que apresentamos3

autores que se

destacaram na construo, ou no questionamento e superao, da imagem histrica de So Paulo, sendo a sntese de suas produes, fontes histricas importantes como produto cultural de dado

Extrados de BLAJ, Ilana. A Construo das Imagens. A Trama das Tenses O processo de mercantilizao de So Paulo colonial (1681-1721). So Paulo: Humanitas, FAPESP, FFLCH/USP, 2002, pp. 40 85.

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momento, uma vez que abarcam, conceitos, problemas, fontes e diferentes narrativas, fundamental para que evitemos anacronismos na anlise histrica. A caminho de uma concluso, em se tratando de termos de nosso objeto de anlise situado no mbito do estudo da figura do Bandeirante, trazemos como fonte para anlise/interpretao e debate, a produo sobre o IV Centenrio da Cidade de So Paulo, de Silvio Luiz Lofego, em que a inveno da tradio retomada pelo movimento pendular entre Memria e Histria, apoiada no mito do Bandeirante, utilizado, segundo ele, para justificar o progresso material e o esprito empreendedor de seus filhos e o lugar de predestinado progresso, por ser bero dos bravos sertanistas (LOFEGO, 2004, pp.11-12). Eis a mais uma vez concretizada a inveno da tradio.

2. A inveno da tradio segundo Eric Hobsbawm

A respeito do autor: Nascido em 9 de junho de 1917, em Alexandria, no Egito, enquanto ainda se encontrava sob domnio britnico, Eric Hobsbawm um historiador marxista dedicado histria contempornea que tem como um de seus interesses o desenvolvimento das tradies. membro da Academia Britnica e da Academia Americana de Artes e Cincias. Foi professor de Histria no Birkbeck College e ainda professor da New School for Social Research de Nova Iorque4.

Discusso: O peridico Past & Present, do qual Eric Hobsbawm faz parte do corpo de editores organizou uma conferncia que partiu do seguinte pressuposto muitas vezes, tradies que parecem ou so consideradas antigas so bastante recentes, quando no so inventadas.5 A obra denominada A inveno das tradies, organizada por Hobsbawm e Ranger, proveniente desta conferncia. No livro, Hobsbawm faz uma breve discusso conceitual a respeito do termo tradio inventada a fim de observ-lo como um fenmeno comum nas relaes sociais. Seu estudo parte desta contextualizao para entender, de maneira mais especfica, a construo de tradies polticas para o estabelecimento da legitimidade dos novos estados, como instrumentos de coeso social. As idias de Hobsbwm a respeito do assunto so, portanto, relativas ao estudo do modo com que surgem e se estabelecem a tradio.4 5

Referencias biogrficas provenientes da wikpedia. http://pt.wikipedia.org/wiki/Eric_Hobsbawm, acesso em 12.04.2009. HOBSBAWM, Eric. "Introduo: A Inveno das Tradies". In: HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (orgs.). A inveno das tradies. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p.9.

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O termo tradio inventada tem um sentido amplo: pode ser realmente inventada ou construda e formalmente institucionalizada. Conceitua-se como conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relao ao passado 6. A reflexo a respeito da inveno da tradio considerada to interessante pelo autor por fazer parte de um mundo de constantes mudanas que buscam reestruturar alguns aspectos da vida social de maneira imutvel. O estudo ressalva a necessidade de diferenciarmos a tradio, caracterizada pela invariabilidade, do costume que se transforma segundo necessidades sociais. O costume confirma o precedente, atribuindo continuidade histrica e direitos naturais conforme o expresso na histria.7 Os dois conceitos esto associados, de maneira que, a queda de um determinado costume deve tambm modificar a tradio. A rotina, por sua vez, deve ser entendida como o conjunto de operaes prticas de justificativa tcnica e no ideolgicas que ocupam um lugar oposto ao da tradio. Apenas aps a liberao do uso prtico, objetos podem ser plenamente usados de maneira simblica. A inveno da tradio essencialmente um processo de formalizao e ritualizao, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposio da repetio8. O processo exato de formao dos complexos simblicos e rituais ainda aparece, frequentemente, como um estudo pouco adequado, segundo Hobsbawm. O autor acredita na existncia de uma escassez de fontes que indiquem a elucidao dos processos, uma vez que, em muitos casos, as tradies so deliberadamente inventadas e no necessariamente documentadas. Alm disso, tcnicas relativas a este tipo de investigao no so comumente conhecidas por historiadores da era industrial9, ainda que considere improvvel a existncia de lugares e tempos investigados nos quais as tradies no tenham sido inventadas. Ocorre, contudo, que as freqentes mudanas do mundo moderno provocam a necessidade de inveno de novas tradies. A transformao dos padres sociais estabelecidos torna-os incompatveis manuteno de tradies sem capacidade de adaptao ou flexibilidade relativa s novas exigncias do comportamento humano. H que se perceber, entretanto, que as novas tradies so, comumente, inventadas a partir de antigos elementos para novas finalidades. A apropriao de prticas existentes institucionalizada, a partir de uma composio de smbolos que possam fornecer uma conexo com o passado para os propsitos atuais. Da mesma maneira que smbolos novos so

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Ibidem, idem, p. 9. Idem, p. 9. 8 Idem, p. 12. 9 Idem, p. 12.

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inseridos na tentativa de concretizar novas tradies. O uso de hinos e bandeiras para a personificao dos Estados-Nao usado, a ttulo de exemplo, pelo autor na discusso. Para finalizar esta breve discusso terica, Hobsbawm aponta trs possibilidades de tradio inventada. A primeira se refere ao estabelecimento da coeso social, a segunda legitimao de instituies e a terceira imposio de valores, idias e padres de comportamento social. Sendo que, a primeira, segundo o autor, que aparece com preponderncia. Mesmo percebendo que as tradies inventadas possuem cada vez menos a fora coercitiva que as tradies antigas e que ocupam cada vez menos espao na vida particular das pessoas, seu estudo constitui parte fundamental do ofcio do historiador. Estes fenmenos constituem indcios, sintomas que no devem ser desvinculados de uma ampla contextualizao da histria das sociedades. Hobsbawm se apropria do estudo das tradies em busca de um possvel esclarecimento do desenvolvimento das relaes humanas com o passado e, consequentemente, a histria da histria e do ofcio de historiador. Isso porque toda tradio inventada, na medida do possvel, utiliza a histria como legitimadora das aes e como cimento da coeso grupal10. A discusso exposta nos fornece subsdios para um exerccio de articulao a respeito da construo histrica e historiogrfica de So Paulo. A compreenso das representaes simblicas deve ser analisada como forma de coeso social e estruturao do estado. O estudo das tradies e da tentativa de entender a origem de sua inveno, localizando suas causas e desenvolvimento, fornece uma nova abordagem contextual da histria na medida em que nos permite identificar o que foi deliberadamente selecionado e institucionalizado na tradio popular, a partir de interesses especficos. De acordo com Santos, Hobsbawm considerava neste livro que os historiadores deveriam estar atentos a esta dimenso de suas atividades. O que tem nos levado a defender a Historiografia como um campo especfico da pesquisa histrica, sob a exigncia da necessria construo de uma epistemologia crtica da histria - algo que ainda encontra muitas resistncias em ambientes acadmicos aprisionados num empirismo rudimentar e em velhas supersties positivistas.11. A discusso da construo historiogrfica de So Paulo que se realizar em seguida se apresenta, portanto, como importante ferramenta na interpretao destes fenmenos sociais.

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Idem, p. 21. a Histria como sntese interpretativa.

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SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. Eric Hobsbawm: http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0017.htm. Acesso em 11.04.2009.

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3. A historiografia sobre o Bandeirante no sculo XVIII e incio do sculo XIX 3.1. Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques de Almeida Paes Leme Em Memrias para a Histria da Capitania de So Vicente (1797), Frei Gaspar da Madre de Deus escreve que as fbulas respectivas Capitania de S. Vicente, publicadas pelos estrangeiros nas suas histrias, todas, ou a maior parte delas, se originaram de algum fato verdadeiro, viciado pelos escritores12. Nessa obra, o beneditino objetiva desconstruir as ditas fbulas difundidas especialmente por Pierre Charlevoix e por Jos Vaissette, cujas obras, fundamentadas nos escritos dos padres Antonio Ruiz de Montoya, Nicolau del Techo e do dr. Francisco Xarque de Andela, procuravam denegrir o valor dos primeiros paulistas, para construir a verdadeira histria da Capitania de So Paulo e de seus naturais. Antonio Ruiz de Montoya e Nicolau del Techo, padres jesutas que viveram no Paraguai no sculo XVII, retrataram em suas obras, Conquista Espiritual hecha por los religiosos de la Compaia de Jesus, en las provincias del Paraguay, Paran, Uruguay y Tape (1639) e Historia e Provincia e Paraguariae Societatis Jesu (1673), respectivamente, a ao dos paulistas em suas expedies de apresamento do gentio, com certo desprezo e averso. Segundo Abud13, a penetrao dos paulistas em regies pertencentes Espanha, como o Guair, o Paraguai e o Uruguai, invadindo as misses jesuticas em busca de ndios para escravizar, suscitou a ira dos padres, porque ia contra os seus interesses, o que deu origem a uma lenda de ferocidade e selvageria, que foi particularmente alimentada pelos padres, que como vtimas desses ataques, deixaram uma bibliografia farta, (...) com a inteno de convencer as autoridades espanholas de defender as misses contra aqueles ataques. Francisco Xarque de Andela, que mantinha estreitas ligaes com a Companhia de Jesus, escreveu Insignes Misioneros de la Compaia de Jesus en la provincia del Paraguay (1687), obra inspirada na Conquista Espiritual, de Montoya, e que, por isso, tambm traz uma imagem negativa dos paulistas e do seu modo de vida. Sobre Francisco Xarque, Pedro Taques, que, assim como Frei Gaspar, refuta a opinio dos escritores estrangeiros a respeito dos paulistas, escreve que arredado da verdade e odioso aos paulistas, aos quais trata com o carter de mamelucos e lobos carneiros contra os

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MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memrias para a Histria da Capitania de So Vicente; prefcio de Mrio Guimares Ferri, Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Edusp, 1975, p. 137. 13 ABUD, Ktia Maria. O Sangue Itimorato e as Nobilssimas Tradies (A Construo de um Smbolo Paulista: o Bandeirante). Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH-USP, 1985, pp. 90-91.

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ndios cristos da reduo dos padres da companhia de Jesus. Por isso no merece muito crdito no sucesso que relata14. Pierre Franois Xavier de Charlevoix, padre jesuta autor de Histria do Paraguai, e Jos Vaissette, monge beneditino que escreveu a Histria Geogrfica, Eclesistica e Civil, nunca estiveram no Paraguai, mas escreveram suas obras inspirados em Montoya e del Techo, como afirma Frei Gaspar: O Jesuta Charlevoix caminha por estrada escorregadia como a de Vaissette; e bem se percebe que ambos beberam no mesmo charco15, ajudando, assim, a disseminar a imagem dos paulistas como um povo rebelde, violento e voluntarioso, o que se convencionou chamar, mais tarde, de legenda negra. Criticando e rebatendo os eruditos franceses pelo uso de notcias falsas e difuso de fbulas, Frei Gaspar escreve: As paixes cegam os homens e ofuscam os entendimentos. Charlevoix era Jesuta; tinha lido nos escritos de seus scios as conquistas dos paulistas nas Aldeias sujeitas extinta Companhia de Jesus, quando principalmente estvamos em guerra com a Espanha: sabia que os paulistas expulsaram da sua Capitania os mesmo Jesutas: esta injria era muito sensvel a toda a Sociedade: os seus indivduos no se descuidaram de encobrir as verdadeiras causas do seu extermnio e de representarem nos seus escritos os paulistas como inquos e depravados, para que somente sobre eles recasse todo o oprbrio. Todas estas razes de tal sorte enfureceram a Charlevoix contra os moradores da Capitania de So Vicente, que lhe faltaram as luzes intelectuais necessrias para discernir o verdadeiro do falso.16 Eu tenho por certo (...) que este meu irmo [Jos Vaissette] se envergonharia de ter iludido o pblico com o que escreveu a respeito de So Paulo e dos paulistas, se viera a esta Capitania e pelos cartrios dela chegasse a conseguir uma leve instruo verdadeira dos fatos antigos, que publicou mal informado.17 Assim, na segunda metade do sculo XVIII surgem as obras de Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques de Almeida Paes Leme, que se destacam pela glorificao do antigo paulista e pela reconstruo quase herica do passado da Capitania de So Vicente, como reao campanha difamatria dos cronistas jesutas empreendida desde o sculo anterior. Na obra de Pedro Taques destaca-se todo um universo de honra, de prestgio e de nobilitao a que estavam ligados os primeiros povoadores de So Paulo, o prprio ttulo de sua obra principal traz essa idia: Nobiliarquia Paulistana, o que, conforme Abud18, est presente no prprio conceito que se

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LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Notcia Histrica da Expulso dos Jesutas do Colgio de So Paulo. So Paulo: Melhoramentos, s/d, pp. 178-179. 15 MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da, op. cit., p. 130. 16 Idem, p. 105. 17 Idem, p. 119. 18 ABUD, Ktia Maria, op. cit, p. 76.

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pode formar, pela sua leitura, do bandeirante.19 A nobreza dos paulistas, para Pedro Taques, justificada pelos cargos que ocuparam na Repblica e pela quantidade de terras que possuam, encontra suas origens em uma raa pura, proveniente do sangue portugus nobre, livre de qualquer mcula, o que revela seu preconceito contra toda e qualquer mistura de sangue. Atitude diferente tinha seu primo Frei Gaspar da Madre de Deus, para quem a miscigenao do portugus com o indgena havia criado uma nova raa, cujas razes se encontram em Joo Ramalho e Tibiri, em Antonio Rodrigues e Piquerobi20 e cujas caractersticas a enobreciam, visto que: Eram os mamelucos os melhores soldados dos exrcitos assoladores das Misses: eles muitas vezes foram os Chefes das Tropas conquistadoras, e por eles mandavam seus pais atacar os ndios bravos, por conhecerem a suficincia destes filhos bastardos, criados na guerra, e acostumados ao trabalho, e por isso mais robustos e mais aptos do que os brancos para suportarem os incmodos dos Sertes.21 O trecho citado acima uma resposta afirmao de Charlevoix de que da mestiagem com o indgena, trao marcante da sociedade paulista, havia surgido uma gerao perversa, o que se configurava em uma grande ofensa para o beneditino, que identifica no ndio sua ancestralidade: Afirmar o Autor que da mistura do sangue saiu uma gerao perversa, supor que o sangue dos ndios influiu para a maldade, suposio que muito desonra, seno a crena, ao menos o juzo de um sbio Catlico; (...) a experincia sempre mostrou que os indivduos nascidos desta unio reluzem aquelas qualidades, que caracterizam em geral os indgenas do Brasil, tais como uma alma sensvel, benfica e desinteressada.22 Essa aparente liberalidade do pensamento de Frei Gaspar, conforme Abud23, no alcanou, no entanto, os mulatos e os negros africanos, que foram ocultados da fundao de So Paulo no s por ele, mas tambm por Pedro Taques, Charlevoix, Vaissette e todos os cronistas anteriores. A construo de uma imagem nobre e herica para o paulista uma forma de refutar o que diziam os cronistas estrangeiros sobre serem os primeiros habitantes do planalto degredados e foragidos da justia:

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importante ressaltar aqui que as palavras bandeirante e bandeira no foram, em momento algum, enunciadas nas obras de Pedro Taques e de Frei Gaspar. Como sinnimos de bandeirante aparecem: paulista, conquistador, descobridor, chefe de tropas ou sertanista; como sinnimos de bandeira, temos: expedio, entrada, tropa; referindo-se s bandeiras, encontrarmos o verbo penetrar e a expresso buscar remdio. 20 ABUD, Ktia Maria, op. cit., p. 95. 21 MADRE DE DEUS, Frei Gaspar, op. cit., p. 131, nota 163. 22 MADRE DE DEUS, Frei Gaspar, op. cit., p. 131, nota 162. 23 ABUD, Ktia Maria, op. cit., p. 94.

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Como h de provar Vaissette que mulatos foragidos concorreram para a fundao de So Paulo, se na era em que ela teve princpio havia poucos pretos da frica no Brasil (...)?24 Um outro assunto tratado por Frei Gaspar, e omisso a Pedro Taques, foi a ocupao das terras pertencentes Castela pelos bandeirantes, que fundamenta a expanso do territrio da Capitania de So Vicente, valorizando ainda mais a figura dos paulistas como grandes conquistadores, dignos de todas as glrias e de todas as honras pelos servios prestados Coroa: (...) porque os intrpidos moradores da Capitania de So Vicente, nos quais, ou por fora de fado ou por desgraa da sua Capitania e ventura das outras, sempre foi predominante a paixo de conquistar, no satisfeitos com povoarem, ainda que mal, toda a costa do seu Donatrio e a do outro de Santo Amaro, seu vizinho, passaram adiante da Ilha de Santa Catarina, onde Domingos Brito Peixoto, natural de So Vicente, fundou a Vila da Alaguna, estendendo o terreno dela at Maldonado, pois at l chegaram vrios atos que fez de posse, em benefcio da coroa portuguesa. Pelo serto, atravessou a animosidade dos Paulistas, com indizveis trabalhos, os fundamentos de todas as Capitanias Braslicas, em cujos domnios, depois de afugentarem inumerveis gentios, descobriram as Minas Gerais, as de Gois, as de Cuiab, e as de Mato Grosso; e como tudo quanto descobriram os valorosos naturais das Vilas sujeitas de So Vicente, se reputava parte desta Capitania, chegou ela a apossar-se de quase todos os fundos dos outros Donatrios.25 A escravizao indgena, motivo de tanta discrdia com os jesutas e da fama de belicosos, violentos e rebeldes, atribuda aos paulistas, justificada pelos dois autores como imprescindvel como mo-deobra para o cultivo da terra e para a descoberta das minas, servindo, assim, aos interesses da Coroa: Tambm certo que os moradores da Capitania de So Vicente, principalmente os de Serra acima, se esqueceram algumas vezes das Leis Divinas e humanas, respectivas inteira liberdade dos ndios: mas necessrio confessar que a esperana moralmente certa do perdo, e a experincia das condescendncias com eles tantas vezes praticadas nesta matria, por interesse do Estado, principalmente de Descobrimentos de ouro, sumariamente recomendados pela Corte aos paulistas, foi a causa principal de transgredirem as leis, abusando daqueles nicos casos em que as mesmas permitiam o cativeiro ou a Administrao dos ndios.26 Alguns anos sofreram os paulistas os danos que recebiam da falta dos servios dos ndios, que j no gozavam para benefcio da cultura das terras que lavravam (...) e querendo os paulistas trabalhar nestas minas, alugando ndios para o labor, como faziam at o ano de 1602, (...) foram experimentando e recebendo ofensas dos jesutas, que tinham arrogado a si o governo temporal de todo o gentio.27

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MADRE DE DEUS, Frei Gaspar, idem, p. 134. Idem, pp. 30-31. 26 MADRE DE DEUS, Frei Gaspar, op. cit., p. 135. 27 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes, op. cit., p. 172.

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No caso especfico da expulso dos jesutas de So Paulo, Pedro Taques justifica a expulso e coloca os paulistas como vtimas dos padres, porque escravizavam os ndios, no por crueldade, mas para o bem dos interesses da Metrpole: Depois disto parece que por falta de providncias foram os moradores da vila de So Paulo recebendo dos padres jesutas maiores danos, que os obrigou a uma nova alterao e desafogo (...)28 Com estes fomentos se foi gerando nos paulistas uma desafeio aos jesutas, que em todo o tempo, s cuidavam em ter o governo espiritual e temporal dos ndios do Estado do Brasil. Por esta causa foram expulsos de So Paulo e vila e Santos.29 As relaes dos paulistas com as autoridades reais, assim como com os jesutas, muitas vezes eram tensas, mas, segundo Pedro Taques e Frei Gaspar revelam em suas obras, os conflitos s aconteciam quando algo poderia pr em risco seus interesses relacionados propriedade e mercantilizao, como assevera Blaj30, porque viviam justamente em um universo estamental-escravista, da tambm a fama de serem os paulistas insubmissos, desobedientes e rebeldes. Fora isso, os paulistas eram fiis vassalos da Coroa, destemidos, valorosos, desinteressados e generosos, porm altivos com demasia31, o que se confirma no episdio da aclamao de Amador Bueno da Ribeira, caso exemplar da conduta dos primeiros paulistas: (...) intentando vencer com este brbaro e sacrlego atentado a constncia do honrado vassalo Amador Bueno, para deste modo evitarem a obedincia e o reconhecimento de que se devia dar ao legtimo rei e natural Senhor (...) Porm Amador Bueno, sem temer o perigo nem deixar prender-se de indiscreta lisonja, com que lhe ofereciam o ttulo de rei para o governo dos povos da Capitania de So Paulo, sua ptria, soube desprezar, e ao mesmo tempo repreender a insolente aclamao, desembaiando a espada e gritando a vozes (...)[contra] os castelhanos que tinham fomentado o tumulto. Nesta ao deu inteiramente crditos de si a incontrastvel lealdade deste vassalo paulista.32 (...) um meio que lhes pareceu o mais seguro, para conseguirem os seus intentos: tal era o de elegerem um rei paulista; e ao mesmo tempo apontaram como o mais digno da Coroa a Amador Bueno de Ribeira (...) Valeram-se os espanhis de todos os argumentos possveis para persuadirem aos paulistas e europeus pouco instrudos (...)

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Idem, p. 174. Idem, p. 177. 30 BLAJ, Ilana. A Trama das Tenses. O Processo de Mercantilizao de So Paulo Colonial (1681-1721). So Paulo:Humanistas/ Fapesp, 2002, p. 342. 31 MADRE DE DEUS, Frei Gaspar, op. cit., p. 84. 32 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histrica e Genealgica. Tomo I. So Paulo: Martins, 1954, p. 77.

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Eram sinceros os moradores de So Paulo, e, ainda fiis, bem poucos entre eles teriam a instruo necessria para conhecerem o Direito incontestvel da Serenssima Casa de Bragana ao cetro, e para perceberem os laos e as funestas desgraas em que aquelas maquinaes os iam precipitar.33 A sociedade no caracterizada economicamente por uma extrema pobreza na obra de Frei Gaspar, mas como detentora de paulistas muito opulentos, a quem: no faltavam serventes pela razo que, permitindo-lhes as nossas leis, e as de Espanha, em quanto a ela estivermos sujeitos, o cativeiro dos ndios aprisionados em justa guerra e a administrao dos mesmos, conforme as circunstncias prescritas nas mesmas leis, tinham grande nmero de ndios, alm de escravos pretos da costa da frica, com os quais todos faziam lavrar muitas terras e viviam na opulncia. Eles podiam dar em dote s suas filhas muitas terras, ndios e pretos, com que vivessem abastadas; por isso, na escolha de maridos para elas, mais atendiam ao nascimento, do que ao cabedal daqueles que haviam de ser seus genros.34 Como porta-vozes de uma sociedade estamental, descendente das mais nobres e antigas famlias da terra, as obras de Pedro Taques de Almeida Paes Leme e Frei Gaspar da Madre de Deus, deixam transparecer, segundo Abud35, o orgulho de casta, a afirmao da tradio, a procura das provas de ascendncia ilustre para a classe dominante, ameaada pelo grupo de recm-chegados, comerciantes e tropeiros portugueses, provenientes de Minas Gerais, que j comeavam a ocupar cargos na vereao, a exercer postos militares e a arrematar a cobrana de tributos, pondo em risco o prestgio das antigas elites. Assim, entre os sculos XVII e XVIII, distinguimos duas imagens antagnicas do bandeirante: uma imagem construda e difundida principalmente pelos padres jesutas, tendo o bandeirante como o vilo da histria: miservel, rebelde, autnomo, desobediente s ordens superiores, insolente e violento; e a imagem heroicizada, retratando o bandeirante como audacioso, aventureiro, independente, altivo, nobre, cuja linhagem remete ao homem branco e ao ndio, leal vassalo da Coroa Portuguesa e promotor da expanso territorial, construda por Pedro Taques e Frei Gaspar, num modelo pico de representao, conforme Lofego36. esta ltima imagem que vai consolidar, em ltima instncia, a imagem do movimento bandeirista e da prpria identidade paulista, de que vai se valer a maioria dos historiadores e cronistas que a eles se seguiram.

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MADRE DE DEUS, Frei Gaspar, op. cit., pp. 138-140. MADRE DE DEUS, Frei Gaspar, op. cit., p. 83. 35 ABUD, Ktia Maria, op. cit., p. 86. 36 LOFEGO, Slvio Luiz. IV Centenrio da Cidade de so Paulo: uma cidade entre o passado e o futuro. So Paulo: Annablume, 2004, p. 154.

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3.2. Auguste de Saint-Hilaire e a Fundao do Instituto Histrico e Geogrfico de SP Com o passar do tempo, essas imagens acerca do passado histrico de So Paulo e do paulista foram cristalizadas e difundidas, e novas imagens se juntaram s anteriores. Na primeira metade do sculo XIX, o viajante e naturalista francs Auguste de Saint-Hilaire, em sua obra Viagem Provncia de So Paulo, d grande destaque s expedies paulistas, expondo as duas imagens dos bandeirantes construdas nos sculos XVII e XVIII. No entanto, segundo Abud37, prevalece o orgulho dos escritos de Pedro Taques e Frei Gaspar: Orgulhosos por fora da nobreza de seus ascendentes, animados pelo esprito de liberdade selvagem que caracteriza a raa americana, esprito herdado do sangue materno, acostumados a ser obedecidos por numerosos escravos, passando grande parte de sua vida nos desertos, longe de toda a vigilncia, os paulistas nunca foram um povo submisso.38 Ao descrever as dificuldades enfrentadas em suas entradas ao serto, Saint-Hilaire constri uma nova imagem-smbolo para o paulista: a de uma raa de gigantes, que nunca subjugada, que se destaca pela sua superioridade fsica e moral, vencendo as maiores adversidades, transformando o isolamento em auto-suficincia: Quando se sabe, por experincia prpria quantas fadigas, privaes, perigos, ainda hoje aguardam o viajante que se aventura nessas longnquas regies e se toma conhecimento do itinerrio das interminveis incurses dos antigos paulistas, sente-se uma espcie de assombro, tem-se a impresso de que esses homens pertenciam a uma raa de gigantes.39 no sculo XIX, poca em que se difundem a imagem herica do bandeirante, construda pelos historiadores Pedro Taques e Frei Gaspar e a expresso raa de gigantes, cunhada por SaintHilaire, que fundado o Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo (1894), vinculado ao Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, cuja finalidade era buscar no passado fatos e vultos da histria do estado que fossem representativos para constituir uma historiografia marcadamente paulista, mas que desse conta do pas como um todo, como salienta Schwacz40. Os historiadores vinculados ao Instituto sero os responsveis pela glorificao do paulista e da histria de So Paulo e afirmao do37 38

ABUD, Ktia Maria, op. cit., p. 103. SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem Provncia de So Paulo. So Paulo: Martins, EDUSP, 1972, p. 14, apud ABUD, Ktia Maria, op. cit., p. 103. 39 Idem, p. 15, apud ABUD, Ktia Maria, op. cit., p. 104. 40 SCHWACZ, Lilia Motriz. O Espetculo das Raas: Cientistas, Instituies e Questo Racial no Brasil (1870-1930). So Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 126-127.

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imaginrio paulista atravs da recuperao de sua memria. A partir de ento, o bandeirante ser visto como sinnimo de paulista. 4. A historiografia sobre o Bandeirante nos sculos XIX e XX A terceira dcada do sculo XX assistiu a uma mudana no panorama poltico do Brasil, mudana esta que atingiu em cheio as ambies da classe dominante paulista. O poder hegemnico exercido pelo Estado de So Paulo passou a ser fortemente questionado, at ser, por sua vez, deslocado segundo plano aps o golpe militar orquestrado por Getlio Vargas, em 1930. Definitivamente, a realidade j no era mais a mesma do que das dcadas precedentes. Como no podia deixar de ser, a onda de estudos efetuados por grupo de letrados da populao paulista mobilizou-se em torno de argumentos de auto-defesa apoiados em dois pontos especiais: a denncia da realidade e o resgate de um passado glorioso. Dessa forma, passado e presente se entrecruzavam num jogo de afinidades e semelhanas que, explcita ou implicitamente, eram manipulados por uma rede seleta de autores. Era ento o restabelecimento de uma memria de tinturas coloniais moldada sob a tica paulista da Histria, claro. A luta contra o poder central, isto , contra a ditadura de Vargas, foi tomada como uma questo de honra pela classe burguesa paulista que havia sido espoliada da sua posio de mando. Os conflitos ocorreram no s no plano das idias, mas tambm na sua forma mais dramtica que a luta armada, evento conhecido como a Revoluo Constitucionalista de 1932. Para se chegar a tal ponto, foi preciso criar um sentimento de unidade entre toda a sociedade de So Paulo. Confundir os interesses de uma dada classe aos da populao em geral, era o tema das discusses. Identificar e caracterizar So Paulo e o paulista dentro da histria do Brasil era, de fato, um pressuposto essencial para disseminao de um sentimento unitrio e, se possvel, solidrio. Como indicado anteriormente, a construo das bases dessa imagem j haviam sido iniciadas pelos membros do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo desde 1894, data da sua fundao. Cabia, nesse instante, a reafirmao das antigas imagens juntamente com a elaborao de novas que vinham para suprir as necessidades ideolgicas do momento. Em resumo, as expectativas estavam em torno de um nico objetivo: ressaltar a raa de gigantes que, em nenhum momento da histria, se curvou a qualquer tipo de poder vindo de fora, pois ela nica e singular. Passa-se a indicar ento os principais estudiosos e suas idias, to importantes para a compreenso da construo de uma tradio paulista que teve na figura do bandeirante seu principal representante.

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De maneira geral, a tica paulista pode ser analisada por um vis bastante evidente entre os autores como, por exemplo, em Srgio Milliet: queriam provar que o Governo Federal era injusto e vingativo para com So Paulo, relao igualmente ocorrida entre a metrpole portuguesa e os paulistas durante o perodo colonial.41 Alm da conotao regional, vai-se mais longe, denuncia-se a ameaa contra a unidade nacional, no se esquecendo de mencionar que, obviamente, foi graas ao rduo trabalho dos paulistas que se conquistou tal unidade.42 A princpio, o destaque foi dado ao regime de isolamento a que So Paulo foi relegado. Percebe-se que autores como Otoniel Mota, ao denunciar esse regime que naturalmente denotaria um aspecto negativo a qualquer regio, buscam defender exatamente o contrrio, que tinha sido positivo, pois foi graas a vida isolada que houve a possibilidade do condicionamento fsico e moral do paulista.43 A condio de pobreza a que estava fadada a regio planaltina, evidentemente, era resultado de tal isolamento, realidade diferenciada das outras regies do Brasil. Este quadro de desigualdade existente no perodo colonial serviu tambm de argumentao para condenar a situao em que So Paulo se localizava diante dos Estados aliados a Vargas que, na viso paulista, estavam sendo privilegiados. Demonstrava-se, assim, uma continuidade histrica. Se por um lado esta continuidade podia ser prejudicial, por que no utilizar-se dela para se beneficiar em prol da defesa de certos interesses regionais? O contato entre o passado e o presente se tornou a prtica comum entre os advogados de defesa da causa paulista. A Histria mais uma vez era utilizada como arma na luta das argumentaes. Sensibilizao popular e homogeneizao dos interesses passam a ser a bola da vez. Isolamento e pobreza palavras que se tornam obrigatrias no vocabulrio dos estudiosos. Mais uma vez, toda uma realidade colonial configurada por tais problemas fornecia motivos para a criao de um esprito de superao. Na verdade, tudo que poderia se tornar negativo para uma sociedade no planalto piratiningano teve efeito inverso. O abandono e a inevitvel pobreza do paulista serviram de base para a formao de uma certa ndole, prpria da raa de gigantes que soube adaptar-se as circunstncias sem que elas minimizassem a sua grandeza. Enfim, para Roberto Simonsen44, Rubens Borba de Morais45, Alcntara Machado46, Alfredo Ellis Jr.47 e Otoniel Mota48,41 42

MILLIET, Srgio. Recenseamentos antigos, em Roteiro do caf e outros ensaios. So Paulo: BIPA-EDITORES, 1946. PEIXOTO, Afrnio. Prefcio Histria econmica do Brasil (1500/1820) de Roberto C. Simonsen. So Paulo: Nacional, 1937. 43 MOTA, Otoniel. Do rancho ao palcio (evoluo da civilizao paulista). So Paulo: Nacional, 1941. 44 SIMONSEN, Roberto. Histria econmica do Brasil (1500/1820). So Paulo: Nacional, 1937. 45 MORAIS, Rubens Borba de. Introduo a Saint-Hilaire, Viagem provncia de So Paulo. Sao Paulo: Martins, 1945. 46 MACHADO, Alcntara. Vida e Morte do Bandeirante. So Paulo : Revista dos Tribunais, 1929. 47 ELLIS JR., Alfredo. Resumo da histria de So Paulo (quinhentismo e seiscentismo). Sao Paulo : Tip Brasil Rothschild Loureiro, 1942. Para John M. Monteiro, este autor ainda foi pouco estudado apesar de seu um dos mais notveis escritores

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isolamento e pobreza condicionaram a formao de uma autarquia econmica e de uma quase autosuficincia. preciso lembrar que se essa era a regra, logo, existiram as excees. Caio Prado Jnior pensava a realidade paulista colonial de outra forma, diferente das que vigoravam entre os especialistas. Para ele, So Paulo tinha um centro geogrfico e econmico privilegiado, demonstrando a importncia das suas redes de transporte, tanto terrestres como hidrogrficas, que favoreciam a existncia de um comrcio dinmico e variado. Alm disso, no se esqueceu de mencionar o porto de Santos, principal porta de entrada e sada de produtos que, alis, incentivavam o abastecimento de um comrcio interno.49 Mas essas idias alternativas no recebiam a ateno merecida, pois no iam ao encontro dos objetivos pr-definidos pela classe dominante paulista. Enfim, o que predomina e permanece nos escritos entre 1930 e 1945 a imagem do isolamento mas da auto-suficincia. Verdadeira autarquia, que no necessitava da metrpole, portanto do poder central, nem das outras regies, logo dos outros estados, So Paulo teria sobrevivido galhardamente no perodo colonial, como sobreviveu heroicamente durante o Estado Novo.50 Local nico com uma populao nica, So Paulo se destaca como uma regio onde a liberdade e a independncia so caractersticas naturais. No faria diferena se fosse o rei de Portugal ou governo getulista, qualquer um que questionasse a sua condio quase que providencial, provaria da rebeldia de seus habitantes em defesa de um poder autnomo e democrtico.51 Alm do carter autnomo que faz de So Paulo um self-government, h tambm a demonstrao da fora poltica dos paulistas, quer em nvel local e regional, quer em nvel colonial, ou seja, o poder de interveno no curso da histria do Brasil. Para isso diz Ellis Jnior: (...) o planalto sempre se fez evidente em todos os movimentos de independncia da Amrica portuguesa.52paulistas da primeira metade do sculo XX. Diz Monteiro: Elaboradas num perodo de aguada tenso entre as foras polticas e econmicas regionais e o estado nacional, as primeiras obras de Ellis Jr. destacavam-se pelo seu tom polmico e pela audcia das teses avanadas, na tremenda enxurrada de novos estudos exaltando os antigos paulistas, agora chamados de bandeirantes. Ao contrrio de seu mestre Afonso de Escragnolle Taunay, cuja vastssima obra constitui uma desordenada crnica de fatos, eventos e personagens pitorescos, Ellis Jr. ambientou o bandeirante e, sobretudo, a mestiagem num contexto cientificista to emaranhado quanto a densa mata penetrada pelos mesmos sertanistas. Lanando mo de uma verdadeira floresta de pressupostos evolucionistas, em que pesavam as teorias abraando o papel determinista da raa e do meio fsico, Ellis Jr. esforou-se para mostrar as bases cientficas e histricas da especificidade do carter paulista, que justificavam seus anseios autonomistas. MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de Histria indgena e do indigenismo. Tese de Livre Docncia. Campinas, 2001. p. 196-197. 48 MOTA, Otoniel. Op. Cit. 49 PRADO JR., Caio. Contribuio para a geografia da cidade de So Paulo, em Evoluo poltica do Brasil e outros estudos. So Paulo: Brasiliense, 1947. 50 BLAJ, Ilana. A Trama das Tenses: o processo de mercantilizao de So Paulo colonial (1681-1721). So Paulo: Humanitas; Fapesp, 2002. p.59. 51 JARDIM, Caio. So Paulo no sculo XVIII. Revista do Arquivo Municipal de So Paulo. v.41. novembro, 1937. 52 ELLIS JNIOR, Alfredo. Op. Cit. p.60. Belmonte tambm compartilha da idia em No tempo dos bandeirantes. Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de So Paulo, So Paulo, 1939.

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Em sntese, o que os autores acima citados querem enfatizar o aspecto singular de So Paulo. Superior fsica e moralmente, singular e proeminente, independente, rebelde mas igualmente democrtico, vencendo adversidades, transformando o isolamento em auto-suficincia, o paulista realmente constitui uma raa de gigantes.53 Basicamente, a Historiografia Paulstica, assim denominada por Ilana Blaj, assentava-se, entre os anos de 1930 e 1945, no discurso que utilizava a regio nordeste do Brasil como ponto referencial de comparao com a realidade de So Paulo. Mostrar a pobreza piratiningana frente opulncia pernambucana, por exemplo, servia de pressuposto para salientar a superao daqueles que tinham como destino certo o esquecimento. A partir da dcada de 1950, e at por volta de 1970, a preocupao dos estudiosos tomaram outro caminho que ia a procura por uma explicao para a condio de subdesenvolvido a que ocupava o Brasil e sua dependncia aos pases mais ricos. Nesse instante, a historiografia brasileira embrenhava-se nas razes coloniais, tendo como foco norteador os ncleos exportadores, com especial destaque para o nordeste. Dessa forma, quase to-somente os plos exportadores seriam enfatizados e as demais regies, mais voltadas ao abastecimento interno, como So Paulo colonial, seriam relegadas a um segundo plano.54 Como resultado desta nova forma de se analisar a histria, So Paulo passou a ser vista apenas em funo das demais regies, ora fornecendo ndios como mo-de-obra escrava, ora desbravando territrios e, por fim, achando metais preciosos. Apesar do redirecionamento nos estudos brasileiros, a dcada de 1950 presenciou um fato muito importante: o IV centenrio da cidade de So Paulo. Pode-se dizer que os eventos culturais, as comemoraes e as publicaes materializaram o auge representativo da tradio paulista. A figura do bandeirante, definitivamente, levada ao pice e, o mais importante, a tradio paulista construda ao longo de dcadas por estudiosos a servio, ou no, do poder oficial difundida na massa da populao, fincando razes no conhecimento popular. Porm, no plano mais geral dos estudos histricos, o curso das investigaes seguia outro rumo. Quando parte da historiografia brasileira abandonou os estudos sobre a dinmica interna paulista, favoreceu, como havia de ser, a perpetuao daquelas vises tradicionais de So Paulo. Itens como o isolamento, a economia de subsistncia, a altivez, a independncia e a democracia foram fundamentais para a cristalizao de tais imagens, tomando como principal representante o intocvel bandeirante.

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BLAJ, Ilana. Op.cit. p.64. Idem, Ibdem. p.66.

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Uma gama de historiadores deu substancial reforo as velhas idias. Raul de A. e Silva ainda defendia a condio de isolamento e autonomia.55 Alfredo Ellis Jnior e sua filha Myriam Ellis, alm de citarem tpicos como o isolamento, a auto-suficincia e a democracia, retomavam a idia de uma raa de gigantes.56 Entretanto, esse perodo tambm ficou caracterizado pelo surgimento de novos caminhos interpretativos que, em pontos especficos, contrapunham as idias at ento vigentes no cenrio intelectual brasileiro, mxime o paulista. Charles R. Boxer em sua obra questionava a tese de autosuficincia e de isolamento a que hipoteticamente vivia So Paulo colonial.57 H tambm a no aceitao por parte de Raymundo Faoro de que os paulistas viviam em plena liberdade e autonomia, alm daquela tpica rebeldia, claro.58 J Richard M. Morse buscou desbancar a tese da democracia paulista ao trazer tona os complexos mecanismos hierrquicos comuns das sociedades coloniais.59 Mas foi Srgio Buarque de Holanda o principal inovador das reflexes em torno da histria de So Paulo. Para ele cada poca e cada formao social tinham seu prprio centro de gravidade, sua unidade de sentido. a interao entre meio, cultura e sociedade. Assim, Buarque de Holanda buscava por em xeque a corrente analtica que enxergava So Paulo como uma regio atpica dentro da colnia. O quadro apresentado por uma determinada localidade, cuja dinmica seja nica, no quer dizer que ela represente uma cristalizao definitiva, mas sim uma sedimentao provisria. a idia do movimento, do vir a ser defendida pelo historiador. Outro ponto bastante discutido a relao cultural entre o ndio e o europeu. A relao entre vida material e sobrevivncia, expanso territorial e equilbrio vital tambm fazem parte das preocupaes do autor.60 No entanto, devido s discusses candentes acerca do subdesenvolvimento brasileiro, s prticas sociopolticas encetadas pelo nacional-desenvolvimentismo e ao primado da sociologia e da histria econmica, poucos autores, nesse perodo, trilharam os caminhos abertos pela obra de Srgio Buarque de Holanda.61

SILVA, Raul de A. So Paulo nos tempos coloniais. In: AZEVEDO, Aroldo de (org.). A cidade de So Paulo. Estudos de geografia urbana. Vol. II. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958. 56 ELLIS JNIOR, Alfredo. A economia paulista no sculo XVIII. O ciclo do muar; o ciclo do acar. In: A economia paulista no sculo XVIII. So Paulo: Biblioteca da Academia Paulista de Letras, 1979, vol. 11(a primeira edio de 1950); ELLIS, Myriam. As bandeiras na expanso geogrfica do Brasil. In: HOLANDA, Srgio Buarque de (dir.). Histria geral da civilizao brasileira. Tomo I A poca colonial, vol.1. So Paulo : Difuso Europia do Livro, 1960. 57 BOXER, Charles R. Salvador de S e a luta pelo Brasil e Angola (1602-86). So Paulo: Editora Nacional; Editora da USP, 1973. 58 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formao do patronato poltico brasileiro. Vol. 1. Rio de Janeiro: Globo, 1957. 59 MORSE, Richard M. Formao histrica de So Paulo (de comunidade metrpole). So Paulo: Difel, 1970 (a primeira edio de 1954). 60 HOLANDA, Srgio Buarque. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957. 61 BLAJ, Ilana. Op. Cit., p.72.

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Como conseqncia das atenes dadas somente aos centros exportadores coloniais, novas imagens de So Paulo foram incorporadas s antigas. Vista agora fora do eixo econmico da explorao colonial, a regio de Piratininga encontrava-se extremamente pobre, sem dinamismo de qualquer natureza produtiva e voltada apenas sua subsistncia. Afonso de E. Taunay, Richard Morse, Myriam Ellis e Alice C. Canabrava so alguns dos autores que contriburam para a construo desse pensamento.62 Alis, o nico elemento capaz de inserir os paulistas nas relaes comerciais do Brasil o ndio, que, caado e escravizado, eram vendidos as outras regies produtoras que eventualmente careciam de mo-de-obra.63 Assim, devido predominncia das discusses acerca do subdesenvolvimento, de o Nordeste ser visto como ponto de estrangulamento ao desenvolvimento brasileiro no sculo XX, a maioria dos estudos a partir da dcada de 1950 passa a privilegiar as reas exportadoras do perodo colonial, buscando nelas a origem de tal configurao. A riqueza e o dinamismo coloniais so identificados com as regies que mais se articularam ao mercado europeu e metropolitano no perodo, e, dessa forma, cristaliza-se a imagem de uma So Paulo pobre, voltada apenas subsistncia, articulada aos demais centros to-somente pela venda do indgena, movimento externo e no interno vila.64 Essa rpida exposio de obras e autores permitiu a melhor compreenso de como se deu o processo de construo de uma tradio paulista que escolheu como seu principal representante a figura herica do bandeirante. Se a onda de estudos tinha como objetivo a constituio deliberada dessa tradio paulista, pode-se dizer que tal objetivo foi atingido pois, ainda hoje, o conhecimento popular e oficial da histria de So Paulo est bastante permeada pelas caractersticas que ao longo destas pginas foram salientadas.

TAUNAY, Afonso de E. Histria da cidade de So Paulo. Foi publicado em 1954 em virtude das comemoraes do IV centenrio da cidade de So Paulo; MORSE, Richard. Op. Cit.; ELLIS, Myriam. Pesquisas sobre a existncia do ouro e da prata no planalto paulista nos sculos XVI e XVII. In: A economia paulista no sculo XVIII.; CANABRAVA, Alice P. Esboo da histria econmica de So Paulo. In: BRUNO, Ernani Silva (org.). So Paulo: terra e povo. Porto Alegre : Globo, 1967. 63 FAORO, Raymundo. Op. Cit.; ZEMELLA, Mafalda P. O Abastecimento da Capitania das Minas Gerais no sculo XVIII. So Paulo: 1951. 64 BLAJ, Ilana. Op. Cit., p. 74.

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5. Bibliografia Bandeirante : 1880-1930 O instituto histrico geogrfico de So Paulo foi fundado no inicio do ms de novembro em 1884. Participaram da cerimnia importantes polticos da poca e a elite do comrcio e do caf, tais figuras reuniram-se no salo nobre da faculdade de direito do largo So Francisco. Neste perodo a republica j se encontrava instalada, o panorama da provncia e da nao j era outro. Com novas possibilidades de empreendimentos. A inaugurao e os trabalhos do IHGSP ocorreram as vsperas da posse do primeiro presidente civil da republica, o paulista Prudente de Morais. Uma das personalidades que integrava o rol dos fundadores do instituto. Durante toda primeira repblica o IHGSP gozaria de grande prestigio, pois a elite cafeeira e comercial,alem dos polticos e cientistas ilustres da poca estavam entre os membros. Neste perodo a economia de so Paulo manter em constante crescimento. O sistema de transporte ferrovirio a imigrao estrangeira, dava-se com grande intensidade, a imigrao estrangeira estava sedo subsidiada pelo governo provincial, para substituir mo-de-obra a escrava, a cafeicultura. Crescia e se expandia pelos campos do interior da provncia e volta e meia os preos do caf oscilava mercado externo, o governo provncia intervinha na economia socorrendo a elite do caf. A cidade de so Paulo passava por grandes transformaes como canalizao de crregos e rios, servios eltricos, fornecimento de gua, telefonia e transporte, saneamento bsico, abertura de novos bairros e avenidas, tais empreendimentos atraram os grandes fazendeiros ricos a capital, onde erguiam seus palacetes. Era a belle poque um novo estilo de vida, tido como moderno e cosmopolita. Corriam na poca as idias filosficas do liberalismo, darwinismo social e positivismo, tais idias inspiravam os grupos de letrados da poca que acreditavam que s tingiram o progresso por meio da educao, que seria a soluo para todos os males. Nesta poca foi criada a educao compulsria para meninos e meninas entre sete e onze anos (com exceo dos escravos). As escolas medias e superiores recebiam uma maior ateno do governo, como podemos constatar a criao de vrios organizaes na poca. Outro espao a contribuir para a cultura letrada foi a MuseuPaulista inaugurado em 1890. O museu seria mais uma das contribuies para elevar a historia paulista. As realizaes das primeiras reunies ordinrias do Instituto realizaram-se em vrios lugares do centro de So Paulo, principalmente em sobrados alugados as ruas 15 de novembro, marechal Teodoro e General Carneiro. J que o mesmo ainda no possua uma sede prpria. A construo da sede prpria demoraria alguns anos. Em 1909 fiou ponta a construo do prdio, a Rua Benjamim Constant construdo com donativos

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de particulares e subsdios do governo pblico. O prdio foi inaugurado com toda a pompa que a ocasio ensejava. Analisando o quadro de presidentes, e scios fundadores no perodo que se estende at 1940 podemos verificar que estavam ligados ao Instituto a elite de So Paulo. Nomes como Prudente de Morais (1908) e Afonso de E. Taunay (1939); e presidentes efetivos como Cesrio Mota Jr. (1894) Duarte de Azevedo (1897), Luis Piza (1912), Altino Arantes (1916), Afonso Antonio de Freitas (1922) e Jose Torres de Oliveira (1930). Dos 139 fundadores, uma grande parte deles ocupava os mais atos cargos polticos federais e estaduais65. Tambm inclua indivduos beneficirios das fortunas consolidadas da expanso capitalista de so Paulo, ricos, quase todos eram diplomados em cursos superiores, o que lhes dava garantia de participarem de uma elite de cultura letrada. Neste rol quase todos se consideravam historiadores, mas foi um ncleo bem pequeno que se dedicou ao estudo e a pesquisa mais abrangente sobre o perodo colonial de so Paulo, destes historiadores os que se debruaram ao estudo com certa solides temos: Eduardo prado, Aureliano Leite, Afonso de E. Taunay, Alcntara Machado, Paulo Prado, Afonso Antonio de Freitas, entre outros que ingressaram um pouco mais tarde na dcada de 20 como Alfredo Elis Junior, Aroldo de Azevedo, Plnio Ayrosa, Roberto Simonse , desses historiadores chamados de pr-cientficos vrios ocuparam cadeiras no curso de historia, sociologia, antropologia e filosofia na escola de sociologia e poltica e na Faculdade de Filosofia e Letras da USP. Outros tambm figuram como scios renomados do Instituto que iro abrir a dcada de 30 ambos pertencentes de outras regies do estado, iram criar vnculos so eles Capistrano de Abreu, Joo Pandia.

6. Calogeras, Rocha Pompo e Baslio de Guimares Nas obras dos escritores vinculados ao Instituto Histrico Geogrfico de So Paulo percebemos, mais claramente, a glorificao do paulista e da historia de So Paulo. Segundo Lilia schwacz os paulistas buscavam no passado fatos e vultos da histria do estado que fossem representativos para constituir uma historiografia marcadamente paulista, mas que desse conta do pais como um todo.66 Valorizando o paulista ancestral e sua linhagem, sua Independncia perante a coroa portuguesa etc. encarregaram da construo de uma imagem ideolgica cheia de mitos sobre a economia paulista, e os homens que viveram naquela poca. Tais historiadores estavam engajados comprometidos com interesses polticos de seu tempo.65

FERREIRA. Antonio Celso. A epopia bandeirante: Letrados, Instituies, inveno histrica (1870-1940). So Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 99. 66 SCHWARCZ, Lilia Motriz. O Espetculo das Raas. Cientistas, instituies e questo racial no Brasil (1870-1930). So Paulo: Cia das Letras, 1993, pp.126-127.

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Theodoro Sampaio, em fins do sculo XIX retomava a fala do viajante Frances Saint-Hilair que em sua obra Viagem a provncia de so Paulo no inicio do sculo XIX deixou sua admirao pela coragem que e faanhas dos homens da vila de Piratininga. Quanto se sabe, por experincia prpria, quantas fadigas, perigos ainda hoje aguardam o viajante que se aventura nessas longuigas regies e se toma conhecimento do etinerario das interminveis incurses dos antigos paulistas, sente-se uma espcie de assombro, tem-se a impresso de que esses homens pertenciam a uma raa de gigantes.67 Theodoro Sampaio partindo da mesma idia de Saint-Hiraire em sua obra o gosto pela ao a coragem e retomou a ideologia de uma raa de gigantes. J Capistrano de Abreu produziu seus trabalhos voltados para explicar isolamento, a auto-suficincia da vila, liberdade e independncia. ... acrescente-se que os habitantes do tempo cegavam as vezes os caminhos, para tolher as acoes das autoridades de serra abaixo, representantes do poder real ou senhorial. De tudo ressalta a necessidade de considerar o povoado serrano independente de Santos, de So Vicente e da marinha em geral.68 Paulo Prado enfatiza em seus estudos a vila de So Paulo e o paulista. Assinala a origem do paulista: o surgimento de uma nova raa, que se deu a partir do cruzamento entre Portugueses e os indgenas; salienta tambm o isolamento da vila provocado pela serra do mar, tal distncia em relao as outras capitanias impulsionava os bandeirantes a sarem para os sertes gerando desta forma a expanso territorial e a descoberta de metais preciosos. Em linhas gerais Paulo enfatiza essa raa de paulista como uma nova raa, e que possui muitas caractersticas e timas qualidades. por outros historiadores do Instituto at a dcada de 1930. Washington Luis e Oliveira Viana destacam a expanso territorial feita pelo bandeirante expandindo o Brasil para a coroa Portuguesa e o achamento de metais preciosos, alm tambm de se destacar a riqueza e o estilo de vida nobre, a educao dos bandeirantes que reservavam aos melhores costumes e tradies, Viana estava preocupado em identificar a elite paulista da primeira repblica com seus ilustres ancestrais. Analisava a nobreza de Minas Gerais, Rio de Janeiro e So Paulo , enfatizando a cultura e as tradies desses povos, enfatizava tambm que ambos foram os responsveis pela boa conduo do imprio do Brasil. Mas oliveira Viana no deixa de exaltar o paulista como uma67

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valorizao do paulista e vrios outros feitos, sero enfatizados no s por Paulo Prado, mas tambm

SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem provncia de So Paulo. In: BLAJ, Ilana. O Processo de Mercantilizao de So Paulo Colonial (1681-1721). So Paulo: Humanitas-Fapesp, 2002, p. 47. 68 ABREU, Joo Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. 2. Ed. Rio de Janeiro: Briguiet, 1960, pp. 74.75.

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raa superior as outras raas do pais, deixando claro que os paulistas seriam os melhores e mais indicados para dirigir a nao que estava crescendo a todo o vapor. Segundo Ilana,Oliveira Vianna o responsvel pela nova teoria que viria a surgir e que outros autores destacariam como Alfredo Ellis Junior Vianna inaugurou a teria da raa prpria...assim, durante a primeira republica, pelo enaltecimento do bandeirante e da nfase nos traos...a elite paulista,, por meio de vrios estudiosos, chamou a ateno para o papel de so Paulo e seus lideres que, maneira dos antigos sertanistas, poderiam promover a riqueza, o consenso, enfim, a verdadeira nao.69 Elis Junior em seus trabalhos deu importncia a economia do Piratininga e a considerou como uma economia praticamente auto-suficiente, considerou a mestiagem e enfatizou tambm que o paulista em vrios momentos ousou desafiar a metrpole e ao El rei; alem de defender a diferenciao e a superioridade da raa paulista com j foi dito, tambm chama a ateno para a questo do clima que foi essencial na feitura de uma raa superior, fisicamente, moralmente e independente70. Como j foi dito anteriormente outra instituio que veio a auxiliar a historiografia formada pelo mito do bandeirante foi o museu Paulista que ora era monumento, mas no mbito das concepes Republicanas adquiriu novos contornos especialmente a partir da dcada de 1920. Foi nesta ocasio que o Museu Paulista comeou a se transformar propriamente de histria. Graas as intervenes estticas e historiogrficas projetadas e consumadas por Afonso d`Escragnolle Taunay, membro do IHGSP e diretor do Museu de 1917 a 1945. Durante sua gesto, Taunay com o apoio de polticos e empresrios, reorganizou as reas expositivas, substituindo as colees zoolgicas e botnicas por acervos destinados remorizao de fatos histricos e tradicionais brasileiras e principalmente paulistas. A relevncia que assume o estado de So Paulo, com o bandeirismo, dentro da historia da independncia contada por Taunay, uma das caractersticas centrais desse conjunto decorativo. O autor do projeto pretendeu atribuir a So Paulo, atravs do movimento bandeirante o papel de conquistador e unificador e do territrio da nao brasileira. Tal mensagem transmitida atravs da orquestrao de elementos distintos da decorao.71 O conjunto figurativo, ocupa o saguo de entrada, a escadaria de mrmore, os espaos que cercam e o salo nobre, fazendo do eixo central do edifcio um caminho demarcado por episdios e

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BLAJ, Ilana. O Processo de Mercantilizao de So Paulo Colonial (1681-1721). So Paulo: Humanitas-Fapesp, 2002, pp. 52-53.

70 71

Idem, pp.63-64. OLIVEIRA, Ceclia Helena de Sales. O Museu Paulista e o Imaginrio da independncia. In: Museu Paulista: Novas Leituras. So Paulo: Museu Paulista /USP, 1995, pp. 5-9.

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personagens que representam o percurso da historia de so Paulo e do Brasil.

Com inicio na

colonizao e o desfecho na independncia. Sob feies teatralizadas e formais, pinturas, retratos, esculturas de mrmore e bronze, bem como nforas de cristal contendo guas dos principais rios brasileiros, compem o cenrio de um espetculo visual,esteticamente impressionante...da decorao faze parte as figuras dos primeiros colonizadores das terras paulistas, os bandeirantes esto dispostos na condio de personagens decisivas na definio do territrio e das fronteiras...72. Outra forma de chamar a ateno do visitante do museu alem das escadarias bem decoradas, esto duas estatuas em mrmores dos bandeirantes Antonio Raposo Tavares e Ferno Dias Paes, feitas pelo escultor Luigi Brizzola ambas esto expostas no saguo do museu, na entrada principal, so apresentados com toda a pompa homens robustos com barba, chapelo de abas largas, altas botas de montaria, portam armas de fogo, bem vestidos e vigorosos. Fica claro que a inteno de Taunay era transformar a narrativa histrica em linguagem visual, para que o visitante do museu, seja da elite ou das classes populares, convencessem-se a existncia real das pessoas e eventos; ali representados e da a importncia dos bandeirantes no contexto histrico do Brasil. Foram usadas tambm para adornar o museu muitas das iconografias produzidas em fins do sculo XIX; naquele momento procurou demonstrar uma serie de registros visuais que contava a historia para leigos, e ao mesmo tempo iria satisfazer a viso da elite. A pintura, como sistema poltico que se transformou de um imprio altamente centralizador para uma republica fortemente federalista. Os pintores que destacaram o tema do bandeirante foram Teodoro Braga, Manuel Victor, Rafael Falco e Benedito Calixto entre outros. Ambos retrataram o bandeirante com uma virilidade herica, aventureiro, desbravador, bem vestidos e portando armas. Sempre retratados a frente ou acima da figura do ndio. Cada poca tem suas imagens e as produz conforme sua viso de historia; no caso paulista, uma historia a partir do ponto de vista das elites dirigentes. A terceira dcada do sculo XX assistiu a uma mudana no panorama poltico do Brasil, mudana esta que atingiu em cheio as ambies da classe dominante paulista. O poder hegemnico exercido pelo Estado de So Paulo passou a ser fortemente questionado, at ser, por sua vez, deslocado segundo plano aps o golpe militar orquestrado por Getlio Vargas, em 1930. Definitivamente, a realidade j no era mais a mesma do que das dcadas precedentes.

OLIVEIRA. Ceclia Helena de Salles. Liames entre Histria e Memria. In: So Paulo: Uma Longa Histria. Srie Nossa Histria. So Paulo: CIEE, 2004. pp. 13-14.

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Como no podia deixar de ser, a onda de estudos efetuados por grupo de letrados da populao paulista mobilizou-se em torno de argumentos de auto-defesa apoiados em dois pontos especiais: a denncia da realidade e o resgate de um passado glorioso. Dessa forma, passado e presente se entrecruzavam num jogo de afinidades e semelhanas que, explcita ou implicitamente, eram manipulados por uma rede seleta de autores. Era ento o restabelecimento de uma memria de tinturas coloniais moldada sob a tica paulista da Histria, claro. A luta contra o poder central, isto , contra a ditadura de Vargas, foi tomada como uma questo de honra pela classe burguesa paulista que havia sido espoliada da sua posio de mando. Os conflitos ocorreram no s no plano das idias, mas tambm na sua forma mais dramtica que a luta armada, evento conhecido como a Revoluo Constitucionalista de 1932. Para se chegar a tal ponto, foi preciso criar um sentimento de unidade entre toda a sociedade de So Paulo. Confundir os interesses de uma dada classe aos da populao em geral, era o tema das discusses. Identificar e caracterizar So Paulo e o paulista dentro da histria do Brasil era, de fato, um pressuposto essencial para disseminao de um sentimento unitrio e, se possvel, solidrio. Como indicado anteriormente, a construo das bases dessa imagem j haviam sido iniciadas pelos membros do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo desde 1894, data da sua fundao. Cabia, nesse instante, a reafirmao das antigas imagens juntamente com a elaborao de novas que vinham para suprir as necessidades ideolgicas do momento. Em resumo, as expectativas estavam em torno de um nico objetivo: ressaltar a raa de gigantes que, em nenhum momento da histria, se curvou a qualquer tipo de poder vindo de fora, pois ela nica e singular. Passa-se a indicar ento os principais estudiosos e suas idias, to importantes para a compreenso da construo de uma tradio paulista que teve na figura do bandeirante seu principal representante. De maneira geral, a tica paulista pode ser analisada por um vis bastante evidente entre os autores como, por exemplo, em Srgio Milliet: queriam provar que o Governo Federal era injusto e vingativo para com So Paulo, relao igualmente ocorrida entre a metrpole portuguesa e os paulistas durante o perodo colonial. Alm da conotao regional, vai-se mais longe, denuncia-se a ameaa contra a unidade nacional, no se esquecendo de mencionar que, obviamente, foi graas ao rduo trabalho dos paulistas que se conquistou tal unidade. A princpio, o destaque foi dado ao regime de isolamento a que So Paulo foi relegado. Percebe-se que autores como Otoniel Mota, ao denunciar esse regime que naturalmente denotaria um aspecto negativo a qualquer regio, buscam defender exatamente o contrrio, que tinha sido positivo, pois foi graas a vida isolada que houve a possibilidade do condicionamento fsico e moral do paulista.

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A condio de pobreza a que estava fadada a regio planaltina, evidentemente, era resultado de tal isolamento, realidade diferenciada das outras regies do Brasil. Este quadro de desigualdade existente no perodo colonial serviu tambm de argumentao para condenar a situao em que So Paulo se localizava diante dos Estados aliados a Vargas que, na viso paulista, estavam sendo privilegiados. Demonstrava-se, assim, uma continuidade histrica. Se por um lado esta continuidade podia ser prejudicial, por que no utilizar-se dela para se beneficiar em prol da defesa de certos interesses regionais? O contato entre o passado e o presente se tornou a prtica comum entre os advogados de defesa da causa paulista. A Histria mais uma vez era utilizada como arma na luta das argumentaes. Sensibilizao popular e homogeneizao dos interesses passam a ser a bola da vez. Isolamento e pobreza palavras que se tornam obrigatrias no vocabulrio dos estudiosos. Mais uma vez, toda uma realidade colonial configurada por tais problemas fornecia motivos para a criao de um esprito de superao. Na verdade, tudo que poderia se tornar negativo para uma sociedade no planalto piratiningano teve efeito inverso. O abandono e a inevitvel pobreza do paulista serviram de base para a formao de uma certa ndole, prpria da raa de gigantes que soube adaptar-se as circunstncias sem que elas minimizassem a sua grandeza. Enfim, para Roberto Simonsen , Rubens Borba de Morais , Alcntara Machado , Alfredo Ellis Jr. e Otoniel Mota , isolamento e pobreza condicionaram a formao de uma autarquia econmica e de uma quase auto-suficincia. preciso lembrar que se essa era a regra, logo, existiram as excees. Caio Prado Jnior pensava a realidade paulista colonial de outra forma, diferente das que vigoravam entre os especialistas. Para ele, So Paulo tinha um centro geogrfico e econmico privilegiado, demonstrando a importncia das suas redes de transporte, tanto terrestres como hidrogrficas, que favoreciam a existncia de um comrcio dinmico e variado. Alm disso, no se esqueceu de mencionar o porto de Santos, principal porta de entrada e sada de produtos que, alis, incentivavam o abastecimento de um comrcio interno. Mas essas idias alternativas no recebiam a ateno merecida, pois no iam ao encontro dos objetivos pr-definidos pela classe dominante paulista. Enfim, o que predomina e permanece nos escritos entre 1930 e 1945 a imagem do isolamento mas da auto-suficincia. Verdadeira autarquia, que no necessitava da metrpole, portanto do poder central, nem das outras regies, logo dos outros estados, So Paulo teria sobrevivido galhardamente no perodo colonial, como sobreviveu heroicamente durante o Estado Novo. Local nico com uma populao nica, So Paulo se destaca como uma regio onde a liberdade e a independncia so caractersticas naturais. No faria diferena se fosse o rei de Portugal 25

ou governo getulista, qualquer um que questionasse a sua condio quase que providencial, provaria da rebeldia de seus habitantes em defesa de um poder autnomo e democrtico. Alm do carter autnomo que faz de So Paulo um self-government, h tambm a demonstrao da fora poltica dos paulistas, quer em nvel local e regional, quer em nvel colonial, ou seja, o poder de interveno no curso da histria do Brasil. Para isso diz Ellis Jnior: (...) o planalto sempre se fez evidente em todos os movimentos de independncia da Amrica portuguesa. Em sntese, o que os autores acima citados querem enfatizar o aspecto singular de So Paulo. Superior fsica e moralmente, singular e proeminente, independente, rebelde mas igualmente democrtico, vencendo adversidades, transformando o isolamento em auto-suficincia, o paulista realmente constitui uma raa de gigantes. Basicamente, a Historiografia Paulstica, assim denominada por Ilana Blaj, assentava-se, entre os anos de 1930 e 1945, no discurso que utilizava a regio nordeste do Brasil como ponto referencial de comparao com a realidade de So Paulo. Mostrar a pobreza piratiningana frente opulncia pernambucana, por exemplo, servia de pressuposto para salientar a superao daqueles que tinham como destino certo o esquecimento. A partir da dcada de 1950, e at por volta de 1970, a preocupao dos estudiosos tomaram outro caminho que ia a procura por uma explicao para a condio de subdesenvolvido a que ocupava o Brasil e sua dependncia aos pases mais ricos. Nesse instante, a historiografia brasileira embrenhava-se nas razes coloniais, tendo como foco norteador os ncleos exportadores, com especial destaque para o nordeste. Dessa forma, quase to-somente os plos exportadores seriam enfatizados e as demais regies, mais voltadas ao abastecimento interno, como So Paulo colonial, seriam relegadas a um segundo plano. Como resultado desta nova forma de se analisar a histria, So Paulo passou a ser vista apenas em funo das demais regies, ora fornecendo ndios como mo-de-obra escrava, ora desbravando territrios e, por fim, achando metais preciosos. Apesar do redirecionamento nos estudos brasileiros, a dcada de 1950 presenciou um fato muito importante: o IV centenrio da cidade de So Paulo. Pode-se dizer que os eventos culturais, as comemoraes e as publicaes materializaram o auge representativo da tradio paulista. A figura do bandeirante, definitivamente, levada ao pice e, o mais importante, a tradio paulista construda ao longo de dcadas por estudiosos a servio, ou no, do poder oficial difundida na massa da populao, fincando razes no conhecimento popular. Porm, no plano mais geral dos estudos histricos, o curso das investigaes seguia outro rumo. Quando parte da historiografia brasileira abandonou os estudos sobre a dinmica interna paulista, favoreceu, como havia de ser, a perpetuao daquelas vises tradicionais de So Paulo. Itens como o isolamento, a economia de subsistncia, a altivez, a independncia e a democracia foram 26

fundamentais para a cristalizao de tais imagens, tomando como principal representante o intocvel bandeirante. Uma gama de historiadores deu substancial reforo as velhas idias. Raul de A. e Silva ainda defendia a condio de isolamento e autonomia. Alfredo Ellis Jnior e sua filha Myriam Ellis, alm de citarem tpicos como o isolamento, a auto-suficincia e a democracia, retomavam a idia de uma raa de gigantes. Entretanto, esse perodo tambm ficou caracterizado pelo surgimento de novos caminhos interpretativos que, em pontos especficos, contrapunham as idias at ento vigentes no cenrio intelectual brasileiro, mxime o paulista. Charles R. Boxer em sua obra questionava a tese de autosuficincia e de isolamento a que hipoteticamente vivia So Paulo colonial. H tambm a no aceitao por parte de Raymundo Faoro de que os paulistas viviam em plena liberdade e autonomia, alm daquela tpica rebeldia, claro. J Richard M. Morse buscou desbancar a tese da democracia paulista ao trazer tona os complexos mecanismos hierrquicos comuns das sociedades coloniais. Mas foi Srgio Buarque de Holanda o principal inovador das reflexes em torno da histria de So Paulo. Para ele cada poca e cada formao social tinham seu prprio centro de gravidade, sua unidade de sentido. a interao entre meio, cultura e sociedade. Assim, Buarque de Holanda buscava por em xeque a corrente analtica que enxergava So Paulo como uma regio atpica dentro da colnia. O quadro apresentado por uma determinada localidade, cuja dinmica seja nica, no quer dizer que ela represente uma cristalizao definitiva, mas sim uma sedimentao provisria. a idia do movimento, do vir a ser defendida pelo historiador. Outro ponto bastante discutido a relao cultural entre o ndio e o europeu. A relao entre vida material e sobrevivncia, expanso territorial e equilbrio vital tambm fazem parte das preocupaes do autor. No entanto, devido s discusses candentes acerca do subdesenvolvimento brasileiro, s prticas sociopolticas encetadas pelo nacional-desenvolvimentismo e ao primado da sociologia e da histria econmica, poucos autores, nesse perodo, trilharam os caminhos abertos pela obra de Srgio Buarque de Holanda. Como conseqncia das atenes dadas somente aos centros exportadores coloniais, novas imagens de So Paulo foram incorporadas s antigas. Vista agora fora do eixo econmico da explorao colonial, a regio de Piratininga encontrava-se extremamente pobre, sem dinamismo de qualquer natureza produtiva e voltada apenas sua subsistncia. Afonso de E. Taunay, Richard Morse, Myriam Ellis e Alice C. Canabrava so alguns dos autores que contriburam para a construo desse pensamento. Alis, o nico elemento capaz de inserir os paulistas nas relaes comerciais do Brasil o ndio, que, caado e escravizado, eram vendidos as outras regies produtoras que eventualmente careciam de mode-obra. 27

Assim, devido predominncia das discusses acerca do subdesenvolvimento, de o Nordeste ser visto como ponto de estrangulamento ao desenvolvimento brasileiro no sculo XX, a maioria dos estudos a partir da dcada de 1950 passa a privilegiar as reas exportadoras do perodo colonial, buscando nelas a origem de tal configurao. A riqueza e o dinamismo coloniais so identificados com as regies que mais se articularam ao mercado europeu e metropolitano no perodo, e, dessa forma, cristaliza-se a imagem de uma So Paulo pobre, voltada apenas subsistncia, articulada aos demais centros to-somente pela venda do indgena, movimento externo e no interno vila. Essa rpida exposio de obras e autores permitiu a melhor compreenso de como se deu o processo de construo de uma tradio paulista que escolheu como seu principal representante a figura herica do bandeirante. Se a onda de estudos tinha como objetivo a constituio deliberada dessa tradio paulista, pode-se dizer que tal objetivo foi atingido pois, ainda hoje, o conhecimento popular e oficial da histria de So Paulo est bastante permeada pelas caractersticas que ao longo destas pginas foram salientadas.

7. A Inveno das Tradies: O caso do Quarto Centenrio da Cidade de So Paulo Ao exemplificarmos o processo de inveno de tradies necessrio estabelecer as diferenas entre Histria e Memria. A tradio inventada est ligada mais memria do que histria. A Histria existiu realmente e est registrada em documentos, em vestgios de cultura material, em relatos orais, na literatura, entre outros. J a memria s existe em funo da primeira. A memria existe em algum momento escolhido da histria. A memria um recorte subjetivo e pessoal da histria existente. Partindo desse pressuposto, a inveno de uma tradio remete a uma determinada memria que seja importante para legitimar e manter certo grupo dominante no poder. Segundo Jacques Le Goff, o controle da memria uma estratgia poltica vital das classes dominantes (no caso do IV Centenrio, as elites industrial e comercial paulistanas). Para exemplificar a inveno de uma tradio, escolheu-se a comemorao do IV Centenrio da Cidade de So Paulo. A delimitao do tema deve-se ao fato de que a construo do imaginrio bandeirante, tal como se conhece hoje, foi consolidada nesse perodo definido da histria da cidade de So Paulo. O principal motivo pelo qual se percebe que tal comemorao foi uma tradio inventada o fato do poder pblico municipal ter criado uma comisso especial para o IV Centenrio. Tal fato deixa clara a relevncia desta data para os interesses da elite local. As comemoraes do IV Centenrio da Cidade de So Paulo tiveram incio muito antes de 25 de janeiro de 1954. Foi criada, por lei, uma comisso responsvel pelos festejos. Para se ter uma ideia

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da seriedade da comemorao, a primeira portaria relativa comisso do quarto centenrio data de 1948. As discusses foram sendo amadurecidas at que em 29 de Dezembro de 1951 foi promulgada a Lei Municipal n4.166 que criava a Comisso do IV Centenrio da Cidade de So Paulo73. A importncia do festejo era tamanha que a referida lei foi resultado de parceria entre Prefeitura e Governo do Estado de So Paulo. A comisso era composta por membros da elite econmica paulista e intelectuais (jornalistas, professores universitrios e escritores). Tinha por funo coletar o passado que dever habitar os lugares da memria paulistana74. Utilizando para isso uma produo histria direcionada por roteiros definidos e grande mobilizao popular. A antecedncia dos trabalhos da Comisso deveu-se ao desejo de construo de uma autoimagem paulistana antes da construo de uma imagem externa. Primeiro houve um trabalho de convencimento dos prprios paulistas para depois ampliarem a imagem construda para outros estados, uma vez que s comemora quem se sente parte do que comemorado 75. Percebe-se que h a idia de inventar-se uma tradio quando, segundo Lofego, as orientaes da Comisso criam dois pilares para alicerar as comemoraes: O primeiro seria a construo da histria de So Paulo, tanto nas reedies quanto em novas produes que atendessem s expectativas da Comisso. O segundo seria a propaganda ancorada nessa produo histrica, que por sua vez legitimaria todo o empenho dispensado para a realizao dos festejos 76. No foi por acaso que o primeiro presidente nomeado para a Comisso foi Francisco Matarazzo Sobrinho, dirigente das Indstrias Reunidas Matarazzo, maior parque industrial da Amrica Latina na poca. O fato de o presidente da comisso ser o maior industrial da Amrica Latina mostra bem a quais interesses as comemoraes serviam. A Comisso representava uma elite abastada, porm sem tradio cultural. No caso do quarto centenrio da cidade de So Paulo (bem como na maioria dos casos em que h inveno de tradio) o passado foi utilizado como monumento para referenciar um presente imponente. A Comisso do IV Centenrio s foi extinta em dezembro de 1956, portanto dois anos depois da data oficial dos quatrocentos anos da cidade. Isso mostra que to importante quanto a inveno de uma tradio o seu processo de consolidao.73

Artigo 1, Fica criada, com sede e foro na capital do Estado de So Paulo, personalidade jurdica e patrimnio prprio uma entidade autrquica denominada Comisso do IV Centenrio da Cidade de So Paulo. Apud LOFEGO, Slvio Luiz. IV Centenrio da cidade de So Paulo: uma cidade entre passado e futuro. So Paulo: Annablume, 2004, p. 37. 74 Idem, p. 26. 75 Idem, p. 20. 76 Idem, pp. 44-45.

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7.1. Uma cidade sem identidade At meados do sculo XIX, So Paulo era uma provncia pobre, (isso fato e no construo), historicamente sem projeo nacional. Com a instaurao da Repblica do Caf com Leite, por conta da renda gerada pelo caf, o Estado passou a ter projeo no cenrio nacional. O contexto era inteiramente novo: So Paulo gerava renda, tinha dinheiro, mas nenhuma tradio. Com a crescente industrializao nas primeiras dcadas do sculo XX, a cidade passou a abrigar uma incipiente elite industrial, com hbitos e aspiraes opostas elite cafeeira da segunda metade do sculo XIX. Essa elite foi a responsvel por recuperar a economia paulista e, em certa forma, a brasileira, quando se deu a crise de 1929. Com a economia baseada na substituio de importaes, a elite industrial paulistana cresceu e ganhou fora poltica. A poltica de imigrao iniciada no final do sculo XIX, com o objetivo de levar estrangeiros para trabalhar nas lavouras de caf paulistas, foi responsvel pela liberao de mo de obra barata aps a crise de 29. A cidade de So Paulo e suas indstrias absorveram grande parte dessa mo de obra. Tal fato gerou uma cidade repleta de pessoas de vrias nacionalidades. Seria impossvel haver identidade de um povo num lugar onde h varias culturas. Nenhuma se sobressai espontaneamente. No incio dos anos 50 houve um fluxo migratrio grande dos estados do nordeste para os estados do sudeste, sobretudo para a cidade de So Paulo. A crescente atividade industrial e conseqente desenvolvimento do comrcio tinham carncia de trabalhadores. Novamente, o cruzamento de culturas no permitia a constituio de uma identidade cultural paulistana. 7.2. A Escolha do Mito Bandeirante Nesse cenrio, So Paulo era uma cidade com economia forte, porm sem identidade. A proximidade de uma data comemorativa importante como o quarto centenrio veio ao encontro da necessidade de criar uma identidade para o presente: o simbolismo do passado representado pelo bandeirismo. A elite que comeou a fazer de So Paulo (estado) a locomotiva do Brasil foi a cafeeira: uma aristocracia com costumes voltados para a Europa, e no para a terra natal. Seus hbitos adaptados da Frana (moda, etiqueta, arquitetura, etc) mostravam uma tradio copiada do estrangeiro e totalmente avessa aos elementos nativos. Essa elite quis apagar os resqucios coloniais ainda presentes na cidade de So Paulo, pois estes remetiam a uma situao de dependncia, pobreza e submisso.

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Exatamente a fim de contrastar com a elite velha

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, a nova elite industrial, vida por uma

identidade, encontrou no mito do bandeirante uma sintonia perfeita entre um passado de misria, um presente de trabalho e prosperidade para a construo de um futuro de glria. O passado de privaes dos tempos coloniais deixou de ser visto como vergonhoso e passou a indispensvel para a formao de um carter paulistano: por ser pobre, o paulista(no) teve que deixar sua terra e se aventurar em regies inspitas e desconhecidas para alimentar suas mulheres e crianas. Assim se formou uma raa de desbravadores e empreendedores. O mito do bandeirante colocou o paulistano (uma vez que os homens saiam do povoado planaltino) como responsvel por todas as conquistas de terras e riquezas feitas no sculo XVII pela capitania. Eis porque comum notar a confuso entre paulistanos e paulistas em certos tipos de literatura. As comemoraes do Quarto Centenrio da Cidade de So Paulo foram responsveis por criar um imaginrio de cidade sem fronteiras, uma cidade que est um pouco em cada parte do Brasil. O cosmopolitismo do sculo XX comparado expanso das fronteiras pelos bandeirantes. H um paralelo entre a populao paulistana do sculo XVII que partiu de So Paulo para conquistar o Brasil - e a populao da mesma cidade no sculo XX que veio do Brasil e do mundo para construir em So Paulo o progresso nacional. Os mitos de origem serviam para mostrar que So Paulo era uma cidade predestinada ao sucesso. O crescimento econmico que a sociedade do IV Centenrio estava experimentando nada mais era que o resultado do trabalho e esforo de um povo predestinado glria (povo personificado pelos tropeiros e bandeirantes). O progresso experimentado pelo sculo XX resultado do merecimento dos bandeirantes. 7.3. A imposio da memria: As comemoraes do IV Centenrio A data foi comemorada em todos os setores da cultura paulista. Houve inauguraes, monumentos, msica, dana, teatro e manifestaes folclricas. Isso garantia que todos os segmentos sociais se sentissem abraados pelos quatrocentos anos. Ningum era exceo raa de gigantes. Alguns dos eventos marcantes: ESPORTES: - Inaugurao do Pavilho dos Atletas no Parque da gua Branca. EDUCAO:

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Para Hobsbawm a tradio inventada sempre uma reao a uma situao nova.

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- Lanamento da pedra fundamental da nova sede da USP e do laboratrio de Fsica. - Congresso Brasileiro de Arquitetos CULTURA: - Concurso de Bandas no Ginsio do Pacaembu. - Concurso de fanfarras escolares no estdio do Pacaembu. ARQUITETURA: - Inaugurao da Catedral da S (ainda sem as duas torres). EVENTOS COMEMORATIVOS: - Flores no Monumento da Fundao da Cidade, com a presena do presidente da Repblica. - Missa Campal no Ptio do Colgio - Desfile cvico-popular no Vale do Anhangaba e Avenida Nove de Julho. - Queima de fogos e chuva de prata no Vale do Anhangaba.. Estes eventos marcaram o aniversrio da cidade e serviram de abertura para uma comemorao que se estendeu por todo o ano de 195478. 7.4. Como as Comemoraes do IV Centenrio reconstruram fisicamente a cidade A oligarquia cafeeira instalada na cidade no final do sculo XIX fez questo de romper com o passado colonial para instaurar uma atmosfera de luxo (em oposio pobreza de outrora) e de modernizao (em oposio ao atraso colonial). Havia a necessidade de se seguir costumes europeus, sobretudo franceses, e na arquitetura no foi diferente. A preferncia pelo estilo neoclssico, que teve como cone Ramos de Azevedo, dominou as edificaes do perodo. Um timo exemplo de como se construir, desconstruir e reconstruir uma identidade, de acordo com novas ideologias vigentes, deu-se no Ptio do Colgio. As runas do colgio dos jesutas, com a Igreja e o Seminrio em estilo colonial foram demolidas na segunda metade do sculo XIX e tiveram a fachada reconstruda em estilo neoclssico. O edifcio passou ento a abrigar a sede da presidncia da Provncia. Com as comemoraes do IV Centenrio, a fachada neoclssica foi destruda e em seu lugar foi erguida uma reconstituio do modelo colonial original. A suntuosidade do perodo cafeeiro deu lugar valorizao do passado colonial, construindo nos paulistanos daquela poca um orgulho pelas suas razes.

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Segundo Hobsbawm, a inveno de tradies consiste num conjunto de prticas tcita ou abertamente aceitas. Estas prticas, de natureza ritual ou simblica visam inculcar certos valores e normas por meio da repetio. Nesse sentido que as comemoraes do IV Centenrio foram realizadas durante todo o ano. a utilizao da repetio visando implantar uma nova tradio.

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