58
A Interdisciplinaridade em Ivani Fazenda: Construção de uma atitude pedagógica. Profa. Dra. Celia Maria Haas 1 Resumo: Desde muito tempo, encontramos referência à Interdisciplinaridade nas políticas públicas da Educação Brasileira. Pesquisadora do tema, Fazenda propôs-se a desvendar a integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro, assunto de sua dissertação de mestrado, em 1978 2 . Essa pesquisa marcou fortemente o percurso de Fazenda, que, desde então, põe as questões da Interdisciplinaridade em permanente discussão e revisão, com o propósito de construir-lhe um conceito e, principalmente, pensá-la como atitude pedagógica, comprometida em superar a fragmentação do conhecimento escolar. Palavras Chave: Ivani Fazenda. Interdisciplinaridade. Políticas públicas de educação. Fragmentação do conhecimento escolar. Introdução: Em 1986, iniciei o curso de Mestrado em Educação, no Programa de História e Filosofia de Educação, promovido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Vinha mobilizada pelas questões da prática pedagógica cotidiana, seus desafios, possibilidades e obstáculos, comprometida com a crença de que a educação era o espaço de transformação social para a instituição de uma sociedade mais justa. Acreditava, ainda, que cabia à educação a formação do cidadão capaz de fazer uma revolução pacífica em prol da justiça social, da igualdade e da inclusão. Esperava, também, encontrar no programa de pós-graduação – mestrado – as respostas que me conduziriam a uma atuação transformadora, capaz de mudar a face da educação e do mundo, fazendo, deste, um lugar viável. Apostava no que suspeitava ser indispensável aos educadores: ações éticas, responsáveis e competentes.

A Interdisciplinaridade Em Ivani Fazenda

Embed Size (px)

Citation preview

A Interdisciplinaridade em Ivani Fazenda:Construção de uma atitude pedagógica.

Profa. Dra. Celia Maria Haas

1 Resumo: Desde muito tempo, encontramos referência à Interdisciplinaridade nas políticas públicas da Educação Brasileira. Pesquisadora do tema, Fazenda propôs-se a desvendar a integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro, assunto de sua dissertação de mestrado, em 1978

2 . Essa pesquisa marcou fortemente o percurso de Fazenda, que, desde então, põe as questões da Interdisciplinaridade em permanente discussão e revisão, com o propósito de construir-lhe um conceito e, principalmente, pensá-la como atitude pedagógica, comprometida em superar a fragmentação do conhecimento escolar.

Palavras Chave: Ivani Fazenda. Interdisciplinaridade. Políticas públicas de educação. Fragmentação do conhecimento escolar.

Introdução:

Em 1986, iniciei o curso de Mestrado em Educação, no Programa de História e Filosofia de Educação, promovido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Vinha mobilizada pelas questões da prática pedagógica cotidiana, seus desafios, possibilidades e obstáculos, comprometida com a crença de que a educação era o espaço de transformação social para a instituição de uma sociedade mais justa. Acreditava, ainda, que cabia à educação a formação do cidadão capaz de fazer uma revolução pacífica em prol da justiça social, da igualdade e da inclusão. Esperava, também, encontrar no programa de pós-graduação – mestrado – as respostas que me conduziriam a uma atuação transformadora, capaz de mudar a face da educação e do mundo, fazendo, deste, um lugar viável. Apostava no que suspeitava ser indispensável aos educadores: ações éticas, responsáveis e competentes.

Docente e pesquisadora do Programa de Mestrado em Educação e Coordenadora do Curso de Pedagogia da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) e Universidade Municipal de São Caetano do Sul/SP (USCS). Endereço: Rua Cesário Galeno, 432 - Tatuapé - CEP 03071-000 - SÃO PAULO/SP – BRASIL. Telefone: (11) 2178-1294. [email protected]

2 Mestrado sob orientação de Antonio Joaquim Severino. Em 1984, obteve o título de Doutora em Antropologia, orientada por Teófilo de Queiroz Junior. O interesse de Fazenda pela Interdisciplinaridade despertou após o encontro com Gusdorf, com quem manteve uma correspondência importante na construção de conceitos fundamentais para compreender a atitude interdisciplinar. Também Japiassú exerceu forte influência em seus estudos. No percurso de quarenta anos de pesquisas e produções acadêmicas, inúmeras outras parcerias foram constituídas, sempre buscando compreender (e reelaborar) os conceitos inaugurais de Interdisciplinaridade. É unânime o reconhecimento de suas contribuições ao estudo dos sentidos e significados que as políticas públicas de educação atribuíram à Interdisciplinaridade.

Era, sem dúvida, um frágil equilíbrio entre o romantismo e a militância, mas ambas as faces lutavam por uma educação capaz, como afirma Freire (1983), de formar o leitor do mundo e da palavra. Apostava que ao educar, assegurando a todos o acesso às letras e às contas, estivesse contribuindo para a formação de novos cidadãos, estes, sim, aptos a transformar a nossa triste realidade social. A primeira surpresa, no curso de pós-graduação, foi de que ninguém se predispunha a falar da prática. A segunda era o fato de que o romantismo não tinha lugar num programa sério e comprometido com o conhecimento, e a terceira soava como se a revolução fosse para “gente grande” e não “professorinhas sonhadoras” que gostavam da beleza, da alegria, do colorido, do canto, das pessoas e do afeto.

Inesperado, no entanto, foi encontrar, passados dois anos, uma professora, recém-chegada à docência em programas de pós-graduação, que acreditava ser possível falar da prática e encontrava, nela, a beleza tão necessária para a superação indispensável da feiúra da educação que silencia os sonhadores, pois, como afirma Japiassu (1979), “o campo de nossas lutas é onde nos encontramos” e sem duvidar das forças dos professores que apostam no direito à palavra, continua, "donde termos de aprender a jogar o jogo dos possíveis, na audácia de tentar atingir os limites dos nossos impossíveis”.

Entretanto, em 1988, encontrei Ivani Fazenda que iniciava suas atividades em outro programa de mestrado, o de Supervisão e Currículo, também da PUC/SP, no qual se oferecia a disciplina denominada A prática pedagógica: obstáculos e possibilidades, com a ementa “pensando na prática pedagógica como um momento de síntese em que os aspectos teóricos se reformulam e se estruturam, o curso propõe-se a: analisar e fundamentar métodos e práticas de ensino do 1º grau e analisar as bases teóricas e gerais da atitude do professor frente a seus alunos e ao conteúdo que pretendem desenvolver” (FAZENDA, 1988, p. 1).

O aspecto mais sedutor foi a promessa de uma metodologia que parte “de uma reflexão sobre o cotidiano da escola de 1º grau” e a partir dela ensaiar novas buscas teóricas para as questões levantadas” (FAZENDA, 1988, p. 2). Tinha, enfim, encontrado um espaço no qual as práticas do cotidiano eram bem-vindas. Pensar o feito e refletir a partir dele estava autorizado. Para tanto, a proposta consistia em “enfocar tópicos como: linguagem, identidade, totalidade e interdisciplinaridade” (FAZENDA, 1988, p. 2).

Interdisciplinaridade era uma palavra nova nos corredores da PUC/SP. Aliás, até então, não a tinha ouvido e menos ainda atrelada à prática e ao cotidiano do professor. Pareceu-me que junto com essa estranha palavra – interdisciplinaridade – o professor também surgia, enquanto ser, enquanto sujeito pensante, que concretiza uma prática em sua sala de aula, em sua escola e não mais como uma abstração das proposições que estudava.

1. Primeira aproximação: a prática interdisciplinar conhecendo a própria história. Ao nos aproximarmos das questões da interdisciplinaridade, a primeira tarefa foi, como acontece ainda hoje, esforçar-se na direção do autor reconhecimento.

Fazenda sempre assegurou a importância de saber de si e, para tanto, estabeleceu como prática inicial a escrita do memorial, mas com um sentido de incompletude, pois era necessário, numa primeira etapa, descrever sem compromisso com a valoração, fazendo uma descrição detalhada da própria história para, ao mesmo tempo, mergulhar nas emoções que tais lembranças provocavam. Como sempre foi permitido ir e vir à história, ela nunca tinha um final e, a cada novo mergulho, muitos conhecimentos acerca de si mesmo eram encontrados. Interessante diálogo era estabelecido com a prática, obrigando a cada um refletir sobre a trajetória percorrida, identificando as escolhas feitas dentro dos limites reconhecidos, pois, recuperados, permitiam muitas vezes aceitar que não havia outro caminho possível naquele momento e naquelas condições, trazendo um apaziguamento às angústias muitas vezes vividas pelos professores.

O momento seguinte, já com a certeza de que não há certo ou errado na própria história, porém só há a história recontada, algumas vezes traída pela memória, outras seduzidas pelo romantismo, outras, ainda, submergidas em negação. É quando há possibilidade de desvelar as práticas e refleti-las com auxílio da teoria. Com o propósito de incentivar a busca de conhecimento e principalmente por acreditar no cultivo da erudição, categoria da interdisciplinaridade fundamental para ultrapassar os relatos das práticas, era estabelecido um referencial bibliográfico, em relação ao qual cabia aos estudantes o esforço da leitura e apropriação para, a cada encontro, participarem das discussões, mediadas agora pelas contribuições teóricas.

Para tanto, a planilha de leitura aponta textos que permitem “analisar as bases teóricas e gerais dos professores frente a seus alunos e ao conteúdo que pretende desenvolver”, propondo-se em fazer uma “reflexão sobre o cotidiano da escola” e, portanto, as primeiras categorias estudadas são: linguagem, identidade, totalidade e interdisciplinaridade (FAZENDA, 1988, p.1).

Para Fazenda (1979, p. 53) “a linguagem não é apenas um instrumento, um meio, mas uma revelação do ser íntimo e do laço psíquico que nos une ao mundo e a nossos semelhantes” e prossegue: “se a linguagem for desordenada, o universo corre o risco de se achar em desequilíbrio” (GUSDORF apud FAZENDA, 1979, p. 54).

Ainda em Fazenda (1979, p. 55) encontramos a ligação que faz entre linguagem, história de si mesmo, identidade e interdisciplinaridade, ao afirmar que: "A linguagem assinala a linha de encontro entre o eu e o outro, pois ao tentarmos nos explicar, ao tentarmos nos fazer entender, estamos a um tempo nos descobrindo e tentando descobrir o outro para fazê-lo nos entender".

A Identidade, por sua vez, apoiada nas possibilidades que a linguagem traz na construção de uma narrativa de si mesmo é considerada um processo construído, apoiado na “tomada de consciência gradativa das capacidades, possibilidades e probabilidade de execução”, Portanto, para a autora, configura-se num “projeto individual de vida e trabalho” (FAZENDA, 1994, p. 48).

Ao tentar entender as questões da Linguagem e da Identidade para a Interdisciplinaridade, outras categorias vão surgindo, como: diálogo, comunicação, cotidiano e, fundamentalmente, a prática, que muitas vezes é confundida com a Totalidade.

A categoria Totalidade, apesar de anunciada, não tem compromisso com seu significado ideológico, mas é compreendida como o esforço de superação da fragmentação do conhecimento. Uma busca para o "conhece-te a ti mesmo", para, no exercício de interioridade, reconhecer as próprias limitações, a provisoriedade, anunciando o conhecer-se interdisciplinarmente, não mais em fragmento e autorizando uma nova prática, a que vê nos limites e impossibilidades novos conhecimentos (FAZENDA, 1994, p. 15, grifo da autora). Novas categorias são incorporadas aos estudos da interdisciplinaridade: inovação, símbolo e metáfora.

Ao falar em Interdisciplinaridade, Fazenda a considera “uma relação de reciprocidade, de mutualidade, que pressupõe uma atitude diferente a ser assumida frente ao problema de conhecimento, ou seja, é a substituição de uma concepção fragmentária para unitária do se humano”. Vai mais longe, ainda, ao assegurar que o diálogo é a “ única condição de possibilidade da interdisciplinaridade”. Mais algumas categorias são colocadas para desenhar o percurso da interdisciplinaridade, como: sensibilidade, intersubjetividade, integração e interação, esta considerada a efetivação da interdisciplinaridade, pois provoca a integração das partes, dos conhecimentos que provocam novas perguntas e com isso novas respostas e, acredita Fazenda (1979, p. 8-9), “a transformação da própria realidade”, provocada por uma nova Pedagogia, a da Comunicação.

2. Segunda aproximação: pensar a educação interdisciplinarmente - construindo utopias na prática Fazenda aproxima-se dos estudos da interdisciplinaridade comprometida com a educação escolar. Quer mais do que tudo encontrar respostas para o que reconhece como a falência da escola, que fragmenta o ensino, esmigalha o conhecimento, ignora o aluno e nega o professor, esquece a dúvida, esvazia de significado a aprendizagem, ignora a prática, desmerece os saberes populares, encerram as disciplinas nelas mesmas e impõem uma única medida a tudo e a todos.

Observa Fazenda que, nos resultados de sua pesquisa de mestrado, na legislação relativa à educação há “idealizações utópicas” somadas a uma imposição curricular e “outros empecilhos de ordem material, psicocultural, social, metodológica e de formação deficitária do magistério” que inviabilizavam a concretização de um “trabalho interdisciplinar”, acrescentando que “utopicamente idealizou-se uma integração ou uma interdisciplinaridade baseando-se nas potencialidades do professorado” e assinala, como ainda hoje se dá, a esperança de que os alunos fizessem a integração das diferentes

disciplinas do processo formativo, sem uma proposta pedagógica permitindo tal integração (FAZENDA, 1979, p. 91-93).

Mas, ao mesmo tempo, reconhece-se como utópica, na medida em que sonha uma educação interdisciplinar e, para sonhar, deve se comprometer com o fazer. Para fazer, vai pensando a interdisciplinaridade enquanto projeto que permitirá à educação e, portanto, à escola, rever-se, refazer-se e, ao reconstruir-se, derrubar os muros dos conhecimentos parcelados. “O objetivo utópico do interdisciplinar é a unidade do saber” e vai mais longe ao reconhecer que a “Interdisciplinaridade não é algo que se ensine ou que se aprenda, mas algo que se vive” e considera que “é fundamentalmente uma atitude de espírito. Atitude feita de curiosidade, de abertura, de sentido de aventura, de intuição das relações existentes entre as coisas e que escapam à observação comum” (JAPIASSU, 1979, p. 15).

Cinco são os princípios que, de acordo com Fazenda (2001, p. 11), deveriam subsidiar uma prática docente interdisciplinar “humildade, coerência, espera, respeito e desapego”.

Anteriormente, porém, Fazenda, ao propor a sua disciplina no programa de mestrado e doutorado em Educação: Currículo, na PUC/SP, já tinha a intenção de aceitar os riscos e desafios na tentativa de “articular um trabalho interdisciplinar”, seja na escola, seja nos cursos de formação de professores para essa escola, admitindo que tal propósito “requer a superação de teorizações que parcelam e atomizam o conhecimento, desconhecendo inclusive as estruturas que determinam a especificidade de cada ciência tornando-as independentes na medida que [sic] buscam a complementaridade que lhes é devida” (FAZENDA, 1988b, p. 1-2).

Ainda no programa, estabelece o objetivo de compreender e fundamentar aspectos que dificultam a realização de um trabalho interdisciplinar, etapa na qual resgata os obstáculos identificados na sua pesquisa inicial – de mestrado – e amplia, consideravelmente, quando, junto com seus alunos e orientandos, mergulha nas questões trazidas pelas práticas de cada um. Para reafirmar a fundamental importância das histórias de vida e das pesquisas daí advindas, propõe o objetivo de compreender e indicar caminhos perseguidos por alguns, na busca da utopia interdisciplinar, com destaque a uma nova e determinante categoria para os estudos da interdisciplinaridade: a parceria.

Fazenda (2001, p. 22) afirma que nesse itinerário de vários anos, estabelecemos parcerias (categoria maior da interdisciplinaridade) com iguais e diferentes, rede pública ou academia. Pouco a pouco, procuramos atribuir significado às coisas e, nesse processo, aprendemos que a intersubjetividade (princípio primeiro da parceria) é muito mais que uma questão de troca, pois o segredo está na intenção da troca, na busca comum da transcendência.

Muitas parcerias vão se constituindo ao longo da carreira de Fazenda, com outros teóricos, com a escola pública, com outros programas de pós-graduação, especialmente,

com seus orientados. Constitui o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Interdisciplinaridade (GEPI) na PUC/SP, espaço privilegiado de construção de novos olhares e novas práticas educativas. Elege, ainda, a alegria com síntese do trabalho em parceria que se manifesta “no prazer de compartilhar falas, compartilhar espaços, compartilhar presenças, compartilhar ausências” (FAZENDA, 1991, p. 12).

Fazenda sempre se comprometeu profundamente com a Educação e a quer uma prática interdisciplinar. Nesta direção, podemos destacar algumas contribuições, ao propor, já em 1979, a urgência da revisão da educação escolar, pois se reconhecia uma insatisfação geral nesse aspecto, apontando que, talvez, a resposta estivesse “na recuperação da idéia primeira da cultura (formação do homem total), no papel da escola (formação do homem inserido na sua realidade) e no papel do homem (agente de mudanças no mundo)” (FAZENDA, 1979, p. 99). Indaga, também, se a reformulação da educação baseada na modificação da atitude do conhecer imporia uma outra formação pedagógica para os futuros professores, questão baseada na dialogicidade e engajamento político-pedagógico, princípios que compartilha com Paulo Freire, para quem não há uma relação de verticalidade entre educador (sujeito) e educando (objeto), pois: Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição educador x educando. Sem esta, não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível (FREIRE, 1983, p. 78).

Fazenda (1979, p. 99) alerta, também, sobre “a necessidade de se explorar com mais cuidado a questão da metodologia do trabalho interdisciplinar, bem como a maneira mais adequada de proceder à formação do pessoal que efetiva a interdisciplinaridade” e acredita que, assegurando uma formação interdisciplinar dos educadores, será possível superar a fragmentação e dicotomias existentes na educação escolar disciplinar. 60 3 Terceira aproximação: a interdisciplinaridade em Ivani Fazenda – construção de uma atitude pedagógica.

A prática interdisciplinar de Fazenda tem uma crença inaugural: sua fé na humanidade. Portanto, a interdisciplinaridade para Fazenda assenta-se na atitude pedagógica que tem como premissa a humildade, princípio capaz de concretizar sua crença e seu compromisso com a educação, considerada, aqui, a condição humana de reconhecer os limites do conhecimento fragmentado. Tem em conta, pois, que o primeiro passo para o florescimento da ação interdisciplinar é a eliminação das barreiras entre as pessoas.

A interdisciplinaridade é considerada uma atitude cujo pré-requisito é a humildade, traduzida em reconhecimento da fragilidade da dimensão individual na busca de soluções e na produção de conhecimento quando, consequentemente, o diálogo fica facilitado, pois existe a pré-disposição para ele. A interdisciplinaridade provoca

dúvida, busca e a disponibilidade para a crença no homem. É, enfim, uma "atitude de abertura frente ao problema do conhecimento" (FAZENDA, 1979, p. 39).

Pergunta-se, pois, atitude de quê? Ao responder, faz uma síntese de suas reflexões acerca das possibilidades de construção de uma interdisciplinaridade em ação na qual reafirma categorias fundamentais para o trabalho educativo interdisciplinar:

Atitude de busca de alternativas para conhecer mais e melhor; atitude de espera perante atos não-consumados; atitude de reciprocidade que impele à troca, ao diálogo com pares idênticos, com pares anônimos ou consigo mesmo; atitude de humildade diante da limitação do próprio saber; atitude de perplexidade ante a possibilidade de desvendar novos saberes; atitude de desafio diante do novo, desafio de redimensionar o velho; atitude de envolvimento e comprometimento com os projetos e as pessoas neles implicadas; atitude, pois, de compromisso de construir sempre da melhor forma possível; atitude de responsabilidade, mas, sobretudo de alegria, revelação, de encontro, enfim, de vida (FAZENDA, 1991, p. 14, grifos da autora).

Como a interdisciplinaridade traz consigo a marca do viver é nela na vida que a atitude interdisciplinar se faz presente. Com esta atitude diante do conhecimento, temos condições de "substituir uma concepção fragmentada para a unitária do ser humano" (FAZENDA, 1979, p. 8).

Em um movimento de constante reafirmação da interdisciplinaridade, em ação, a atitude pedagógica interdisciplinar espraia-se nos projetos construídos, mas sempre depende de uma vontade, de uma escolha, que mesmo as barreiras podem ser transpostas pelo desejo de criar, inovar, integrar, desafiar, transformar. Os propósitos iniciais são constantemente negociados com os parceiros, e novas alternativas para alcançar os objetivos propostos são encontradas, refazendo os caminhos sempre que se encontrarem novas demandas.

A característica fundamental da atitude interdisciplinar “é a ousadia da busca, da pesquisa, é a transformação da insegurança num exercício do pensar, num construir” e reconhece que a solidão de uma insegurança inicial e individual, que muitas vezes marca o pensar interdisciplinar, “pode transmutar-se na troca, no diálogo, no aceitar o pensamento do outro” (FAZENDA, 1991, p. 18, grifos da autora)

Na Universidade, para que floresça o projeto pedagógico interdisciplinar, impõe-se a superação da dicotomia ensino/pesquisa e, para Fazenda, “há que se transformar a sala de aula dos cursos de graduação em locais de pesquisa” e a ousadia maior está em estabelecer uma parceira com os alunos (FAZENDA, 1991, p. 18).

Em 2005, com um convite para organizar a área de formação de professores de uma universidade da Região Metropolitana de São Paulo, vislumbramos a possibilidade de construir o projeto por tanto tempo sonhado. A opção foi – e tem sido – pela interdisciplinaridade, um projeto interdisciplinar para a formação de professores.

Reconhece-se que na tentativa de concretizar propostas educacionais, colocam-se nelas as crenças e expectativas de encontrar um caminho que assegurará a adequada formação de futuros professores e, diante de tal propósito, espera-se que esses “novos professores” façam diferença para a educação nacional.

Portanto, em uma experiência concreta na prática ainda em desenvolvimento, e conforme o Projeto Pedagógico da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (2009, p. 33-35) destacamos que a Interdisciplinaridade, requerida como esforço para superar a fragmentação no processo formativo dos futuros professores, apresenta-se na concepção do currículo do curso de Pedagogia, quando se propõe a matriz, a partir da qual se acredita possível construir um saber em rede, integrando os conhecimentos trazidos pelos alunos com o profundo diálogo dos novos conhecimentos oferecidos pelos formadores, preparando-os para a autonomia pedagógica e o protagonismo no processo de formação e na atuação profissional.

As disciplinas escolares curriculares comprometem-se com conteúdos que se reputam indispensáveis para uma formação docente de qualidade e nelas carregam condutas, valores, crenças, modos de relacionamento, que incluem tanto as formas de relacionamento humano (interpessoal), quanto a relação do sujeito com o conhecimento.

Ao acrescentar esse compromisso com a Interdisciplinaridade, torna-se necessário o movimento de integração entre as disciplinas ao mesmo tempo em que desencadeia um processo de revisão e atualização de cada uma das disciplinas.

Admite-se que a Interdisciplinaridade propõe novas relações entre as disciplinas, ampliando os espaços de intercâmbio dinâmico e experiências pedagógicas inovadoras. A opção pela interdisciplinaridade também leva a refletir sobre o tempo necessário para o processo de formação, exigência para o assentamento das novas práticas e modos vivenciados no curso. A Interdisciplinaridade, uma experiência prática e sem dúvida vivenciada coletivamente, provoca o diálogo, possibilitando a cada participante o reconhecimento do que lhe falta e do que tem para contribuir, ampliando as trocas com a atitude de humildade requerida para receber dos outros.

Assim a Interdisciplinaridade é uma oportunidade concreta para a revisão das relações com o conhecimento, provocando a tessitura de um ambiente interativo, entrelaçando os saberes e as pessoas, ampliando, na prática, o conceito da construção coletiva. O trabalho pedagógico Interdisciplinar areja e revitaliza as relações interpessoais e de aprendizagem, alcançando também as Instituições, pois equipes surgem quase naturalmente e, nessas novas equipes, outras formas de aprender e ensinar são descobertas.

Nesta perspectiva, a proposta curricular do curso de Pedagogia, comprometida com a Interdisciplinaridade, tem o compromisso de preparar o futuro professor para uma atuação responsável e consciente nas escolas de Educação Básica.

Na sala de aula, afora o espaço físico, existem outros tantos elementos que lhe são constitutivos. Destaco o tempo de permanência (horário), o professor (autoridade que institucionalmente lhe é conferida), a disciplina (aquela específica, determinada pela grade curricular) e a avaliação (a esperada pela escola) (FAZENDA, 1991, p. 81, grifos da autora).

Gradativamente, porém, Fazenda, apesar de a interdisciplinaridade também exigir rigor e uma ordem própria, e ainda que seja esperado pelos alunos o conhecido, uma “organização com a qual está habituado em seus anos de escolaridade”, uma desordem é desencadeada com a atitude interdisciplinar e a sala de aula se transveste com uma “nova ordem” e um “novo rigor”, pois o tempo já não é imposto, mas proposto, o espaço é reorganizado a cada encontro, tirando de seus lugares alunos, professor, autorizando-se a mudar constante e materialmente a sala, mudando-se de lugar, mesas e cadeiras. A necessidade do comprometimento e envolvimento de todos na produção do conhecimento vai se construindo na medida em que a troca é instituída e o acolhimento do que os alunos trazem tem lugar, para que, com o mergulho na teoria, o conhecimento inicial seja reelaborado, revisto, reescrito e reafirmado nas práticas cotidianas, posto que, fundamentalmente, “um projeto interdisciplinar pressupõe projetos pessoais de vida” (FAZENDA, 1991, p. 82-88, grifos da autora).

Na sala de aula vive-se a “produção em parceria com nossos alunos”, pois o específicas que mais inquietam os alunos” e são essas inquietações que abrem caminho para as pesquisas interdisciplinares, porque “as evidências fornecidas pela prática permitem a discussão teórica da problemática que gradativamente vai se desvelando” aos alunos e professor, admitindo-se que “muitas das contradições enfrentadas no cotidiano de um indivíduo não são tão singulares quanto se imagina, mas comuns a todos os que se dispõem a reconstruir suas práticas” (FAZENDA, 1991, p. 82-88).

Para assegurar o Projeto Pedagógico Interdisciplinar, o já mencionado Curso de Graduação em Pedagogia compõe-se de docentes qualificados, com domínio de métodos e técnicas de ensino e de avaliação da aprendizagem, comprometidos com os programas curriculares e com os objetivos institucionais de educação superior e formação profissional. Do mesmo modo, estão dispostos ao envolvimento em projetos

de interesse social e econômico capazes, por sua vez, de propiciar o ajustamento, a constante melhoria e a formação no curso. Além disso, esses docentes estão compromissados com a pesquisa como princípio científico, visando à reconstrução pessoal e coletiva do conhecimento. Portanto, o desempenho do professor visa:

a) Colocar o aluno, futuro educador, em contato com a realidade profissional desde o primeiro ano da faculdade, para que se sinta, desde o início, um estudante de Pedagogia;

b) Superar os pré-requisitos teóricos e partir para a prática, sabendo que teoria e prática podem estar integradas, facilitando a construção da aprendizagem e do conhecimento;

c) Desenvolver o conhecimento de maneira inovadora, nem sempre obedecendo a uma forma lógica e sequencial, pois, muitas vezes, a ordem psicológica que trabalha com o impacto, com o novo, com o conflito, com o problema, com o interesse, com a motivação, permite uma aprendizagem mais significativa;

d) Construir o conhecimento em rede ao invés de fazê-lo, exclusivamente, de modo linear, partindo dos grandes problemas ou das questões interessantes para os alunos e voltando, quando for o caso, às noções e às teorias primeiras e fundamentais; e e) Desenvolver, nos alunos, a responsabilidade pessoal pelos estudos e pela formação profissional, bem como a ética no relacionamento com os colegas, professores, sociedade, verdadeiros pilares da formação, presentes em todo o Curso e não condicioná-los e discipliná-los apartadamente (UNIVERSIDADE..., 2009, p. 40).

Para Fazenda (1991, p. 83) “numa sala de aula interdisciplinar, todos se percebem e se tornam parceiros. Parceiros de quê? Da produção de um conhecimento para uma escola melhor, produtora de homens mais felizes” (grifos da autora).

Muito falta dizer sobre o trabalho de Ivani Fazenda, mas, neste primeiro esforço, apresentamos uma leitura pessoal daquilo que nos apropriamos de seu pensamento e uma indicação de como a interdisciplinaridade é proposta num curso de Pedagogia, espaço de formação para professores da Educação Infantil e para o 1º Ciclo do Ensino Fundamental, as cinco primeiras séries.

A atitude pedagógica, que se vai desenhando nas contribuições de Fazenda sugere que o profissional no exercício da docência não se restrinja à atividade de condução do trabalho pedagógico em sala de aula, mas se envolva de maneira participativa e atuante na dinâmica própria dos espaços escolares. Em seus trabalhos, cabe destaque à relevância de uma postura investigativa em torno dos problemas educacionais e dos específicos de cada área, configurando a pesquisa também como princípio formativo, a fim de contribuir de modo seguro, competente e criativo com o processo educativo escolar.

Acredita, ainda, Fazenda, que o trabalho docente é impregnado de intencionalidade, pois visa à formação humana através de conteúdos e habilidades de pensamento e ação, implicando escolhas, valores, compromissos éticos, o que significa introduzir objetivos explícitos de natureza conceitual, procedimental e valorativa em relação aos conteúdos que se ensina. Portanto, pode se reconhecer que o professor necessita de conhecimentos e práticas que ultrapassem o campo de sua especialidade, para viver a atitude pedagógica interdisciplinar.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido.12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes (Org.). Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia? São Paulo: Loyola, 1979.

______. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. São Paulo: Loyola, 1991. Coleção Educar. v. 13.

______. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. Campinas: Papirus, 1994.

(Org.). Dicionário em construção: interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2001.

JAPIASSU, Hilton. Prefácio. In: FAZENDA, Ivani Catarina Arantes (Org.).

Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia?

São Paulo: Loyola, 1979.

UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL – USCS. Relatório de Reconhecimento do Curso de Graduação Licenciatura em Pedagogia. São Caetano do Sul/SP: USCS, 2009. v. 1. Projeto Pedagógico.

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP. Programa de estudos de pós-graduação em educação: supervisão e currículo. São Paulo:

PUC/SP, 1988. Mimeografado. Disciplina - A Prática Pedagógica: Obstáculos e Possibilidades. Professora Ivani Fazenda.

Teoria da ação comunicativa de Habermas: Possibilidades de uma ação educativa de cunho interdisciplinar na escola Maria Augusta Salin Gonçalves*

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar e discutir condições teórico-práticas da execução de um projeto de ação educativa de cunho interdisciplinar na escola, tendo como base a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas. Inicialmente, apresentamos aspectos significativos dessa teoria. A seguir, apresentamos linhas norteadoras que adotamos como ponto de partida e suporte da pesquisa-ação, e que fornecem também as categorias para análise e interpretação da experiência.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade, teoria da ação comunicativa, comunicação, linguagem Pode-se afirmar que, de maneira geral, é grande a preocupação dos educadores com a atomização do conhecimento existente nos currículos escolares, que produz uma visão fragmentada do real, desvinculada de um contexto histórico e distanciada da realidade na qual o aluno vive.

Educadores, sociólogos e epistemólogos têm analisado essa questão sob diferentes perspectivas e trazido importantes contribuições no que diz respeito à interdisciplinaridade, visualizando-a como uma possibilidade de superação dessa fragmentação do conhecimento, tanto em nível de currículo como de pesquisa (Etges 1993; Fazenda 1991 e 1994; Freitas 1989; Frigotto 1993; Jantsch e Bianchetti 1995; Japiassu 1976; Lück 1994; Severino 1995; Siebeneichler 1989; entre outros).

Neste artigo, pretendo abordar essa questão na perspectiva do currículo na escola básica, cujos objetivos são anunciados no sentido de formar cidadãos que participem ativa e criticamente do processo cultural de sua época histórica. Parece-me pertinente colocar

aqui a questão: Como possibilitar ao aluno condições de participação ativa e crítica, em uma estrutura escolar que em si mesma é fragmentada e destituída de vinculação com a vida concreta e com os problemas de sua época histórica?

Por outro lado, essa estrutura curricular gera um isolamento entre os professores, ficando cada um fechado na sua disciplina, pouco comunicando-se com os colegas a respeito dos problemas educacionais em geral e dos relativos aos seus alunos em particular.

Não pretendo, neste artigo, deter-me na crítica à escola dividida em diferentes disciplinas com programas específicos e conteúdos determinados desde cima, mas, sim, refletir sobre as possibilidades de, dentro das condições atuais de ensino, minorar as conseqüências da fragmentação dos currículos escolares e das condições de isolamento do professor.

Com o objetivo de buscar uma alternativa para maior integração da prática educativa, apresento algumas reflexões sobre as possibilidades de uma ação educativa de cunho interdisciplinar na escola, apontando fundamentos teórico-práticos que dêem suporte a essa ação e, ao mesmo tempo, forneçam as categorias para a análise e a avaliação.

Para fundamentar uma ação educativa de cunho interdisciplinar, encontramos idéias norteadoras na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, que passarei a abordar em primeiro lugar, destacando os aspectos mais significativos para nossa proposta. Finalizando, procuro refletir sobre algumas questões básicas relacionadas à realização de um projeto de ação interdisciplinar na Escola, discutindo os seus fundamentos com base na teoria da ação comunicativa.

Esta proposta não pretende se constituir em uma aplicação mecânica da teoria da ação comunicativa de Habermas em uma situação empírica da área pedagógica. A minha intenção é buscar, nessa teoria, subsídios para fundamentar e orientar uma ação interdisciplinar que tenha como como base uma interação dialógica, sem perder, no entanto, a vinculação com a totalidade do pensamento desse autor.

Teoria da ação comunicativa Jürgen Habermas (1929) é um filósofo e sociólogo alemão contemporâneo, que tem seu nome associado à Teoria Crítica da Escola de Frank-Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 127 furt, cujos principais representantes são Adorno (1903-1969), Marcuse (1898-1979), Horkheimer (1895-1973) e Benjamin (1892-1940). Não obstante as diferenças de pensamento desses filósofos, um tema perpassa a obra de todos eles: a crítica radical à sociedade industrial moderna.

Com o processo de modernização passou a prevalecer nas sociedades industriais uma forma de racionalidade: a racionalidade instrumental.

Essa racionalidade define-se pela relação meios-fins, ou seja, pela organização de meios adequados para atingir determinados fins ou pela escolha entre alternativas estratégicas com vistas à consecução de objetivos.

Habermas partilha dessa crítica. Não permanece, no entanto, no momento da negatividade, mas tenta salvar a razão da perplexidade e do pessimismo. Ao repensar a idéia de razão e racionalização, Habermas busca superar as oposições que transpassam a cultura contemporânea, que, como resume McCarthy, são: “modernidade versus pós-modernidade, racionalismo versus relativismo, universalismo versus contextualismo, subjetivismo versus objetivismo, humanismo versus ‘morte do homem’, etc.” (1996, p.10). Habermas busca superar o conceito de racionalidade instrumental, ampliando o conceito de razão, para o de uma razão que contém em si as possibilidades de reconciliação consigo mesma: a razão comunicativa.

Discutiremos a seguir esses dois conceitos básicos no pensamento de Habermas.

Racionalidade instrumental e racionalidade comunicativa Em suas análises a respeito da sociedade capitalista moderna, Max Weber (1864-1920) introduz o conceito de “racionalização” para descrever o processo de desenvolvimento existente nas sociedades modernas. Esse processo caracteriza-se pela ampliação crescente de esferas sociais que ficam submetidas a critérios técnicos de decisão racional, isto é, a critérios de adequação e organização de meios em relação a determinados fins, como, por exemplo, acontece na urbanização das formas de existência, na tecnificação do tráfego e da comunicação. O planejamento e o cálculo foram tornando-se, cada vez mais, partes integrantes de procedimentos envolvendo questões administrativas.128 Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 A transformação pela qual passaram as sociedades industriais nesse processo de modernização, ou seja, de racionalização da ação social, está diretamente associada às formas de desenvolvimento do trabalho industrial na sociedade capitalista, que expandiram os procedimentos e a racionalidade a eles inerente para outros setores do âmbito da vida social. O desenvolvimento industrial, por sua vez, está estreitamente vinculado ao progresso da ciência e da técnica.

Em suas análises, Max Weber, Adorno e Horkheimer (1986) e, mais tarde, Marcuse (1982) fazem uma crítica radical à racionalidade científica, que, entendida como neutra em relação a valores, afastou do exame da razão, como subjetivas e irracionais, todas as questões sociais que não podiam ser resolvidas na perspectiva da relação meio-fins, e que fugiam do âmbito das questões relativas à economia e à eficácia dos meios. Para esses autores, a ciência e a técnica, ao visarem o domínio da natureza e a sua submissão ao homem, já trazem em si o germe da dominação. Abstraindo de toda a discussão em torno da questão de valores, esse tipo de racionalidade traz em seu bojo uma forma de dominação política que não lhe é imposta de fora, mas habita o seu interior, e já está presente no processo de sua própria construção.

Habermas não se posiciona radicalmente contra a racionalidade instrumental da ciência e da técnica em si mesmas, na medida em que essas contribuem para a auto conservação do homem.

Habermas considera que o trabalho, pela sua essência de dominar a natureza para pô-la a serviço do homem, possui uma racionalidade do mesmo tipo da racionalidade da

ciência e da técnica, isto é, uma racionalidade que consiste na organização e na escolha adequada de meios para atingir determinados fins (1987d).

Para ele, a ciência e a técnica ampliam as possibilidades humanas, libertando o homem do jugo das necessidades materiais, sendo o desenvolvimento da espécie humana resultado de um processo histórico de desenvolvimento tecnológico, institucional e cultural, processos que são interdependentes.

Habermas posiciona-se radicalmente contra a universalização da ciência e da técnica, isto é, contra a penetração da racionalidade científica, instrumental, em esferas de decisão onde deveria imperar um outro tipo de racionalidade: a racionalidade comunicativa. Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 129 Ao examinar essa questão, Habermas (1987d) distingue dois âmbitos do agir humano contidos no conceito de Marx de “atividade humana sensível”, que são interdependentes, mas que podem ser analisados separadamente: o trabalho e a interação social. Por “trabalho” ou “ação racional teleológica”, Habermas entende o processo pelo qual o homem emancipa-se progressivamente da natureza. Por “interação”, Habermas entende a esfera da sociedade em que normas sociais se constituem a partir da convivência entre sujeitos, capazes de comunicação e ação. Nessa dimensão da prática social, prevalece uma ação comunicativa, isto é, “uma interação simbolicamente mediada”, a qual se orienta “segundo normas de vigência obrigatória que definem as expectativas recíprocas de comportamento e que têm de ser entendidas e reconhecidas, pelo menos, por dois sujeitos agentes” (1987d, p. 57).

Na moderna sociedade industrial, esses dois âmbitos da prática social sofreram grandes transformações, que estão na raiz dos inúmeros problemas com que nos defrontamos na época atual.

O desenvolvimento do conhecimento científico e técnico, ao propiciar o crescimento e o aperfeiçoamento das forças produtivas, provê o sistema capitalista de um mecanismo regular que assegura a sua manutenção. Desta forma, “se institucionaliza a introdução de novas tecnologias e de novas estratégias”, isto é, “institucionaliza-se a inovação enquanto tal”, cumprindo a ciência e a técnica o papel de legitimar a dominação (Habermas 1987d, p. 62).

Com o crescimento das forças produtivas, modificaram-se as atribuições do Estado. A empresa passou, de forma crescente, a intervir no planejamento da vida econômica, direcionando decisões que anteriormente cabiam à esfera social, e assumindo atribuições que eram tradicionalmente da competência dos aparelhos do Estado. Este, por sua vez, passou a intervir diretamente na economia, assumindo, no capitalismo contemporâneo, a função de preservar as relações de produção, submetendo-se às determinações do capital global, com o qual busca conciliar os interesses nacionais.

Procurando compensar as disfunções do sistema capitalista, as sociedades industriais desenvolvidas adotaram o Estado de Bem-estar, que busca proporcionar à população condições de educação, saúde, habitação e trabalho. Promovendo à população segurança

social e oportunidades de promoção pessoal, esse programa estatal pretende garantir, ao mesmo tempo, “a forma privada de revalorização do capital” (1987d, p. 70).130 Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99

A esfera política, passando a orientar-se para a prevenção das disfuncionalidades do sistema, se enfraquece em sua função de ser espaço de discussão a respeito da realização de fins éticos de convivência social, atendendo a interesses coletivos. A política passou dessa forma a ocupar-se mais com a solução de problemas técnicos do que com questões que dizem respeito à interação social e cuja busca de soluções envolve o diálogo, tais como justiça, liberdade, poder, opressão, satisfação, violência, etc.

O Estado contemporâneo está cada vez mais submetido aos mecanismos financeiros, ocupando-se de forma crescente com questões de ordem técnica, perdendo as instituições, como, por exemplo, o direito, a economia e a política, ao longo desse processo, a ligação com os fins para os quais foram criadas. Temos, assim, um Estado que, por um lado, se vê subtraído de parte de suas funções sociais primordiais e, por outro, na ampliação crescente de subsistemas de “ação racional com respeito a fins”, se vê submerso numa administração burocrática que, imbuída de uma racionalidade instrumental, pretende dotá-lo de eficácia na gestão dos problemas sociais.

Na medida em que a racionalidade instrumental da ciência e da técnica penetra nas esferas institucionais da sociedade, transforma as próprias instituições, de tal modo que as questões referentes às decisões racionais baseadas em valores, ou seja, em necessidades sociais e interesses globais, que se situam no plano da interação, são afastadas do âmbito da reflexão e da discussão. A racionalidade instrumental, na trajetória de ampliação de seu campo de atuação, substituiu de forma crescente o espaço da interação comunicativa que havia anteriormente no âmbito das decisões práticas que diziam respeito à comunidade. Dessa forma, caem por terra as antigas formas ideológicas de legitimação das relações sociais de poder. Com esse tipo de racionalidade não se questiona se as normas institucionais vigentes são justas ou não, mas somente se são eficazes, isto é, se os meios são adequados aos fins propostos, ficando a questão dos valores éticos e políticos submetida a interesses instrumentais e reduzida à discussão de problemas técnicos.

A causa dos graves problemas da sociedade industrial moderna, para Habermas, não reside no desenvolvimento científico e tecnológico como tal, mas, sim, na unilateralidade dessa perspectiva como projeto humano, que deixa de lado a discussão sobre questões vitais em torno das quais uma sociedade decide o rumo da sua história.

A subjetividade do indivíduo não é construída através de um ato solitário de auto reflexão, mas, sim, é resultante de um processo de formação Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 131 que se dá em uma complexa rede de interações. A interação social é, ao menos potencialmente, uma interação dialógica, comunicativa. A penetração da racionalidade instrumental no âmbito da ação humana interativa, ao produzir um esvaziamento da ação comunicativa e ao reduzi-la à sua própria estrutura

de ação, gerou, no homem contemporâneo, formas de sentir, pensar e agir – fundadas no individualismo, no isolamento, na competição, no cálculo e no rendimento –, que estão na base dos problemas sociais.

Como uma possibilidade de transformação da sociedade contemporânea na busca de solução para os graves problemas que assolam a humanidade, Habermas visualiza o resgate de uma racionalidade comunicativa em esferas de decisão do âmbito da interação social que foram penetradas por uma racionalidade instrumental.

Tendo em vista que o homem não reage simplesmente a estímulos do meio, mas atribui um sentido às suas ações e, graças à linguagem, é capaz de comunicar percepções e desejos, intenções, expectativas e pensamentos, Habermas vislumbra a possibilidade de que, através do diálogo, o homem possa retomar o seu papel de sujeito.

A sociedade brasileira vive um momento de profunda crise. A ideologia do neoliberalismo, desencarregando o Estado da sua responsabilidade social, e a rápida capitalização externa do país trazem consigo inúmeros custos sociais. Convivemos diariamente com a violência, a miséria e o desemprego, e, muitas vezes, um sentimento de perplexidade e impotência nos invade.

As condições sociais, no entanto, não são estáticas nem imutáveis, pois são o resultado de um processo histórico.

Como educadores precisamos acreditar em possibilidades de mudança, e, no âmbito de nossa ação profissional, tentar abrir espaços para a emergência de uma nova racionalidade, que favoreça a reconstrução da sociedade e a reinvenção da cultura. Esse processo somente será viável no desenvolvimento de uma ética de responsabilidade social, que embase ações que visem ao bem coletivo, isto é, que tenham por objetivo a criação de possibilidades de vida a todos, incluindo as gerações futuras. OBSERVAR DEPOIS

Nessa perspectiva, a escola apresenta-se como o espaço onde uma ação comunicativa, ao ser desenvolvida sistematicamente, coincide com os objetivos de uma educação que visa à formação de indivíduos críticos e participativos.132 Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 Ação comunicativa Com sua teoria, Habermas pretende mostrar que as idéias de verdade, liberdade e justiça inscrevem-se de forma quase transcendental nas estruturas da fala cotidiana (Horster 1988).

As comunicações que os sujeitos estabelecem entre si, mediadas por atos de fala, dizem respeito sempre a três mundos: o mundo objetivo das coisas, o mundo social das normas e instituições e o mundo subjetivo das vivências e dos sentimentos. As relações com esses três mundos estão presentes, ainda que não na mesma medida, em todas as interações sociais.

Em primeiro lugar, as pessoas, ao interagirem, coordenam suas ações. Do conhecimento que elas partilham do mundo objetivo depende o sucesso ou o insucesso de suas ações conjuntas, sendo que a violação das regras técnicas conduz ao fracasso. Em segundo

lugar, as pessoas interagem orientando-se segundo normas sociais que já existem previamente ou que são produzidas durante a interação. Essas normas definem expectativas recíprocas de comportamento, sobre as quais todos os participantes têm conhecimento. Esse tipo de ação não é avaliada pelo seu êxito, mas pelo reconhecimento intersubjetivo e pelo consenso valorativo, sendo que sua violação gera sanções. Em terceiro lugar, em todas as interações as pessoas revelam algo de suas vivências, intenções, necessidades, de seus temores etc., de tal modo que deixam transparecer sua interioridade. Embora as pessoas, em maior ou menor grau, possam controlar as manifestações de suas vivências subjetivas, das suas ações podem-se tirar conclusões a respeito da sua veracidade.

A cada um desses mundos correspondem diferentes pretensões de validade. Ao mundo objetivo correspondem pretensões de validade referentes à verdade das afirmações feitas pelos participantes no processo comunicativo. Ao mundo social correspondem pretensões de validade referentes à correção e à adequação das normas, e ao mundo subjetivo – das vivências e sentimentos – correspondem pretensões de veracidade, o que significa que os participantes do diálogo estejam sendo sinceros na expressão dos seus sentimentos.

No que diz respeito tanto à coordenação de ações, como às avaliações éticas e às manifestações subjetivas, a linguagem ocupa Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 133 um papel fundamental. A legitimação dos valores – verdade, correção normativa e veracidade –, que toda a ação comunicativa pressupõe, não é alcançada por uma racionalidade meio-fim, mas somente pela argumentação em função de princípios reconhecidos e validados pelo grupo. Habermas propõe um modelo ideal de ação comunicativa, em que as pessoas interagem e, através da utilização da linguagem, organizam-se socialmente, buscando o consenso de uma forma livre de toda a coação externa e interna.

Vinculado ao modelo da ação comunicativa, Habermas apresenta a situação lingüística ideal: o discurso. Para Habermas, discurso (Diskurs) refere-se a uma das formas da comunicação ou da “fala” (Rede), que tem por objetivo fundamentar as pretensões de validade das opiniões e normas em que se baseia implicitamente a outra forma de comunicação ou “fala”, que chama de “agir comunicativo” ou “interação”. O discurso – teórico ou prático, conforme se refira a pretensões de validade de opiniões ou de normas sociais – no sentido de Habermas possui um aspecto intersubjetivo, que serve para classificá-lo como uma espécie do gênero “comunicação”, e um lógico argumentativo, que serve para determiná-lo como caso específico da fundamentação de pretensões de validade problematizadas (Almeida 1989).

Assim como o modelo de comunicação ideal constitui-se na utopia de um processo de comunicação e remete a uma ordem social ainda não existente, a situação lingüística ideal constitui-se no telos de um discurso, que seria perfeito se existissem condições ideais de realização (Freitag 1980). Sendo assim, esses dois modelos se constituem em utopias, que todavia devem ser pressupostas como reais,

para que possa se efetivar qualquer comunicação. Ao mesmo tempo, esses modelos fornecem os elementos para uma crítica das formas concretas de interação e discurso, constituindo-se em uma antecipação dessas. OBSERVAR DEPOS. O processo de comunicação que visa ao entendimento mútuo está na base de toda a interação, pois somente uma argumentação em forma de discurso permite o acordo de indivíduos quanto à validade das proposições ou à legitimidade das normas. Por outro lado, o discurso pressupõe a interação, isto é, a participação de atores que se comunicam livremente e em situação de simetria.134 Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 Possibilidades educacionais da ação comunicativa em um projeto de ação interdisciplinar A teoria da ação comunicativa de Habermas tem sido, sob diferentes perspectivas, fonte inspiradora de reflexões em torno de questões educativas (Schäfer 1982; Pucci et alii. 1994; Freitag 1986; Flecha 1996; Peukert 1996; Prestes 1996; entre outros). Neste item, pretendo tecer algumas considerações a respeito das possibilidades de a teoria da ação comunicativa de Habermas oferecer idéias norteadoras para a realização de um projeto interdisciplinar na Escola, na medida em que fornece as bases para uma comunicação que visa ao entendimento mútuo.

Tratando-se de um projeto pedagógico, creio que é oportuno anteriormente explicitar os conceitos de educação e interdisciplinaridade que embasam as nossas reflexões e nossas ações pedagógicas. Penso a educação

(...) como uma instituição social e histórica, que tem como fim gerar transformações tanto em nível das consciências individuais, como em nível mais amplo, da sociedade. Trazendo em seu bojo a concepção do homem na dimensão da práxis – como um ser capaz de refletir sobre a realidade e nela atuar, ao mesmo tempo que esta atua sobre ele transformando-o –, a Educação é vista aqui como uma possibilidade, ainda que limitada por condicionantes históricos (e justamente o desvelamento desses condicionantes históricos é que possibilita o pensamento de transformação), de uma ação transformadora, buscando modificar as condições desumanizantes da sociedade industrial contemporânea e, em especial, da sociedade brasileira. (Gonçalves 1996, p. 170)

Em meu livro “Sentir, pensar, agir – Corporeidade e educação (1994, 1997), embora não me aprofunde na teoria de Habermas, já assinalo, na proposta dessa teoria de recuperação da ação comunicativa no âmbito das decisões político-culturais, o seu valor pedagógico, de se constituir em base de fundamentação para a definição de “objetivos educacionais que situam a capacidade de diálogo no centro das decisões comunitárias” (p. 131).Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 135 Em estreita relação de interdependência com os objetivos educativos de formação de cidadãos críticos e participativos estão os objetivos diretamente ligados ao exercício do diálogo e ao desenvolvimento da competência comunicativa.

A proposta de ação educativa de cunho interdisciplinar na escola, que pretendemos desenvolver em uma pesquisa-ação, tem como base um processo de interação comunicativa, em que os professores buscam conjuntamente coordenar e justificar ações

pedagógicas, a partir da troca de conhecimentos e enfoques, inerentes a cada disciplina, partilhando e planejando experiências integradas.

Nesse contexto, uma ação educativa de cunho interdisciplinar se constitui no esforço conjunto de professores de uma série do currículo escolar no sentido de estabelecer diálogo na busca de um eixo de articulação entre suas disciplinas, de modo a possibilitar aos alunos experiências em que eles possam integrar os diferentes enfoques disciplinares, enriquecendo sua compreensão da realidade concreta.

Para a consecução dessa ação, em primeiro lugar me parece necessário que os professores cheguem a um consenso a respeito das regras que vão reger as discussões e as participações dos elementos do grupo, fundamentando e justificando essas regras.

Para que os participantes alcancem um consenso verdadeiro, é também fundamental que cheguem a um entendimento sobre questões de cunho filosófico e pedagógico, que estão na base de uma ação comunicativa de cunho interdisciplinar. Essas questões referem-se, primeiramente, a concepções de educação e conhecimento. Pensamos que seja impossível chegar a um consenso real, se os participantes não partilharem de concepções básicas comuns, ou se ao menos não tiverem claramente explicitadas as concepções de todos.

Estabelecidas as regras de discussão e argumentação, essas poderão ser modificadas, no decorrer das sessões, por decisão do grupo. Um processo de ação comunicativa deve ter em seu bojo um princípio de não-dominação, na medida em que se buscam a participação de todos os elementos o grupo e o consenso em relação às próprias regras que vão orientar as discussões.

Para que o entendimento funcione como mecanismo coordenador da ação, é necessário que os participantes na interação ponham-se de acordo acerca da validade que pretendem para suas emissões ou mani-136 Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 festações, isto é, que reconheçam intersubjetivamente as pretensões de validade com que se apresentam diante dos outros. Essas pretensões de validade podem ser reconhecidas ou questionadas (Habermas 1987b).

As três pretensões de validade que o ator tem que colocar explicitamente com sua manifestação, conforme já anunciamos anteriormente, são: que o enunciado seja verdadeiro (verdade); • que a manifestação seja correta em relação ao sistema de normas vigente ou que o próprio contexto normativo seja legítimo (legitimidade ou retidão); • que a intenção expressa coincida com a intenção do falante (veracidade). O consenso, ou seja, o acordo alcançado comunicativamente, se busca simultaneamente nos três planos e se mede por essas três pretensões de validade suscetíveis de crítica. Quem rejeita a oferta feita com um ato de fala que foi entendido questiona pelo menos uma dessas três pretensões. Com base nas pretensões de validade, nas reuniões do grupo interdisciplinar, os participantes, ao tentarem se aproximar da situação ideal da fala, deverão reunir esforços no sentido de preencher as seguintes condições:

1. Todos os participantes das discussões têm a mesma chance de se comunicar por meio de atos da fala, argumentando, questionando e respondendo às questões.

2. Todos os participantes têm a mesma chance de apresentar interpretações, opiniões, recomendações, declarações e justificativas e de problematizar sua validade, fundamentar ou rebater (Widerlegen), de tal modo que nenhuma idéia preconcebida (Vormeinung) seja ignorada na continuidade da tematização.

3. Todos os participantes têm a mesma chance de expressar atitudes, sentimentos e desejos referentes à sua subjetividade, devendo ser verdadeiros nas suas manifestações, significando que assim se colocam perante si mesmos e deixam transparecer sua interioridade.

4. Os participantes das discussões têm a mesma chance de empregar atos regulativos, isto é, ordenar e rebelar-se, permitir ou proibir, Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 137 prometer e aceitar promessas, dar explicações e solicitá-las. As expectativas de comportamento são recíprocas e os privilégios, afastados (Horster 1988).

Com o modelo de ação comunicativa de Habermas, como base para uma ação interdisciplinar, pressupõe-se que os participantes na interação intencionalmente mobilizem o potencial de racionalidade que encerram as três relações do sujeito agente com o mundo, com o propósito de chegarem a um entendimento.

Definidos e estabelecidos em consenso as regras de participação e os conceitos básicos para a construção dos fazeres pedagógicos, em um segundo momento a ação educativa de cunho interdisciplinar consiste de sessões de comunicação e diálogo, nas quais o esforço coletivo do grupo se concentra no sentido de buscar eixos articuladores entre as disciplinas do currículo.

O objetivo das discussões, neste momento, é encontrar caminhos comuns e devidamente articulados, para proporcionar aos alunos experiências que lhes possibilitem construir conhecimentos vinculados à sua vida concreta e que lhes permitam uma visão crítica da realidade onde estão inseridos, e, ao mesmo tempo, incentivem sentimentos e pensamentos relacionados a uma participação ativa nos assuntos comunitários, dentro e princípios éticos de cooperação e justiça social.

A direção do processo interativo emerge do próprio grupo e não está sujeita a invenções predeterminadas, exigindo o esforço de todos no sentido de preencher os princípios de realização de uma ação comunicativa com as suas pretensões de validade, e de buscar uma comunicação simétrica, cada vez mais livre e isenta de coação. Esse esforço

tem em seu cerne um princípio ético que se concretiza em um processo comunicativo no qual cada elemento do grupo é considerado um parceiro de diálogo, cujas falas são oferecidas à interpretação dos outros, ao mesmo tempo em que ele abre possibilidades para criticar as próprias interpretações.

Dessa forma, o desenrolar do processo é imprevisível, pois a busca de um possível consenso constitui-se em algo inovador para todos os participantes. No momento, somente podemos apontar linhas norteadoras, a partir das pretensões de validade inerentes a uma ação comunicativa.

Os princípios e as normas que vão reger essa ação no grupo de professores e fornecer os critérios para avaliações e redimensionamentos vão138 Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 emergir do processo interativo e serão resultados das discussões do grupo, realizadas visando a um consenso.

A análise do desenvolvimento desse processo conta com categorias dos atos de fala, que possibilitam uma compreensão, na perspectiva da teoria da ação comunicativa de Habermas, do processo interativo e argumentativo que se manifesta nesses atos. Para o desenvolvimento da competência comunicativa, na realização da pesquisa, pretendemos atuar no sentido de tentar elevar o nível de argumentação dos participantes. De forma coerente com essa teoria, a pesquisa é realizada com a participação efetiva do grupo de professores participantes da ação interdisciplinar, não somente no direcionamento do processo, mas também na interpretação e na avaliação do seu desenvolvimento. Habermas’ theory of communicative action: possibilities of interdisciplinary educational action at school ABSTRACT: The purpose of this article is to present and discuss theoretical and practical conditions for the implementation of a project of interdisciplinary educational action at school, based on Jürgen Habermas’ theory of communicative action. Initially we present significant aspects of this theory. Next, we present guidelines that we adopt as point of departure and support of the research, and which also supply the categories for analysis and interpretation of the experience.

Bibliografia

ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

ALMEIDA, Guido. Nota preliminar do tradutor. In: Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

ETGES, Norberto. Produção do conhecimento e interdisciplinaridade. Educação e Realidade nº 2, Porto Alegre, v. 18, jul./dez. 1993.

FAZENDA, Ivani Arantes (org.). Práticas interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez, 1991.Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99 139

___________. Interdisciplinaridade: História, teoria e pesquisa. Campinas: Papirus, 1994.

FLECHA, Ramón. As novas desigualdades educativas. In: Novas perspectivas críticas em Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

FREITAG, Barbara. A teoria crítica: Ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1986.

FREITAG, Barbara e ROUANET, Sergio Paulo. Habermas – Sociologia. São Paulo: Ática, 1980.

FREITAS, Luiz C. A questão da interdisciplinaridade: Notas para a reformulação dos cursos de pedagogia. Educação & Sociedade nº 33, São Paulo, 1989.

FRIGOTTO, Gaudêncio. A interdisciplinaridade como necessidade e

como problema das ciências sociais. Educação e Realidade nº 2.Porto Alegre, jul./dez. 1993, v.18.

GONÇALVES, Maria Augusta Salin. Interdisciplinaridade e educação básica: Algumas reflexões introdutórias. In: Educação Básica e o básico em educação. Porto Alegre: Sulina, 1996.

___________. Sentir, pensar, agir – Corporeidade e educação. 2 a ed.Campinas: Papirus, 1997.

HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica – para a crítica da hermenêutica de Gadamer. Porto Alegre: L&PM, 1987a.

___________. Teoria de la acción comunicativa I - Racionalidad de la acción y racionalización social. Madri: Taurus, 1987b.

__________. Teoria de la acción comunicativa II – Crítica de la razón funcionalista. Madri: Taurus, 1987c.

__________. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1987d.

__________. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. In: Revista de Estudos Avançados da USP nº 7. São Paulo, v. 3, set./

dez. 1989, pp. 4-19.

__________. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

__________. Teoria de la acción comunicativa: Complementos y estúdios previos. Madri: Catedra, 1994.140 Educação & Sociedade, ano XX, nº 66, Abril/99

HORSTER, Detlef et alii. Habermas zur Einführung. Hamburg: Soak, 1988.

JANTSCH, Ari P. e BIANCHETTI, Lucídio. Interdisciplinaridade - Para

além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995.

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

LÜCK, Heloísa. Pedagogia interdisciplinar: Fundamentos teóricometodológicos. Petrópolis: Vozes, 1994.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial - O homem

unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

MCCARTHY, Thomas. La teoría crítica de Jürgen Habermas. Madri:

Tecnos, 1995.

PEUKERT, Helmut. Problemas básicos de uma teoria crítica da educação.

Educação & Sociedade nº 56. Campinas: Cedes/Papirus, 1996, pp.

412-430.

PRESTES, Nadja M. Hermann. Educação e racionalidade: Conexões e

possibilidades de uma razão comunicativa na escola. Porto Alegre:

Edipucrs, 1996.

PUCCI, Bruno et alii. Teoria crítica e educação - A questão cultural na

Escola de Frankfurt. Petrópolis: Vozes, 1994.

SCHÄFER, Karl H. e SCHALLER, Klaus. Ciência educadora crítica e didática comunicativa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982.

SEVERINO, Antonio Joaquim. O uno e o múltiplo: O sentido antropológico

do interdisciplinar. In: Jantsch e Bianchetti, Interdisciplinaridade -

para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995.

SIEBENEICHLER, Flavio. Encontros e desencontros no caminho da

interdisciplinaridade: G. Gusdorf e J. Habermas. Revista Tempo

Brasileiro 98. Rio de Janeiro, jul./set. 19

FALTA IMPRIMIR

Professores como intelectuais transformadores*

Henry A. Giroux

Diferente de muitos movimentos de reforma educacional do passado, o atual apelo por mudança educacional apresenta aos professores tanto uma ameaça quanto um desafio que parecem sem precedentes na história de nossa nação. A ameaça vem na forma de uma série de reformas educacionais que mostram pouca confiança na capacidade dos professores da escola pública de oferecerem uma liderança intelectual e moral para a juventude de nosso país. Por exemplo, muitas das recomendações que surgiram no atual debate ignoram o papel que os professores desempenham na preparação dos aprendizes para serem cidadãos ativos e críticos, ou então sugerem reformas que ignoram a inteligência, julgamento e experiência que os professores poderiam oferecer em tal debate. Quando os professores de fato entram no debate é para serem objeto de reformas educacionais que os reduzem ao status de técnicos de alto nível cumprindo ditames e objetivos decididos por especialistas um tanto afastados da realidade cotidiana da vida em sala de aula. A mensagem parece ser que os professores não contam quando trata-se de examinar criticamente a natureza e processo da reforma intelectual.

O clima político e ideológico não parece favorável para os professores no momento. Entretanto, ele de fato lhes oferece o desafio de unirem-se ao debate público com seus críticos, bem como a oportunidade de se engajarem em uma autocrítica muito necessária em relação à natureza e finalidade da preparação dos professores, dos programas de treinamento no trabalho e das formas dominantes da escolarização. De forma semelhante, o debate oferece aos professores a oportunidade de se organizarem coletivamente para melhorar as condições em que trabalham, e demonstram ao público o papel fundamental que eles devem desempenhar em qualquer tentativa de reformar as escolas públicas.

Para que os professores e outros se engajem em tal debate, é necessário que uma perspectiva teórica seja desenvolvida, redefinindo a natureza da crise educacional e ao mesmo tempo fornecendo as bases para uma visão alternativa para o treinamento e trabalho dos professores. Em resumo, o reconhecimento de que a atual crise na educação tem muito a ver com a tendência crescente de enfraquecimento dos professores em todos os níveis da educação é uma precondição teórica necessária para que eles efetivamente se organizem e estabeleçam uma voz coletiva no debate atual. Além disso, tal reconhecimento terá que enfrentar não apenas a crescente perda de poder entre os professores em torno das condições de seu trabalho, mas também as mudanças na percepção do público quanto a seu papel de praticantes reflexivos.

Gostaria de dar uma pequena contribuição teórica para que este debate e o desafio que ele suscita examinando dois problemas importantes que precisam ser abordados no interesse de melhorar a qualidade da “atividade docente”, o que inclui todas as tarefas administrativas e atividades extras, bem como a instrução em sala de aula. Primeiramente, eu acho que é imperativo examinar as forças ideológicas e materiais que têm contribuído para o que desejo chamar de proletarização do trabalho docente, isto é, a tendência de reduzir os professores ao status de técnicos especializados dentro da burocracia escolar, cuja função, então, torna-se administrar e implementar programas curriculares, mais do que desenvolver ou apropriar-se criticamente de currículos que satisfaçam objetivos pedagógicos específicos. Em segundo lugar, existe uma necessidade de defender as escolas como instituições essenciais para a manutenção e desenvolvimento de uma democracia, e também a defesa dos professores como intelectuais transformadores que combinam a reflexão e prática acadêmica a serviço dos estudantes para que sejam cidadãos reflexivos e ativos. No restante deste ensaio, irei desenvolver estes pontos e concluir examinando suas implicações para o fortalecimento de uma visão alternativa da atividade docente.

Desvalorização e Desestabilização do Trabalho Docente

Uma das maiores ameaças aos professores existentes e futuros nas escolas públicas é o desenvolvimento crescente de ideologias instrumentalistas que enfatizam uma abordagem tecnocrática para a preparação dos professores e também para a pedagogia de sala de aula. No cerne da atual ênfase nos fatores instrumentais e pragmáticos da vida escolar colocam-se diversas suposições pedagógicas importantes. Elas incluem: o apelo pela separação de concepção e execução; a padronização do conhecimento escolar com o interesse de administrá-lo e controlá-lo; e a desvalorização do trabalho crítico e intelectual de professores e estudantes pela primazia de considerações práticas. Esse tipo de racionalidade instrumental encontra uma de suas expressões historicamente mais fortes no treinamento de futuros professores. O fato de que os programas de treinamento de professores nos Estados Unidos há muito têm sido dominados por uma orientação e ênfase behaviorista na mestria de áreas disciplinares e métodos de ensino está bem documentado. Vale a pena repetir as implicações desta abordagem, salientadas por Zeichner:

Subjacente a esta orientação na formação dos professores encontra-se uma metáfora de “produção”, uma visão do ensino como “ciência aplicada” e uma visão do professor como principalmente um “executor” das leis e princípios de ensino eficaz. Os futuros professores podem ou não avançar no currículo em seu próprio ritmo e podem participar de atividades de aprendizagem variadas ou padronizadas, mas aquilo que eles têm que dominar tem escopo limitado (por exemplo, um corpo de conhecimentos de conteúdo profissional e habilidades didáticas) e está totalmente determinado com antecipação por outros, com base, muitas vezes, em pesquisas na efetividade do professor. O futuro professor é visto basicamente como um receptor passivo deste conhecimento profissional e participa muito pouco da determinação do conteúdo e direção de seu programa de preparação. Os problemas desta abordagem são evidentes com o

argumento de John Dewey de que os programas de treinamento de professores que enfatizam somente o conhecimento técnico prestam um desserviço tanto à natureza do ensino quanto a seus estudantes. Em vez de aprenderem a refletir sobre os princípios que estruturam a vida e a prática em sala de aula, os futuros professores aprendem metodologias que parecem negar a própria necessidade de pensamento crítico. O ponto é que os programas de treinamento de professores muitas vezes perdem de vista a necessidade de educar os alunos para que eles examinem a natureza subjacente dos problemas escolares. Além disso, estes programas precisam substituir a linguagem da administração e eficiência por uma análise crítica das condições menos óbvias que estruturam as práticas ideológicas e materiais do ensino.

Em vez de aprenderem a levantar questões acerca dos princípios que subjazem os diferentes métodos didáticos, técnicas de pesquisa e teorias de educação, os estudantes com freqüência preocupam-se em aprender o “como fazer”, “o que funciona” ou o domínio da melhor maneira de ensinar um “dado” corpo de conhecimento. Por exemplo, os seminários obrigatórios de prática no campo consistem na partilha de técnicas utilizadas pelos estudantes para administrar e controlar a disciplina em sala de aula, organizar as atividades do dia e aprender a trabalhar dentro de cronogramas específicos. Examinando um programa destes, Jesse Goodman levanta algumas questões importantes acerca dos silêncios prejudiciais que o mesmo incorpora. Ele escreve:

Não havia questionamento de sentimentos, suposições ou definições nesta discussão. Por exemplo, a “necessidade” de recompensas e punições para “fazer crianças aprenderem” era dada como garantida; as implicações éticas e educacionais não eram abordadas. Não se via preocupação em estimular ou alimentar o desejo intrínseco da criança por aprender. As definições de bons alunos como “alunos quietos”, atividades no caderno de exercícios como “leitura”, tempo envolvido com a tarefa como “aprendizagem”, e finalizar o material dentro do horário como “objetivo de ensino” – todas passavam sem questionamento. Os sentimentos de pressão e possível culpa quanto a não satisfazer os cronogramas também não eram explorados. A real preocupação nesta discussão era a de que todos “compartilhassem.

As racionalidades tecnocráticas e instrumentais também operam dentro do próprio campo de ensino, e desempenham um papel cada vez maior na redução da autonomia do professor com respeito ao desenvolvimento e planejamento curricular e o julgamento e implementação de instrução em sala de aula. Isto é bastante evidente na proliferação do que se tem chamado de pacotes curriculares “à prova de professor”. A fundamentação subjacente de muitos destes pacotes reserva aos professores o simples papel de executar procedimentos de conteúdo e instrução predeterminados. O método e objetivo de tais pacotes é legitimar o que chamo de pedagogias de gerenciamento. Isto é, o conhecimento é subdividido em partes diferentes, padronizado para serem mais facilmente gerenciados e consumidos, e medidos através de formas de avaliação predeterminadas. As abordagens curriculares deste tipo são pedagogias de gerenciamento porque as principais questões referentes à aprendizagem ficam reduzidas ao problema da administração, isto é, “como alocar recursos (professores, estudantes e

materiais) para produzir o número máximo possível de estudantes... diplomados dentro do tempo designado”. A suposição teórica subjacente que orienta este tipo de pedagogia é a de que o comportamento dos professores precisa ser controlado, tornando-o comparável e previsível entre as diferentes escolas e populações de alunos.

O que fica claro nesta abordagem é que a mesma organiza a vida escolar em torno de especialistas em currículo, instrução e avaliação, aos quais se reserva a tarefa de concepção, ao passo que os professores são reduzidos à tarefa de implementação. O efeito não se reduz somente à incapacitação dos professores para afastá-los do processo de deliberação e reflexão, mas também para tornar rotina a natureza da pedagogia de aprendizagem e de sala de aula. Não é preciso dizer que os princípios subjacentes às pedagogias de gerenciamento estão em desacordo com a premissa de que os professores deveriam estar ativamente envolvidos na produção de materiais curriculares adequados aos contextos culturais e sociais em quais ensinam. Mas especificamente, o estreitamento das opções curriculares ao formato de retorno aos fundamentos e a introdução de pedagogias inflexíveis de tempo na tarefa operam a partir da suposição errônea de que todos os estudantes podem aprender a partir dos mesmos materiais, técnicas em sala de aula e modos de avaliação. A noção de que os estudantes têm histórias diferentes e incorporam experiências, práticas lingüísticas, culturas e talentos diferentes é estrategicamente ignorada dentro da lógica de e contabilidade da teoria pedagógica administrativa.

Professores como Intelectuais Transformadores

No que se segue, desejo argumentar que uma forma de repensar e reestruturar a natureza da atividade docente é encarar os professores como intelectuais transformadores. A categoria de intelectual é útil de diversas maneiras. Primeiramente, ela oferece uma base teórica para examinar-se a atividade docente como forma trabalho intelectual, em contraste com sua definição em termos puramente instrumentais ou técnicos. Em segundo lugar, ela esclarece os tipos de condições ideológicas e práticas necessárias para que os professores funcionem como intelectuais. Em terceiro lugar, ela ajuda a esclarecer o papel que os professores desempenham na produção e legitimação de interesses políticos, econômicos e sociais variados através das pedagogias por eles endossadas e utilizadas.

Ao encarar os professores como intelectuais, podemos elucidar a importante idéia de que toda a atividade humana envolve alguma forma de pensamento. Nenhuma atividade, independente do quão rotinizada possa se tornar, pode ser abstraída do funcionamento da mente em algum nível. Este ponto é crucial, pois ao argumentarmos que o uso da mente é uma parte geral de toda atividade humana, nós dignificamos a capacidade humana de integrar o pensamento e a prática, e assim destacamos a essência do que significa encarar os professores como profissionais reflexivos. Dentro deste discurso, os professores podem ser vistos não simplesmente como “operadores profissionalmente preparados para efetivamente atingirem quaisquer metas a eles apresentadas. Em vez disso, eles deveriam ser vistos como homens e mulheres livres,

com uma dedicação especial aos valores do intelecto e ao fomento da capacidade crítica dos jovens”.

Encarar os professores como intelectuais também fornece uma vigorosa crítica teórica das ideologias tecnocráticas e instrumentos subjacentes à teoria educacional que separa a conceitualização, planejamento e organização curricular dos processos de implementação e execução. É importante enfatizar que os professores devem assumir responsabilidade ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do que ensinam, como devem ensinar, e quais são as metas mais amplas pelas quais estão lutando. Isto significa que eles devem assumir um papel responsável na formação dos propósitos e condições de escolarização. Tal tarefa é impossível com uma divisão do trabalho na qual os professores têm pouca influência sobre as condições ideológicas e econômicas de seu trabalho. Este ponto tem uma dimensão normativa e política que parece especialmente relevante para os professores. Se acreditarmos que o papel do ensino não pode ser reduzido ao simples treinamento de habilidades práticas, mas que, em vez disso, envolve a educação de uma classe de intelectuais vital pra o desenvolvimento de uma sociedade livre, então a categoria de intelectual torna-se uma maneira de unir a finalidade da educação de professores, escolarização pública e treinamento profissional aos próprios princípios necessários para o desenvolvimento de uma ordem e sociedade democráticas.

Eu argumentei que, encarando os professores como intelectuais, nós podemos começar a repensar e reformar as tradições e condições que têm impedido que os professores assumam todo o seu potencial como estudiosos e profissionais ativos e reflexivos. Acredito que é importante não apenas encarar os professores como intelectuais, mas também contextualizar em termos políticos e normativos as funções sociais concretas desempenhadas pelos mesmos. Desta forma, podemos ser mais específicos acerca das diferentes relações que os professores têm tanto com seu trabalho como com a sociedade dominante.

Um ponto de partida para interrogar-se a função social dos professores enquanto intelectuais é ver as escolas como locais econômicos, culturais e sociais que estão inextrincavelmente atrelados às questões de poder e controle. Isto significa que as escolas fazem mais do que repassar de maneira objetiva um conjunto comum de valores e conhecimentos. Pelo contrário, as escolas são lugares que representam formas de conhecimento, práticas de linguagem, relações e valores sociais que são seleções e exclusões particulares da cultura mais ampla. Como tal, as escolas servem para introduzir e legitimar formas particulares de vida social. Mais do que instituições objetivas separadas da dinâmica da política e poder, as escolas são, de fato, esferas controversas que incorporam e expressam uma disputa acerca de que formas de autoridade, tipos de conhecimento, formas de regulação moral e versões do passado e futuro que devem ser legitimadas e transmitidas aos estudantes. Esta disputa é mais visível, por exemplo, nas demandas de grupos religiosos de direita que atualmente tentam instituir a reza nas escolas, eliminar certos livros das bibliotecas escolares e incluir certas formas de ensinamentos religiosos no currículo de ciências. É claro que

demandas de outro tipo são feitas por feministas, ecologistas, minorias, e outros grupos de interesse que acreditam que as escolas deveriam ensinar estudos femininos, cursos sobre meio ambiente, ou história dos negros. Em resumo, as escolas não são locais neutros e os professores não podem tampouco assumir a postura de serem neutros.

Num sentido mais amplo, os professores como intelectuais devem ser vistos em termos dos interesses políticos e ideológicos que estruturam a natureza do discurso, relações sociais em sala de aula e valores que eles legitimam em sua atividade de ensino. Com esta perspectiva em mente, gostaria de concluir que os professores deveriam se tornar intelectuais transformadores se quiserem educar os estudantes para serem cidadãos ativos e críticos.

Essencial para a categoria de intelectual é a necessidade de tornar o pedagógico mais político e o político mais pedagógico. Tornar o pedagógico mais político significa inserir a escolarização diretamente na esfera política, argumentando-se que as escolas representam tanto um esforço para definir-se o significado quanto uma luta em torno das relações de poder. Dentro desta perspectiva, a reflexão e ação críticas tornam-se parte de um projeto social fundamental de ajudar os estudantes a desenvolverem uma fé profunda e duradoura na luta para superar as injustiças econômicas, políticas e sociais, e humanizarem-se ainda mais como parte desta luta. Neste caso o conhecimento e o poder estão inextrincavelmente ligados à preposição de que optar pela vida, reconhecer a necessidade de aperfeiçoar o seu caráter democrático e qualitativo para todas as pessoas, significa compreender as precondições necessárias para lutar-se por ela.

Tornar o político mais pedagógico significa utilizar formas de pedagogia que incorporem interesses políticos que tenham natureza emancipadora; isto é, utilizar formas de pedagogia que tratem os estudantes como agentes críticos; tornar o conhecimento problemático; utilizar o diálogo crítico e afirmativo; e argumentar em prol de um mundo qualitativamente melhor para todas as pessoas. Em parte, isto sugere que os intelectuais transformadores assumam seriamente a necessidade de dar aos estudantes voz ativa em suas experiências de aprendizagem. Também significa que desenvolver uma linguagem crítica que esteja atenta aos problemas experimentados em nível de experiência cotidiana, particularmente enquanto relacionados com as experiências pedagógicas ligadas à prática em sala de aula. Como tal, o ponto de partida destes intelectuais não é o estudante isolado, e sim indivíduos e grupos em seus diversos ambientes culturais, raciais, históricos e de classe e gênero, juntamente com a particularidade de seus diversos problemas, esperanças e sonhos.

Os intelectuais transformadores precisam desenvolver um discurso que uma a linguagem da crítica e a linguagem da possibilidade, de forma que os educadores sociais reconheçam que podem promover mudanças. Desta maneira, eles devem se manifestar contra as injustiças econômicas, políticas e sociais dentro e fora das escolas. Ao mesmo tempo, eles devem trabalhar para criar as condições que dêem aos estudantes a oportunidade de tornarem-se cidadãos, que tenham o conhecimento e coragem para lutar a fim de que o desespero não seja convincente e a esperança seja viável. Apesar parecer

uma tarefa difícil para os educadores, esta é uma luta que vale a pena travar. Proceder de outra maneira é negar aos educadores a chance de assumirem o papel de intelectuais transformadores.

Os Professores Como Intelectuais: Rumo a Uma PeDagogia Critica Da Aprendizagem.

Henry A. Giroux em seu livro: Os professores como intelectuais, rumo a uma pedagogia critica da aprendizagem, incita os educadores e os acadêmicos a reagir contra a realidade da sociedade em que vivemos, sendo críticos, criativos, e esperançosos em relação ao seu potencial e capacidade de transformação.

A fim de contrariar as tendências politicas conservadoras que tem imposto uma definição de excelência em educação que significa mais uma submissão às necessidades de mercado do que excelência educativa nos termos de uma produção intelectual inovadora. Giroux incita, ao mesmo tempo, à analise critica e ao reconhecimento de possibilidades na educação e advoga tanto a independência como a responsabilidade para professores e estudantes, isto é clama por dignidade e respeito para com as instituições de educação. (Entrevista publicada em inglês, na revista Language and Intercultural Communication, 6(2). Manuela Guilherme. http://www.henryagiroux.com)

O professor para ser considerado intelectual não precisa de títulos que o elejam como tal.

Pois cada um de nos e um intelectual na medida em que temos a capacidade de pensar, de gerar ideias, de ser autocríticos e de articular conhecimentos de onde quer que surjam com formas de autodesenvolvimento e de desenvolvimento social.

(Entrevista publicada em inglês, na revista Language and Intercultural Communication, 6(2). Manuela Guilherme. http://www.henryagiroux.com)

Infelizmente o professor e desvalorizado em seu trabalho docente, o que acarreta varias consequências, atrapalhando seu desenvolvimento intelectual. Na maioria das vezes a culpa não e do professor pela ministração de uma aula cansativa e não produtiva, mas sim do sistema que não fornece condições essenciais para seu crescimento, beneficiando dessa forma os alunos.

Segundo Giroux a experiência e de fundamental importância na vida do aluno, essa que tem o potencial de transformar e construir. Tornando dessa forma um desafio para o professor que...

PEDAGOGIA DA PRÁXIS

E EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Moacir Gadotti

Nas últimas duas décadas do Século 20 assistimos a grandes mudanças, tanto no campo sócio-econômico e político, quanto no campo da cultura, da ciência e da tecnologia, mas, sobretudo, no campo da ecologia. As Conferências sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de Estocolmo (1972) e do Rio de Janeiro (1992) foram dois grandes marcos dessas mudanças. Vimos ainda grandes movimentos sociais, como os que ocorreram no leste europeu, no final dos anos 80, culminando com a queda do muro de Berlim. Não fazemos uma ideia clara ainda do que deverá representar, para todos nós, a globalização crescente da economia, das comunicações e da cultura.

Finalmente, as transformações tecnológicas tornaram possível o surgimento da era da informação.

É um tempo de expectativas, de perplexidade e da crise de concepções e paradigmas não apenas porque estamos iniciando a caminhada de um novo milênio, época de balanço e de reflexão, época em que o imaginário parece ter um peso maior. É um momento novo e rico de possibilidades. Por isso, colados ao nosso tempo, não podemos falar do futuro da educação em geral e da educação ambiental, em particular, sem certa dose de cautela. É com essa cautela que eu gostaria de examinar alguns conceitos da teoria e da prática da educação em geral e da educação ambiental e particular, que, seguindo a tradição filosófica, chamo de categorias apoiando-me numa Pedagogia da práxis. A perplexidade e a crise de paradigmas não podem se constituir num álibi para o imobilismo.

Por que Pedagogia da práxis? Inspirei-me em Marx, Gramsci e Paulo Freire para escrever o livro Pedagogia da práxis, publicado em 1994 pela Editora Cortez. A pedagogia da práxis é a teoria de uma prática pedagógica que procura não esconder o conflito, a contradição, mas, ao contrário, entende-os como inerentes à existência humana, explicita-os, convive com a (*) Moacir Gadotti é professor titular da Universidade de São Paulo, Diretor do Instituto Paulo Freire e autor de várias obras, entre elas: A educação contra a educação (Paz e Terra, 1979), Convite à leitura de Paulo Freire (Scipione, 1988), História das idéias pedagógicas (Ática, 1993), Pedagogia da práxis (Cortez, 1994), Perspectivas atuais da educação (Artes Médicas, 2000), Pedagogia da Terra (Peirópolis, 2000) e Os mestres de Rousseau (Cortez, 2004). Participou da Rio-92 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), chamada de “Cúpula da Terra”, que elaborou e aprovou a Agenda 21. No Fórum Global-92, na mesma época, coordenou, ao lado Moema Viezer, Fábio Cascino, Nilo Diniz e Marcos Sorrentino, a “Jornada Internacional de Educação Ambiental” que elaborou o “Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global”. contradição e o conflito. Ela se inspira na dialética. O referencial maior dessa pedagogia é o conceito de práxis.

Práxis, em grego, significa literalmente ação. Assim, Pedagogia da práxis poderia ser confundida com a pedagogia da ação defendida pelo movimento da Escola Nova. Poderia ser considerada como uma versão da pedagogia pragmática que entende a práxis como prática estritamente utilitária, reduzindo o verdadeiro ao útil. Ao contrário,

mais do que a Escola Nova, a pedagogia da práxis evoca a tradição marxista da educação, embora a pedagogia aqui apresentada transcenda o marxismo. Na nossa visão, práxis significa ação transformadora. É essa a acepção que assumimos aqui.

A pedagogia da práxis pretende ser uma pedagogia para a educação transformadora. Ela radica numa antropologia que considera o homem um ser incompleto, inconcluso e inacabado e, por isso, um ser criador, sujeito da história, que se transforma na medida mesma em que transforma o mundo.

Toda pedagogia refere-se à prática, pretende se prolongar na prática. Não tem sentido sem ela, pois é ciência da educação. Mas não só. Fazer pedagogia é fazer prática teórica por excelência. É descobrir e elaborar instrumentos de ação social. Nela se realiza de forma essencial a unidade entre teoria e prática. A pedagogia como teoria da educação não pode abstrair-se da prática intencionada. A pedagogia é sobretudo teoria da práxis.

Já se passaram onze anos desde que publiquei meu livro Pedagogia da práxis.

Depois dele publiquei Pedagogia da Terra (Peirópolis, 2000) que considero como um prolongamento da pedagogia da práxis. Devemos continuar produzindo “pedagogias”, como nos aconselhava Paulo Freire.

Nesse sentido, gostaria de colaborar com essa iniciativa do Ministério do Meio Ambiente, preocupado com a formação crítica do educador ambiental e apresentar mais algumas categorias (ou conceitos) que apontem para uma educação do futuro possível. Elas indicam o surgimento de temas com importantes conseqüências para a educação.

As categorias “contradição”, “determinação”, “reprodução”, “mudança”, “trabalho”, “práxis”, “necessidade”, “possibilidade” aparecem freqüentemente na literatura pedagógica contemporânea, sinalizando já uma perspectiva da educação como práxis transformadora. Essas categorias tornaram-se clássicas na explicação do fenômeno da educação, principalmente a partir de Hegel e de Marx. A dialética constitui-se, até hoje, no paradigma mais consistente para a análise do fenômeno da educação. Podemos e devemos estudá-la e estudar todas as categorias acima apontadas.

Elas não podem ser negadas pois ajudarão muito na leitura do mundo da educação atual.

Elas não podem ser negadas ou desprezadas como categorias “ultrapassadas”. Mas também podemos nos ocupar mais especificamente de outras, ao pensar a educação do futuro, categorias nascidas ao mesmo tempo da prática da educação e da reflexão sobre ela. Eis algumas delas, a título de exemplo.

- Cidadania. O que implica também tratar do tema da autonomia (Paulo Freire, 1997) da questão da participação, da educação para e pela cidadania. Educar para a cidadania ativa tornou-se hoje projeto e programa de muitas escolas e de sistemas educacionais.

- Planetaridade. A Terra é um “novo paradigma” (Leonardo Boff, 1994). Que implicações tem essa visão de mundo sobre a educação? O que seria uma ecopedagogia (Francisco Gutiérrez & Cruz Prado, 1999) e uma ecoformação (Gaston Pineau, 1994)?

O tema da cidadania planetária pode ser discutido a partir desta categoria.

- Sustentabilidade. O tema da sustentabilidade originou-se na economia (“desenvolvimento sustentável”) e na ecologia, para inserir-se definitivamente no campo da educação, sintetizada no lema “uma educação sustentável para a 2sobrevivência do planeta” (Ângela Antunes, 2002). O que seria uma cultura da sustentabilidade? Esse tema deverá dominar muitos debates educativos das próximas décadas.

- Virtualidade. Esse tema implica toda a discussão atual sobre a educação a distância e o uso dos computadores nas escolas e da Internet (Pierre Levy, 2001). A informática associada à telefonia nos inseriu definitivamente na era da informação.

Quais as conseqüências para a educação, para a escola, para a formação do professor e para a aprendizagem? Como fica a educação diante da pluralidade dos meios de comunicação: eles nos abrem os novos espaços da formação ou irão substituir a escola?

- Globalização. O processo da globalização está mudando a política, a economia, a cultura, a história... portanto também a educação (Milton Santos, 2000). É um tema que deve ser enfocado sob vários prismas. Para pensar a educação do futuro, precisamos refletir sobre o processo de globalização da economia, da cultura e das comunicações.

- Transdisciplinaridade. Embora com significados distintos, certas categorias como transculturalidade, transversalidade, multiculturalidade e outras, como complexidade e holismo, também indicam uma nova tendência na educação que será preciso analisar (Basarab Nicolescu, 1999). Como relacionar multiculturalidade e currículo? É necessário realizar o debate dos temas “transversais” ou “geradores” (Paulo Freire) e de uma educação sem discriminação étnica, cultural, de gênero.

- Dialogicidade, dialeticidade. Não podemos negar a atualidade de certas categorias freireanas e marxistas, a validade de uma pedagogia dialógica ou da práxis.

Marx, em O Capital, privilegiou as categorias hegelianas “determinação”, “contradição”, “necessidade”, “possibilidade”. A fenomenologia hegeliana continua inspirando nossa educação e deverá atravessar o milênio.

Essas, eu diria, são as novas categorias da pedagogia da práxis. A análise dessas categorias, a identificação da sua presença na pedagogia contemporânea, pode constituir-se, sem dúvida, num grande programa educacional.

O que me motivou a escrever Pedagogia da práxis foi essa vontade de contribuir para com o debate de uma pedagogia que é, ao mesmo tempo, uma pedagogia da esperança e da luta. Estou ciente de que no meu livro, publicado em 1994 e hoje traduzido em

diversas línguas, não tratei de todos os temas, de que existem muitos outros desafios para a educação. A reflexão crítica não basta, como também não basta a prática sem a reflexão sobre ela.

A pergunta que eu poderia fazer agora é como a pedagogia da práxis pode servir para uma educação ambiental.

O Fórum Global 92 se constituiu num evento dos mais significativos do final de século XX: deu grande impulso à globalização da cidadania. Hoje, o debate em torno da Carta da Terra está se constituindo num fator importante de construção desta cidadania planetária. Qualquer pedagogia, pensada fora da globalização e do movimento ecológico, tem hoje sérios problemas de contextualização e de sustentação.

De certa forma, o encontro entre a pedagogia da práxis e a educação ambiental deu-se na Rio-92 com as primeiras reflexões sobre a ecopedagogia. A ecopedagogia não quer oferecer apenas uma nova visão da realidade. Ela pretende reeducar o olhar.

Reeducar o olhar significa desenvolver a atitude de perceber e não ficar indiferente diante das agressões ao meio ambiente, criar hábitos alimentares novos, evitar o desperdício, a poluição sonora, visual, a poluição da água e do ar etc. e intervir no sentido de reeducar o habitante do planeta. “Enquanto o ambientalismo superficial apenas se interessa por um controle e gestão mais eficazes do ambiente natural em benefício do ‘homem’, o movimento da ecologia fundamenta na ética reconhece que o equilíbrio ecológico exige uma série de mudanças profundas em nossa percepção do papel que deve desempenhar o ser humano no ecossistema planetário” (Gutiérrez & Prado, 1999:33).

A Pedagogia da Práxis, inserida na tradição marxista renovada da pedagogia, não se contrapôs à ecopedagogia como pedagogia libertadora. Não abandonamos as categorias críticas (marxismo, libertação) mesmo incorporando categorias pós-críticas (significação, representação, cultura, multiculturalismo). Fundamentamos a ecopedagogia numa concepção crítica da educação, levando em conta os novos paradigmas da ciência e da pedagogia, sem dicotomizá-los burocraticamente, mas tirando deles as necessárias lições para poder continuar caminhando. A ecopedagogia trouxe mais uma contribuição à pedagogia da práxis que é o conceito de “cidadania planetária” (Francisco Gutierrez & Cruz Prado, 1999). O conceito de cidadania ganha nova dimensão. Como cidadãos/ãs do planeta nos sentimos como seres convivendo no planeta Terra com outros seres viventes e inanimados. Esse princípio deve orientar nossas vidas, nossa forma de pensar a escola e a pedagogia com a qual nos educamos.

Existe uma concepção capitalista de desenvolvimento sustentável e que é sustentada por uma parcela do movimento ecológico. Ela pode se constituir numa armadilha para a ecopedagogia. Por isso a ecopedagogia não pode inspirar-se apenas numa concepção de desenvolvimento. O desenvolvimento sustentável, ao nosso ver, só pode, de fato, enfrentar a deterioração da vida no planeta na medida em que está associado a um projeto mais amplo, que possibilite o advento de uma sociedade justa, eqüitativa e

includente, o oposto do projeto neoliberal e neoconservador. Só com o apoio forte dos trabalhadores da cidade e do campo, dos movimentos sociais e populares, podemos construir um novo modelo de desenvolvimento e de educação verdadeiramente sustentáveis.

Podemos dizer que a educação para a cidadania planetária está apenas começando e que ela deve nos levar a uma educação para a cidadania cósmica. Os desafios são enormes tanto para os educadores quanto para os responsáveis pelos sistemas educacionais. Mas já existem certos sinais, na própria sociedade, que apontam para uma crescente busca não só por temas espiritualistas e de auto-ajuda, mas por um conhecimento científico mais profundo do universo.

O interesse por questões globais e pelo cosmos está atraindo muito mais do que os físicos de hoje. E não só cientistas, mas também o grande público. Há muita procura hoje por conhecimentos sobre o universo. É um fato auspicioso verificar que se busca saber mais não apenas sobre o homem, mas também sobre o planeta e o universo (Marcelo Gleiser, 1997).

Os currículos escolares, numa visão ecopedagógica, deverão incluir, desde o estudos infantis, não apenas o estudo do ambiente natural, o entorno, os contextos urbanos, mas a história da Terra e do Universo. A ecopedagogia nos ensina a olhar para o céu.

Educar para a cidadania planetária implica muito mais do que uma filosofia educacional, do que o enunciado de seus princípios. A educação para a cidadania planetária implica uma revisão dos nossos currículos, uma reorientação de nossa visão de mundo da educação como espaço de inserção do indivíduo não numa comunidade local, mas numa comunidade que é local e global ao mesmo tempo. Educar, então, não seria como dizia Emile Durheim, a transmissão da cultura de uma geração para outra, mas a grande viagem de cada indivíduo no seu universo interior e no universo que o cerca.

BIBLIOGRAFIA

ANTUNES, Ângela. Leitura do mundo no contexto da planetrarização: por uma pedagogia da sustentabilidade. São Paulo, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2002 (Tese de doutorado).

BOFF, Leonardo. Nova era: a civilização planetária. São Paulo, Ática, 1994.

FÓRUM GLOBAL 92. Tratados das ONGs, aprovados no Fórum Internacional das

Organizações Não Governamentais e Movimentos Sociais no âmbito do Fórum

Global ECO 92. Rio de Janeiro, Fórum das ONGs, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São

Paulo, Paz e Terra, 1997.

GADOTTI, Moacir. Pedagogia da práxis. São Paulo, Cortez, 1995.

GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra. São Paulo, Peirópolis, 2000.

GLEISER, Marcelo. A dança do universo: dos mitos da criação ao big bang. São Paulo,

Companhia das letras, 1997.

GUTIÉRREZ, Francisco e Cruz Prado. Ecopedagogia e cidadania planetária. São

Paulo, Cortez, 1999.

LEVY, Pierre. A conexão planetária: o mercado, o ciberespaço, a consciência. São Paulo, Editora 34, 2001.

MORIN, Edgar e Anne Brigitte Kern. Terre-Patrie. Paris, Seuil, 1993.

NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo, Trion, 1999

PINEAU, Gaston (org.). De l´air: essai sur l´écoformation. Paris, Païdéia,1992.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo, Record, 2000.

SCHMIED-KOWARZIK, Wolfdietrich. O futuro ecológico como tarefa da filosofia.

São Paulo, IPF, 1999 (Cadernos de Ecopedagogia, vol. 4).

SORRENTINO, Marcos. Educação ambiental e universidade. São Paulo, FEUSP, 1995