A Hora Em Que... Peter Handke

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    Peter Handke

    A HORA EM QUE NO SABAMOS NADAUNS DOS OUTROS

    seguido de

    O JOGO DA S PERGUNTASou

    A Viagem Terra Sonora

    Traduo e Introduo de

    JOO BARRENTO

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    O ARCO DA PALAVRA

    Peter Handke, dramaturgo?

    Peter Handke tem uma relao com o mundo e com a escrita que, por ser

    excessivamente egocentrista e contemplativa, rilkiana e metafsica, dificilmente poderia

    ser uma relao "natural" e conseguida com o teatro (isto no encerra, note-se, nenhuma

    crtica de princpio). Ainda a sua carreira literria ia a meio e j alguma crtica afirmava:

    este autor tudo menos um dramaturgo! E sempre se deu mais importncia sua obra de

    fico (categoria mais que gelatinosa em Handke) e ensastica ou diarstica (tambm aquias fronteiras no passam por lugares fixos) do que sua produo dramtica - que, de

    facto, e desde a primeira pea, parece entender-se mais como uma afronta ao teatro, um

    desafio s suas convenes mais fortemente enraizadas (aco, dilogo, tenso), uma

    resposta ensimesmada aos figurinos dominantes do momento. O teatro de Handke

    sempre teve mais ligaes com os modelos estruturais e as obsesses temticas da sua

    prosa do que com a tradio (ou as tradies) do teatro.

    A sua obra dramtica - que se inicia em 1966, em simultneo com a publicao do

    primeiro romance, Die Hornissen (Os Vespes) - parece surgir, apenas em determinadosmomentos separados por longos perodos de afastamento do teatro, quase sempre na

    dependncia da obra de prosa, e formando com ela uma grande unidade de processos e

    de temas. O grande modelo estrutural dessa obra que se poderia dizer cclica,

    monotemtica e muito austraca, parece-me ser, desde o incio dos anos setenta, o da

    viagem: viagem do sujeito para si prprio, viagem mtica e inicitica. assim desde o

    romance Der kurze Brief zum langen Abschied (Uma Breve Carta para umLongo Adeus)

    (1972), passando porDie Wiederholung (A Repetio) (1986), at Das Spiel vom Fragen

    (O Jogo das Perguntas), de 1989. Um modelo que no provm tanto da tradio

    dramtica (a "jornada" das moralidades no a do sujeito moderno, mas a da gerao

    humana), mas mais directamente de uma forma literria especificamente alem e

    ? Publicado originalmente em:A Palavra Transversal. Literatura e Ideias no

    Sculo XX. Lisboa, Livros Cotovia, 1996.

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    austraca, o Bildungsroman ou romance de formao: em Uma Breve Carta... o

    protagonista leva no bolso um dos grandes exemplos do romance de formao, Der

    Grne Heinrich (Henrique do Gibo Verde), do suo Gottfried Keller; em A Repetio

    um outro importante "romance de artista" que ecoa, o Nachsommer (Fim de Vero) do

    austraco Adalbert Stifter, um autor muito admirado e seguido por Handke; e ainda n' O

    Jogo das Perguntas uma das personagens saca tambm por mais de uma vez de um

    livrinho que, no sendo um romance, o repositrio de uma viagem de formao e

    iniciao: o Oku no Hosomichi (A Estreita Estrada para o Norte), de Bash. E, como em

    todo o bom romance de formao, Handke transforma tambm muitas das suas peas em

    processos de aprendizagem (e de dominao) - de si, nas primeiras peas(Kaspar/Gaspare Der Mndel will Vormund sein/O Pupilo Quer Ser Tutor); do mundo,

    em O Jogo das Perguntas, e dos outros, no seu ltimo mimodrama, Die Stunde da wir

    nichts voneinander wussten (A hora em que no sabamos nada uns dos outros), de

    1992. Processos de aprendizagem e percursos de metamorfose (tambm isto evidente

    nas duas ltimas peas do autor austraco), que se servem, no teatro como no romance,

    de meios que so frequentemente os mesmos: a percepo aguda, e dolorosa, do mundo

    exterior, e a reflexo despoletada pela observao das coisas, por vezes amplificadas

    dimenso inquietante do pormenor que se agiganta, numa focagem que transforma ocorriqueiro em sublime (os melhores exemplos destes processos, para alm de textos

    mais antigos como Die Lehre der Sainte Victoire (A Lio de Sainte-Victoire) ou Das

    Gewicht der Welt (O Peso do Mundo), sero certamente os trs recentes Ensaios

    (Versuche), sobre a fadiga, a jukebox e um dia "conseguido"). A isto no , obviamente,

    estranha a forte tradio austraca de uma "mstica sem msticos", presente na sua

    literatura e filosofia pelo menos desde Hofmannsthal, e cujas formas de manifestao -

    todas presentes no teatro de Handke - tm sido a mstica das coisas (veja-se a "Carta deLord Chandos" de Hofmannsthal, ou O Homem sem Qualidades de Musil), a mstica da

    arte (Rilke e a tradio romntica, mas tambm Stifter) e a mstica da palavra, ou melhor

    do silncio, que se encontra no centro da tradio filosfica do cepticismo e da crtica da

    linguagem, do ltimo Nietzsche e de Fritz Mauthner nos Beitrge zu einer Kritik der

    Sprache (Subsdios para uma Crtica da Linguagem, 3 vols., 1901-02) ao primeiro

    Wittgenstein.

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    O percurso de Peter Handke como autor dramtico abre e encerra - pelo menos at

    ao momento actual - com ncleos de peas que traam, de um extremo ao outro, o grande

    arco da Palavra: da catadupa verbal de Publikumsbeschimpfung/Insulto ao Pblico (pea

    de estreia, em 1966) tenso do silncio no mimodrama O Pupilo quer ser Tutor(1969),

    ou, nos ltimos anos, do peso da discursividade potica e filosfica d' O Jogo das

    Perguntas, que faz desta pea, para alguns, um "drama de gabinete", at poeticidade e

    leveza (mais na encenao de Luc Bondy na "Schaubhne" de Berlim do que nas do

    Burgtheater ou de Bochum) da ltima pea sem palavras - s ritmos, imagens, melodia

    cnica - que A Hora em Que No Sabamos Nada Uns dos Outros, novo mimodrama

    para um sem nmero de figuras e outras tantas histrias privadas, que so no palco eatravs de uma encenao ganham vida e sentido, forma visvel.

    Entre os dois extremos situam-se variantes que constituem modulaes de um

    tema nico - o do poder, dos limites e do sentido, existencial e civilizacional, da

    linguagem - para um teatro que sempre um teatro da palavra, mesmo quando dela

    parece prescindir totalmente em favor do gesto. De facto, demasiado forte e evidente a

    nostalgia da palavra, mesmo nas peas sem palavras de Handke: tal como no Tractatus

    de Wittgenstein, isso s acontece porque ele, por razes tcticas, impe limites

    linguagem, mas est sempre a encostar a escada ao muro para espreitar para o outro lado.Na primeira fase da produo dramtica de Handke, entre 1966 e 1971, a obsesso

    radical com a linguagem revela afinidades com os grupos experimentais de Viena e Graz

    (onde Handke estuda e escreve de 1961 a 1965) e lanar pontes para a dramaturgia do

    absurdo, qual, no entanto, no podemos reduzir pura e simplesmente peas como as

    Sprechstcke (peas para declamar), nem o tratamento dramtico da aquisio

    progressiva de linguagem em Gaspar (1968) ou o recurso sistemtico aos clichs

    lingusticos e ao dilogo absurdo, la Ionesco, em Quodlibet(1970) eDer Rittber den Bodensee/A Cavalgada Sobre o Lago de Constana (1971). s depois de um longo

    interregno, em 1982, que Handke regressar ao teatro com um "poema dramtico" (ber

    die Drfer/Pelas Aldeias) em que a afronta ao teatro da fase inicial d lugar a qualquer

    coisa como uma ressacralizao do teatro, um regresso s origens em que a palavra,

    servindo agora intenes mstico-salvficas, o instrumento de uma viragem metafsica

    que vir a caracterizar o Handke dos anos oitenta e noventa. O regresso palavra

    processa-se agora no sentido da sua (re)literarizao: instalam-se a discursividade, o tom

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    ritualstico, as "grandes palavras" de um discurso solene (os modelos parecem ser a

    tragdia antiga e o oratrio), com a inteno de, partindo duma situao dramtica

    quotidiana - um conflito familiar -, se propor aos espectadores (Handke tem agora uma

    "mensagem"!) uma utopia da reconciliao entre homem e natureza e uma apoteose da

    arte.

    H nesta pea uma indisfarada herana romntica (a arte como a grande e nica

    afirmao metafsica do homem) e um misticismo atvico (a natureza a reencontrar, a

    busca de uma "elementaridade") que a obra de Handke no abandonou at hoje, apesar

    do seu substracto cptico e irnico. As duas ltimas peas mostram-no evidncia: O

    Jogo das Perguntas ou a Viagem Terra Sonora , ainda e sempre, a busca do silncio -a vrios ttulos paradoxal, de um Graal de sempre, o de uma Origem perdida, um estado

    de comunho com o mundo que proporcione a compreenso do Ser (por isso os

    verdadeiros actantes sero aqui as ideias, e no as palavras, como acontecia nas

    primeiras peas). A Hora em Que No Sabamos Nada Uns dos Outros, por seu lado,

    sendo como um regresso ao drama sem palavras, foi acolhida por alguma crtica com o

    grito de jbilo de "Finalmente, o palco sem palavras!" Depois dos clamores (musicais) de

    Bob Wilson e dos horrores (abismais/libidinais) de Heiner Mller, o teatro cala-se! Na

    verdade, o teatro no se cala: o teatro, um teatro total (ser que o , sem a palavra?) falapelas suas personagens, transformadas em puro gesto. Fecha-se o arco da palavra e do

    seu reverso, que tambm o arco do percurso global de Peter Handke dramaturgo.

    Joo Barrento

    #####

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    A HORA EM QUE NO SABAMOSNADA UNS DOS OUTROS

    Um espectculo

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    Para S. (e, por exemplo, para a praa em frente do

    Centre Commercial du Mail, no planalto

    de Vlizy)

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    "No contes a ningum o que viste; fica-te pela imagem."

    (Das palavras do orculo de Dodona)

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    Uma dzia de actores e amadores

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    A cena uma praa aberta, numa luz clara.

    A aco comea com algum que atravessa a praa a correr.

    Depois, vinda do lado oposto, mais uma pessoa, igualmente apressada.

    Depois, cruzam-se duas pessoas, tambm em passo rpido, cada uma delas seguida, na

    diagonal e a uma pequena distncia que se mantm, por uma terceira e uma quarta.

    Pausa.

    Ao fundo, algum atravessa a praa a passo.

    medida que vai caminhando, absorto, abre as mos e estica continuamente todos os

    dedos, estende e levanta ao mesmo tempo os braos, lentamente, at eles se fecharemnum arco sobre a sua cabea, volta a baix-los, tambm sem pressas, enquanto vai

    deambulando pela praa.

    Antes de desaparecer na rua estreita ao fundo, vai fazendo vento ao andar, abana-se com

    as mos abertas, o que o leva a assentar a cabea na nuca e a ficar de cara para cima.

    Finalmente desaparece, fazendo uma curva.

    Quando, no mesmo andamento, reaparece num abrir e fechar de olhos, j outro vem

    ao seu encontro a meio da praa, marcando o ritmo ao andar, primeiro com uma das

    mos, depois com as duas; finalmente, ao sair da praa para entrar tambm noutra ruaestreita, j todo o seu corpo mexe, e o seu modo de andar vai tambm atrs do ritmo.

    Enquanto este, tal como o que o precedeu - que, alis, entrando e saindo ao fundo,

    continua a tentar fazer vento e luz sobre si prprio -, gira sobre os calcanhares, voltando

    vrias vezes a medir a praa com a sua passada e a marcar o seu ritmo, no primeiro

    plano, vindos da esquerda, da direita, de cima, saltando de um parapeito ou de uma ponte

    invisveis, de baixo, saindo de uma vala ou de um buraco na rua, entram a correr,

    balanando, quatro, cinco, seis, sete outras figuras, um grupo inteiro.Tambm eles no se detm na praa, dispersam-se, abandonam-na, j esto de volta, cada

    um por si, e cada um deles, enquanto "vai aquecendo", muda continuamente de figuras e

    de formas, com modos quimricos: de um salto a ps juntos passa-se logo, mantendo de

    res-to um ar impassvel, para: bater dos taces, sacudir os sapatos, estender os braos,

    pr a mo em pala sobre os olhos, andar de bengala, caminhar em bicos de ps, tirar o

    chapu, pentear-se, sacar de uma faca, dar socos no ar, olhar por cima do ombro, abrir o

    chapu de chuva, andar como um sonmbulo, deixar-se cair no cho, cuspir, equilibrar-

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    se sobre uma linha, tropear, ensaiar uns passos de dana, girar em crculo enquanto se

    anda, imitar um zumbido, gemer, dar murros na cabea e na cara, atar os sapatos, rolar

    brevemente pelo cho, escrever qualquer coisa no ar, e tudo isto sem qualquer ordem,

    sem terminar nenhum gesto, ficando todos a meio.

    E tal como vieram, assim todos desapareceram j, os que estavam em primeiro plano, o

    que estava a meio da praa, o que andava ao fundo.

    Pausa.

    Um homem atravessa a praa, sem olhar para este ltimo; um pescador linha que vai

    a caminho de algum lugar.E logo a seguir, uma mulher velha embiocada nos seus trapos e pu-xando atrs de si um

    carrinho de compras.

    Ainda esta no sau de cena, e j dois homens com capacetes de bombeiro irrompem pela

    praa, empunhando mangueiras e extintores - mais em ar de exerccio do que de

    interveno a srio?

    Colado a eles, como algum perdido em sonhos, segue-se um adepto de uma equipa de

    futebol a caminho de casa, que ainda fica longe, debaixo do brao uma bandeira

    queimada que se desfaz medida que ele vai andando; por sua vez, este seguido poralgum de ar indefinido, com uma escada de mo na qual uma mulher, que entra depois

    dele vestida de beldade com saltos altos, roa ao ultrapass-lo, sem que nenhum deles

    ligue ao sucedido.

    Pausa.

    Um patinador passa meteoricamente pelo palco, j desapareceu.

    Um homem, vendedor de tapetes, a pilha de tapetes vista sobre o ombro, muitocurvado, descansando de vez em quando, de joelhos dobrados, atravessa atrs dele a

    praa procura de fregueses.

    Ainda se vai arrastando, quando se cruza com um outro que, vestido de cowboy ou

    vaqueiro, a cada trs passos faz estalar o chicote, seguindo o seu caminho sem olhar para

    ningum, como o outro.

    E entretanto j uma mulher descala, hesitando, com as mos a tapar a cara, atravessa a

    praa ao fundo, deixa cair os braos enquanto anda em crculo, arrastando os ps, um

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    dedo na boca e um grande riso alarve, uma atrasada mental, talvez a que acabou de

    passar na figura da beldade, enquanto que no primeiro plano da praa, logo a seguir a

    ela, duas rapariguinhas novas que entram de brao dado, de repente se transformam

    durante algum tempo num par de ginastas que vo fazendo "rodas", para desaparecer uns

    instantes mais tarde.

    Um homem, guarda temporrio da praa, vem atrs delas, aos ziguezagues pelo palco,

    espalhando s mos cheias cinza que tira de um alguidar, e a segui-lo um homem

    sozinho, quase um ancio, que traz cabea, muito direita, um imponente bero com um

    belo braso, pesando cada passo, como na corda bamba, e acabando por largar o objecto

    que traz cabea, equilibrando-o sem apoio, entrando progressivamente numa dana quepor fim se transforma num jogo seguro.

    Quase ao mesmo tempo que ele, entra a correr um homem, o comerciante local, que, ao

    atravessar a praa, mete no bolso um molho de chaves - as do carro? -, tirando outro,

    maior - de casa e da loja? -, encontrando em andamento a chave certa, que empunha ao

    sair, em direco ao seu objectivo.

    E imediatamente a seguir vem algum ainda mais indefinvel, como que correndo atrs

    dele, pra de repente no meio da praa e volta para trs lentamente.

    Pausa.

    A praa vazia, numa luz clara.

    Um avio passa por cima, durante um, dois segundos; a sombra do avio?

    Depois, regressa-se situao anterior.

    Uma nuvem de p; fumarada.

    Um homem de uniforme percorre um dos lados em passo de marcha, voltando logo de

    seguida do outro lado, sempre em passo de marcha, um ramo de flores no brao,desaparecendo com ele pela sada mais prxima.

    Um skater, contornando um objecto imaginrio; de seguida, salta do skate, coloca-o

    debaixo do brao e continua num passo lento e pensativo, tendo pouco em comum com o

    patinador de antes; num abrir e fechar de olhos substitudo por uma silhueta de

    sobretudo e chapu; deste ltimo, quando o transeunte o tira e sauda em repetidos

    crculos, comeam a cair, sem parar, folhas secas; e do sobretudo, quando o desabotoa,

    caem saibro e areia com rudo, e por fim mesmo algumas pedras, que ecoam no cho.

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    Outra a figura que entretanto j vai traando outro percurso sobre o palco: molhada,

    pingando como um nufrago que se vai arrastando de joelhos, levantando-se a custo e

    lentamente, e desaparecendo de cena, cambaleando, ainda antes de se erguer.

    Em seu lugar surge agora uma mulher jovem, com um vestido leve de empregada de

    escritrio, uma bandeja com algumas chvenas de caf, descrevendo um breve crculo no

    palco antes de meter por uma das sadas.

    E h tambm um varredor de ruas que passa num outro sector do palco, empurrando um

    carro com vassoura e p.

    Pausa.A praa vazia iluminada.

    Gritos de gralhas, como na alta montanha.

    Depois, o de uma gaivota.

    Um homem com culos de cego entra a tactear, sem bengala, anda s voltas e depois

    pra, como que perdido, enquanto sua volta se gera um burburinho instantneo, vindo

    de todos os lados: os passos de um corredor (que j h muito tempo vem a correr) ecoam

    subitamente; um homem com ar tresloucado passa como um relmpago, voltando

    insistentemente a cabea para trs, perseguido como um ladro, por um outro que oameaa de punhos cerrados; um homem que entra fazendo de criado de esplanada,

    abrindo uma garrafa e atirando a carica para o meio da praa, para sair em seguida; de

    novo a velha com o carrinho de compras, acompanhada de outra quase igual, s os carros

    que so diferentes; ao mesmo tempo, um homem numa bicicleta de montanha,

    levantando constantemente o rabo do selim; e ainda todo um grupo que atravessa a praa

    em fila, a passos largos, balanando sacos de viagem, como rapazes passando de uma

    carruagem para outra num comboio, ou uma equipa que saiu do autocarro e vai acaminho do campo de jogos; e ainda um outro que folheia o jornal ao andar, sem levantar

    os olhos, fazendo crculos volta do cego, que ficou como que escuta no meio da praa

    e agora agarrado pelos ombros por um recm-chegado que saiu de uma das ruas

    laterais; o cego agarra-se a ele sem lhe mostrar a cara e sai pelo meio, apalpando

    cuidadosamente o livro que o outro lhe meteu na mo.

    No lugar que os dois acabam de deixar j anda s voltas um cami-nhante, de casaco

    comprido cheio de p, uma mochila j antiquada e botas cardadas, to mergulhado na sua

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    caminhada que a praa nem para ele lugar para uma pausa; subitamente, passa o brao,

    estendido e pendurado, como que volta de uma cintura no ar, e depois faz o mesmo

    com o outro.

    Entretanto, uma mulher jovem, elegantemente vestida, atravessa a praa, com um martelo

    numa das mos, um metro de carpinteiro aberto na outra e pregos na boca.

    Pausa.

    Uma folha de jornal desliza pela praa, e depois mais uma.

    Um carro de brincar telecomandado irrompe de um dos cantos, avana para um lado e

    para o outro e acelera para desaparecer de novo.Um papagaio de papel muito colorido desce em espiral, paira sobre a praa e soprado

    para uma das ruas, tal como o papel de jornal.

    O eco de um varo de ferro que caiu em qualquer parte, fora de cena.

    Uma sirene no nevoeiro.

    Um grito breve e indefinvel, e depois apenas o piar de pequenos pssaros, e um tropel,

    que s pode vir de um bando de crianas correndo livremente por uma rua.

    Algum vai cambaleando como um bbado, em diagonal, ao fundo da cena, entrando

    progressivamente no crculo, primeiro com um zumbido, depois soluando alto, emseguida aos berros e finalmente de dentes arreganhados e rangendo.

    A tripulao completa de um avio, com as respectivas malas, faz ao longo da praa uma

    trajectria que parece previamente determinada, seguida de um idiota que, colado a eles,

    os vai imitando com esgares desvairados, beijando o rasto dos seus ps, para no fim se

    pr escuta no cho e desaparecer rastejando a quatro patas.

    Enquanto isto se passa, j noutro lugar uma mulher jovem se afasta, tirando, enquanto

    anda, um mao de fotografias de dentro de um envelope; olha para todas, umas a seguirs outras, pra, sorri, rasga um grande sorriso, continuando mergulhada na contemplao

    de uma das fotografias, continua a andar at que, ao ver um transeunte indefinido que

    vem do lado oposto e a acompanha no seu sorriso, fica de repente muito sria e

    desaparece por uma das ruas com uma cara que parece uma mscara; o outro, porm,

    continua sorrindo e atravessa a praa, imitado por um momento pelo idiota, que entra de

    forma fulminante, com uma curva apertada e uma cambalhota, para desaparecer logo de

    seguida, o que s contribui para tornar mais aberto o sorriso do outro.

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    A passos muitos largos, vindo do fundo do espao, chega o jovem executivo com os

    acessrios da praxe, pra a meio, mete a mo no bolso do fato, bate nos outros bolsos,

    esvazia-os, primeiro para a mo, depois em cima da mala de executivo, e volta a meter os

    objectos nos bolsos um a um, com cuidado, at ao fim, como num ritual: o leno de

    assoar de cores garridas, os dados de jogar, uma lata de pomada vazia (com a qual faz

    um rudo de tambores na selva), uma vieira, a calculadora de bolso, o cacete, a ma, a

    meia de senhora, o mao de notas soltas, o harmnio dos cartes de crdito, a lanterna de

    espelelogo.

    Depois desaparece to depressa como entrou, a mo que segura a mala leva tambm a

    ma.O varredor regressa com a sua vassoura, varrendo, enquanto os papis que vai

    empurrando sua frente voltam logo a esvoaar atrs de si, e quantos mais ele varre

    numa direco, mais passam por ele a voar e a cair, vindos da direco oposta,

    esquerda e direita, por mais que ele d passos atrs e recomece a varrer; sem

    interrupo, aqui e ali, avanando apesar de tudo e sempre activo, acaba por desaparecer

    do campo de viso.

    Finalmente, passa uma beldade que, no momento em que entra em cena, baixa as

    plpebras e, consciente de que est a ser observada de todos os lados e jogando com isso- imperturbvel -, atravessa o palco pelo meio com um nico olhar que se prolonga,

    apenas intuvel, pelo canto do olho: nem um gemido de gato, nem um arroto vindo de um

    altifalante, nem a sbita buzinadela, nem sequer o ladrar irrompendo agora de uma das

    ruas - imitado? -, tambm nenhum papel que agora fique preso entre as suas pernas, o

    tijolo que cai sabe-se l de onde, nada disso a perturba ou inquieta, nem sequer o jacto de

    gua que, por um momento, sai de uma rua e passa por cima dela; s ao sair da praa

    volta a abrir os olhos.Uma rapariga vestida como uma vendedora de boutique d uma volta mais larga com

    uma bandeja de caf, enquanto que um outro, um pedinte que terminou o seu dia,

    atravessa a praa, contando as moedas que tem no prato e metendo tudo de seguida no

    bolso do casaco.

    Duas figuras indefinveis passam ento pelo quadrado, vindas de lados diferentes, uma

    com um livro na mo, a outra com um po.

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    Sem olharem um para o outro, um deles abre o livro quando se cru-zam, e o outro d uma

    dentada no po.

    Torna-se mais lento o andar do que l, e tambm o do outro que come; o que l levanta

    depois os olhos por cima do ombro, enquanto aquele que come, olhando volta, sai da

    praa.

    A grande praa vazia na sua luz clara, e mais nada.

    Aparecem mais dois personagens indefinveis.

    Um deles pra e levanta a cabea, como quem chega a algum lugar, olha sua volta,

    respira fundo, abana com a cabea, enquanto o outro j lhe acena para continuar a andar,uma e outra vez, at que o primeiro, dando uma volta sobre si prprio com todo o vagar,

    o segue a alguma distncia.

    Entretanto, ao fundo, um arteso ambulante, tocando uma sineta, segue o seu caminho.

    Atravessa a praa uma mulher de leno na cabea e botas de borracha, carregando um

    regador e um ramo de flores j murchas, mesmo podres, que atira, a grande altura, para

    trs do cenrio.

    No mesmo momento vem de uma direco completamente diferente outra mulher vestida

    quase da mesma maneira, tipo velhinha, com uma foice, um ramo de chamios e umacesta enfiada no brao, a transbordar de cogumelos silvestres.

    Uma terceira mulher, indefinvel, vestida de forma quase idntica, movimenta-se por um

    terceiro caminho, sem nada nas mos, costas e pescoo muito curvados, o rosto voltado

    para o cho, sem parar, mas quase sem avanar, enquanto atrs dela aparece um outro

    caminhante, retardando cada vez mais o passo, como se o atalho fosse demasiado estreito

    para ultrapassar, mas mantendo um olhar firme para a distncia, sem dar ateno

    criatura mesmo frente das biqueiras das suas botas de montanha.De frente para estes dois, que continuam a andar sem quase sair do mesmo lugar, aparece

    brevemente, como num intervalo para tomar flego, um homem vestido de cozinheiro,

    tira umas fumaas apressadas do cigarro e desaparece de seguida do campo de viso.

    Um outro surge, arrastando-se penosamente ao virar de uma esquina, carregando aos

    ombros uma rede de pescador, enquanto o caminhante, de passagem, lhe tira da camisa

    um insecto que a ficou preso, lanando-o ao ar para que ele saia voando.

    Ouviu-se um trovo, e agora ouve-se de novo trovejar.

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

    17/117

    E uma mulher passou a correr pela praa, e regressa agora, trazendo nos braos um

    monto de roupa em desordem.

    Como se nada se tivesse passado, um homem passeia-se pela praa de pernas abertas,

    balanando as ancas e os ombros, com a estatura de um senhor da praa, seguido de

    perto pelo, digamos, idiota da praa, que comea por imit-lo, para depois se pendurar

    nele, primeiro o brao, depois a perna - saltitando sobre uma perna ao lado dele -, e por

    fim fazendo cabriolas sua volta, de mos e ps no cho, como co que ladra, sem que o

    dono da praa, no seu papel de algum que se sabe sozinho naquele vasto campo, acuse a

    sua presena uma nica vez durante a sua ronda.

    Enquanto isto acontece, por um caminho ao lado uma esttua vai sendo puxada, presa navertical a uma armao circular, e por um outro caminho lateral passa de novo um

    indivduo que tapa os ouvidos para no ouvir a charamela de sirenes que vem da

    esquerda e da direita, e que a certa altura cresce de tom e j um silvo de alarme

    (imediatamente interrompido).

    Como uma apario, passa rapidamente pelo palco um Papageno, de gaiola na mo e

    vestido de penas.

    A sua figura fica meio escondida atrs do que parece ser um pequeno grupo de

    lenhadores a caminho, com machados e serras ao ombro.Uma mulher jovem anda atrs deles, meio desvairada, por todo o palco, com olhos

    esbugalhados, a mo a tapar a boca; depois deixa cair a mo com um grito surdo,

    envolvido como que pelo piar de pardais nos pases do sul e o chilrear de andorinhas no

    vero e outros quaisquer sons de passarada.

    A mulher cruza-se de passagem com um homem de bola na mo, depois com um japons

    com uma mquina fotogrfica ao ombro, pronta a disparar, sem reparar nos que com ele

    se cruzam, todo olhos para a praa que j captou com a objectiva, apanhando tambmaquela mulher que ia a sair chorando baixinho, mais um patinador, desta vez com uma

    vela frente, e um enfermeiro que substitui o cozinheiro de h pouco, entrando para dar

    uma passa e desaparecendo num abrir e fechar de olhos; depois da fotografia, o japons

    recua imediatamente, e j algum lhe faz sinal para seguir viagem.

    Em primeiro plano e ao fundo atravessam agora dois de cabea baixa, sem nada de

    especial, a no ser talvez que o seu modo de andar tem qualquer coisa de atarefado.

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    Pausa.

    A praa est vazia, na sua luz clara.

    Comea a ouvir-se um sussurro, torna-se mais forte, um rumor fundo que envolve a

    praa e depois se acalma.

    Um homem (ou uma mulher) de olhos vendados, s apalpadelas em pequenos crculos,

    sai de uma das ruas para entrar logo numa outra e deixar de ser visto.

    Um homem com uma pena no cabelo, como se tivesse ficado ali esquecida, pe a mo

    em pala por cima das sobrancelhas, enquanto um outro vem ao seu encontro, de olhos

    postos na sua prpria mo que, como tudo indica, foi ligada recentemente.

    Com um certo intervalo, entram como diabos, vindos de lados opos-tos, dois corredores,em grande tropel, quase roam um pelo outro ao se cruzarem, sem se cumprimentarem

    nem fazerem qualquer gesto.

    O contrrio acontece quando se cruzam os caminhos de dois carteiros de bicicleta, e

    tambm quando se encontram dois polcias de giro (soldados em patrulha?) em uniforme,

    e ainda, mas quase sem se dar por isso, como que em segredo, quando passam um pelo

    outro um homem e uma mulher.

    Algum puxa por uns instantes atravs da praa um esquife leve e azul, dentro do qual se

    adivinha uma figura branca, como mmia.Um outro, na pose do dono da loja de ombro na ombreira, aparece de um dos lados,

    deixa-se ver assim durante algum tempo, e retira-se de novo.

    Um pequeno grupo de excursionistas atravessa em diagonal, subdividido em: grupo da

    frente, peloto e um nico atrasado, de cabea cada, passo arrastado, e que no se

    apressa nem mesmo quando um dos outros leva os dedos boca e solta um assobio do

    outro lado do palco; antes de sair, o atrasado pra mesmo um instante, deixa a cabea

    descer sobre a nuca e desenha com a mo qualquer coisa como as figuras de vriospssaros em voo no ar, metendo a mo debaixo da roupa para se abanar enquanto anda.

    Entretanto, passou, com o seu ar distante, a beldade de antes, ou outra, de brao dado

    com o idiota da praa de h pouco, ou outro, que coxeia, saltita e rebola ao lado dela com

    um sorriso rasgado; a mu-lher irradia um grande brilho pelo caminho, vindo dos adornos

    espelhados que usa, da coroa na cabea at aos saltos altos; no meio disso, vai lanando

    olhares atravs de uma folha de rvore esburacada, como se fosse um leque; e o idiota

    sopra os seus beijos, da mo para dentro do crculo, de onde sai logo uma freira de negro,

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    rosto invisvel, numa das mos uma mala de viagem em plstico, na outra um embrulho

    atado, que desaparece noutra direco, nas costas dos dois.

    Algumas figuras indefinveis voltam depois, durante algum tempo, a povoar a praa,

    como quem anda atarefado.

    Passa um homem com uma rvore.

    Outro surge de baixo, das profundezas, com capacete de trabalhador dos esgotos, e

    desaparece da mesma maneira.

    Sado tambm de baixo e ao fundo, como de uma vala ou de um fosso, aparece mais um

    par, como se estivessem l h muito tempo juntos, e afastam-se na luz da praa,

    abraados um ao outro, lentamente, numa espiral que se abre, voltando-se sempre paraolhar para o lugar de onde vieram.

    Fez entretanto uma breve apario um homem vestido como um gangster, de mos vazias

    e com jogos de dedos, que agora empreende uma rpida retirada, ambas as mos

    carregadas com sacos de hipermercado dos quais espreitam pontas de hortalias.

    Igualmente apressado, passa algum acorrentado e descalo, escoltado por duas figuras

    indefinveis, civil.

    Durante a curta passagem, o acorrentado procurou com os olhos espectadores por todo o

    lado, mas logo depois dele entra talvez novamente a (ou uma) beldade, que atrai sobre sitodas as atenes pelo modo como se movimenta pela praa, desta vez arrastando-se,

    com uma barriga muito espetada, como em fase avanada de gravidez, completamente

    sozinha, uma carta na mo, na qual ainda cola um selo medida que vai andando.

    Pessoas indiscriminadas, velhas, novas, homens e mulheres, formam depois a sua

    comitiva, dirigindo-se, a partir de diversos pontos, para um centro invisvel para l da

    praa, todas elas com objectos postais diversos que vo virando, alguns escrevendo

    neles, colando-os, voltando a l-los, observando os bilhetes postais; uma delas, de mosvazias, regressa ainda cena e dirige-se para outro lugar; uma mulher continua por uma

    das ruas laterais, e um homem, regressando por um momento, desce para um subterrneo

    ao fundo da praa.

    Enquanto isto se passa, um outro passou como um meteoro noutra zona, quase despido;

    em primeiro plano passa outro, de fato-macaco com uma corda grossa atada cintura, um

    saco de marinheiro ao ombro, que pousa no momento em que entra, para lhe meter

    dentro um enorme globo terrestre, que se acende de dentro do saco enquanto ele continua

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    a andar, tentando de vez em quando iniciar um discurso incompreensvel que se vai

    dissipando em murmrios e sussurros.

    Dois caadores transportam um terceiro numa maca feita de ramos verdes.

    Depois, um par passa simplesmente, sem destino e com destino, um deles transformando-

    se a meio do percurso de algum sem destino em algum com destino, enquanto o seu

    seguidor, muito consciente do seu destino, subitamente perde de vista esse destino.

    E novamente se ouve um sussurro por toda a praa.

    Um homem vestido de empregado de mesa faz uma curta entrada e espalha pela cena

    pedaos de gelo que tira de um balde.

    Pausa.

    A praa vazia na sua luz clara.

    Uma nica folha cai l do alto, como folha de rvore no vero.

    Um tiro e os seus ecos, repetidas vezes.

    Um homem entra na praa, com um aparelho ptico fantasmagrico nos olhos, como se

    viesse de um oculista, experimenta a viso e volta a recuar.

    Noutro lugar, uma mulher atravessa, um cesto pendurado na curva do brao, com mas

    da primeira colheita, tira uma e d-lhe uma dentada enquanto vai andando.Um guarda da praa - o mesmo ou outro? - entra por um instante dando uma curva,

    lavando o cho com uma mangueira.

    Guiado por algum com uma sombrinha levantada, entra um pequeno grupo de turistas,

    figuras curvadas, gente do campo, de fatiota escura festiva, na sua maioria pessoas de

    idade; param todos de repente e soltam, como que sob o efeito da luz crua da praa, um

    grito de espanto em unssono, que repetem sada, agora de boca fechada e como se

    fosse uma zunida, voltando-se lentamente, curvados e em crculo, como se o som sedirigisse ao guia, que assiste a tudo quedo e mudo.

    E novamente um homem e uma mulher se dirigem um ao outro vindos de longe, o

    homem baixando logo a cabea, a mulher mantendo-a erguida; pouco antes de se

    cruzarem, o homem levanta por um instante os olhos, olha a mulher de frente, mas esta j

    tinha virado a cara no momento anterior.

    Duas beldades, corredoras de marcha - disciplina desportiva - com equipamento a

    condizer, passam num instante, com movimentos sincopados.

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    Uma mulher candidata a executiva moderna, com uma malinha transparente onde se v

    isto e aquilo, vai estudando um dossier enquanto anda, apertando na mo o telemvel

    com a antena de fora; o telemvel acaba por cair ao cho; a seguir, depois de ela se ter

    curvado a contragosto, a mala abre-se e os objectos caem; a seguir, depois de ela, irritada

    e bruscamente, os apanhar, tropea ao dar mais um passo, sorri de repente de forma

    indefinvel, o que se intensifica medida que ela se concentra de novo no dossier

    continuando a andar e, quando agora tropea mesmo a valer, tenta amparar-se, quase cai,

    e depois de soltar um grito de dor e raiva, d uma gargalhada ribombante enquanto vai

    saindo.

    Outro caminhante, chapu numa das mos, livro na outra, cabea baixa, passa enquanto,sem se dar por isso, um outro par de corredores entra em passo de corrida, fazendo ecoar

    toda a praa; ensanduichando, ao ultrapass-lo, aquele que vai a passo, tiram-lhe ao

    mesmo tempo os dois objectos das mos, sem sequer - porque j desapareceram, depois

    de um breve movimento para cima e para baixo - se voltarem para trs, enquanto o outro

    agora cospe para o cho solenemente, se curva, continua a andar e, saudado pela mo

    erguida do corredor que vem atrs dos outros, levanta tambm a mo para retribuir o

    cumprimento.

    Enquanto ele ainda vai deambulando, j um agrimensor montou nas suas costas o seuteodolito, espreita, acena ao seu companheiro invisvel, fora da praa, para se desviar

    para a esquerda, para a direita, diz-lhe que est bem levantando o polegar, e j

    abandonou de novo a praa.

    Um homem velho, quase centenrio, munido de uma antiga chave de porto, deixou-se

    ver na periferia da cena muito brevemente.

    E igualmente um outro homem, poderia ser o japons de h pouco, que, apoiado numa

    bengala de montanha, leva s costas uma mulher de cabelos brancos; um jovem com umleque de palmeira ou fetos; dois ou trs que, ao passar, vo bebendo de cantis; um

    homem vestido de Moiss, regressando do Sinai com as tbuas da Lei; um outro, de

    andar indolente, pra subitamente a meio em posio de "en garde" e bate com os taces;

    um pequeno grupo em traje festivo preto e branco, vai andando e tirando dos cabelos

    gros de arroz; e mais uma beldade que, a princpio s visvel de costas, subitamente se

    volta para... mim!

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    De modo igualmente sbito irrompe pela praa, no meio da cena, um novelo, a princpio

    danando sapateado, acompanhado por muitas vozes que soltam latidos, berram, uivam,

    tremem, chiam, rebolando-se pelo cho; no se trata de vrios seres, nem sequer de dois

    que lutam um com o outro, mas de um nico que se debate com a morte, numa agonia

    que por fim termina; o novelo estica-se, os objectos que foi perdendo na sua luta

    espalhados sua volta, os sapatos a seu lado.

    O moribundo foi sendo imitado, nos seus estertores, pelo idiota da praa, que entrou

    cheio de salamaleques.

    Silncio.

    Entram a correr dois homens de bata branca, com uma maca;alguns movimentos rpidos,e o moribundo j vai de sada, com os seus poucos haveres.

    Um par, a princpio separado, testemunha a morte, abraa-se agora; caem um sobre o

    outro, saltam um sobre o outro enquanto saem apressadamente.

    Um outro, totalmente a leste do que se passou, vai ainda deambulando pelo lugar.

    A praa, sem mais, na sua luz clara.

    Volta a ouvir-se o restolhar outonal.

    Passa um homem vestido de jardineiro, um ancinho a fazer de cep-tro, arrastando atrsde si um saco de feno de onde caem alguns tufos.

    Parte de uma trupe de circo - um arauto, uma artista que faz um nmero qualquer, um

    com gestos de malabarista, outro de palhao, com um macaquinho ao ombro, um ano -

    d uma volta praa como na arena, a meio caminho completada pelo idiota da praa

    que por um instante vai atrs do grupo e no seguinte j est outra vez sozinho e sai meio

    perdido.

    Mais uma beldade que se pavoneia pela praa, seguida por uma outra que anda maisdepressa e que de repente desata a correr, d uma violenta pancada na cabea da que est

    sua frente e foge logo para uma das ruas laterais; a primeira ficou parada, agarrada

    cabea.

    Enquanto ela assim fica, entra mais um homem de patins, avanando com bastes de

    esqui, arranca-lhe a mala de mo ao passar e deixa-a a dar voltas sobre si prpria.

    Enquanto ela j est outra vez imvel, passa algum com um cavalete, chapu preto em

    bico e indumentria do sculo XIX, um outro mostra-se, com mscara de fauno, saindo

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    de uma rua lateral, dois outros vo passando uma bola um para o outro com os ps, mais

    uma velha passa com o carrinho de compras, que agora j faz uma chiadeira

    insuportvel, cheio de sacos de plstico todos rasgados, l atrs um outro lana-se pelos

    ares como Tarzan sobre a clareira, outro atravessa a cena em roupo com um balde de

    lixo, vem-se de novo alguns dos que vo ao correio deitar cartas.

    Um homem chega-se sorrateiramente beldade, vindo de trs, pronto a saltar, mas acaba

    por lhe tapar docemente os olhos com as mos, depois do que, sem que ela se volte para

    ele, pega nela com a mesma delicadeza sob os joelhos e por baixo dos braos, levando-a

    para fora da praa.

    Ouve-se a mulher soltar um fundo suspiro.Passa um homem de braos nus, cheios de relgios at acima dos cotovelos.

    Dois ou trs com pesadas roupas de inverno, com malas e almofadas, encontram-se com

    dois ou trs outros todos ligeiros, com roupas garridas de vero.

    O caminho dos dois grupos foi interrompido a certa altura por um carro elctrico com

    rodas de borracha que se atravessou fazendo uma curva; no carro vo dois homens de

    bon transportando um caixo, atrs do qual segue o idiota da praa, num passinho curto,

    de mos cruzadas frente, a acompanhar o funeral; na sequncia disso, os dois grupos

    trocam de roupa sem constrangimentos, como se tudo estivesse previsto h muito,seguindo cada um depois o seu caminho.

    Entretanto, algum lanou um vu a esvoaar para dentro da praa, logo seguido por uma

    mulher nova com vestido de noiva, mas claramente ainda em prova, que procura

    qualquer coisa, encontra, desaparece.

    Durante todo este vaivm, mas agora em pezinhos de l, ouve-se de novo a toda a volta

    da praa o tropel de crianas em corridas, com os respectivos gritos e exclamaes.

    Um qualquer passa agora por outro qualquer, olha hesitante, o outro faz o mesmo, ficampetrificados a olhar um para o outro, reconhecem-se, enganaram-se, abanam as cabeas,

    fazem um largo desvio, continuam a olhar fixamente um para o outro e seguem caminhos

    diferentes, abanando a cabea.

    Como que por acaso, e enquanto os dois ainda estavam em cena, um terceiro, abanando a

    cabea descontente, atravessou o palco noutro lugar; mas, medida que vai andando

    cada vez mais devagar, passa a acenar com a cabea dizendo que sim, depois novamente

    que no, a seguir outra vez que sim, tambm sempre mais devagar, de cada vez com um

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    ar mais solene, e assim por diante, at que, no fim da sua passagem pelo palco, um gesto

    exprime o mesmo que o outro.

    Durante todo esse tempo nem olhou para o velho aperaltado com roupa de casa em estilo

    oriental, muito enfeitada, quando este, de brao estendido para a luz, regressa a casa com

    um rapaz andrajoso, coberto de lama e quase incapaz de andar, indo ao encontro desse

    filho prdigo que antes a cada passo para a frente acrescentava outro para trs, enquanto

    aparece um terceiro, vestido de servo, com um cordeiro no brao, que se adianta ao par

    anterior.

    Mal eles desaparecem nas respectivas ruas, segue-se-lhes, com os culos puxados para a

    testa, o dedo enfiado em qualquer coisa como um manual, o idiota (ou o senhor) dapraa, imitando-os, muito en-tusiasmado, ora a um ora a outro, desordenadamente, e

    acompanhado distncia por um outro que leva na mo uma maqueta reduzida da praa

    iluminada, feita de madeira ou carto; vem juntar-se ainda aos dois uma terceira pessoa

    que traz num dos braos um manequim de montra, na outra um monte de fatos; em

    menos de nada desaparecem todos.

    A praa vazia na sua luz clara, envolvida num marulhar intermitente, como de

    rebentao numa pequena ilha.O assobio de uma marmota, o grito de uma guia.

    Breve, fantasmagrico, o canto estrdulo de uma cigarra.

    Duas figuras empurram um pequeno carro de taipais gradeados, sobre o qual transportam

    uma coluna inclinada.

    Um homem segue uma mulher, e logo a seguir, como se os dois tivessem dado

    rapidamente meia volta fora da praa, uma mulher segue um homem; barra-lhe o

    caminho, ele desvia-se, ela volta a barrar-lhe o caminho e, quando ele tenta passar,agarra-lhe a capa, ele solta-se e sai, meio nu, enquanto a mulher, sem sequer o olhar,

    mos-tra a pea de roupa a um terceiro que entra vindo de outro lado, ao que o recm-

    chegado persegue o primeiro heri a passos largos, a mulher logo atrs, cruzando-se a

    meio caminho com um pequeno grupo de caminhantes de uma terceira idade bem

    conservada.

    Um outro velho, sozinho, vem ao encontro deles, tambm de bengala, com a qual se atira

    ao grupo sem aviso, que apara imediatamente os golpes com as suas bengalas; gera-se

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    uma luta de esgrima que dura at que o solitrio pe em fuga os seus opositores e segue

    o seu caminho, lacnico.

    Durante algum tempo parece que a praa s atravessada por gente muito velha, sempre

    os mesmos e sempre na mesma direco, os mesmos que entram por um lado e saem pelo

    outro num crculo sem fim, umas vezes como estivessem numa fila que avana muito

    lentamente, outras como se se tratasse de um cortejo solene de dignitrios com as suas

    togas, outras ainda como gente do campo, com grandes braadas de espigas, garrafes de

    vinho, rstias de maarocas de milho, uma procisso de graas pela colheita; outras vezes

    parecem mais veteranos, com tudo o que prprio deles, e finalmente apenas velhos

    isolados, cada um por si, agitados ou nem tanto, ultrapassando-se uns aos outros evoltando a encontrar-se, um ou outro desviando-se para o lado e, enquanto os outros

    continuam s voltas, patinhando margem, nas margens da cena, arrastando um p atrs

    do outro, empurrando outros para o lado, parados, procurando uma parede, uma cornija

    para apoiar a cabea, os braos, os ps, mais a bengala, depois tremendo da cabea aos

    ps sem sair do lugar, rosto impassvel, que parece ainda mais parado e branco quando

    agora, vinda de uma das ruas, se ouve uma gritaria de criana, deixa de se ouvir, volta a

    ouvir-se, gritos de terror e desespero que abafam at a agitao de passantes que

    comeam a atravessar a praa, transeuntes vrios, entre eles uma equipa de filmagensque descontraidamente se instala em cena e que, ao passar, faz seu o lugar com todos os

    que j l estavam mais os que vo passando, embora seja evidente que este no o lugar

    em que o filme vai ser rodado; e no meio de uma tal confuso e tumulto treme no

    horizonte ao fundo, acompanhada pela gritaria das crianas, a ltima cara de lua cheia da

    roda dos velhos, mas to calmamente que no meio do tremor geral se distingue bem o

    levantar sbito da cabea de cada um em busca dos olhos que, neste jogo de empurra,

    talvez se encontrem com os seus - sem xito (ou ento no so os olhos que seprocuravam).

    A este episdio juntam-se logo alguns outros, breves, de tal modo que de repente j s

    atravessam a praa rapazes novos, s curvas, cruzando-se uns com os outros; depois,

    apenas homens; e a seguir apenas as mulheres.

    Depois, seguindo cada um o seu caminho, passam a correr um homem vestido de mulher

    e uma mulher vestida de homem; na correria perdem, um a seguir ao outro, algumas

    peas de roupa, apanham-nas atabalhoadamente, continuam a correr.

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    Um outro passou entretanto, jovem ao entrar e j velho ao regressar, o que se reconhece,

    no tanto pelo andar como pela pele e pelos cabelos, e noutro lugar (a criana j h muito

    tempo que se acalmou) deambulam fraternalmente na luz dois adolescentes, tambm

    vestidos com roupas orientais, um deles com um grande peixe pendurado num gancho,

    enquanto que ao mesmo tempo, mas j noutro lugar, Eneias carrega s costas o seu pai

    velho, atravessando a praa com um manuscrito enrolado na mo, a arder e a deitar

    fumo.

    Pausa.

    A praa brilha de vazia.Rudo tpico do escape de uma nica motocicleta, invisvel, e depois o de um hlice

    sobre a praa.

    Em seguida, de novo o sussurrar a toda a volta.

    Volta a aparecer num sector da praa um homem vestido de Papageno, mas em vez de

    penas agora aparece coberto de conchas tilintando; a gaiola que traz na mo est vazia e

    de portinhola escancarada.

    Uma figura indefinvel, com a mo debaixo do casaco inchado, segue-o, e Papageno

    volta-se repetidas vezes para trs, o outro move-se como colado a ele, descrevendo deforma igual cada curva e cada ziguezague.

    S quando ele pega numa ma, d uma dentada enquanto anda e tira do casaco um

    pacote de fraldas, o homem das conchas volta a olhar para a frente e at vai dando

    umas voltas sobre si prprio, brincando aliviado.

    Mas o seu seguidor aproxima-se num pice, amarra-lhe as mos atrs das costas, d-lhe

    um golpe na nuca com o pacote de fraldas, deitando-o ao cho, onde fica imvel,

    enquanto o outro segue, comendo a ma ruidosamente e balanando o pacote de fraldas.Enquanto Papageno, de gaiola no punho tenso, se arrasta atrs dele, entra em cena mais

    um caminhante, levando cabea um tronco de rvore lavado da chuva, de razes para o

    ar; depois de olhar em volta, descarrega o tronco e senta-se nele, com as razes a fazer de

    ps do banquinho.

    Enquanto desdobra um mapa, alguns outros irrompem pela praa, soldados que, uns

    momentos depois, agora em menor nmero, voltam a atravessar a praa vindos da mesma

    direco; por fim, aparece no mesmo lugar um outro, transformado em fugitivo,

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    esbaforido, lanando a cabea para um lado e para o outro, abre inesperadamente os

    braos como se tivesse chegado ao lugar que procurava, d a volta a este tranquilamente

    e junta-se depois ao que est sentado no tronco, antecipando por assim dizer o desfile

    dos dois grupinhos seguintes: um deles puxa uma tenda de beduno, o outro transporta

    num carrinho de mo um monumento feito em cacos; entretanto, o caminhante tirou os

    sapatos, volta-os e deixa escorrer a areia e o saibro por entre os dedos.

    Uma mulher voltou entretanto a entrar em figura de grvida, com um carrinho de

    supermercado cheio, desta vez acompanhada por um homem; o par abranda o andamento

    e pra sob a luz, abraa-se como mandam as regras - enquanto isto, a mulher continua a

    empurrar o carrinho para l e para c sem sair do lugar.Quando, por fim, continuam a andar, a mulher agora com um cesto cabea, tapado com

    um pano branco, o homem empurrando o carro a uma certa distncia, volta a aparecer um

    homem que vai passeando com uma maqueta sobre a mo estendida: desta vez, em vez

    de uma miniatura da praa, uma enorme maqueta de um labirinto clssico cujos

    contornos o homem tenta reconstituir em andamento.

    Enquanto ele prossegue a sua dana num movimento anguloso, j o prximo entrou,

    novamente um homem com um tapete ou uma alcatifa enrolados; quando ele agora

    desenrola o tapete, em diagonal atravs de toda a praa, v-se que se trata de um atalhono campo, com as marcas do rodado de um carro no barro amarelado e uma fita verde de

    erva ao meio; os dois que tinham chegado primeiro deram--lhe uma ajuda rpida,

    pisando o atalho na ponta, antes de voltarem a sentar-se.

    Depois de terminado o trabalho, o homem do tapete sentou-se de pernas cruzadas beira

    do caminho, a uma certa distncia dos outros dois.

    Os primeiros a usar o atalho so Abrao e Isaac, o pai um passo atrs do filho, que vai

    empurrando sua frente, pondo-lhe a mo no ombro, enquanto a outra segura, atrs dascostas, a faca do sacrifcio; so seguidos por um par indefinvel, que se transforma de

    repente num rei com a sua rainha, pelo "velho agiota" que, por pouco tempo, se

    transforma num que d saltinhos a andar, pelo heri do Oeste que, parando, se

    transforma num coxo de muletas, num que d estalidos com os dedos, num que bate o

    ritmo, num maestro de batuta imaginria, num que abana a cabea, que por sua vez se

    transforma subitamente num que escreve de forma calma e regular, servindo-se do bloco

    de notas que tira de baixo do brao, e depois num prestidigitador, quando, voltando a

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    guardar o bloco, faz aparecer uma bola de cristal de rocha que nesse instante absorve em

    si toda a luz da praa; a magia acaba logo, por aco do prprio mgico, com o estoiro

    produzido pelo rebentamento de um saco de papel.

    Pausa.

    A praa iluminada, com as figuras de antes, no tronco de rvore, beira do caminho.

    A toda a volta ouve-se agora um chapinhar, como de peixes saltando, e um forte

    zumbido ergue-se nos ares, como um enxame de abelhas no vero.

    Um homem, mala de caixeiro viajante na mo, irrompe pela clareira, e de repente j no

    tem pressa nenhuma, vai deambulando para o lado, junta-se ao que est sentado beirado caminho e acocora-se a seu lado.

    Isaac regressa, salvo, Abrao segue-o de mos vazias, morto de cansao.

    Enquanto eles se deitam a uma certa distncia dos outros, o pai com a cabea no colo do

    filho, na parte invisvel da cena passam de novo crianas, reconhecveis pelos gritos e

    chamamentos ininterruptos, e um homem vem-se aproximando de joelhos; depois pe-se

    de p, sacode o p das pernas e vai postar-se em qualquer parte.

    O idiota da praa volta a entrar sorrateiramente e percorre com os olhos, de baixo para

    cima, cada um dos presentes, recua depois em bicos de ps, enquanto entra outro, o"louco dos livros", fazendo incidir continuamente a luz sobre o livro aberto e andando

    assim para l e para c, e um segundo, saltitando por outro caminho, como que passando

    de pedra em pedra no vau de um rio, parando agora na margem para olhar para trs; por

    um terceiro caminho vem um casal de velhos lambendo gelados.

    Por instantes ningum mais passa pela praa; todos param, deixam de estar activos,

    ficando de p, sentados ou deitados, e o mesmo se aplica aos que se seguem: dois que se

    agarram como lutadores espera do golpe e de repente se separam calmamente; outroque entrou fazendo o gesto dos vencedores, de braos no ar, para os deixar cair assim

    que entra; outro que entra a correr, com um nmero no peito, e o nmero cai assim que

    ele pra; uma mulher que, quando d o primeiro passo na luz, parece ter ressuscitado dos

    mortos, mas logo comea a dar cambalhotas, para discretamente se perder entre as outras

    figuras; um homem com neve nos ombros e no chapu e que, quando j quase atravessou

    a praa, pra e regressa decidido para o centro, tirando o chapu, sacudindo a neve e

    andando cada vez mais devagar e dando passos cada vez mais pequenos.

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    Por fim entrou ainda, tropeando, algum em fato-macaco azul, de aprendiz, fazendo

    rolar uma roda de carro - ou ser uma roscea de vitrais em azul de Chartres, que agora

    refracta a luz em vrias direces? -, quando chega ao centro d meia volta com a roda,

    regressa j sem ela, procura o seu lugar junto dos outros, mas sem nunca o encontrar -

    esta cena do no-encontrar-o-seu-lugar torna-se cada vez mais dramtica, at que por fim

    o idiota, alis chefe, alis senhor da praa o manda sem cerimnias para um lugar

    qualquer (nunca ningum esteve to claramente no seu lugar), e, depois de o arrumar

    assim, tira a mscara e ocupa um lugar entre os outros, transformado em No-sei-quem.

    Pausa.A praa na sua anterior luz clara e depois, espalhados, distanciados ou bem juntos,

    deitados ou de p, de ccoras ou sobranceiros aos outros, a totalidade dos heris.

    Volta a ouvir-se a toda a volta o sussurro ou o soprar do vento, a que se segue um som de

    estalidos que se prolongam em diagonal da frente para o plano de fundo, como quando

    um lago comea a gelar, a que se segue o som montono do trinar de grilos, a que se

    segue silncio.

    Por um longo espao de tempo, a seguinte cadeia de acontecimentos: um frmito

    apodera-se de todos ao mesmo tempo, um terror simultneo, que se repete, que se repetemais uma vez, depois um sobressalto, por fim um estremeo seco.

    Um deles d bofetadas a si prprio.

    Outro convida uma das mulheres para se sentar ao seu colo, e antes que d por si j ela

    est em cima dele.

    Outro vira o casaco do avesso e transforma-o em fato de cerimnia.

    Um engraxa os sapatos ao outro, um homem procura apoio e encosta-se a uma mulher,

    outro esgaravata delirantemente o cho.Um homem, que parece estar espera de alguma coisa, v um se-gundo juntar-se a ele,

    um terceiro vem juntar-se aos dois e faz tambm o papel de algum que est espera.

    Um homem e uma mulher levam a mo ao sexo um do outro.

    Um homem corta uma madeixa de cabelo, outro rasga a camisa no peito enquanto vai

    andando, outro raspa a merda de co que ficou presa ao sapato, uma mulher atira uma

    chave outra, e esta pe-se a saltitar com ela.

    Um homem belisca outro ao passar.

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    Um deita-se no cho de barriga para baixo e pe-se escuta, e outro imita-o.

    Um dos homens parece desistir da espera, e quando j comea a afas-tar-se trazido de

    volta ao seu lugar por um outro.

    Um homem procura qualquer coisa, dobrado, depois de gatas, um outro ajuda-o a

    procurar, na mesma posio, um terceiro junta-se a eles, atravessa-se-lhes no caminho, e

    num lugar diferente tambm algum comea a procurar qualquer coisa, enquanto aquele

    que comeou vai encontrando isto e aquilo e olhando luz as coisas que encontra sem as

    ter procurado, e um dos seus companheiros de busca encontra qualquer coisa que

    pensava perdida para sempre, e que beija e aperta ao peito.

    Um homem deita gua do cantil sobre a cabea de outro que est dei-tado.Um homem anda para l e para c na figura de Peer Gynt, descascando uma cebola.

    As pessoas que esto na praa olham cada vez mais umas para as outras, no, observam-

    se umas s outras: um homem, que de repente ficou louco, berrando desvairado, acalma-

    se simplesmente porque algum olha para ele, tal como uma mulher que desata a soluar

    e a gritar e o homem que assobiava desalmadamente; aqueles que os olham fazem-no

    enquanto se vo aproximando.

    E tambm pode acontecer que todos eles fiquem simplesmente ali, uns olhando-se,

    outros escutando-se, e transformando-se no outro ao se olharem assim, e isto por toda apraa.

    Um homem passa por todos os outros com um sinal de reconhecimento, primeiro flores,

    depois um livro, em seguida uma fotografia: seguem-se vrias negas com abanos de

    cabea, um encolher de ombros, um abanar de cabea definitivo, e por fim,

    inesperadamente, o sim silencioso e um abrao desajeitado.

    De forma igualmente desajeitada, dois dos que continuam procura de qualquer coisa

    do uma cabeada um no outro, um homem pega noutro que est no cho, ofegante, eanda com ele, ofegante, s voltas, uma mulher acaricia um homem de tal maneira que lhe

    desfigura grotescamente a cara.

    E ficam todos novamente simplesmente ali, com olhos cada vez mais cerrados.

    Grasnar de corvos e latir de ces, acompanhados de um som distante e cavo.

    Desaba uma trovoada, alta, sobre a praa, com troves que estalam, sem que isso faa

    mexer um nico cabelo dos que esto c em baixo.

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    Depois ouvem-se a toda a volta do palco gritos de dor e lamentaes, aqui uma criana,

    ali um elefante, acol um porco, um co, um rinoceronte, um touro, um burro, uma

    baleia, um surio, um gato, um ourio, uma tartaruga, uma minhoca, um tigre, o leviat.

    Depois, nada (se) passa a no ser as cores de cada um: das roupas, dos cabelos, dos

    olhos.

    Enquanto isto, um homem observava outro.

    Dois aquecem as mos um ao outro debaixo dos braos, um assusta-se ao ver que aquele

    que vem ao seu encontro o seu duplo, um outro, desesperado, procura aquele que o

    observa e, tendo-o encontrado, pode representar o seu papel nessa situao, um outro

    segue cada folha que vai caindo lentamente e estremece de cada vez que uma toca nocho.

    Todos juntos formam com os seus corpos, no meio da praa, uma escada de exterior, o

    que est deitado no topo levanta-se de repente e desce, enquanto se ouve o repicar de

    sinos, vindo das profundezas por baixo deles, quase inaudvel, ora metlico, ora cheio,

    ora longe, ora perto, ora puro, ora distorcido, e todos eles, levantando-se, dobrados, de

    mos nas coxas, se pem escuta, uns encantados, outros carrancudos, uns gozando,

    outros sofrendo.

    Ao som dos sinos, duas silhuetas em trajes africanos sumptuosos entraram e pararam aofundo da praa, apenas com o tronco vista, num barco invisvel em que s se viam os

    remos, convidando mudamente os presentes a entrar na sua canoa.

    Ningum aceita, embora se sinta novamente um estremecer de todos nessa direco.

    Os dois afastam-se enquanto os sinos submarinos continuam a tocar, cada vez mais

    longnquos.

    No ltimo momento, o aprendiz do fato-macaco azul desata a correr atrs deles, mas

    estende-se logo ao comprido, porque um dos outros lhe passou uma rasteira.Fim dos sinos, fim do sonho.

    Um acena a dizer adeus, depois outro, ainda outro, e por fim todo o coro.

    Pausa.

    A praa, a luz, os contornos.

    Um homem, muito velho, de olhos esbugalhados, para quem a pouco e pouco todos os

    outros se voltam, aproximando-se, olhando-o de longe.

  • 5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke

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    Subitamente, ele sorri para o crculo sua volta.

    Silncio.

    E eis que faz meno de comear a falar, ganha balano, faz dese-nhos com as mos que

    marcam o ritmo, com os braos que se elevam para o cu, mexe os ombros, balana com

    a cabea, ensaia a fala com os lbios silenciosos, as narinas alargam, as sobrancelhas

    arqueiam-se, de vez em quando at as ancas gingam, tudo para preparar o discurso.

    At os mais distantes ficam muito atentos.

    Este ou aquele dos espectadores parece compreend-lo de antemo, acena com a cabea,

    volta a acenar, soletra com ele, que j murmura, como que para comear, volta a

    murmurar em vrios tons.De repente fica calado, como se finalmente fosse comear a falar, mas continua calado,

    perde a expresso, deixa que o vejam assim.

    Uma mulher aproxima-se dele com uma trouxa, como se fosse um recm-nascido,

    deposita-a nos braos estendidos do velho, e este, olhando para a trouxa, os olhos em

    alvo, transbordante de alegria e de jbilo, sem palavras, gaguejando e exultando.

    E novamente este ou aquele dos seus espectadores acena com a cabea, sempre como se

    antes ele tivesse dito qualquer frase; alguns j comeam a sair e acenam com a cabea ao

    passar por ele.Mas s se assiste a um cortejo geral, fazendo um grande arco volta da praa, quando o

    velho comear a bater palmas no centro da praa, repetidas vezes, depois do que,

    exteriorizando mais alguns fragmentos do seu jbilo e da sua alegria, se integra no

    cortejo com o recm-nascido nos braos, enquanto da trouxa vai saindo, com intensidade

    crescente, um piar que se repete, como de passarinhos abandonados, ao qual se volta a

    juntar o sussurro a toda a volta da praa; antes, um velho to velho como este massajou-

    lhe as fontes, como que para o pr em forma.Depois disto, tudo se precipitou: depois de um dos homens passar ainda pela erva da

    savana no atalho, para se despedir, este foi logo enrolado; tambm o tronco com raiz,

    empurrado de passagem por vrias mos e vrios ps, j desapareceu nos bastidores; um

    homem que, olhando por cima do ombro, hesita ainda perto da sada, projectado para

    diante por um pontap no traseiro, dado pelo que vem atrs; aquele que ficou a ver as

    folhas cair, agora faz isso a correr; aquele que ficou com o p preso numa espcie de

    armadilha, precipita-se muito mais para a tirar e sai a correr com ela no p.

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    Torna-se agora evidente, enquanto todos se vo dispersando em todas as direces, como

    um sai irritado e desiludido, deitando a lngua de fora e cuspindo; outro serenamente

    desencantado, encolhendo os ombros; uns mais aliviados por terem sado do sonho,

    outros continuando a persegui-lo, meio sonmbulos; uns comeando a chorar, outros a

    rir; um beija o cho antes de sair, outro desenha o caminho no ar antes de se ir embora,

    como um esquiador antes da largada para a prova de slalom; um toma claramente

    balano, outro abre e fecha as mos como um halterofilista antes de levantar os pesos, e

    desaparece logo com todos os seus haveres; destaca-se tambm, isoladamente, cada um

    dos que se vo dispersando, roupa de vero a adejar, tocada por alguma coisa que

    esvoaa, um pedao de papel, um saco de plstico, uma nuvem de p de carvo - eentretanto comeam a ouvir-se, vindos vagamente de outras praas para l da praa, os

    sons de fogo de artifcio que se transformam em acordes e depois se dissipam.

    Pausa.

    A praa clara e vazia, na sua luz de recordao.

    O breve instante da borboleta (ou falena).Qualquer coisa atada entra, pairando, presa a um pra-quedas em miniatura.

    Atrs dela vem logo outra vez o guarda, alis varredor, da praa, pu-xando um carro

    carregado de tubos metlicos de barracas de mercado, que rangem, ao lado de um

    contentor de lixo; na outra mo traz uma vassoura grossa com a qual, ou empurra sua

    frente uma parte dos objectos que encontra no cho (incluindo o embrulho do pra-

    quedas), ou ento, voltando-a ao contrrio, espeta-os com o cabo pontiagudo, para os

    deitar no lixo: alguns frutos - um morango gigantesco -, o cadver de um pssaro, umlivro meio desfeito, uma cabea de peixe; ao empurrar sua frente o que encontra, e

    parando por um instante, varre com a vassoura os prprios sapatos.

    Entretanto, mais uma beldade passa em primeiro plano pela praa, mostrando durante o

    longo percurso um sorriso voltado para dentro, mesmo quando, ao andar, vai

    endireitando as meias todas torcidas; ao fundo, atravessa de novo um homem com uma

    escada, to graciosamente que o objecto l atrs quase desvia as atenes da beldade que

    vai frente; um homem, bbado ou ferido, entra de novo cambaleando, com os

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    atacadores, superlongos, soltos; de novo um homem vai descrevendo crculos com um

    livro aberto na mo, enquanto outro anda a seu lado, lendo do seu livro e virando as

    folhas ao primeiro, e noutro lugar algumas pessoas passam, erguendo num pau, como

    espantalho, algum que vo queimar em efgie.

    Grito de coruja em pleno dia; um homem que chora em silncio, andando, depois

    ganindo e gesticulando; um outro todo curvado, carregando-se a si prprio com cada vez

    mais tralha e partindo assim com um sorriso de alvio, um outro que entra e sai com um

    ramo entre as pernas; um outro ainda que passa com a maqueta de uma ponte, que

    compara com a praa; a Morte transportada numa liteira; o caador transporta, num

    frasco, o "corao de Branca de Neve"; o Gato das Botas pavoneia-se no palco; farraposde papel queimado caem do cu; uma mulher com roupa que foi buscar lavandaria,

    dentro de um saco de plstico; pastores que regressam a casa com botas de borracha; um

    transeunte com um girassol; uma mulher que ao passar deita fora o molho de chaves; a

    beldade com um pau de avelaneira; um resfolegar monstruoso, e depois passa um

    corredor minsculo; transporte de um porto enfeitado com grinalda de flores; um

    general avana com sapatos de criana nas mos; algum com um mapa do firmamento,

    outro com um pedao de carto dobrado sobre o nariz; o senhor, ou guarda, da praa

    empurra de novo o carro, a vassoura e a p servem-lhe de ceptro; um homemtransportando a canoa cabea; outro, de olhos vendados, a caminho da execuo; outro

    anda para l e para c com um cardpio gigantesco; uma famlia de refugiados, a cabea

    de uma criana pequena saindo de um saco de ir s compras; a caadora de heranas

    acompanhando a tia rica; um co manco trela de um homem coxo; um grupo, de

    cabeas bem erguidas, a caminho de uma rcita de gala em traje de noite; um alegre

    corredor correndo aos saltinhos; um jogador de cartas abrindo o baralho em leque

    enquanto vai andando; dois que trocam qualquer coisa em andamento, num abrir e fecharde olhos; algum puxa um carro com taipais gradeados cheio de mscaras e bonecas; um

    grupo que desceu junto de um autocarro dispersa-se rapidamente pela praa, cada um

    para seu lado; a beldade fechada transforma-se numa beldade aberta ao passar; um jovem

    apaga a luz da vela a um velho; o faroleiro atravessa pesadamente; uma patrulha

    balanando algemas e bastes; um caminhante passa restolhando pela folhagem espessa;

    o av traz umaa cobra a contorcer-se no cabo da bengala; aparece a Portuguesa; a

    rapariga de Marselha avana pelo cais do porto; a judia de Herzliya deita para a rua a

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    mscara de gs; a Mongolesa passa com o seu falco; a santa padroeira de Toledo arrasta

    atrs de si uma pele de leo.

    Comea finalmente um incessante vaivm em todas as direces - um homem novamente

    vestido de empregado de mesa esvazia um cinzeiro na praa, uma mulher passa de uma

    rua para a outra com uma bandeja cheia de copos de champanhe, outro homem,

    comerciante de folga ou meteorologista, entra e comea a olhar para o cu, e Chaplin

    passa flanando como quem no quer a coisa -, com o passar do tempo cada uma das

    figuras mais no do que um simples passante, a caminho de algum lugar, balanando os

    braos, representando de uma maneira ou de outra este papel de transeunte (um corredor

    vai entretanto arfando e marcando o ritmo do seu andamento, levando na mo estendidaa escultura de barro que representa uma criana); por um momento temos a impresso de

    que todos os passantes estariam ao mesmo tempo a ser transportados.

    E agora, l em baixo, o primeiro espectador levanta-se da cadeira, junta-se por momentos

    ao cortejo, perdido no palco como um co ou uma lebre num campo de futebol, e foge.

    E agora o segundo espectador sobe ao palco e experimenta acompanhar os outros, logo

    impedido por duas mulheres que, enquanto os outros se afastam com tacto, atravessam a

    praa com um varo de metal carregado de roupa branca; ele fica.

    E j o terceiro espectador entra em cena, mete-se logo por entre os outros e vaideambulando, muito naturalmente, com o cortejo que parece no querer pr fim ao

    desfile.

    Vaivm continuado, durante algum tempo.

    Por fim, a praa escurece.

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    O JOGO DAS PERGUNTASou

    A Viagem Terra Sonora

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    Para Ferdinand Raimund, AntonTchekov, John Ford e todos os outros

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    E aqueles peregrinos iam, pensativos...Pareciam vir de longe, os peregrinos.

    (Dante, Vita Nuova)

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    PERSONAGENS:

    UM OBSERVADOR?UM DESMANCHA-PRAZERESUM ACTOR JOVEMUMA ACTRIZ JOVEMUM CASAL VELHOPARSIFALUM-DA-TERRA, em diversas variantes

    As indicaes de cena nem sempre so necessariamente instrues de cena.

    ? O nome alemo desta personagem -Mauerschauer: o que olha, ou vigia, do cimo da muralha - umainveno lingustica de Handke, decalcada da palavra grega que designa este processo j na tragdiaantiga: teicoscopia. O nome traz tambm, alis como outros momentos da pea, ecos do Fausto IIdeGoethe, nomeadamente da figura de Linceu, o Atalaia (no 5 Acto).

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    1

    O palco, com luzes de ensaio, um planalto no meio do mais remoto ponto docontinente, vazio, silencioso, ligeiramente inclinado, como que subindo at uma falsia.Comea a ver-se surgir a um par de mos procurando apoio. Do lado, como quem saide casa para a rua, entra em cena o OBSERVADOR, um homem de meia idade, vestidocom roupa ligeira, como quem est de partida; a sua bagagem reduz-se a pente e escovade dentes, que ele acaba de meter no bolso superior do anorak. Ao cabo de alguns

    passos, poucos, e enquanto vai dando voltas sobre si prprio e olhando para o lugar deonde veio, j est a caminho, no espao aberto, tocado a vento, de cabea erguida, emritmo de passeio. Repara no movimento que procura apoio ao fundo do palco, porqueentretanto j s l est uma das mos. Pra. Quando, depois, corre at l, tambm essa

    mo desaparece, como que sob o efeito da trepidao dos seus passos. Se h queda, ocerto que no se seguem, nem grito, nem baque do corpo. O Observador abeira-se da

    falsia, recua rapidamente, acocora-se, cobre o rosto com as mangas largas do anorake permanece imvel.

    De outro lado chega agora a correr, como que em fuga, ofegante, no ltimo flego, o DESMANCHA-PRAZERES, tambm ele um homem de meia idade, que nacorrida se volta frequentemente procura dos seus perseguidores, com as mosapoiadas nos flancos. Finalmente pra no canto mais distante do palco, de braoscados e olhando para todos os lados, como se, cercado, se entregasse. Mas os esbirros

    no aparecem. Lentamente, espreguia-se e veste o sobretudo que at a trazia no brao,senta-se e estende as pernas, com olhos que mais no fazem do que repousar dascanseiras da fuga.

    Entram agora em cena, vindos de pontos diferentes e sem que os dois primeirosdem por eles, o ACTOR JOVEM e a ACTRIZ JOVEM. Ele, de culos de sol, cansado,atento, como se viesse de um ensaio, enquanto ela vai a caminho: os olhos postos nohorizonte, uma das mos no ombro do lado oposto, a passos largos, num vestidorodado, como se fosse pelas colinas ao encontro de algum. No tarda nada, e ser amulher do padeiro ou a noiva de aldeia, enquanto o actor jovem se encontra ainda meio

    preso ao papel do rebelde, do misantropo ou do condenado morte, vestindo uma pea

    do respectivo guarda-roupa. O momento em que cada um, virando a esquina do seubastidor, d de caras com o outro aquele instante por que sempre esperaram. No

    precisam de abandonar os respectivos papis: estes ganham apenas, com um leve toque,novos traos. Nela, ao jogo fisionmico da moa do campo apaixonada vem juntar-seuma expresso sria; nele, os golpes de espada do revoltado abrandam e transformam-se pouco a pouco em braos que se estendem para ela. Depois, a quebra: ela, virando acara, senta-se no lugar onde est, e ele, depois de ter deambulado at aos limites do

    planalto, senta-se a uma certa distncia dela, desviando tambm os olhos.

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    Entra agora em cena o CASAL VELHO, um atrs do outro numa corridadesajeitada, ambos agitando as mos estendidas. A mulher traz uma grande mala de

    mo enfiada na dobra de um dos braos, e o velho puxa atrs de si um enorme malo,que no entanto parece ser leve. Acabam manifestamente de perder, por uma unha negra,um meio de transporte que pretendiam apanhar. Ambos usam fatos domingueirosescuros, como pessoas que quase toda a vida andaram de roupa de trabalho, e por issoo seu aspecto ainda mais festivo; hoje poderiam ter-se sentido livres, fora de servio.

    Agora, porm, afastam-se de cabea baixa, tambm eles sem olhos para os demais, edeixam-se cair, primeiro de joelhos, depois sobre os calcanhares. A Velha tapa a caracom o leno que lhe servira para fazer alguns sinais, o Velho, com as mos nos joelhos,balana para a frente e para trs.

    Por fim aparece ainda no palco PARSIFAL, entrando s arrecuas e parando com

    frequncia, sugerindo como que um passo teimoso em relao ao lugar de onde partiu,mas afastando-se cada vez mais dele - como se acabasse de ser abandonado alguresnuma terra selvagem e algum o afugentasse, talvez com uma arma. o mais novo detodos quantos se encontram no planalto, quase ainda uma criana, de cabelo rapado,roupa esfarrapada, descalo. Como se acabasse de ser definitivamente expulso, d

    pequenos saltos em crculo no ltimo canto livre do palco, bate com a cabea, primeironos joelhos e depois, j cado, contra as tbuas do cho, a saliva a escorrer-lhe daboca.

    Vem agora um sinal sonoro, agudo mas propagando-se ao longe, um som

    prolongado, o mais grave de todos os sons, que tudo atravessa; depois de uma pausa,durante a qual todas as figuras no palco, incluindo Parsifal, ficaram petrificadas e escuta, ouve-se ainda uma segunda e uma terceira vez qualquer coisa como a sereia deum barco no nevoeiro ou o apito sado do bojo de uma locomotiva antiga ou o sinal de

    partida de um ferry-boat num brao de mar. Depois, no silncio, os sete do pelapresena uns dos outros e, se no esto j em p, vo-se levantando. Voltam a pegar nomalo e na carteira e apagam-se as luzes do palco.

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    Uma curva do caminho na terra interior, com um pinheiro ano no alto de umacolina. Acampam a os sete, o CASAL VELHO em banquinhos articulados, a seu lado acarteira e o malo. Continua o silncio e a luz clara do planalto, ou a luz dos primeirosensaios. A ACTRIZ JOVEM est a desmaquilhar-se. O ACTOR JOVEM faz desaparecera pea do guarda-roupa que trazia.

    O OBSERVADOR(Penteia os cabelos, entretanto de novo revoltos, pe uma mo em pala sobre os olhos,

    perscruta o espao l fora e aponta com a outra mo)Olhem s, que beleza! H paz nesta terra interior, e por isso posso falar assim. No h

    dvida: nasci para glorificar as coisas, no h dvida, nada mais tem voz em mim. O que,fora disso, de mim sai, ou no tem som, ou estridente. - Mas porque ser que hoje mecusta cada vez mais achar as coisas belas? Porque que vocs, os de antes de ns, diziamto facilmente: Coraes ao alto! ou: O mar salgado!, ou simplesmente: Terra! Sol!, ou omais simples de tudo: Temos tempo de sobra! E porque que abenoaram ainda os quevieram depois? E por que razo me afasto eu a cada passo mais de vocs, sem podertransmitir nenhuma das vossas bnos aos nossos filhos para l do horizonte, que a semovem, inconscientes, sobre o abismo? J estou a ver o horror a assaltar-vos de repente,ouo o vosso apelo, e ns sem podermos fazer nada. Nos meus ouvidos o vosso grito, e

    vossa frente ainda as colinas, com um sussurro que parece vir de dentrodelas.(Acompanha com um movimento da mo a linha ondeante das colinas distantes.)

    O DESMANCHA-PRAZERES(Enrola-se, com frio, no casaco.)E nas colinas, debaixo das rvores, os caadores. J no seguem a presa, sorrateiros,como antes. Agora entram de rompante com os jeeps pelas estradas florestais, j pararame disparam pelas janelas abertas, no a lees ou ursos, no, aos esquilos que saltam pelaltima vez, e empilharam os pequenos cadveres, e depois de mijarem apressadamente,todos em fila, contra as rodas dos jeeps, desandam para a prxima razia. E se, um

    segundo depois, fores at ao lugar da matana, nem uma gota de sangue brilha a, nemum farrapo de pele esvoaa ao vento da tua colina, no encontras nem uma farpa decasca de rvore, no sentes nem um cheiro a queimado ou - como que se diz hoje? - umcalor remanescente: nada, s a rvore inclume, a erva sem sinal de bota e o sussurroinumano. - E os nossos filhos, esses j nos esqueceram, a ti e a mim, h muito tempo.Mesmo que nos vissem todos os dias, seramos para eles, se no uma seca, na melhor dashipteses "Ah, sim, esse" que s de olh-lo d vontade de bocejar! Por maisabandonados que se sintam, se ns lhes batemos porta o que vem depois da alegria do"Quem ser?" a desiluso do "Ah, s tu!", "Olha quem ele !". Os nossos filhos querem

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    ser protegidos e salvos, l isso querem, mas por ns que no. Chamam por ns na horada morte, pois, mas isso mero reflexo. At nos seus sonhos ficamos de fora, e s depois

    da morte voltaremos a olh-los nos olhos. - E os de antes de ns, a quem tu chamavas osantigos, to nobres? Aceito que talvez tivessem um corao capaz de glorificar, no squando se tratava de um vencedor, no s porque serviam a um deus ou um senhor eeram recompensados por isso. Mas no se sentiriam eles a si prprios como vencedoresquando a sua voz descia at ao povo? E no fim no estariam convencidos de ter dito deuma vez por todas o que havia a dizer para glria da existncia, reconhecendo-se apenasa si prprios, como todos os vencedores, surdos de indiferena em relao a ns, seusdescendentes - no ser tudo isto o contrrio das tuas bnos? "Tempo de sobra", pois .Mas no ser que os antigos, que dispunham assim soberanamente do tempo, por issomesmo nos no deixaram tempo nenhum a ns? Olhem s ali, na estrada, aquele gigante

    centenrio, a mo aparentemente paternal no ombro do seu pequeno Isaac: o facto queele o leva uma vez mais para o matadouro. (Volta-se para a sua prpria mo aberta) Etu, meu bichinho, o que que achas? Ser que estou enganado? Ser que o velhadas, demo pesada no ombro do rapaz, apenas cego e se deixa levar um pouco a passear? Mas- tempo de sobra, tambm para ns? E ser mesmo s um campons cego que faz a rondadas suas terras com o neto? - Olhem, o bichinho deixou de espernear e levanta a cabea.Fareja qualquer coisa. Basta uma pergunta, e ela fareja logo qualquer coisa. - Ento lvai mais uma pergunta, meu bichinho: Ser que o tempo vai aquecer? O que que fazeslogo noite? Onde E que vais passar o Inverno? Onde estiveste na guerra? Onde est a

    tua me? Onde est o teu filho? - Olhem s, ela volta-se mesmo, procura os seusparentes! - Esta a tua primeira forma, animal, ou j te metamorfoseaste? E ns, em que que ainda nos vamos metamorfosear no decorrer dos acontecimentos? Aquele ali: deidiota com pes aleijados passar a corredor prodigioso? E a outra: de uma que passoutodas as suas noites com as mos entre as coxas para uma que na prxima noite apertarnos braos o que est com ela? E os dois velhos ali, com cara de caso, sero amanh umacabea dupla de montanhs com o sorriso malicioso e contente das caras de Buda? Eaquele outro, com o seu ar de eternamente provisrio, transformar-se- em algum commorada certa, que j no busca a sorte na errncia, mas sim, como o velho sulto, aquimesmo, neste lugar e no regao da jovem amada? - E j agora diz-me tambm a mim,

    orculo desta minha mo, se no decorrer dos acontecimentos o fugitivo que eu semprefui, com olhos que nunca ousam fechar-se completamente, que se assusta com o simpleslevantar voo de um pardal, que se desvia ao ver uma borboleta pelo canto do olho, que -(interrompe para se dirigir ACTRIZ JOVEM: "D s uma olhadela sua volta!". Elacorresponde imediatamente) - que nunca foi capaz de olhar por cima do ombro com adescontraco que acabamos de ver, mas sempre assim (mostra como): diz-me, meuanimalzinho, se o acossado por montes e rios se transformar finalmente aqui num outrocapaz de cantar alto na floresta dos caadores, para que o distingam da caa, porque jno caa humana para os seus caadores, os caadores de homens? Meu animalzinho,

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    porque ser a fuga desde sempre o meu primeiro impulso ao ver uma pessoa? - Ou entodiz-nos, muito simplesmente: Quem o teu inimigo? Ou: foste tu que me roeste os

    buracos no sobretudo? (Encosta o ouvido mo, e diz para os presentes:) Nem resposta.Fantstico! (Afasta com um sopro o animal da mo.)

    O CASAL VELHO( Alternando as falas, acompanhadas de um movimento de braos meio erguidos, num"Singspiel")No fundo, esta devia ter sido a nossa primeira viagem. Mas a mim nunca me entusiasmoumuito. Nem a mim. (A uma voz:) E porque que no me disseste? - Desde a guerra queno durmo fora de casa. E eu desde aquele tempo no hospital. Sempre gostei muito queos outros viajassem, para poder ficar sozinho. : e quando eles, cheios de pena, me

    acenavam e finalmente os perdia de vista, o meu corao dava saltos. Pois : e quandouma vez o filho voltou atrs para nos consolar com uma ltima palavra, apanhou-me jcomodamente instalado de jornal na mo. E a mim no jardim, debaixo da cerejeira, acuspir os caroos. (A uma voz:) Nas mas j nenhum de ns consegue meter o dente. - Acasa toda fica to bem, quando os outros esto a fazer boa viagem e a gente lhes tomaconta do lugar. Pois, afinal eles so dos nossos, e guardar-lhes a casa antecipa j oregresso (A uma voz:) Pelo menos por momentos. - A minha alegria foi sempre a de mesentir feliz com os meus. Sim, especialmente quando eles viviam a sua felicidade bemlonge de ns. E como ns lhes pintvamos cor-de-rosa as maravilhas das praias distantes

    e os levvamos sempre a fazer novas viagens! ( A uma voz:) E agora os papisinverteram-se. - Em vez de ser eu a dar umas voltas na motorizada com o meu neto, eleque tem de ficar a ouvir as perguntas que o nosso filho lhe faz: "Ora conta l, que coisasboas te aconteceram hoje?" E em vez de eu ter no colo a minha neta a contar-me os seussonhos, e ns as duas a rir ou a chorar com eles, agora ela que tem de sorrir para afotografia. (A uma voz:) Antes isto do que andar com os outros velhos l da terra a fazerum cruzeiro pelos lugares da guerra. - Ser que j superaram o espanto da primeira vez, eagora s contam anedotas ou jogam s cartas? No acredito! Pois se a nossa terra conhecida por as pessoas no saberem anedotas nem jogos! E quanto mais velhas somais espantadas ficam! Na nossa terra, as pessoas quando chegam velhice at pasmam

    colectivamente, em unssono, em coro, e o nome que mais se v nas casas "Opasmado", "A pasmaceira", "Vulgo: Pasmados". At o dialecto da terra conhecido por"fala dos pasmados", e a nossa entoao exprime um espanto permanente. Pois , estoumesmo a v-los ainda sentados, mudos como partida, de cabea levantada, a olhar. Masno achas que, com todo esse espanto, l bem no fundo cada um deles tem saudades daterra, das penias do quintal que partida estavam quase a desabrochar - o boto tinha juma aberturazinha cor de prpura! -, e do novo episdio da linda novela, logo noite nateleviso? Se acho! Pois se at l na terra temos a alcunha de "Os saudosos da terrinha"!Tambm sentes saudades da terra? No, agora j no. Eu tambm no, agora est tudo

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    to morto por l, to fora do mundo, o silncio no o mesmo de antes. E dos outros,tens saudades? Ainda menos. Imagina s essa velhada toda junta! Um velhinho, s um,

    j cheira a mofo que baste! E finalmente livres de todas aquelas velhas perfumadas comolhos de beladona, alagadas em suores de medo a cada movimento de ancas. J me bastao meu pescoo de peru. Pois , finalmente livres, de uma vez por todas, daquelashistrias de doenas, das ltimas intriguices, dos comentrios sobre os parentes do mortojunto campa.

    A VELHA(Dirigindo-se ao crculo dos restantes:) Quando eu h muito tempo, ainda nova, tive deficar no hospital, o que gostei mais foi de ver passar os comboios junto janela; equando disse isso mmia que estava ao meu lado, a resposta dela foi: "Pois , mas para

    mim os avies ainda so mais bonitos".

    O VELHO( Dirigindo-se ao crculo dos restantes:) E quando eu fiz a guerra, uma vez estava delicena e fiquei aquela longa noite de Vero num pas estranho ao lado de um homemvelho, na esplanad