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7/29/2019 A CONSTRUÇÃO DO GÂNGSTER NA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA: As faces de Scarface a partir da Jornada do Herói http://slidepdf.com/reader/full/a-construcao-do-gangster-na-narrativa-cinematografica-as-faces-de-scarface 1/84 Rafaella Arruda Melo Pereira Barboza A CONSTRUÇÃO DO GÂNGSTER NA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA: As faces de Scarface a partir da Jornada do Herói Belo Horizonte Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) 2012

A CONSTRUÇÃO DO GÂNGSTER NA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA: As faces de Scarface a partir da Jornada do Herói

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Rafaella Arruda Melo Pereira Barboza 

A CONSTRUÇÃO DO GÂNGSTER NA NARRATIVACINEMATOGRÁFICA: 

As faces de Scarface a partir da Jornada do Herói 

Belo Horizonte

Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH)

2012

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus. Pai de infinito amor, misericórdia e sabedoria. Pela

sustentação constante.

Agradeço a meu pai e minha mãe, pela presença, pelo amor... Meu pai, por falar de Sidney

Poitier, Charles Bronson, Perdidos na Noite e Marlon Brando. Minha mãe, por compartilhar o

infinito amor pelo cinema e humildemente aceitar minhas dicas dos “melhores filmes”.

Agradeço a minha irmã, pelo companheirismo e cuidado. Por assistir terror ao meu lado e

dividir comigo a paixão por fascinantes vilões...

Agradeço a meu marido, pela sugestão inicial para esse trabalho. Pelo amor e paciência em

ouvir minhas divagações sobre o cinema, muitas vezes por horas e horas. Por me ouvir contar

sobre Tony Camonte e Tony Montana como se fossem da família. E por também, quase que

vencido pelo cansaço, ter me ajudado a entendê-los.

Agradeço ao professor, amigo e mestre, Leo Cunha, pela atenção e orientação sempre

eficiente, por compartilhar o amor pela 7ª arte, por me fazer compreendê-la melhor, e por,

incansavelmente, escutar, ler e refletir sobre meus questionamentos cinematográficos... Desde

o 6º período!

Ainda, agradeço a todos aqueles, amigos, colegas e professores, que falaram comigo de

cinema, que discutiram comigo sobre cinema e que me fizeram pensar sobre cinema.

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RESUMO

A proposta deste estudo foi analisar a estrutura narrativa de duas produções cinematográficas

do gênero gângster: Scarface, a vergonha de uma nação, de 1932, do diretor Howard Hawks, 

e Scarface, de 1983, com direção de Brian de Palma. Os filmes foram escolhidos como objeto

de pesquisa não apenas por compreenderem o mesmo gênero, mas por comporem um

processo de releitura denominado remake. A proximidade entre as obras, tanto por gênero

quanto por estrutura narrativa, viabilizou uma efetiva análise comparativa com destaque para

as diferenças e semelhanças a partir de um personagem padrão, o gângster, permitindo

identificar a evolução do gênero e a variedade de composição e sentido de uma obra

cinematográfica com base no modelo da Jornada do Herói e nos arquétipos definidos porChristopher Vogler. A pesquisa possibilitou não apenas ampliar a visão do cinema enquanto

linguagem narrativa, mas também avaliar a aplicabilidade de um modelo que pretende ser

uma espécie de guia prático para a análise narrativa. Além disso, o entendimento acerca de

Tony Camonte e Tony Montana foi uma oportunidade para considerar os aspectos do gângster

em sua generalidade, no mundo fictício, mas também no mundo real. Compreender a

liberdade dos submundos, com suas relações de poder e confiança, e também o contexto

histórico em que esses personagens/personalidades surgem e criam seus impérios, seguidos ounão de queda, com seus desdobramentos políticos, econômicos e mesmo culturais capazes de

resultar em tantos outros de mesmo perfil.

Palavras-chave: cinema, narrativa, personagem, estágios narrativos, arquétipos, herói, jornada,

gângster.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 07

2 A NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA ........................................................................ 10

2.1 O cinema como arte narrativa ............................................................................................ 10

2.2 Estágios narrativos – A Jornada do Herói ......................................................................... 11

2.2.1 Primeiro Ato ................................................................................................................... 13

2.2.2 Segundo Ato ................................................................................................................... 16

2.2.3 Terceiro Ato .................................................................................................................... 20

2.3 Os códigos específicos e não específicos da narrativa cinematográfica ........................... 22

3 O GÂNGSTER COMO PERSONAGEM CINEMATOGRÁFICO .............................. 26

3.1 O personagem de ficção .................................................................................................... 26

3.2 Os arquétipos ..................................................................................................................... 29

3.3 O gângster no cinema ........................................................................................................ 34

4 AS FACES DE SCARFACE .............................................................................................. 40

4.1 A produção Scarface em dois tempos: 1932 e 1983 .......................................................... 404.2 Definições metodológicas: análise de conteúdo ................................................................ 43

4.3 Tony Camonte em análise ................................................................................................. 44

4.3.1 Estrutura narrativa .......................................................................................................... 44

4.3.2 O perfil do personagem .................................................................................................. 53

4.4 Tony Montana em análise.................................................................................................. 55

4.4.1 Estrutura narrativa .......................................................................................................... 55

4.4.2 O perfil do personagem .................................................................................................. 66

5 CONCLUSÃO..................................................................................................................... 70 

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 75 

ANEXOS ................................................................................................................................ 77

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1 INTRODUÇÃO

O cinema é a arte da imagem em movimento. Uma sucessão de unidades fotográficas,

projetadas em determinada velocidade, que se faz acompanhar por palavras e sons (MORIN,

1972). É inerentemente narrativo, uma vez que estabelece relações de sequência, tempo e

causalidade a partir de qualquer objeto registrado pela câmera para o espectador (VERNET,

1995). Detentor de uma linguagem própria, constituída por uma série de procedimentos

expressivos, o cinema é, portanto, capaz de contar histórias, transmitir mensagens e veicular

ideias (MARTIN, 2009).

A estrutura narrativa do cinema define-se a partir do uso de elementos representativos, tais

como personagens, planos, montagem e diálogos. A narrativa possui um enunciador, que é

aquele que faz o discurso, e um espectador, aquele que o recebe. O cinema torna-se, assim,

um discurso fechado e naturalmente ficcional (VERNET, 1995). O enunciador, ou narrador,

pode ser entendido como o diretor e autor, aquele cuja responsabilidade é pensar a narrativa e

estruturá-la a partir dos elementos fílmicos que julga adequados. Através dos olhos da câmera,

o narrador estabelece o relato sobre um determinado tema e personagem. Direciona registros,

define focos, estabelece caracterizações e dá ritmo à narrativa. Mas o narrador pode também

refletir os olhos do próprio personagem, sendo, neste caso, um personagem narrador, com o

uso da câmera subjetiva (VERNET, 1995). Já o conceito de diegese compreende “tudo aquilo

que a história evoca ou provoca para o espectador” (VERNET, 1995, p.114). Revela o

universo imaginário referido pela narrativa, sendo então maior que a própria história contada.

Dentre os elementos representativos do cinema, o personagem é, segundo Rosenfeld (2009), o

que melhor concretiza a ficção. Ele mobiliza-se no tempo e no espaço e é responsável porcristalizar o universo diegético. Partindo da mimesis aristotélica, o personagem é o elemento

que representa a realidade diante do público, mas é, antes de tudo, o resultado de uma

construção narrativa a partir de elementos próprios de ficção.

Enquanto elemento expressivo do mundo real, o personagem enfrenta conflitos íntimos e

externos, está integrado a outros em uma rede de valores diversos, toma decisões e enfrenta

riscos. Por refletir, assim, o homem do cotidiano, o personagem não é apenas contempladopelo espectador no universo ficcional, mas vivido em suas possibilidades.

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Levando-se em conta as características específicas dos gêneros cinematográficos, nos filmes

de gângster o protagonista é aquele que, segundo Morin (2005), vive em um contexto de

liberdade exercida abaixo da lei. O gângster habita os submundos, estabelece suas próprias

regras e convive com vagabundos e ladrões. Para Neale (2005) é o personagem urbano e

ambicioso que frequentemente alcança fama e sucesso para depois se deparar com o fracasso.

Obra considerada referência da linha clássica do gênero, Scarface - A vergonha de uma nação 

é uma produção estadunidense de 1932, com direção de Howard Hawks e baseada na vida do

mafioso ítalo-americano Al Capone. O personagem central, Tony Camonte, é um gângster

bastante violento que constrói seu sucesso na Chicago da década de 1920, durante a lei seca,

através do comércio ilegal de bebidas alcóolicas. De acordo com o site oficial do  American

Film Institute (AFI’s 10 TOP 10), o filme é o 6º colocado entre as dez melhores produções do

gênero gângster, a frente de outros clássicos como The Public Enemy e Little Caesar (1931).

Com direção de Brian de Palma e roteiro adaptado de Oliver Stone, Scarface, de 1983,

estabelece uma releitura do original de Howard Hawks a partir da ascensão e queda de um

gângster no cenário moderno. O gângster é Tony Montana, um ex-presidiário cubano enviado

pelo regime de Fidel Castro para os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria, quando osdois países enfrentavam uma intensa disputa ideológica. O tráfico de bebidas é substituído

pelo tráfico de drogas e Chicago dá lugar a Miami. Mas a violência extrema e o cenário

permeado pela corrupção permanecem.

Desta maneira, Scarface - A vergonha de uma nação e Scarface, produções do gênero

gângster com um intervalo de mais de 50 anos, partem de uma base narrativa aparentemente

similar, mas com distinta contextualização histórica, política e social. Consequentemente,seus protagonistas Tony Camonte e Tony Montana poderão imprimir evolução semelhante,

embora também divergente, pesem a intenção e conteúdo narrativos e sua relação com a

realidade.

Diante desse cenário, a pesquisa em questão tem como objetivo analisar a estrutura narrativa

de ambas as obras, tendo como foco a construção do gângster a partir do modelo da Jornada

do Herói, de Christopher Vogler (2006). Para tal, serão considerados nos filmes os estágios

narrativos e os arquétipos, de forma isolada e comparativa. Tais elementos, uma vez

identificados, serão demonstrados, ilustrados e exemplificados a partir da verificação do uso

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de códigos cinematográficos específicos e não específicos, de forma a justificar e demonstrar

a existência destes enquanto elementos expressivos narrativos.

O capítulo 2 da pesquisa traz a abordagem do cinema enquanto arte eminentemente narrativa.

Considera os elementos que o estruturam enquanto um discurso fechado, capaz de contar

histórias e exemplifica os seus códigos específicos e não específicos responsáveis por

concretizarem a ficção. É apresentado o modelo de análise narrativa da Jornada do Herói e as

doze etapas que, segundo Vogler (2006), são tradicionalmente percorridas pelo personagem

principal na maior parte das histórias, desde o início na aventura até seu ponto de chegada.

Além deste, são consideradas as abordagens teóricas de Aumont, Vernet (2011) e Martin

(2009).

O capítulo 3 tem como foco o personagem enquanto elemento representativo das artes em

geral. São abordados conceitos envolvendo o personagem, sua forma de caracterização e a

relação com o homem real, com referências teóricas de Brait (2010), Pallottini (1989) e

Rosenfeld (2009), bem como os modelos de classificação, com ênfase nos oito arquétipos

descritos por Vogler (2006).

No capítulo 4 apresentam-se inicialmente os dois objetos de estudo, as produções Scarface - A

vergonha de uma nação e Scarface e características principais de seus diretores, bem como a

estrutura metodológica seguida para condução da pesquisa. Em seguida, é realizada a análise

detalhada dos filmes, com foco nos protagonistas, a partir do modelo narrativo da Jornada do

Herói e de seus arquétipos.

No capítulo final serão apresentadas as conclusões da análise narrativa, com uma abordagemcomparativa das obras em termos de construção do personagem, suas semelhanças e

diferenças.

Assim, a pesquisa busca entender o filme de forma mais ampla enquanto linguagem narrativa,

e em termos comparativos permite destacar questões de evolução do gênero e de variedade de

construção de uma obra cinematográfica. Também possibilita avaliar a aplicabilidade de um

modelo que pretende ser uma espécie de guia prático para a análise narrativa, bem como

enxergar a relação do personagem com o homem comum e de que forma o gângster na ficção

viabiliza realidades possíveis e até mesmo desejáveis no cotidiano (MORIN, 2005).

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2 A NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA

O cinema define-se como arte essencialmente narrativa, pois, detentor de uma linguagem

própria e de uma série de procedimentos expressivos, com códigos específicos e não

específicos, é capaz de contar histórias e veicular ideias (MARTIN, 2009).

Assim como qualquer objeto transmite para quem o vê um conjunto de valores, representa

algo e possui um discurso embutido em si, o cinema estabelece relações de sequência, tempo

e causalidade a partir de elementos representativos do real, sejam personagens, diálogos,

cenários e sons (VERNET, 1995). Desta forma, qualquer objeto fílmico torna-se narrativo e

ficcional ao transmitir mensagem e ser figuração de uma realidade. Portanto, todo filme é umaficção. Não é real, é um recorte do real estabelecido a partir de elementos representativos. “O

filme de ficção é, portanto, duas vezes irreal: irreal pelo que representa (a ficção) e pelo modo

como representa (imagens de objetos ou atores)” (VERNET, 1995, p.100).

Ainda para Vernet (1995), é possível esquematizar uma narrativa, a partir de sua análise

estrutural, em uma série de transformações que se encadeiam por meio de etapas, a saber: erro

a cometer – erro cometido – fato a punir – processo punitivo – fato punido – benefíciorealizado. Assim, o cinema, como arte da imagem em movimento, estabelece a ficção em

termos de tempo e espaço, e sempre a partir de uma determinada estrutura narrativa.

2.1 O cinema como arte narrativa

A narrativa cinematográfica ou fílmica compreende a forma de se contar uma história a partir

dos elementos ou objetos fílmicos, como personagens, planos, cenários, figurino, trilhasonora, diálogos, montagem e efeitos visuais. Apresenta-se enquanto discurso fechado com

um enunciador (aquele que conta) e um espectador (aquele que recebe o discurso).

Já a narração é o ato de narrar, sendo o narrador o próprio diretor, aquele que cria a narrativa a

partir dos elementos fílmicos que julga adequados. Mas como se torna limitado conceber

apenas um realizador para a obra fílmica, Vernet (1995) utiliza o conceito de instância

narrativa, sendo esta a equipe responsável por elaborar as escolhas para a conduta narrativa,

por trabalhar os elementos expressivos e definir os parâmetros de produção da narrativa

fílmica. Com o uso da câmera, o narrador faz o relato do personagem. Registra, define focos,

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possível de ser detectado na estrutura de qualquer história, constitui um modelo analítico

conhecido como a Jornada do Herói.

A Jornada do Herói apresenta-se como uma espécie de guia prático para a análise narrativa.

Um modelo, dentre os demais existentes, que define situações e personagens típicos, os quais

são entendidos, respectivamente, como os estágios e arquétipos da Jornada do Herói1.

Tendo como base a obra de Joseph Campbell2, Vogler cita o estudo sobre os mitos do herói e

“a descoberta de que todos eles, basicamente, constituem uma mesma história, contada e

recontada infinitas vezes, em infinitas repetições” (VOGLER, 2006, p.32). O Herói é um dos

oito arquétipos definidos por Vogler, aquele que é o protagonista da história e que sempreempreende uma jornada. A jornada, comumente representada por um percurso físico, de

aventuras, pode ser também um caminho para dentro da própria mente do herói ou para um

universo de relações interpessoais.

Ainda para Vogler (2006), o paralelo dos mitos e da Jornada do Herói considera a definição

de arquétipos do psicólogo Carl Jung, quando este considerou personagens e energias

repetidas continuamente tanto no inconsciente das pessoas, através dos sonhos, quanto nasestruturas míticas das mais diversas culturas.

No modelo proposto por Vogler, a Jornada do Herói consiste-se de 12 etapas. Estas podem ser

entendidas como estágios narrativos que dividem a história em três atos:

Primeiro ato

1 – O Mundo Comum;

2 – Chamado à Aventura;3 – Recusa do Chamado;

4 – Encontro com o Mentor;

5 – Travessia do Primeiro Limiar;

Segundo ato

6 – Testes, Aliados, Inimigos;

7 – Aproximação da Caverna Oculta;

8 – Provação;

1 O conceito de arquétipos e sua classificação serão retomados com detalhes no item 3.2.2 CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 1995.

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9 – Recompensa;

Terceiro ato

10 – Caminho de Volta;

11 – Ressurreição;

12 – Retorno com o Elixir.

De acordo com Vogler (2006), os 12 estágios apresentados, assim como os demais termos,

ideias e arquétipos da Jornada do Herói, devem ser compreendidos apenas como um molde

para o acompanhamento ou criação de uma história e não uma estrutura rígida, única. Assim,

qualquer elemento presente na Jornada pode surgir em qualquer ponto da narrativa. A

tendência é que sempre se apresentem os 12 estágios, “mas as unidades podem se arrumar empraticamente qualquer ordem, para servir às necessidades específicas da história” (VOGLER,

2006, p. 229).

 2.2.1   Primeiro Ato

O Mundo Comum

O Mundo Comum refere-se ao mundo cotidiano, o lugar no qual o herói se encontra no inícioda história. É a base, a referência, o contexto do herói. É do Mundo Comum que o herói irá

sair para empreender sua jornada em direção ao Mundo Especial. Mundo Comum e Mundo

Especial devem, portanto, ser diferentes, contrastantes. Um é o regular, o início, a referência.

O outro é a novidade, o estranhamento, o local para o qual se destina.

Uma vez que é do Mundo Comum que se parte para a jornada, é frequente que as histórias

sejam iniciadas com a apresentação do herói e seu mundo cotidiano. Elementos como o título,a imagem de abertura ou os prólogos de um filme, por exemplo, já possuem a função de

sugerir ou fornecer informações sobre o contexto da trama.

Segundo Vogler (2006), a abertura das narrativas tende a conter certa carga, dar o tom da

história, sugerir sua questão dramática no que está em jogo para o herói. É a intriga de

predestinação a que se refere Vernet (1995). Neste sentido é usual que a apresentação do

Mundo Comum já tenha indícios do que virá a ser o Mundo Especial, com pistas de “batalhas

e dilemas morais que virão pela frente” (VOGLER, 2006, p.96).

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O estágio do Mundo Comum corresponde à primeira ação do herói, a forma como ele é

apresentado. Essa primeira aparição contém informações importantes sobre o personagem,

seu comportamento, caracterização, contexto, força, desejos, carências e fraquezas. Aspectos

que serão mais bem detectados ao longo da narrativa. Pode-se conhecer muito do herói desde

então, a menos que a proposta narrativa seja de mascarar sua real atitude desde o estágio

inicial.

É também na fase do Mundo Comum que o narrador pode lidar com a história pregressa e sua

exposição. História pregressa é o conjunto de todas as informações importantes sobre o

passado e os antecedentes dos personagens, antes mesmo do Mundo Comum. A forma como

essa história pregressa apresenta-se ao longo da narrativa compreende a arte da exposição(VOGLER, 2006).

Chamado à Aventura

Uma vez apresentado em seu Mundo Comum, o herói recebe um impulso para empreender

sua jornada em busca do Mundo Especial. De acordo com Vogler (2006), o Chamado à

Aventura representa algum evento capaz de dar partida à história e estabelecer, assim, o

objetivo do jogo. Esse evento pode ser um acontecimento externo ou um convite de algummensageiro incitando à ação. Pode ser fruto do próprio inconsciente do herói, como um

chamado de que “chegou a hora de mudar” (VOGLER, 2006, p. 109) ou resultado da soma de

acasos e coincidências que, no conjunto, atentam o herói a tomar uma nova atitude.

O Chamado à Mudança impulsiona o herói a direcionar-se ao desconhecido, ao estranho. O

movimento do personagem pode responder a uma perda, à tentação, ao gosto pelo desafio, a

um dilema, ou mesmo à falta de opções diante de determinada mensagem. Assim comoimpulsos à aventura e à mudança, os Chamados também podem ser negativos, como o alerta

diante de algum infortúnio ou tragédia que o herói deverá enfrentar.

Recusa do Chamado

Uma vez recebido o chamado, o herói deve posicionar-se diante dele: recusá-lo ou aceitá-lo e

seguir adiante. O terceiro estágio da jornada é um período de hesitação e recusa, “uma pausa

do Herói para medir as consequências do engajamento ou não na aventura” (VOGLER, 2006,

p. 115). Neste momento de uma relativa pausa, o personagem deve refletir sobre sua busca e

desejos e, se necessários, redefini-los.

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Face ao chamado à mudança do Mundo Comum para o Mundo Especial, a tendência inicial é

de que os heróis relutem, até, finalmente, decidirem-se pelo engajamento na aventura. O

tempo de relutância diante do chamado pode variar, assim como os motivos de sua superação.

Segundo Vogler (2006), a recusa pode findar por alguma forte motivação, como a morte ou

risco de perda de familiar ou companheiro, pelo simples desejo de arriscar-se em uma

aventura ou pela noção de honra.

Pode haver, nesse estágio, chamados conflitantes à aventura, e caberá ao herói arriscar-se em

apenas um deles. Também, diante de um chamado negativo, pode o herói recusar-se

sabiamente, para em momento posterior dar continuidade à jornada.

Diferentemente dos heróis que demonstram receio diante do chamado, existem os

personagens que aceitam essa mudança de forma imediata, lançando-se à aventura sem

resistência, ou mesmo buscando por ela de forma voluntária. Ainda assim, os riscos da

 jornada ao desconhecido permanecem.

Encontro com o MentorPara que o herói seja capaz de decidir-se ou não em avançar na aventura, torna-se de grande

importância a figura do Mentor. Este arquétipo representa o sábio, o experiente, aquele que

proverá ao herói a proteção, a orientação, a experimentação, o treinamento e os dons ou

presentes mágicos que o acompanharão ao longo da jornada (VOGLER, 2006). O encontro do

herói com o Mentor constitui a quarta etapa da estrutura narrativa. É o momento em que o

personagem recebe deste os direcionamentos necessários e será inflamado de coragem para

seguir adiante, rumo ao desconhecido.

Por mais que algumas narrativas não apresentem em sua estrutura a figura do Mentor

tradicional, de uma forma ou outra o herói sempre se relaciona, em algum momento, com uma

fonte capaz de transmitir-lhe conhecimento ou, pelo menos, impulsioná-lo diante da indecisão

sobre que caminho seguir. Como cita Vogler (2006), pode ser a experiência dos que já

partiram antes dele, ou mesmo um encontro com seu íntimo, capaz de fornecer aprendizado

de acontecimentos prévios.

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Os mentores, espécies de conselheiros na jornada, têm participação ativa na mente do herói e,

portanto, são capazes de redirecionar vontades. Porém, esse mesmo personagem capaz de

encarnar o mentor pode ainda estar representando uma máscara e levar o herói por um

caminho de grandes perigos e riscos. O falso mentor pode trair o herói ou, por exemplo,

buscar o envolvimento de seu “pupilo” em uma vida de crimes, como uma espécie de

mandante das más condutas. Neste caso, ao invés de auxiliar o herói em direção ao caminho

do bem, o mentor pode infiltrá-lo em uma teia de maldades, crimes e mentiras.

Travessia do Primeiro Limiar

Finalmente, o herói depara-se com o primeiro limiar. A fronteira que deve ser cruzada para

que, de fato, tenha início a aventura. Neste momento, o herói deve ser capaz de transpor esseobstáculo, que separa Mundo Comum e Mundo Especial, entregando-se completamente à

 jornada.

Mesmo que já esteja preparado para realizar a primeira ação que o levará ao Mundo Especial,

o comum é que haja uma força (ou várias) capaz de, finalmente, levar o herói à travessia.

Diante do assassinato de alguém, de uma tragédia natural ou de uma crise de identidade, por

exemplo, o herói pode não encontrar outra saída e não ser agir: “O assassinato é o eventoexterno que empurra a história a sair do Primeiro Limiar e entrar no Mundo Especial, onde o

que está em jogo é muito mais alto” (VOGLER, 2006, p.133). Essa força, que muda a

intensidade da história, é citada por Vogler como o “ponto de virada” da estrutura

convencional narrativa (VOGLER, 2006, p.132). Após a travessia do herói, a história deixa o

primeiro ato e inicia o segundo.

Vogler (2006) revela também que, comumente, diante do primeiro limiar, existempersonagens com a função de tentar impedir o avanço do herói. São os Guardiões do Limiar,

mais um arquétipo da narrativa. Os guardiões do limiar podem representar uma grande

ameaça para o herói, mas, outras vezes, podem ser facilmente transpostos e ainda

transformarem-se em Aliados.

 2.2.2 Segundo Ato

Testes, Aliados, Inimigos

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Uma vez no Mundo Especial, o herói está diante da ação narrativa, propriamente dita. É nesse

novo ambiente que ele enfrentará os riscos, as provações, se relacionará com os demais

personagens, acumulará informação e conhecimento característicos da jornada. Esse estágio

introduz o segundo ato da narrativa e tende a mostrar um Mundo Especial nitidamente distinto

do Mundo Comum.

É também nessa etapa, já no Mundo Especial, que costuma aparecer ou se desenvolver na

narrativa o elemento que Bordwell3 (2006, citado por CUNHA, 2011) cita como plot duplo. O

 plot duplo, ou estrutura causal dupla, diz respeito à situação do herói diante de dois conflitos

de natureza distintas que, frequentemente, caminham de maneira interdependente. Um deles

liga-se a questões afetivas, quase sempre um romance de natureza heterossexual, e o outro seencontra em uma esfera mais pragmática, como uma aventura, mistério, perigo, crime, guerra,

trabalho, doença, etc (CUNHA, 2011). Para Bordwell4 (2006, citado por CUNHA, 2011,

p.102), “O plot romântico pode ser dominante ou subordinado, e os objetivos e obstáculos de

cada linha narrativa podem se coordenar de diversas maneiras”. Como conflitos distintos,

porém ligados, Cunha (2011) explica que eles podem se resolver em momentos diferentes da

narrativa, mas, com certa frequência, tendem a influenciar um ao outro em um clímax

simultâneo, quando encontram uma resolução.

Para se adaptar à nova realidade do mundo estranho, o herói deverá passar pelos testes, a

função mais importante desse período, segundo Vogler (2006). Fazem parte dos testes as

provas e desafios. Ao enfrentá-los, o herói irá se fortalecer para as etapas posteriores da

 jornada, as quais serão ainda mais graves e ameaçadoras. É frequente também que, diante dos

testes, o herói tenho o primeiro contato com as forças da Sombra, o arquétipo do vilão, do

inimigo.

É ainda nessa etapa que o herói terá contato com os Aliados e Inimigos. Após um período no

Mundo Especial, o herói tende a reconhecer os que estão a sua volta e saber qual papel irão

desempenhar em sua jornada. Mas sempre há o risco de que o personagem seja enganado por

diferentes máscaras. Esses obstáculos no caminho do herói, bem como as revelações, pistas

3 BORDWELL, David. The way Hollywood tells it – Story and Style in Modern Movies. Los Angeles: Universityof California Press, 2006.4 BORDWELL, David. The way Hollywood tells it – Story and Style in Modern Movies. Los Angeles:Universityof California Press, 2006.

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falsas e suspeições diante do Mundo Especial, tendem a dar a sensação de atraso na resolução

da história, elementos que caracterizam a frase hermenêutica citada por Vernet (1995).

A partir dos aliados e companheiros é possível se formar equipes em busca de objetivos

semelhantes. Ao mesmo tempo, surgem também os inimigos, seja na figura da Sombra ou

daqueles que o servem. O rival, uma espécie especial de inimigo, representa o principal

competidor do herói, disputando com ele as questões de amor, esporte, negócios ou qualquer

outro empreendimento (VOGLER, 2006).

O herói depara-se ainda com as novas regras que orientam o Mundo Especial e deve se

adaptar a elas. A forma e rapidez com que isso ocorrerá podem também ser entendidas comooutro teste na jornada.

O autor aponta que na fase dos Testes, Aliados e Inimigos é comum que o herói seja

apresentado em locais de reunião social, como saloons, bares e restaurantes: “lugares naturais

para quem quer se recuperar, restaurar as forças, ouvir fofocas, fazer amigos, encarar

inimigos” (VOGLER, 2006, p. 143). Esses cenários assumem, portanto, importante função na

narrativa ao ser uma espécie de amostra do Mundo Especial, um lugar por onde váriospassam, inclusive o herói e seus inimigos, e onde se podem vivenciar conflitos, paqueras e

intrigas.

Aproximação da Caverna Oculta

À medida que a jornada avança, aproxima-se o momento em que o herói deverá enfrentar o

ponto alto da aventura. O estágio da aproximação reserva ao herói momentos de reflexão, de

refazimento de planos, de dedicação ao aliado e também ao inimigo. O personagem prepara-se para o momento da provação. Na beira do desafio, por exemplo, pode ser a última

oportunidade para uma situação cômica, “porque as coisas estão ficando tremendamente

sérias” (VOGLER, 2006, p.155).

Nesse estágio, o herói costuma enfrentar recaídas, momentos definidos por Vogler (2006)

como complicações dramáticas. Diante delas, os heróis tendem a se sentir desencorajados e

confusos. São novos testes ainda mais próximos do grande desafio. As máscaras de alguns

arquétipos podem também ser modificadas nesse ponto. Mentores podem se revelar Sombras,

Inimigos podem passar a ser Aliados e assumir novas funções na narrativa que começa a

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ensejar novos rumos. Por mais que o herói tente enveredar por outros caminhos, chega o

momento em que ele deverá enfrentar a grande provação. Eis a fronteira da Caverna Oculta.

Provação

Esse é o momento do enfrentamento, de encarar o adversário em um jogo de altas proporções,

com o risco de vida ou morte. Após toda uma longa fase de testes e preparação, característica

do segundo ato, agora o herói deve enfrentar o seu grande desafio. Pode ser a batalha diante

do maior inimigo, o confronto com uma força oposta ou mesmo com uma poderosa

manifestação da natureza (VOGLER, 2006).

A provação deve ser compreendida como a crise da narrativa, não o clímax. Isso porque,segundo Vogler, apesar de ser o ponto central do segundo ato, difere-se do auge presente no

terceiro ato, responsável pelo “coroamento de toda a história” (VOGLER, 2006, p.158). Por

sua vez, para que alcance o momento do clímax, é comum que o herói passe pela provação e,

modificado, avance na jornada com o firme sentimento de sobrevivência.

Passar pela provação é como uma experiência de morte e renascimento que separa o antes e

depois do herói, a primeira e a segunda metade da história. Diante da caverna oculta, o heróiparece de fato morrer e perder-se, e o espectador é conduzido por essa ameaça e pela incerteza

do que irá suceder. Com o reerguimento do herói, a fase da provação transforma-se em

euforia, e a emoção, tanto do personagem quanto do público, assume novas proporções

(VOGLER, 2006).

Considerando o arquétipo da Sombra como uma das figuras mais comuns a aparecer no

instante da provação, é possível que após uma dura batalha o vilão seja morto pelo herói. Masé também provável que a Sombra seja apenas atingida ou que o seja algum de seus

seguidores. A sobrevivência do inimigo representa, assim, indícios do que aguardará o herói

no clímax do terceiro ato.

Recompensa

Na fase da recompensa, o herói colhe as consequências por ter enfrentado e sobrevivido à

provação. Como exemplificado por Vogler (2006), a recompensa pode assumir diversas

características e propósitos. Ela pode ser, por exemplo, o reconhecimento à coragem do herói,

a celebração pela vida que ressurge, a reconciliação com o sexo oposto, uma nova visão do

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Mundo Especial, a posse de alguma riqueza ou objeto especial que traga força e poderes,

dentre outros.

Após a tensão do estágio anterior, é comum que nesse momento da narrativa o herói possa

desfrutar de diferentes emoções, como o amor e o humor, e ter posse do que veio buscar na

 jornada: “Foi feita uma transação – o herói correu risco de vida ou sacrificou sua vida, e agora

ganha algo em troca” (VOGLER, 2006, p. 179).

Ganha algo, ou rouba. O prêmio pela sobrevivência pode ter sido dado a ele, mas pode, ainda,

ter sido tomado pelo próprio herói. Neste caso, surge o risco do personagem ter que pagar um

alto preço pelo que Vogler (2006) cita como o “roubo do elixir”. Uma espécie de tesourobastante valioso e capaz de fazer muito bem ao herói, mas que, por ter sido roubado,

representará um risco mais adiante.

O momento de desfrutar os efeitos da vitória sobre a morte é também o de transformação do

herói. O personagem tende a surgir como uma nova criatura após a provação, com melhor

percepção de mundo e entendimento das pessoas. Ocorre também o que o autor cita como

auto-identificação (VOGLER, 2006), quando os heróis finalmente percebem quem realmentesão. Por outro lado, podem ocorrer as distorções de percepção. Quando o prêmio da

sobrevivência, ao invés de auxiliar na compreensão do herói, passa a cegá-lo, deixando-o

superestimado.

 2.2.3 Terceiro Ato

Caminho de Volta A fase do Caminho de Volta é o início do terceiro e último ato da estrutura narrativa. Diante

da recompensa pelo enfrentamento da provação, os heróis devem se decidir por retornar ao

Mundo Comum ou permanecer no Mundo Especial. Segundo Vogler (2006), diante de uma

fase de certo conforto, e a fim de que a aventura persista, é comum que nesse momento, seja

devido a uma força externa ou por uma inquietação íntima, o herói tenha uma nova motivação

e tenha que atravessar um novo limiar.

Tradicionalmente, o herói percebe dilemas que não foram bem resolvidos, inimigos que não

foram totalmente derrotados e conflitos íntimos que não foram curados. É a vez do que

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Vogler (2006) chama de retaliação ou contra ataque. Essas situações provocam, por exemplo,

as ações de perseguição e ameaça do herói pelo vilão. Pode ocorrer também que o herói

encontre novos obstáculos no caminho que o façam se sentir ameaçado na aventura e

motivado a regressar para o Mundo Comum. Como destaca Vernet (1995), neste momento a

narrativa inicia seu caminho de volta, quando se deve deixar a desordem e retornar ao estado

normal, de onde a história começou.

Ressurreição 

Agora o herói depara-se novamente com a provação, desta vez mais perigosa e ameaçadora.

“É uma espécie de exame final do herói, que deve ser posto à prova, ainda uma vez, para ver

se realmente aprendeu as lições da Provação” (VOGLER, 2006, p.45). O novo enfrentamentodo herói é o momento do clímax. Em uma metáfora com a ressurreição, é a oportunidade do

personagem aplicar o aprendizado recebido no Mundo Especial e “limpar-se do cheiro da

morte” (VOGLER, 2006, p. 196), deixando claro que realmente mudou.

No plano mais simples da narrativa, como cita Vogler (2006), a ressurreição pode ser,

simplesmente, o último confronto com as forças da Sombra que tende, tradicionalmente, a

culminar com a vitória do herói. Caso distinto acontece com os heróis trágicos que, apesar depoderem sobreviver na lembrança dos que ficam, morrem no derradeiro duelo. O confronto

com a morte pode ser entendido também como o momento crucial de confronto com a própria

consciência, o ponto da história em que o herói deve se decidir por seguir um ou outro

caminho. A escolha revelará, assim, os valores que agora possui o herói. As narrativas podem

ainda assumir outros tipos de clímax. Pode haver o clímax tranquilo, com o coroamento suave

de uma onda de emoção (VOGLER, 2006, p. 200) ou ocorrerem clímaces sucessivos, com a

resolução de tramas diversas em torno do herói.

Junto com o clímax, as histórias costumam provocar o sentimento de catarse, tanto no

personagem quanto no espectador. Uma espécie de liberação da emoção diante do ponto mais

alto da narrativa, tal como o riso, o choro e o alívio. Partindo do desenvolvimento gradual do

herói ao longo da jornada, desde o despertar da consciência diante do problema, passando

pelas mudanças e consequências, até a maior provação, a catarse se mostra como o clímax

mais lógico. O resultado mais provável face o que Vogler (2006) denomina como o arco do

personagem. Uma sequência de etapas graduais do caminhar do herói até a conclusão do

problema.

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Retorno com o Elixir 

Para os que sobrevivem ao clímax, a etapa final da aventura é o retorno para a ordem, para a

casa, para o Mundo Comum. O herói vitorioso regressa para o ponto de onde veio e traz

consigo o elixir, aquilo que conseguiu conquistar ao longo da jornada. O elixir pode assumir

diferentes formas: pode ser o dinheiro, fama, poder, amor, paz, felicidade, sucesso, saúde,

conhecimento, experiência (VOGLER, 2006).

A história pode dar-se como concluída de duas formas. Vogler (2006) cita o final circular e o

final aberto. A narrativa com final circular ou fechado é aquele que termina com a sensação

de completude. Partiu-se de um ponto de ordem para um de desordem e, no fim, retornou-se

ao ponto de ordem. Os fios da trama se amarram e a história se dá por concluída. Já anarrativa de final aberto não retorna ao início. O fechamento é o começo para novas perguntas

e a sensação é de que a história não alcançou o seu fim.

As fases do retorno e da recompensa tendem a se assemelhar. Ambas são fases imediatamente

posteriores ao enfrentamento da morte e possibilitam ao personagem colher as consequências

da provação. Os heróis devem receber o que lhes cabe, assim como vilão deve pagar o seu

castigo.

2.3 Os códigos específicos e não específicos da narrativa cinematográfica 

Os elementos responsáveis por criar a estrutura narrativa cinematográfica são os códigos

narrativos. Destes, os códigos específicos são aqueles exclusivos do cinema, que não são

utilizados por outras artes. Segundo Martin (2009) são, essencialmente, a montagem e os

movimentos de câmera, além de outros secundários, como jogos de cena, efeitos visuais esonoros que contribuem para o progresso da ação.

A montagem é a organização dos planos do filme (unidade básica do processo) em

determinadas condições de ordem e duração (MARTIN, 2009). Constitui o fundamento mais

específico da linguagem fílmica, o que leva Martin a afirmar que a montagem “é a condição

necessária e suficiente da instauração estética do cinema” (MARTIN, 2009, p. 160). Para

Aumont (2011), a montagem é constituída por três etapas: seleção, agrupamento e junção do

material fílmico. O material útil é escolhido, agrupado em certa ordem e unido da forma mais

exata possível, estabelecendo-se a duração entre os planos e os cortes de um para o outro. O

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valor e sentido do filme irão decorrer, assim, da relação estabelecida entre os planos, uma vez

que cada montagem pode ter a intenção de criar diferentes resultados no imaginário do

espectador.

Basicamente, são duas as funções da montagem: narrativa ou expressiva. A primeira atende

ao princípio normal de unir planos em uma relação de causa e efeito. De acordo com Martin

(2009), são quatro os tipos de montagem narrativa em referência à questão tempo, ou seja,

relacionados ao modo de sucessão dos acontecimentos na forma de se contar a história:

montagem linear é a organização dos acontecimentos em ordem lógica e cronológica, por

sucessão temporal. Já a invertida contrapõe a cronologia, com acontecidos narrados

livremente no presente, passado e futuro. A montagem alternada baseia-se na simultaneidadede duas ou mais ações que se justapõem e que, na maioria das vezes, integram-se ao final do

filme ou de determinada sequência. Por fim, a paralela registra fragmentos intercalados, não

necessariamente simultâneos, para se criar um sentido a partir desse confronto.

Por sua vez, a montagem expressiva busca produzir um efeito além da junção de dois planos.

Para Martin, “visa exprimir por si mesma, pelo choque de duas imagens, um sentimento ou

uma ideia; já não é um meio, mas um fim” (MARTIN, 2009, p. 132). Aumont (2011) citaainda a função rítmica da montagem, como aquela que estabelece ritmos mais rápidos ou

lentos ao filme, dependendo da velocidade dos cortes.

Os movimentos de câmera dizem do papel da câmera enquanto agente ativo de registro da

realidade material e de criação da realidade fílmica (MARTIN, 2009). A câmera representa o

próprio olho do espectador ao captar imagens sob diferentes condições de movimento,

enquadramento, plano e ângulo.

Quanto ao movimento, pode-se distinguir o travelling, “... um deslocamento do pé da câmera,

durante o qual o eixo de tomada permanece paralelo a uma mesma direção”; a panorâmica,

“...um giro da câmera (...) enquanto o pé permanece fixo” (AUMONT, 2011, p.39) ; ou ainda

a trajetória, como uma mistura entre o travelling e a panorâmica com ajuda de uma grua.

O enquadramento trata da composição do conteúdo da imagem e da forma como ela irá

aparecer na tela. A partir da câmera, torna-se possível selecionar os elementos visíveis ao

espectador, deixando-os em detalhes, parcialmente ou inteiramente enquadrados na tela. Para

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Martin (2009), as possibilidades de enquadramento podem exprimir diferentes pontos de vista

do personagem e também contemplar as dimensões de profundidade de campo.

Os planos definem-se pela distância entre a câmera e o objeto focalizado. Podem ser: plano

geral, plano conjunto, plano médio, plano americano, plano aproximado, primeiro plano e

close-up, em nível de maior aproximação do objeto e aumento dos detalhes. O primeiro plano,

por exemplo, pode corresponder a uma invasão do campo da consciência, a uma tensão

mental considerável ou a um pensamento obsessivo (MARTIN, 2009). Importante considerar,

diante dessa nomenclatura técnica, que as definições podem variar dependendo do local,

época ou teórico considerado.

Ainda, o movimento de câmera é capaz de criar diferentes ângulos de filmagem, com distinta

significação dramática e narrativa. O plongée corresponde ao registro do objeto de cima para

baixo e pode criar a sensação de pequenez ou rebaixamento do personagem ou elemento

representado, enquanto o contra plongée, com o registro de baixo para cima, correspondendo,

frequentemente, à sensação oposta, com as ideias de valorização, superioridade e triunfo.

Por fim, os jogos de cena e efeitos visuais e sonoros, também específicos do cinema. Elespodem ser objetivos, quando têm função apenas narrativa, de dar continuidade aos

acontecimentos, sendo, segundo Martin (2009), antes dramáticos que psicológicos. Como

exemplos, há os intertítulos e o uso das vozes em off, seja do narrador ou do próprio

personagem em primeira pessoa.

Já os procedimentos subjetivos contribuem para representar na tela o conteúdo ou estado

mental dos personagens. Podem, assim, introduzir imagens que correspondam a lembranças ealucinações, ou trabalhar a iluminação de modo a criar um efeito de perturbação psicológica.

Os códigos não específicos referem-se aos elementos materiais que contribuem para a criação

da imagem e do universo fílmico, mas são utilizados também em outras artes. São, segundo

Martin (2009), a iluminação, o vestuário, o cenário e o desempenho dos atores.

A iluminação enriquece a expressividade da imagem na tela. Ela pode ser natural, quando em

ambientes exteriores, ou artificial, quando criada para cenários internos. Como definido por

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Lindgren5 (1963, citado por MARTIN, 2009, p. 57), “a iluminação serve para definir e

modelar os contornos e planos dos objetos, para criar a impressão de profundidade espacial,

para produzir uma atmosfera emocional e mesmo certos efeitos dramáticos”.

O vestuário ou figurino, elemento também expressivo do produto fílmico, pode ser definido

como realista, quando está de acordo com a realidade histórica representada; para-realista,

quando a estilização precede ao figurino realista; e simbólico, quando não corresponde a uma

adequação histórica, buscando criar, antes de tudo, um valor simbólico (MARTIN, 2009).

O cenário compreende tanto os ambientes naturais quanto às criações humanas, podendo ser

reais ou construídos, externos ou interiores. Da mesma forma que o figurino, Martin (2009)também considera o cenário sob três condições: realista, quando expressa apenas sua própria

materialidade; impressionista, ao representar a atmosfera dramática dos personagens, sendo

geralmente baseado em paisagens naturais; e expressionista, quase sempre artificial e que

busca corresponder à esfera psicológica dos acontecimentos.

Finalmente, o desempenho dos atores é mais um dos meios de que dispõe o diretor para dar

expressividade à narrativa cinematográfica. A partir das técnicas de interpretação utilizadaspara vivenciar um personagem, o ator encarna outra realidade e integra-se à narrativa. O

personagem torna-se, assim, importante elemento expressivo fílmico, construído a partir dos

aspectos específicos de cada gênero.

5LINDGREN, Ernest. The art of film. Londres: Allen and Unwin, 1963.

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3 O GÂNGSTER COMO PERSONAGEM CINEMATOGRÁFICO 

A palavra personagem origina-se do latim  persona, o que significa máscara (AUMONT,

MARIE, 2010). Neste sentido, o personagem é a face do ator no momento da representação, o

papel que ele interpreta no mundo ficcional das artes, seja na literatura, no teatro ou no

cinema. Assim, o personagem destaca-se da pessoa do ator, sendo apenas executada por ele.

No cinema, segundo Gomes (2009), os personagens da ação encarnam-se em atores e, por

meio dos recursos narrativos, adquirem mobilidade no tempo e no espaço. A partir dos

aspectos específicos de cada gênero (drama, romance, aventura, gângster, comédia, etc.) e dos

traços de cada ator, o personagem assume aspectos físicos, psicológicos e morais, através detraje, maquiagem, atos, falas e comportamentos.

Como elemento representativo do mundo real, o personagem enfrenta conflitos íntimos e

externos, está integrado a outros em uma rede de valores diversos, toma decisões, enfrenta

riscos e, neste contexto, revela mais de si. Desta forma, por aproximar-se do homem real, o

personagem não é apenas contemplado pelo espectador no mundo ficcional, mas

compreendido e vivido em suas possibilidades.

3.1 O personagem de ficção

Foi Aristóteles, na Grécia Antiga, quem primeiro desenvolveu uma análise consistente do

conceito de personagem. Ao estudar a relação entre personagem e pessoa, e a semelhança

entre eles, desenvolveu a ideia de mimesis. O termo , traduzido muitas vezes, e erroneamente,

como simples imitação do real, não trata do personagem apenas como reflexo que faz dapessoa humana, mas como construção a partir de elementos particulares que regem um texto

(BRAIT, 2006). De acordo com Brait (2006), o personagem de ficção é, portanto, a

representação de pessoais reais, mas também a resultante de uma construção linguística a

partir de estruturas próprias de ficção.

Para Aristóteles6 (s.d. citado por BRAIT, 2006), não importa que o personagem imite o real,

mas que se construa narrativamente de forma possível, verossímil e necessária. Então, não

6 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. Lisboa, Guimarães. s.d.

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cabe à narrativa reproduzir o que existe, e sim compor as possibilidades do que poderia ser.

Segundo Aumont e Marie (2010), a verossimilhança nas artes corresponde ao que é provável

e tem aspecto de verdade aos olhos do espectador a partir das ações, personagens e

representações. Desta maneira, os personagens de ficção não são mais entendidos como

imitação do mundo exterior, mas como reflexo da forma de ser do seu criador:

O escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de engendrar suas criaturas.Quer elas sejam tiradas de sua vivência real ou imaginária, dos sonhos, dos pesadelos oudas mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode ser atingida de um

 jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e sensíveis os seus movimentos.(BRAIT, 2006, p. 52)

Seguindo a conceituação clássica de Aristóteles, Pallotini (1989) cita que o personagem éaquele que age em uma realidade construída como possível. Neste contexto, o personagem

bom é aquele que corresponde à coerência interna da narrativa, seja ele herói ou bandido,

 justiceiro ou gângster. Ele assume vida, age, tem vontades, decide. Pode ser um personagem

sujeito ou objeto a partir das funções e liberdades que assume. Para entendê-lo, é preciso

analisar sua jornada, o relacionamento com os demais, os conflitos internos e externos que

surgem em seu caminho e as soluções encontradas.

No início do séc. XX, E.M. Foster oferece uma classificação do personagem em  flat (plano)

ou round  (redondo). Personagens planos seriam aqueles com caracterização simples, sem

profundidade psicológica, passíveis de definição por poucas palavras e não sujeitos à

evolução ao longo da narrativa. Já os redondos são complexos, multidimensionais, definidos

por vários aspectos, não necessariamente semelhantes. Por isso, podem surpreender o público

em seu desenvolvimento. Essa visão do personagem enquanto plano ou redondo reforça a

ideia de que ele é resultado de uma construção narrativa e não um simples espelho do real.

Esse entendimento, segundo Brait (2006), só é radicalizado com os formalistas russos que

irão encarar a obra de ficção “como a soma de todos os recursos nela empregados, como um

sistema de signos organizados de modo a imprimir a conformação e a significação desta

obra.” (BRAIT, 2006, p.43).

Com base no modelo actancial de A.J. Greimas7 (1966, citado por VERNET, 1995, p.131)

que define os personagens a partir da função que desempenham na narrativa, os personagens

podem ser ainda: sujeito, que corresponde ao herói, aquele que busca o objeto; o objeto, que

7 GREIMAS, A.J. “Reflexions sur les modèles actantiels”, em Sémantique structurale. Larousse, 1966.

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deve ser alcançado pelo sujeito; o destinador, que apresenta a missão ao sujeito; o

destinatário, que se beneficia da ação do sujeito; o oponente, que dificulta a ação do sujeito; e

o adjuvante, que ajuda o sujeito. Cada personagem pode assumir mais de uma função,

tornando-se mais complexo.

Semelhante ao que ocorre no teatro, no cinema o personagem encarna-se na pessoa do ator e,

assim como acontece na literatura, tem mobilidade de tempo e espaço a partir dos recursos

narrativos (GOMES, 2009). Na linguagem cinematográfica, a câmera representa os olhos do

narrador e realiza a construção do personagem a partir dos aspectos característicos de cada

gênero. O personagem pode se desenvolver pelos registros de uma câmera privilegiada que

constrói pistas, estabelece descrições e diálogos (BRAIT, 2006). Ele então transita pela intrigae simboliza o mundo que deseja ser retratado pelo narrador, neste caso, em terceira pessoa.

Ainda, o narrador pode conduzir a construção do personagem como se este fosse a própria

câmera, ou seja, em primeira pessoa e com o uso da câmera subjetiva a simular os olhos do

personagem. Dentre as diversas possibilidades narrativas, pode o personagem também ser

testemunha de outro e revelar este outro, ou apresentar-se por ele mesmo.

Para Rosenfeld (2009), o personagem é quem mais torna nítida a ficção de uma obra ecristaliza seu universo imaginário:

É geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou nãofictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimode qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária (ROSENFELD, 2009, p. 23).

Esse universo é projetado em contextos objectuais puramente intencionais, compreendidos

por Rosenfeld (2009) como as situações criadas pela narrativa que se projetam como uma

espécie de quase verdade, compartilhada entre público e espectador, a partir de um elemento

de representação. Diferentemente da realidade, os contextos objectuais puramente

intencionais não alcançam a determinação completa das pessoas reais e dos objetos reais, mas

esforçam-se por ter a aparência de tais.

Portanto, seja nas telas ou no teatro, o personagem é limitadamente caracterizado e

apresentará vastas regiões indeterminadas, tanto no aspecto psíquico como moral, uma vez

que o número de definições a partir dos elementos narrativos é finito (ROSENFELD, 2009).

Por serem finitos, os elementos narrativos tendem a focalizar certos aspectos, realçar

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determinadas características que tornam os personagens mais esquemáticos, densos e

exemplares (no sentido de assumirem padrões consistentes). Essa relação leva o espectador a

não perceber as zonas indeterminadas, pois se atém aos pontos focados ou os ultrapassa e os

subentende a partir do que é apresentado.

É precisamente o modo pelo qual o autor dirige o nosso “olhar”, através de aspectosselecionados de certas situações, da aparência física e do comportamento – sintomáticos decertos estados ou processos psíquicos – ou diretamente através de aspectos da intimidadedas personagens – tudo isso de tal modo que também as zonas indeterminadas começam a“funcionar” – é precisamente através de todos esses e outros recursos que o autor torna opersonagem até certo ponto de novo inesgotável e insondável. (ROSENFELD, 2009, p.35-36).

Diante da tela, a tendência é que o espectador atenha-se ao imaginário, à condução dopersonagem. O que se tem diante dos olhos são personagens determinados, definidos pelos

contornos puramente intencionais, “vivendo situações exemplares de um modo exemplar”

(ROSENFELD, 2009, p. 45). Esse potencial das zonas indeterminadas e a seleção do esquema

narrativo pelo criador da obra tornam o personagem próximo do homem real. Como

representantes da realidade, os personagens enfrentam dilemas, relacionam-se uns com os

outros, contemplam uma rede de valores diversos (não estéticos), como religiosos, políticos e

éticos, tomam decisões, enfrentam riscos e revelam seu caráter. Desta forma, o espectador nãoapenas observa as possibilidades de ser desse homem fictício, mas também as vive, uma vez

que são tão próximas a sua (possível) realidade.

Portanto, para uma apreensão integral da obra ficcional, é necessário considerar não apenas os

valores estéticos da narrativa cinematográfica, mas também os valores não estéticos que

permeiam o personagem e os torna sensível ao espectador. Na estrutura da ficção, valores

estéticos e não estéticos se integram, sendo que aqueles tiram o peso dos valores cotidianos e

possibilita o prazer do imaginário, dando aos não estéticos uma função harmoniosa

(ROSENFELD, 2009).

3.2 Os arquétipos

Segundo Vogler (2006), todas as histórias, cinematográficas ou não, usam em suas narrativas

personagens padrão, que se definem pelas funções comuns que desempenham. A

denominação desses personagens como arquétipos parte do psicólogo suíço Carl Jung para

definir antigos padrões de personalidade compartilhados por toda a humanidade. Para Vogler,

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“o conceito de arquétipo é uma ferramenta indispensável para se compreender o propósito ou

função dos personagens em uma história” (VOGLER, 2006, p. 48). 

O autor apresenta oito tipos de personagens recorrentes nas narrativas, classificados pela

função que realizam. São tipos flexíveis, que podem se conjugar e a partir dos quais é possível

o surgimento de outros ao longo das histórias. Na verdade, como cita Vogler (2006), os

arquétipos podem ser entendidos como as partes que compõe o todo de um personagem

completo. O perfil de um personagem redondo na conceituação de E.M. Foster citado por

Brait (2006). Trataremos, a seguir, de cada um destes arquétipos:

a) HeróiO arquétipo do herói está ligado àquele personagem que realiza uma jornada partindo de um

mundo comum em direção ao desconhecido. É o sujeito central, protagonista de uma

narrativa, a pessoa mais ativa do roteiro. Ele possui qualidades com as quais o homem comum

consegue se identificar, além de ser impulsionado ao longo da jornada também por emoções

semelhantes às do mundo real. Como cita Vogler (2006), tais impulsos podem ser o desejo de

ser amado, aceito e compreendido, de ter êxito, de ser livre, de se vingar, de consertar o que

acredita estar errado, de se auto aceitar, entre outros. Como representante de realidade, o heróitende a possuir aspectos que também o mostram frágil e defectível, como todo ser humano.

Apesar de representar um arquétipo, os heróis devem evitar os rótulos e a caracterização

plana. Devem ser imprevisíveis e complexos, o que tende a torná-lo interessante para o

espectador.

O herói é aquele que mais passa por transformações ao longo da narrativa. Enfrenta

obstáculos, sente insegurança, erra, aprende, conquista sabedoria. Para Vogler (2006), um dosprincipais aspectos do herói clássico é a capacidade de se sacrificar pelos demais, muitas

vezes através da própria morte ou mesmo abrindo mão de coisas ou pessoas de grande valor

em sua vida. Inclusive, lidar com a morte é um dos conflitos tradicionalmente presentes na

 jornada do herói.

O arquétipo do herói pode ser manifestado de várias formas. Entre eles, os que querem e não

querem ser heróis; os solitários, que buscam se afastar da sociedade, e os solidários, que

orientam suas ações pelo grupo ao qual pertencem; os heróis catalisadores, que têm como

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principal função provocar a transformação no outro antes de mudar a si mesmo; e os anti-

heróis (VOGLER, 2006).

Segundo Vogler (2006), o anti-herói é um tipo especial de herói que representa um criminoso

ou vilão, avesso às regras da sociedade, mas que também cria vínculos de afinidade com o

espectador pela identificação com seu lado marginal. Os anti-heróis podem ser de dois tipos:

aquele próximo ao herói, porém marcado por traços de cinismo ou por ferida ou angústia

qualquer, e os anti-heróis ou heróis trágicos, cuja personalidade é caracterizada

principalmente pelos defeitos e pelos comportamentos repreensíveis e cujo destino tende a ser

marcado pela destruição e derrota.

b) Mentor

Arquétipo cuja principal característica é a capacidade de ajudar, ensinar e treinar o herói. O

mentor é aquele personagem que representa o desejo de ser do herói. Normalmente,

desempenham as seguintes funções narrativas na relação com o herói: ensinam; dão presentes

(positivos ou negativos), desde que merecidos; inventam; fazem descobertas e invenções;

motivam; plantam informação; iniciam o herói nos mistérios do amor e do sexo (VOGLER,

2006).

Assim como os heróis, os mentores podem assumir diferentes tipos. Como mentores dos anti-

heróis, expressam-se como anti mentores ao guiar o protagonista na direção do crime e da

destruição. Podem ser mentores caídos, uma vez que enfrentem os próprios dilemas e aflições.

Podem ser representados por diferentes personagens em uma mesma narrativa ou mesmo

manifestar-se em diferentes arquétipos, como, por exemplo, quando o herói, ou até o vilão,

assumem, momentaneamente, a máscara do mentor. Por fim, o herói pode guardar em si opróprio mentor, tendo uma sabedoria interna que o guie ao longo da aventura.

c) Guardião do Limiar

É o personagem cuja principal função é servir de obstáculo à entrada do herói em um novo

mundo, detendo o avanço do protagonista na jornada. Espécie de porteiro, guarda-costas,

sentinela que fica à porta do limiar a fim de protegê-la ou defendê-la da passagem do herói.

Como exemplifica Vogler (2006), o guardião do limiar pode ser representado pelos demônios

internos do próprio herói, responsáveis por atrasá-lo, desafiá-lo ou experimentá-lo em sua

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 jornada, tais como vícios, neuroses e medos. Diante de tal obstáculo, cabe ao herói encarar

com sabedoria a presença do guardião, seja ele externo ou interno, lidando com o arquétipo

em seu próprio favor. A resistência dos guardiões pode ser um fator que impulsione a força e

vontade do herói. Também, os seus truques, uma vez descobertos pelos heróis, podem ser

absorvidos para ajudar o protagonista na caminhada (VOGLER, 2006).

Importante notar que, na maioria das vezes, o guardião do limiar não é o vilão da história.

Quase sempre ele trabalha para o personagem das Sombras como uma espécie de mercenário

ou escravo.

d) ArautoO arquétipo do arauto é aquele responsável por fazer diferença na jornada do herói,

principalmente, através do chamado à mudança. É o arauto quem leva ao herói a mensagem

da uma nova aventura ou conflito. Daí a importância deste arquétipo ao longo de toda a

história de forma a dar-lhe andamento. O arauto pode ser representado por uma força externa

ou interna. Pode, por exemplo, ser um sonho que instigue no protagonista uma nova ideia ou

desejo. Pode ainda ser representado por um acidente natural, de grandes proporções, que

obrigue o herói a mudar o rumo de sua caminhada, como a chegada de um furacão outerremoto (VOGLER, 2006).

Como explica Vogler (2006), o arauto pode ser uma força ou pessoa negativa, positiva ou

neutra. Ele pode impulsionar o herói ao desafio sob o comando do vilão. Neste caso, o arauto

costuma usar de mentiras para enganar o herói e fazê-lo seguir por um caminho perigoso.

Como força do bem, o arauto pode impulsionar o herói em uma jornada positiva, podendo ser

representado pelo arquétipo do mentor ou do aliado.

e) Camaleão

Arquétipo cuja principal característica é a capacidade de mudar e se transformar ao longo da

história, tanto em termos físicos quanto psicológicos. Por isso mesmo, é tradicionalmente um

personagem misterioso, imprevisível, difícil de se definir. Causa dúvidas, no espectador e

também no herói, sobre sua verdadeira intenção, lealdade e sinceridade.

Pela indefinição de mostrar-se quem realmente é, tende a induzir o herói a dúvidas e a

imprimir a sensação de suspense à narrativa. Como bem define Vogler (2006), uma vez que o

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herói se depare com questionamentos do tipo: “Será que ela é fiel? Será que vai me trair? Ele

é meu amigo ou inimigo” (VOGLER, 2006, p. 80), é quase certa a presença de um camaleão

na história.

A capacidade de mudar de formas e de ideias pode estar associada a um aspecto fatal do

camaleão, por outro lado, pode apenas representar uma variedade de facetas com o objetivo

simples de intrigar o herói ou então seduzi-lo como parte de um romance.

f) Sombra

Em grande parte das histórias, o arquétipo da sombra é representado por personagens

conhecidos como vilões, inimigos ou antagonistas (VOGLER, 2006). A sombra é a projeçãodo lado obscuro e negativo da narrativa. O elemento hostil existente dentro do herói ou uma

força e pessoa externa que busca prejudicá-lo e levá-lo para o caminho do mal. A função da

sombra é criar o conflito, desafiar o herói, e assim, impulsioná-lo na narrativa. Enfrentar e

vencer o mal são etapas imprescindíveis ao crescimento do protagonista.

A sombra pode ser representada por tantos personagens quanto existam na história, em

momentos diferentes. O camaleão, o mentor e o arauto, por exemplo, podem vestir a máscarado antagonista. Ainda, a sombra pode estar no próprio herói ao representar o lado obscuro de

seu íntimo, muitas vezes de forma reprimida.

Como acontece com os demais arquétipos, a sombra não precisar ter apenas o lado negativo,

ainda que seja este o aspecto dominante. De acordo com Vogler (2006), a humanização da

sombra pode acontecer exatamente quando esta se mostra mais vulnerável, talvez

antecedendo uma espécie de redenção e conversão às forças positivas.

g) Pícaro

Arquétipo representado por personagens quem têm como marca a manifestação cômica. Na

narrativa, o pícaro é responsável por garantir um alívio cômico, especialmente em histórias

marcadas por constante tensão, drama ou violência. Costumam ser personagens independentes

e podem estar relacionados ao herói ou à sombra, serem aliados ou camaleões.

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Os pícaros, como cita Vogler (2006), gostam de causar intrigas apenas para se divertir e

costumam ser também catalisadores ao afetar a vida de outros personagens, sem

necessariamente alterar o próprio destino.

h) Aliado

O aliado, que pode ser representado por um ou mais personagens, é aquele que exerce várias

funções ao lado do herói. Na maioria das vezes, serve de companhia e o ajuda a enfrentar

batalhas e dilemas, mas pode também servir de consciência e alerta, ou mesmo representar um

alívio cômico. Como acrescenta Vogler (2006), o aliado pode ter a importante função de

humanizar o herói ao despertar novos sentimentos à história, novo elemento à sua

personalidade e ao desafiá-lo na busca por mais abertura e equilíbrio.

Muitas vezes, ao acrescentar à narrativa questões que o espectador gostaria de fazer, o aliado

assume a função de apresentar o mundo desconhecido e também explicá-lo ao público.

Assume ainda emoções de humor, medo ou ignorância, as quais não caberiam ser exercidas

pelo herói.

Por fim, o aliado não precisa, necessariamente, ser representado por uma figura humana. Elepode, por exemplo, ser uma espécie de anjo da guarda, um animal fiel, um álibi ou

mensageiro. De qualquer forma, mantém-se em sua função de auxiliar o herói na jornada.

3.3 O gângster no cinema

O personagem é representativo das artes em geral e constrói-se a partir dos aspectos

específicos de cada gênero. Segundo Aumont e Marie (2010), a palavra gênero assume, desdeo séc. XVII, o sentido de categoria de obras que possuem características comuns, tais como

enredo e estilo. Para os autores, no campo cinematográfico, o conceito está fortemente ligado

a questões econômicas e à estrutura de produção artística de um país. Também para Altman

(1999), o gênero serve importante função à economia do cinema como um todo ao definir

aspectos da produção, da tecnologia, do anseio social pela produção de mensagens e das

práticas de significação. Neste sentido, os gêneros compreendem as categorias definidas pela

indústria cinematográfica e também reconhecidas pelo público.

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O principal efeito do conceito de gênero é relacionado a questões de estilo e metáforas

compartilhadas capazes de estabelecer conexões entre variadas produções. Mas, em sentido

mais amplo, a palavra pode definir-se enquanto: a) fórmula, ao preceder, programar e

padronizar a produção da indústria do cinema; b) estrutura, como arranjo formal a partir do

qual os filmes individuais são realizados; c) marca, para catalogar as produções e direcionar a

decisão e comunicação entre exibidores e distribuidores; e d) contrato, entendido em termos

de expectativa gerada pelo filme diante de sua audiência (ALTMAN, 1999). Campos (2008)

também compartilha da ideia ao afirmar que a classificação segundo gêneros facilita o

trabalho de produtores, distribuidores e estúdios de cinema ao direcionar a estrutura de

produção e facilitar a promoção de um filme, bem como possibilita ao público antever suas

expectativas diante da tela segundo determinados preceitos.

Como explica Altman (1999), para serem reconhecidos como pertencentes a um mesmo

gênero, os filmes devem possuir tanto um tema quanto uma estrutura comuns, o que

corresponde a uma forma semelhante no tratamento do assunto. Assim, mesmo que

determinadas produções compartilhem um assunto, elas não serão percebidas como

pertencentes a uma mesma categoria caso o tema não receba forma semelhante de abordagem.

A partir disso, “filmes dentro do mesmo gênero devem, obviamente, compartilhar certosatributos básicos” (ALTMAN, 1999, p. 24). É a partir do efeito cumulativo de situação, temas

e símbolos repetidos que os filmes de gênero são estabelecidos. Segundo Altman (1999), os

filmes de gângster, por exemplo, tendem a compartilhar cenas envolvendo atitudes de

arrogância, provocação, fidelidade e destreza. Tal natureza repetitiva e acumulada, por sua

vez, tende a tornar os filmes de gênero previsíveis.

No caso do gênero baseado na figura do gângster, apesar de as narrativas com a temática docrime serem muito antigas, datadas de teatro e lendas folclóricas da Idade Média, Campos

(2008) explica que a origem da categoria no cinema parte dos romances literários populares

que, uma vez levados para as telas, agregavam uma concepção contemporânea às sucessivas

crises sociais:

Conforme os grandes centros econômicos crescem e as antigas comunidades ruraisempobrecem ou se endividam, os personagens “criminosos” são reinseridos nos contextosurbanos, seguindo as grandes migrações sociais (CAMPOS, 2008, p. 44).

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Para Bergan (2007), pode-se considerar que os filmes de gângster assumiram-se enquanto

gênero próprio na década de 1920, quando os criminosos começaram a prosperar no contexto

da Lei Seca, com a proibição da venda de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos. Na

transição dos anos de 1920 para 1930, com a introdução do som no cinema, as cenas de ação e

a dinâmica dos diálogos foram valorizadas, o que contribuiu para enriquecer a estrutura do

gênero.

Segundo Warshow8 (1948, citado por NEALE, 2005), os filmes de gângster são uma releitura

moderna das tragédias. O gângster, como um anti-herói, personifica os dilemas de uma

cultura que quer não apenas a felicidade, mas também o sucesso. No fundo, o gângster é uma

figura condenada por se sentir na obrigação constante de ser bem sucedido e se auto afirmar.

O gângster tenta se retirar da multidão e confirmar-se enquanto indivíduo. É um homem

urbano, da cidade, e em uma situação típica do gênero tende a vivenciar uma ascensão

seguida por um fracasso. O progresso e a queda repentina. Assim como citado por Warshow,

Shadoian9 (1977, citado por NEALE, 2005) defende que o gângster é uma figura urbana cuja

busca por sucesso reflete as contradições do sonho americano. Ele é um fora da lei, pertence

ao submundo, mas é também um produto da sociedade em contato e conflito com cidadãos,instituições, leis e regras.

O gênero tende, pois, a retratar a sociedade e a natureza dos indivíduos que pertencem a ela.

Não é por acaso que as mudanças de perfil dos filmes de gângsteres estão ligadas à própria

evolução da sociedade americana, desde a Depressão no início dos anos 30 até o mundo das

corporações e burocracias anônimas das décadas de 50, 60 e 70 (NEALE, 2005).

Scarface - A vergonha de uma nação, de 1932, com direção de Howard Hawks, é citado como

referência por T. Schatz, ao lado de  Little Caesar e The Public Enemy (1931) ao celebrar o

gângster enquanto herói. Para Schatz10 (1981, citado por NEALE, 2005): “Esses filmes eram

tão controversos quanto populares, e as ameaças de censura, boicote e regulamentação pública

forçaram os estúdios a reestruturar a fórmula do gângster a partir de meados dos anos 30.”

8 WARSHOW, Robert. The Immediate Experience: Movies, Comics, Theatre and Other Aspects of Popular 

Culture. New York: Atheneum, 1948. The Gangster as a Tragic Hero, pp. 127-133.9 SHADOIAN, J. Dreams and Dead Ends: The American Gangster/Crime Film. London: MIT Press, 1977.10 SCHATZ, T. Hollywood Genres: Formulas, Filmmaking and the Studio System. New York: Random House,1981. 

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(SCHATZ, 1981, p.78, tradução nossa). Com a imposição do Código de Produção nos

Estados Unidos, em 1934, a temática da criminalidade só passou a ser permitida quando

mostrada como algo errado, enquanto deveria prevalecer o cumprimento da lei. Como

exemplo, para contornar a censura, cenas de Scarface - A vergonha de uma nação tiveram que

ser cortadas e o subtítulo acrescentado (BERGAN, 2006).

Os constrangimentos sociais e políticos acabaram por dar origem a diferentes correntes dentro

do gênero, estabelecendo os subgêneros do gângster. Os mafiosos não poderiam mais ser

protagonistas, mas a temática permanecia, desta vez, com a lei sobressaindo-se perante o

crime. Diante das mudanças, surgiram estórias em que fortes policiais e homens do governo

combatiam os criminosos; a versão “Caim e Abel”, onde a figura do gângster eracontrabalanceada por um personagem virtuoso tão forte ou mais que o antagonista; os filmes

de sindicatos, com as associações criminosas nas confrarias; os caper films, onde a abordagem

do crime trazia toques de aventura e até mesmo humor, entre outros. Outra tendência do

gênero, por William Everson11 (1978, citado por NEALE, 2005), seria dos detetives heróis

que se passam por gângsteres e, infiltrados no submundo, levam à captura de criminosos. A

relação é direta com os subgêneros que trazem policiais, agentes da lei e do governo versus

bandidos e sindicatos criminosos. Para o Schatz12

(1981, citado por NEALE, 2005), porém,apenas os três filmes ( Little Caesar, The Public Enemy e Scarface - A vergonha de uma

nação) podem ser considerados detentores da fórmula clássica do gênero.

Diante das especificidades dos gêneros cinematográficos, considerar o personagem

característico do gângster é considerar aquele que, segundo Morin (2005), estabelece suas

possibilidades abaixo da lei, no cenário dos submundos e contexto de vagabundos, ladrões,

bandos, clãs e gangues. Nos filmes de gângster, para concretizar a ficção e representar o real,o personagem rouba, mata e cria sua própria condição.

Para Morin (2005), parte do fascínio exercido pelo cinema sobre o público representa a lógica

dos filmes de gângster ao advir de valores ditos negativos, tais como a força, a virilidade e a

agressividade. Isto porque o homem real é aquele que enfrenta o cotidiano sob o jugo das leis

e, para viver em contato com outros, precisa limitar instintos e desejos. Mas, no cinema, o

11 EVERSON, W. American Silent Film. New York: Oxford University Press, 1978. 12 SCHATZ, T. Hollywood Genres: Formulas, Filmmaking and the Studio System. New York: Random House,1981.

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imaginário encara o real e pretende representá-lo ou reconstruí-lo. Diante da ficção, o homem

encara a si mesmo, em um universo onde mais é possível. Assim, o personagem subverte a lei

e realiza seus desejos: “É a vida que conhece a liberdade, não a liberdade política, mas a

liberdade antropológica, na qual o homem não está mais à mercê da norma social: a lei.”

(MORIN, 2005, p. 111).

Para tratar do personagem que subverte a lei, o autor define três estruturas de liberdade: a

supraliberdade, vivida acima da lei; a liberdade extra, vivida fora da lei; e a liberdade infra,

aquela que é exercida abaixo da lei (MORIN, 2005). Reis e chefes desfrutam a

supraliberdade, pelas posições privilegiadas que os tornam menos passíveis de

constrangimentos perante a lei. A liberdade extra é exercida em outro mundo ou outro tempoonde as normas sociais não existem, mas podem vir a existir. Já a liberdade dos submundos,

vivida abaixo da lei, é aquela que representa o contexto dos vagabundos, ladrões e gângsteres.

Diante dos personagens abaixo da lei, o homem real observa o seu mundo desejado, permite a

si outra realidade. Projeta-se nas aventuras, no que é proibido e vivencia, diante da tela, o que

lhe é privado no cotidiano. A vida do gângster é a projeção de uma parte do que o homem

comum também poderia ser, mas não o é devido à lei. Também, a figura do submundo fascinaao responder a estruturas afetivas básicas do homem: “a gang baseia-se na participação

comunitária do grupo, na solidariedade coletiva, na fidelidade pessoal, na agressividade em

relação a tudo que é estrangeiro, na vindita...” (MORIN, 2005, p. 112). O crime, a tragédia e a

violência constituem esse mundo escuro na cultura de massa, mas ainda assim, desejado.

No cenário do submundo, o homem experimenta a vingança e a violência, e através delas

também experimenta mais de perto as condições da morte, o que lhe permite combater partedesta insegurança camuflada na vida real. Em relação aos seus instintos e desejos mais

guardados, a vivência ilícita do personagem no cinema possibilita ao espírito humano não

apenas libertar-se, mas também descobrir-se.

A este entendimento relaciona-se a definição de Altman (1999) acerca do papel funcional do

gênero diante da sociedade. Para o autor, enquanto produtores e exibidores percebem o filme

de gênero como produto:

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Os críticos, cada vez mais, reconhecem seu papel em um sistema cultural complexo quepermite aos espectadores considerar e resolver contradições (embora factíveis) que não sãocompletamente compreendidas a partir da sociedade na qual ele vive. (ALTMAN, 1999, p.26, tradução nossa).

Segundo Morin, o universo do crime revela ao homem seus sonhos menos conscientes: “Os

grandes criminosos são, portanto, literalmente, os bodes expiatórios da coletividade”

(MORIN, 2005, p. 115). “Consumidos” de forma mais intensa a partir da tela do cinema, com

destaque para os filmes de gângster, estes personagens criam mais identificação com o

homem comum do que o fazem os criminosos e mortos da vida comum, exibidos

intensamente pelo sensacionalismo e, assim, cada vez mais banalizados.

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4 AS FACES DE SCARFACE

Este capítulo apresenta os dois filmes que são objeto de estudo da pesquisa, bem como a

estrutura metodológica que será seguida para o seu desenvolvimento. Em seguida, são

realizadas as análises das duas obras em questão, de maneira isolada, primeiramente levando-

se em consideração os estágios narrativos e, por fim, a identificação dos arquétipos conforme

definidos por Vogler (2006).

4.1 A produção Scarface em dois tempos: 1932 e 1983

Scarface - A vergonha de uma nação é uma produção norte americana de 1932, com direçãode Howard Hawks e roteiro de Ben Hecht, baseado no romance de Armitage Trail. A obra, em

preto e branco e com 93 minutos de projeção, é considerada referência da linha clássica do

gênero gângster. Para T. Schatz13 (1981, citado por NEALE, 2005), a história celebra o

gângster enquanto herói e foi tão popular quanto controversa na época de seu lançamento. À

frente de outros clássicos como The Public Enemy e Little Caesar , o filme é considerado, de

acordo com o site oficial do American Film Institute (AFI’s 10 TOP 10), o 6º colocado entre

as dez maiores produções do gênero.

O filme inspira-se na vida do mafioso ítalo-americano Al Capone e tem no protagonista Tony

Camonte (Paul Muni) a figura do gângster extremamente violento que constrói sua fortuna na

Chicago de 1920. O contexto é o da Lei Seca, período em que o governo estadunidense

proibiu a fabricação, transporte, venda e consumo de bebidas alcóolicas. Com o banimento,

negociantes clandestinos passaram a controlar o comércio ilegal do produto e lucrar quantias

cada vez maiores, o que lhes garantiu poder não apenas econômico, mas grande influênciasobre a sociedade.

Em Scarface - A vergonha de uma nação, acompanhamos a trajetória de Camonte no caminho

do crime desde o momento em que ele assassina o próprio chefe, o mafioso Big Louis

Costillo (Harry Vejar), a mando de Johnny Lovo (Osgood Perkins), criminoso rival que

disputava o comando do negócio ilegal de bebidas no Sul de Chicago. Como parte da gangue

de Lovo, Tony Camonte assume novas responsabilidades e, ao lado do amigo Guido Rinaldo

13 SCHATZ, T. Hollywood Genres: Formulas, Filmmaking and the Studio System. New York: Random House,1981.

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(George Raft), passa a agir através de intimidações e brutalidade para aumentar o controle dos

negócios do grupo na cidade.

Rapidamente, o ambicioso e destemido Tony Camonte passa a tomar as próprias decisões e

espalhar a violência por todos os lugares até, finalmente, se tornar o grande líder da máfia de

bebidas na cidade de Chicago. Procurado pela Polícia, hostilizado pela imprensa

sensacionalista, odiado pelos rivais e malquisto pela própria família, Camonte é o retrato do

gângster que procura conquistar tudo aquilo o que deseja, custe o que custar.

Segundo informações do site Internet Movie Database (IMDb), Howard Hawks, o diretor de

Scarface – A vergonha de uma nação, possui uma carreira marcada pela direção de 47 filmese produção de outros 22, além de ter sido o responsável pela história e roteiro de mais de 20

longas. Como gêneros principais estão a comédia, com filmes como Levada da Breca (1938)

e Os homens preferem as loiras (1953), e a ação, onde se enquadram Scarface e demais

produções de sucesso como Paraíso Infernal (1939) e Onde começa o inferno (1959).

Enquanto nas comédias de Hawks as histórias tendem a focar personagens femininas, bem

como questões da sociedade e aspectos morais, os filmes de ação abordam frequentemente

profissionais masculinos, inseridos em um sistema relativamente fechado no qual as mulheressão marginalizadas.

Além do gosto por retratar os relacionamentos humanos, os personagens de Hawks

tradicionalmente envolvem-se em seu trabalho com o máximo de seriedade e, ainda que

retratem estranhos ou solitários, têm chances de triunfar na vida através da lealdade a seus

códigos pessoais e profissionais. Ademais, é possível caracterizar o trabalho do cineasta norte

americano pelo traço de versatilidade e espontaneidade das narrativas, o que pode serdemonstrado com a presença de diálogos justapostos e o improviso conferido na condução de

seus atores.

Por sua vez, a produção Scarface, de 1983, com direção de Brian de Palma e roteiro adaptado

de Oliver Stone, retoma o original de Howard Hawks com a ascensão e queda de um gângster

no cenário moderno, mantendo-se a linha clássica do gênero e o retrato do típico herói trágico.

Em termos de narrativa, a produção configura-se um remake de Scarface - A vergonha de

uma nação. Uma espécie de reformulação declarada da obra original (pese a conservação do

título) com finalidades de interpretação, conforme definido por Eco (1989). Para o autor, o

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remake, um dos exemplos de reformulação de uma obra de sucesso conhecida como decalque,

é uma forma explícita de releitura, realizada com o conhecimento do público.

Com aproximadamente três horas de duração, Scarface traz a história de Tony Montana,

interpretado por Al Pacino. Montana é um ex-presidiário cubano enviado pelo regime de Fidel

Castro aos Estados Unidos durante a Guerra Fria, período no qual os dois países enfrentavam

uma intensa disputa ideológica dada a divisão do mundo entre bloco capitalista e comunista.

A contextualização política é retratada no filme através de cenas reais e intertítulos exibidos

logo no início da narrativa, diferentemente do original de 1932.

Em Scarface, o tráfico de bebidas é substituído pelo intenso tráfico de drogas e a Chicago dadécada de 1920 dá lugar à Miami dos anos 1980. A violência extrema e o cenário permeado

pela corrupção dos mais diversos setores da sociedade permanecem. Tony Montana chega ao

território estadunidense ao lado do amigo Manny Ribera (Steven Bauer), com quem

enfrentará os primeiros obstáculos para ser colocado em liberdade e, logo após, vislumbrará

as primeiras chances de se infiltrar no mundo do crime e das drogas.

Apresentado ao poderoso Frank Lopez (Robert Loggia) após cumprir uma negociaçãoperigosa com traficantes colombianos, Montana e Ribera inserem-se totalmente no ramo do

tráfico. Em pouco tempo e enfrentando ameaças constantes, Montana assume o comando dos

negócios, quando começa então a construir o próprio império. Diante de inimigos poderosos,

bem como de conflitos íntimos e familiares, a trajetória do gângster cubano será marcada pela

ambição e destemor, apogeu e fracasso.

Sobre o trabalho do diretor norte americano Brian de Palma é possível considerar Scarface,segundo Schneider (2008), uma de suas principais obras, “um tratado sobre a fragilidade das

condições da masculinidade e da política do poder” (SCHNEIDER, 2008, p. 700). Além do

gângster, outros gêneros recorrentes na carreira do cineasta são o suspense e a ação. Foi o

suspense de Brian de Palma, marcado por traços das obras de Alfred Hitchcock, como o uso

de voyeurs, janelas e perfil ambíguo de um personagem, que lhe rendeu, principalmente no

início da carreira, a reputação de imitador do cineasta inglês (BERGAN, 2007). Contudo, com

a realização dos demais filmes e em gêneros distintos, marcados pela violência e movimentos

próprios, Palma passou a construir o próprio estilo.

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Em relação à análise, além da Jornada do Herói, de Vogler (2006), serão levadas em conta as

abordagens teóricas de Brait (2010), Pallottini (1989) e Rosenfeld (2009) referentes aos

elementos que constituem o personagem de ficção, bem como de Aumont, Vernet (2011) e

Martin (2009), especificamente sobre a linguagem cinematográfica e seus códigos narrativos.

A análise é pertinente ao presente estudo por considerar dados passíveis de quantificação,

verificação e problematização. Assim, a metodologia proposta torna-se capaz de descrever de

forma objetiva e sistemática o conteúdo próprio do cinema, enquanto arte narrativa, criadora

de sentido e, portanto, elemento de comunicação. Por conseguinte, o processo de inferência

garante o primordial à pesquisa. A partir dos aspectos objetivos do conteúdo, codificados e

categorizados, e com base no referencial teórico selecionado, é possível extrair oconhecimento referente ao objetivo proposto: a compreensão da construção do personagem na

estrutura narrativa dos filmes com base em modelo analítico específico.

4.3 Tony Camonte em análise

 4.3.1 Estrutura narrativa

Com base no modelo de análise narrativa proposto por Vogler (2006), é possível identificar o

Mundo Comum do protagonista Tony Camonte já a partir dos créditos iniciais de Scarface -

 A vergonha de uma nação. Em um prólogo de intertítulos, acompanhado por trilha sonora

musical instrumental, temos as indagações de um narrador que, enquanto voz da sociedade,

aparenta se indignar com a crescente atuação de quadrilhas de gângsteres na América e com a

indiferença das autoridades diante da situação: “O que será feito sobre isso?” Já nos é

adiantado o contexto do filme: uma abordagem sobre a criminalidade e a ação dos gângsteres.

Somos apresentados a Tony Camonte após a morte do gângster Louis Costillo. Em uma cena

toda filmada em plano sequência, sem cortes, Costillo é assassinado por um homem que se

mostra apenas pela sombra e se faz anunciar por um assobio. Na sequência, em uma cadeira

de barbearia, Tony Camonte é revelado em primeiro plano, o que destaca uma grande cicatriz

em formato de X na face esquerda do personagem (Fig. 1). A ligação entre a sequência do

assassinato de Costillo, a notícia do crime nos jornais e a apresentação de Tony Camonte

sugere a questão dramática inicial a envolver o personagem: estará Tony envolvido no

assassinato? Se sim, o que o teria levado a cometê-lo? Seria Tony também um gângster?

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Fazem parte do mundo comum de Tony Camonte o personagem Guido Rinaldo, que o

acompanha desde a apresentação, e o detetive Ben Guarino, que revela um tom de ameaça e

desprezo em relação ao protagonista. A exposição da história pregressa de Camonte acontece

durante sua apresentação na delegacia, para onde ele é levado por suspeita de envolvimento

na morte de Costillo: está na cidade de Chicago há 20 anos e, dentre as muitas acusações,

estão furto, assalto à mão armada, perturbação da ordem pública, formação de quadrilha e

assassinato. Sabemos também que Camonte trabalhou como guarda costas de Costillo e é

conhecido como Scarface (em inglês, cicatriz). Ainda, a acusação de violação da lei seca

garante contextualização à narrativa. Confirmamos se tratar da cidade de Chicago na década

de 1920, período em que se tornou proibida a fabricação, venda e consumo de bebidaalcoólica e quando se formaram gangues que lucravam a partir do comércio ilegal do produto.

A passividade de Tony Camonte diante das acusações, bem como seu comportamento cínico

ao lidar com os policiais, demonstram traços marcantes de sua personalidade. Como

exemplos, a ironia ao se deparar com Guarino na barbearia: “Que pressa é essa? Vou fazer

uma massagem também”, ao ser questionado sobre a possibilidade de ter matado Costillo:

“Boa piada, o velho Louis e eu éramos como unha e carne”, ou ao fazer saudações apósreceber o habeas corpus que o impede de ser detido. Tony Camonte revela-se ainda vaidoso,

como quando se arruma e se olha no espelho diante da urgência de comparecer à delegacia, e

destemido, ao enfrentar as autoridades sem demonstrar receio ou espanto. Os trejeitos físicos

são também marcantes. O protagonista usa muitas expressões faciais para se dirigir aos

outros, como piscar de olhos, mãos no queixo, gestos e acenos.

Um elemento familiar também é acrescentado ao mundo comum de Tony Camonte.Apresentam-se na narrativa a mãe e irmã do personagem em uma sequência marcada pelo

relacionamento tenso entre os membros da família. Ao demonstrar um grande ciúme da irmã,

Cesca, no momento em que a flagra com outro homem, Camonte mostra-se violento e

ameaçador: “Que se dane o que pensa, fará o que eu mandar”. Todos esses aspectos

identificados inicialmente serão reforçados e confirmados ao longo da narrativa.

Os elementos da narrativa apresentados nesse primeiro estágio da Jornada do Herói deixam

claro se tratar de uma história centrada em gângsteres cujas vidas são compartilhadas abaixo

da lei, no que Morin (2005) chama de liberdade infra. Como personagens, temos policiais,

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profissionais da imprensa, políticos, gângsteres, criminosos. Como situações, um assassinato,

ameaças, acusações e investigação. Conhecemos as referências pessoais, familiares e

“profissionais” de Tony Camonte. Apesar de ainda não estar comprovado o envolvimento do

protagonista com a morte de Louis Costillo, todos os elementos apresentados sobre o

personagem levam a crer que ele é capaz de tal ato e possui um histórico condizente com o

crime.

O Encontro com o Mentor pode ser identificado no filme logo após a apresentação do

mundo comum. Isso ocorre quando Tony Camonte e Johnny Lovo se encontram a primeira

vez. A sugestão de que o gângster Johnny Lovo atua como mentor de Camonte provém do

tom de incentivo e aconselhamento na conversa estabelecida entre os dois. Camonte recebedinheiro de Lovo pelo cumprimento de algum trabalho, o que sugere logo tratar-se do

assassinato de Louis Costillo: “Tome aqui, Tony, uma gratificação. Fez um belo trabalho.

Lembre-se, isso é só o começo. Confie em mim e faça o que eu mando.” O assassinato

 justifica-se pelo desejo de Lovo de dominar as gangues da Zona Sul, das quais Costillo era o

líder.

A princípio, Johnny Lovo mostra-se como um mentor não tradicional, aquele que, ao invés deguiar o herói no caminho do bem, o impulsiona no mundo da criminalidade. Lovo orienta

sobre como Camonte deve continuar agindo e, principalmente, como não deve agir. Em seus

direcionamentos, uma espécie de intimidação: “Cuidado, Tony, sou eu quem pensa aqui.”

Porém, a narrativa revelará a inexistência da figura do mentor. Na definição de Vogler (2006),

aquele capaz de prover ao herói os direcionamentos necessários e a coragem para seguir

adiante, rumo ao desconhecido. Percebemos que Camonte não se submeterá às orientações deninguém e desprezará os conselhos de Lovo tão logo lhe convenha. Camonte será responsável

por criar suas próprias leis, condição do gângster típico, e será insuflado de coragem a partir

de seus próprios desejos. Exemplo disso é quando Camonte, logo após sair da casa de Lovo,

responde ironicamente ao amigo Guido quando questionado sobre as orientações do “novo

chefe”: “Quem é Lovo? Nesse negócio só temos que seguir uma lei para nos mantermos

vivos: fazer primeiro, fazer nós mesmos e seguir em frente.”

Com a morte de Louis Costillo, Lovo torna-se o novo líder da gangue na Zona Sul e Tony

Camonte, seu braço direito. Diante do mundo comum, o Chamado à Aventura que servirá

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como mais um impulso para conduzir o protagonista ao mundo especial será o convite feito

por Lovo para Camonte assumir as negociações com os donos de bares da Zona Sul e também

tratar com os dissidentes do grupo. Considerando o desafio de recuperar a lealdade destes,

tornando-os clientes exclusivos das bebidas distribuídas pelo grupo de Lovo, um dos

membros da gangue questiona: “Quem se arriscará para tomar os pedidos desses locais?”, ao

que Lovo prontamente responde: “Meu amigo Tony Camonte”.

Diante do chamado, Camonte não hesita em nenhum momento, eliminando a fase narrativa

citada por Vogler (2006) como Recusa ao Chamado. O fato de agir por impulso sem medir

as consequências é, inclusive, uma das principais marcas da personalidade de Tony Camonte:

a não hesitação diante dos desafios.

Uma vez aceito o convite para o desafio, chega o momento de Camonte entregar-se

totalmente à nova fase da jornada, assumindo uma posição de maior influência e liderança.

Nessa etapa, temos a Travessia do Primeiro Limiar, a transição entre o mundo comum e o

mundo especial, o fim do primeiro ato para o início do segundo, conforme Vogler (2006). A

travessia ocorre à medida que Camonte realiza o trabalho para o qual foi demandado.

Mostrando-se ainda mais intenso, violento e destemido do que fora até esse momento dahistória, Camonte agirá rápido para concluir o trato com os comerciantes. Diante da negativa

destes em aceitar passivamente a compra das bebidas de Lovo, mais caras e vendidas em

maior quantidade, Camonte ameaça e agride ao invés de dialogar. Com a colaboração de

Guido e do ajudante Ângelo, vence toda a resistência. Quando, por exemplo, é aconselhado a

nem mesmo tentar o acordo com alguns dissidentes que se mostrariam irredutíveis, Camonte

simplesmente evita o confronto direto, optando por eliminá-los a partir de um bombardeio e

um tiroteio. Estratégia ironicamente definida pelo próprio personagem como “um trabalhoque exige método”. Todas essas cenas se passam a partir de planos muito rápidos,

enriquecidos por efeitos de som (tiros, carros e bombas) e em cenários predominantemente

noturnos e sombrios.

As ações de Camonte nesse momento da história acrescentam outro aspecto marcante a sua

personalidade: a violência e crueldade. A travessia entre os dois mundos é, portanto, também

a transição entre a personalidade mais branda e a mais sombria do gângster. O momento em

que Camonte adentra um hospital e, a sangue frio, assassina a tiros um dissidente da gangue

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de Lovo que se recuperava do recente atentado, é exemplo dessa revelação sobre quem é o

verdadeiro Tony Camonte (Fig. 2). Agora, não há dúvidas do que ele realmente é capaz.

A essas investidas do personagem no trato com comerciantes e dissidentes da Zona Sul,

seguem-se quase que instantaneamente as ações de Camonte para combater a gangue rival da

Zona Norte. Outro elemento narrativo que caracteriza a chegada de Camonte ao mundo

especial. Junto a esse acontecimento, o surgimento de dois inimigos em potencial: os

gângsteres da Zona Norte, pela ameaça de perderem o poder, e o gângster Johnny Lovo, por

comprovar a insubordinação de Camonte quanto a não se envolver com o grupo rival.

Algumas marcas técnicas e de roteiro caracterizam com ainda mais clareza a travessianarrativa entre o mundo comum e o mundo especial de Tony Camonte:

•  Montagem em plano detalhe com a passagem veloz das folhas de um calendário ao som

dos tiros dados por Camonte. Representa a passagem do tempo, o avanço de Camonte em

direção à Zona Norte e a intensificação de sua personalidade violenta e perigosa.

•  Mudança de figurino. Após a travessia, Camonte passa a se vestir de forma mais elegante,

com terno, lenço e chapéu. A melhora no vestuário representa o início da ascensão do

gângster, além de reforçar seu perfil vaidoso (Fig. 3).•  Mudança no relacionamento entre Camonte e a namorada de Johnny Lovo, Poppy. A

mulher, desde o início alvo das investidas do gângster, abandona o desprezo inicial em

relação a ele e passa a tratá-lo com mais atenção e interesse.

•  Substituição do nome de Louis Costillo pelo de Johnny Lovo na porta do clube onde se

reúne a gangue. Uma vez concluída a travessia, mudam-se os chefes. Começa o segundo ato.

Segundo Vogler (2006), o ambiente do mundo especial é apresentado na fase dos Testes,Aliados e Inimigos, quando o herói enfrenta riscos e provações, se relaciona com os demais

personagens, inclusive intensificando ou desatando laços, e acumula mais informação e

conhecimento a respeito da jornada. Após a travessia, Tony Camonte alcança o mundo

especial com mais prestígio, riqueza e poder. Compra uma casa nova, onde pela primeira vez

se depara com a inscrição “O Mundo é Seu” em um letreiro de outdoor, com a qual se fascina.

Passa a contar com a presença e os serviços de Ângelo, homem simples e analfabeto que irá

acompanhá-lo como uma espécie de secretário, além de um grupo com cerca de 10 homensque irão acompanhá-lo como verdadeiros guarda-costas. A aliança com Guido Rinaldo é

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mantida, o que se comprova com o envolvimento do amigo em ameaças e mortes realizadas a

pedido de Camonte.

Porém, como ponto alto desse estágio narrativo, conforme definido por Vogler (2006),

chegará o momento em que o herói terá um contato mais próximo com as forças inimigas e

enfrentará desafios que irão fortalecê-lo e prepará-lo para as etapas ainda mais graves e

ameaçadoras da jornada. A tentativa de assassinato de Camonte em um bar, como resposta da

gangue da Zona Norte pelo assassinato do chefe O’Hara (cometido por Guido, a mando de

Camonte), será esse primeiro grande teste. Por conseguinte, a sobrevivência de Camonte, a

descoberta da metralhadora, o massacre de gângsteres da Zona Norte no Dia de São Valentin

e o assassinato do então rival Gaffney serão outros acontecimentos que fortalecerão ogângster, mantendo-o em uma posição privilegiada no mundo especial. A própria imprensa

tentará retratá-lo como um homem carismático, sobre o qual as pessoas querem mais

informações.

Apontado por Vogler (2006) como lugar comum na fase dos Testes, Aliados e Inimigos, é

possível identificar Camonte em ambientes de reunião social, como ocorre quando o

personagem é apresentado em uma peça de teatro e uma casa de dança (Fig. 4). Na casa dedança irão se desenvolver as questões afetivas do plot  duplo (como exposto por Bordwell):

entre Camonte e Poppy, mas, principalmente, entre Camonte e Cesca. Após expressar sua

admiração por Poppy e convidá-la para dançar, mesmo estando cara a cara com Lovo,

Camonte irá se deparar com a irmã ao lado de outro homem e, mais uma vez, demonstrará

com brutalidade um ciúme doentio, o que o levará a agredi-la. Os dois dilemas afetivos se

desenvolverão de forma independente, o mesmo acontecendo com estes em relação ao plot

pragmático do conflito de gângsteres. Porém, tanto a ligação entre Poppy e Camonte, quantoentre este e Cesca, terão influência no conflito ao provocar os ciúmes de Johnny Lovo e

intensificar o dilema íntimo de Camonte, respectivamente. Ainda no campo afetivo, cabe

também destacar que, nessa fase, haverá uma segunda cena entre Cesca e Guido a sugerir

certo interesse entre ambos, ainda que de maneira velada.

A agressão física e verbal de Cesca por Camonte representa a Aproximação da Caverna

Oculta. Isso porque Camonte será mais uma vez testado em seu excessivo ciúme e sucumbirá

a ele, em uma situação de clara complicação dramática. Conforme Vogler (2006), esses

indícios de recaída e aparente abatimento do protagonista diante de um teste antecedem o

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enfrentamento de um desafio ainda maior. Assim, ao abandonar Cesca em casa, Camonte

sofrerá uma segunda tentativa de assassinato em um tiroteio. É a passagem da fase de

aproximação da crise para a Provação propriamente dita. Desta vez, em um jogo de vida ou

morte, o gângster conseguirá sobreviver por muito pouco ao fugir em seu carro blindado.

Baleado de raspão e sem ter a certeza sobre o verdadeiro culpado, Camonte se prepara para

descobrir e se vingar do inimigo: uma situação igualmente tensa que reflete o desdobramento

do ponto alto da jornada, podendo ser entendido assim como segunda etapa da crise.

Tendo Johnny Lovo como principal suspeito do atentado, Camonte e Guido planejam

desmascará-lo (Fig. 5). O momento em que os três personagens se encontram no escritório de

Lovo representa a batalha diante do inimigo, elemento característico do estágio desafiador da jornada. Apesar de Camonte estar em grande vantagem frente ao gângster, uma vez que o

pega de surpresa, estando armado e acompanhado, a sequência possui certo tom de suspense.

Em um primeiro momento, pois não é certa a participação de Lovo no atentado. Depois,

porque mesmo confirmada a culpa, não é possível prever de que forma Camonte irá agir

diante do traidor e nem como este responderá à ameaça.

O momento de crise é marcado pelo uso de closes e primeiros planos. Destacam-se asexpressões de medo crescente em Lovo, enquanto Guido, jogando sua moeda repetidas vezes

para o ar, mostra-se passivo ao lado de Camonte. O protagonista, a princípio também

controlado, torna-se gradualmente irritado ao desmascarar Lovo, chegando a agredi-lo.

Com exceção das falas descontroladas de Lovo, em uma tentativa desesperada de convencer

os dois homens de sua inocência, a sequência conta com poucos diálogos e, mais do que isso,

faz uso de silêncios estratégicos nos momentos em que aguardarmos respostas, o que tende acriar ainda mais tensão pela incerteza do que irá ocorrer. No lugar das palavras, mais uma vez

os assobios de Camonte a prever algo sombrio, da mesma forma como antes do assassinato de

Louis Costillo (Fig. 6). Finalmente, ao negar clemência a Lovo, Camonte retira-se do

ambiente, deixando apenas Guido diante do inimigo. Os sons dos disparos testemunham o

assassinato de Lovo, fora de campo. Mais um trabalho feito por Guido a mando de Tony

Camonte.

Com a morte de Lovo, Camonte avança na narrativa à fase da Recompensa. É o momento,

conforme define Vogler (2006), do personagem colher as consequências por ter enfrentado e

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sobrevivido à provação. A tensão do confronto com o oponente dá espaço à gratificação.

Camonte se unirá a Poppy e, sem as ameaças da gangue do Norte, por vez eliminada, se

tornará, oficialmente, o novo chefe da máfia de bebidas em Chicago. A nova liderança

representará uma terceira substituição do nome do líder do clube. Johnny Lovo dá lugar a

Tony Camonte. A narrativa conclui o segundo ato com o apogeu do gângster e encaminha-se

para a terceira e última fase.

Nesse momento, a história aparenta certo equilíbrio. Os inimigos de Camonte foram

derrotados e ele desfruta da posição de liderança pela qual tanto ambicionou. Assim, para que

a jornada não permaneça estagnada, torna-se necessária uma nova motivação para que o herói

avance. Após ficar fora por um mês, em viagem, o retorno de Camonte a Chicago é anunciadopor um jornalista: “O grande homem voltou da Flórida”. É nesta condição que o gângster

retorna, prestigiado e influente, ainda que naturalmente temido.

A motivação que marcará o Caminho da Volta do protagonista à aventura será a notícia dada

pela mãe de que Cesca não mora mais em casa e vive agora com outro homem. Mais uma vez

atacado pelo ciúme obsessivo, Camonte irá buscá-la de forma frenética, sem considerar os

pedidos da mãe que, desesperada, tenta impedir o filho em tal intento. Os acontecimentos quese seguem ao encontro de Camonte e Cesca serão uma escalada de pequenas crises que,

finalmente, levarão ao ponto mais crítico da narrativa.

Ao descobrir que o homem com quem vive Cesca é o então amigo Guido Rinaldo, Camonte,

tomado de revolta e sem esboçar nenhuma palavra, simplesmente o mata a tiros na frente da

irmã. Cesca, desesperada diante do marido morto, diz a Camonte que haviam se casado no dia

anterior e pretendiam fazer uma surpresa quando de seu regresso. Pela primeira vezdemonstrando-se abalado, tanto física quanto mentalmente, Camonte tenta conter a irmã

desolada, ao que é agredido com os gritos de “carniceiro, carniceiro”. O abatimento do

gângster é claro, principalmente ao sentir o desprezo e ódio da mulher que tanto ama.

Diante de tantos crimes cometidos por Camonte no submundo da máfia, o assassinato de

Guido é o que, finalmente e de forma irônica, possibilita à polícia decretar a ordem de prisão.

Ao ser acuado em sua casa juntamente com a irmã e Ângelo, Camonte deve enfrentar a etapa

da Ressurreição. A batalha final contra o inimigo que traz a provação mais perigosa e

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ameaçadora e que torna possível avaliar a transformação sofrida pelo herói ao longo da

narrativa.

Camonte enfrenta primeiro a morte de Ângelo, atingido por um disparo da polícia. Depois

recebe o último telefonema de Poppy, a quem nem mesmo é capaz de atender em meio a tanta

perturbação. Por fim, é ameaçado pela própria irmã que pretende matá-lo. Porém, sem

coragem de se manter contra o próprio irmão, Cesca acaba se aliando a Camonte ao perceber

a aproximação da polícia. Nesse momento, os dois se mostram fortalecidos e Camonte parece

recuperar a confiança e exaltação que o marcou tantas vezes. Em meio ao uso excessivo de

luzes, sombras e sons de tiros, Cesca acaba também sendo atingida fatalmente. Agora,

sozinho, Tony Camonte será o retrato inédito do medo, do desespero e da desolação. “Nãopode me deixar agora, se você se for, ficarei só”, implora o poderoso gângster à irmã

praticamente morta (Fig. 7). O  plot  afetivo com Cesca encontra seu desfecho trágico,

enquanto a ligação com Poppy se desfaz de maneira vaga.

Sem saída perante o inimigo, o clímax dramático ocorre quando Camonte, atingido por uma

bomba de gás, perde parcialmente a visão e na tentativa de fuga fica cara a cara com Guarino.

A descida de Camonte pelas escadas de sua casa, cego e sem armas, é o reflexo da decadênciado personagem: social, física e moral. Tal atitude representa o fracasso, a falta de

discernimento e a fragilidade daquele que antes estivera no topo. Acovardado, Camonte tenta

ainda uma fuga desesperada, mas acaba sendo morto. Caído sob a vala da rua escura,

assemelha-se a um rato acuado. Tal como previra Guarino ao se referir ao gângster no início

da narrativa.

Na derradeira fase do Retorno com Elixir, Camonte colhe as consequências daquilo queplantou. Como exemplo do típico anti-herói, tem em sua morte a representação do crime que

não compensa. Os fios da trama se encontram em um fim redondo. Partem da fase do Mundo

Comum de um criminoso, perpassam a ascensão do gângster e atingem a sua decadência. A

última imagem, um plano detalhe da frase “O Mundo é Seu”, presente em toda a história,

conclui, ironicamente, o destino de Tony Camonte. As autoridades podem então responder à

indagação do prólogo, mostrando cumprir seu papel ao repreender uma escória da sociedade.

Importante destacar, por fim, a simbologia da marca “X” verificada em toda a narrativa.

Identificado a partir de sombras, objetos e cruzes, o X representa a própria face da morte ao se

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associar, de uma forma ou outra, a todos aqueles que perderão a vida. Como exemplos, a

sombra do X diante de Louis Costillo antes do assassinato (fig. 8), as diversas cruzes

formadas pelas madeiras do galpão onde ocorrerá o massacre de São Valentin (fig. 9), a

grande sombra do X na parede por detrás de Gaffney antes de ele enfrentar e ser morto por

Camonte (fig. 10), e também o X como algarismo romano na porta do quarto onde se

encontram Guido e Cesca, pouco antes do casal ser descoberto pelo gângster (fig. 11). Em

Camonte, a marca da morte estará impressa desde o início: será o formato de sua própria

cicatriz como a premeditar o fim trágico.

 4.3.2 O perfil do personagem 

Como protagonista de Scarface - A vergonha de uma nação, Tony Camonte é a representação

fiel do anti-herói trágico. Avesso às regras da sociedade, o desenvolvimento de Camonte na

narrativa acontece a partir do mundo do crime. O personagem parte do Mundo Comum já

inserido no contexto da criminalidade, depois perpassa as demais etapas da história com o

fortalecimento do perfil de gângster, até alcançar o destino tradicionalmente reservado ao

arquétipo: o da destruição e derrota, conforme definido por Vogler (2006).

Como vilão, a personalidade de Camonte é marcada principalmente por defeitos: irônico,

vaidoso, destemido, violento, ameaçador e cruel. Aspectos que, ao lado do ciúme, ambição e

medo, permitem identificá-lo com os traços do homem real. Desta forma, o protagonista

assume um caráter predominantemente repreensível, mas ainda frágil e inegavelmente

humano na busca por se vingar e vencer na vida.

O personagem enfrenta obstáculos, busca soluções, sente insegurança e se fortalece, o que ofaz alcançar o fim da história diferentemente de como começou. É assim uma personalidade

redonda, complexa, multidimensional, que acumula diferentes valores ao longo da narrativa,

capaz de surpreender o público em seu desenvolvimento.

Podendo, apenas a princípio, ser entendido com um mentor, o personagem de Johnny Lovo

tende a assumir os arquétipos de arauto, camaleão e sombra. Mostra-se como arauto ao

propor desafios a Camonte que o chamarão à mudança, como o assassinato de Louis Costillo

e a negociação da venda de bebidas com os comerciantes da Zona Sul.

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Em determinados momentos, ao assumir atitudes que levantam suspeitas sobre sua

sinceridade e lealdade em relação a Camonte, Lovo adquire um perfil misterioso e

imprevisível, como nas fases da Aproximação da Caverna Oculta e Provação. Como

camaleão, a dúvida a respeito de sua verdadeira intenção é importante elemento a garantir

suspense no desenrolar da história, intrigando espectador e herói. Muitas vezes Lovo diz, mas

parece deixar no ar o que realmente deseja, como se percebe nas sequências da casa de dança

e no momento em que reclama com Camonte sobre o envolvimento do gângster com a Zona

Norte.

Finalmente descoberto em seus intentos, Johnny Lovo é também sombra. Define-se como

força contrária ao anti-herói Tony Camonte quando busca prejudicá-lo e destruí-lo. Ambosconcorrentes no mundo do crime, Lovo cria obstáculos ao crescimento do gângster em rápida

ascensão. Cabe a Lovo desafiá-lo e diminuí-lo. Como ocorre com o anti-herói trágico, a

sombra também tende a assumir aspectos do homem comum principalmente nos momentos de

vulnerabilidade. Tal fato pode se comprovar no ápice da fase da Provação quando, diante de

Camonte, Lovo amedronta-se e busca se redimir, negando e depois confessando seu lado

obscuro.

Ainda considerando o arquétipo da sombra, é possível considerar o personagem Gaffney.

Como líder da gangue rival, busca deter o avanço de Camonte e prejudicá-lo na busca de seus

objetivos. Por fim, a sombra também pode ser vista no interior do próprio herói. Neste caso, a

ambição pelo poder e riqueza e o ciúme doentio pela irmã são forças internas ao personagem

que irão prejudicá-lo, encorajando-o e impulsionando-o rumo à própria destruição.

Cesca, irmã de Camonte, representa também o arquétipo do camaleão. Inicialmente, é afigura pela qual Camonte demonstra ter mais consideração. Em um relacionamento intenso e

conflituoso, próximo a uma ligação incestuosa, Cesca é a personagem que servirá para

mostrar o lado mais frágil do gângster ao despertar ciúme e reprovação. Na fase da

Ressurreição, assume o papel de inimiga ao ameaçar o irmão de morte. Mas, nos últimos

momentos da história, a personagem define sua verdadeira intenção ao aliar-se

definitivamente a Camonte. Cesca adquire coragem similar ao gângster, reconhece seu

carinho pelo irmão e enfrenta os momentos mais críticos ao seu lado.

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Como personagens que têm a função de servir de obstáculo ao avanço do herói na jornada,

além daqueles já citados como sombra, estão o policial Guarino, os comerciantes da Zona Sul

e os dissidentes da gangue de Lovo como os guardiões do limiar. Eles são espécies de

guarda-costas que, diante de uma nova etapa na jornada, tendem a deter a travessia do herói.

Isso ocorre nas contínuas tentativas de Guarino para prender Camonte e também com os

comerciantes e dissidentes ao criar obstáculos na negociação com o gângster. No caso de

Guarino, a intenção é defender a cidade dos crimes cometidos por Camonte, com os demais, a

busca é por defender o próprio negócio da influência da gangue de Lovo.

Ângelo, assistente e ajudante de Camonte, representa o arquétipo do pícaro, personagem cujo

traço principal é a manifestação cômica em meio a uma narrativa densa, no contexto daviolência e criminalidade. Também agindo como aliado, ele é responsável por imprimir um

alívio cômico na história, principalmente devido à sua ingenuidade e dificuldade de se

comunicar. Esse perfil garante certa suavidade e humor (ainda que irônico) em sequências

fortemente tensas, como durante o tiroteio no bar e o refúgio de Camonte em casa após ser

acuado pela polícia. O personagem não tem influência considerável no destino dos demais,

apesar de vivenciar alguns dos principais momentos da narrativa.

Finalmente, Guido Rinaldo, que acompanha Camonte desde as suas primeiras aparições,

representa o aliado. O personagem serve de companhia ao herói, o acompanha em suas

principais atividades e o auxilia na resolução de conflitos e desafios, como durante as etapas

da Travessia do Limiar e da Provação. Ironicamente, Guido Rinaldo, que se mostra fiel a

Camonte ao longo de toda a narrativa, será a motivação da caminhada do anti-herói para a

fase da Ressurreição.

4.4 Tony Montana em análise 

 4.4.1 Estrutura narrativa

Aspectos históricos da relação entre Estados Unidos e Cuba, no ano de 1980, introduzem o

Mundo Comum do protagonista de Scarface. Em meio a cenas reais e legendas, embarcações

vindas do país comunista com 125 mil refugiados chegam ao território estadunidense por

decisão do presidente Fidel Castro. Destes, 25 mil cubanos têm antecedentes criminais.

Dentre eles está Tony Montana.

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Apresentado durante interrogatório em uma delegacia, Montana revela um passado desolador

de quem muito trabalhou em um país sem liberdade, tornou-se prisioneiro político e agora

está sozinho, com todos os familiares mortos. Pressionado por investigadores que caminham

ao seu redor e cujos olhares se fazem representar pela câmera em movimento circular,

Montana, sentado em primeiro plano (e por vezes registrado em close), é o foco da cena, o

que torna possível identificar seus principais traços físicos e alguns psicológicos (fig. 12).

Com um inglês carregado de sotaque cubano, camisa florida, tatuagem, cicatriz no rosto e

falha marcante na sobrancelha esquerda, Tony Montana mantém a ironia diante dos

questionamentos e da desconfiança geral sobre seu verdadeiro passado: “Já esteve em um

manicômio?” ao que Montana responde: “Sim, no barco que me trouxe.” E quanto à cicatriz:“Foi brincando enquanto criança.” O perfil sarcástico é determinante para gerar dúvidas

quanto à autenticidade de sua história pregressa.

Na companhia de Manny Ribera, Montana é levado ao Centro de Detenção em Miami, local

destinado aos refugiados cubanos sem direito de permanência nos Estados Unidos. Após um

mês, já integrado à nova realidade, Tony recebe através de Manny uma proposta para

assassinar um político cubano recém-chegado, Emilio Rebenga, ligado à Revoluçãocomunista e responsável pela morte de muitas pessoas. Sem hesitar e com a garantia de assim

alcançar a liberdade no país, Montana declara ao amigo: “Mato um comunista por prazer. E

por identidade de residente, eu o faço em pedaços.” Com o assassinato de Rebenga, morto a

facadas por Montana durante motim, o protagonista e seus companheiros ganham o direito de

permanecer legalmente nos Estados Unidos. O crime revela um protagonista frio, violento e

ambicioso, disposto a tudo para alcançar seus objetivos.

Já em Miami, trabalhando com Manny como ajudante em um trailer, Montana demonstra

visível descontentamento com a realidade: “Não vim aqui trabalhar feito mula”. E é diante

dessa insatisfação com as dificuldades do Mundo Comum, já revelada durante a cena na

delegacia, que Tony Montana se mostrará predisposto à fase do chamado para a aventura.

Pode-se assim dizer que os elementos apresentados no primeiro estágio da Jornada do Herói

revelam um protagonista forte do ponto de vista narrativo, capaz de despertar curiosidade pelo

passado ainda incerto e gerar expectativas dada a clara determinação para subir na vida.

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Mais uma vez por meio de Manny, Montana conhece o traficante de drogas Omar Suarez. É

de Suarez que partirá para os cubanos o Chamado para a Aventura: devem tratar com

traficantes colombianos a compra de 2 kg de cocaína. Em troca, Montana e Manny receberão

U$5 mil. Diante da proposta arriscada, mas tentadora, Tony Montana aceita sem hesitação,

ainda que, em um primeiro momento, pense se tratar de uma brincadeira dado o alto valor

envolvido. A fase da Recusa ao Chamado não é, portanto, vivenciada, uma vez que o gosto

pelo desafio e, principalmente, a determinação para melhorar de vida serão os impulsos

determinantes.

Importante considerar ainda que, mesmo sendo o “convite” para a morte de Rebenga também

um chamado à aventura, a segunda proposta é mais intensa por envolver riscos maiores para opersonagem: “Rapaz, se algo acontecer com o dinheiro da compra, meu chefe estoura seus

miolos”, ameaça Suarez. É também a partir deste chamado que Tony terá na narrativa o

primeiro contato com o mundo das drogas, elemento determinante na história.

Após o chamado, a ação propriamente dita marca a Travessia do Primeiro Limiar, momento

em que, segundo Vogler (2006), o protagonista mostra-se capaz de transpor um obstáculo que

o separa do Mundo Especial. Em uma sequência marcada por muito sangue e violência,Montana inicia a negociação das drogas, até perceber a real intenção dos colombianos: não

vender a cocaína e ainda ficar com o dinheiro da compra. Rendido pelos criminosos, Montana

recusa-se a entregar o montante, sendo então ameaçado diante do companheiro que passa a ser

torturado com uma serra elétrica. O som do equipamento intercalado às ameaças do traficante

e aos gritos da vítima cria uma tensão crescente na cena, o que é valorizado pela expressão

firme de Montana, captada em close, e aos poucos atingida por jatos de sangue (fig. 13).

Apesar da apreensão diante da ameaça, Montana revela resistência e frieza, até serfinalmente socorrido por Manny no exato momento em que também começaria a ser

torturado. Após tiroteio e perseguição, o líder dos traficantes é morto, assim como todos os

demais do grupo. Montana cumpre a missão, fugindo não apenas com o dinheiro, mas com a

droga. O obstáculo é vencido.

Após sobreviver ao perigo, Montana é finalmente levado ao poderoso traficante de drogas de

Miami, Frank Lopez, responsável por encomendar a morte de Rebenga e a negociação com os

colombianos. A situação assemelha-se à fase do Encontro com o Mentor. Na mansão,

Montana e Manny são recebidos de forma entusiasmada por Lopez, que busca deixá-los à

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vontade desde o início. O traficante demonstra interesse especial pela figura de Montana e se

diverte ao ouvi-lo dizer que não é necessário agradecer pela morte de Rebenga, pois fazê-lo

“foi divertido”. É também neste momento que Montana será apresentado a Elvira, mulher de

Lopez, por quem o protagonista apresentará interesse imediato.

Neste primeiro contato, a relação entre Montana e Lopez sugere uma possível ligação de

“herói” e “mentor”, pese o fato de o traficante ter sido o responsável por retirar Montana da

condição de detento e conferir-lhe o direito de residir legalmente nos Estados Unidos. Um

mentor às avessas, que inicia o herói no mundo do crime, mas ainda assim busca orientá-lo

quanto aos perigos: “Verá que se for leal neste negócio, subirá. Subirá rápido.”

Porém, a aparente afinidade entre ambos é claramente forçada pelo traficante, o que se

verifica, por exemplo, quando o grupo vai à boate Clube Babilônia. Lopez paga bebidas e

charuto ao cubano, propõe que trabalhe ao seu lado e sugere novos desafios. Por outro lado, a

atitude de Montana, que prefere apenas sorrir e ouvir, como a revelar um entusiasmo contido,

sugere sua despreocupação em, de fato, submeter-se aos direcionamentos de Lopez. Assim,

enquanto Lopez confessa a Suarez que “um cara assim (Montana), ele morre por você”, Tony

dança com Elvira, lança diversas ironias e mostra-se dono de si.

Desta forma, diferentemente do que é sugerido no início, o desenvolvimento da narrativa

confirmará a inexistência da figura do mentor ao dissipar o poder de influência de Lopez

sobre Montana. Percebemos que o protagonista seguirá os próprios passos, tendo apenas

aproveitado as oportunidades de ascensão que lhe foram apresentadas no caminho. Com

Manny, no carro, Montana confirma sua verdadeira ambição: “Contente-se você (com o que

tem), quero o futuro, cara. O mundo com tudo que ele tem.” Tony Montana não segue regras,apenas cria e segue a própria sorte.

Finalmente, a travessia de Tony Montana ao mundo especial verifica-se na narrativa a partir

de determinadas marcas técnicas e de roteiro que marcam o início do segundo ato:

•  Intertítulo que informa a passagem de três meses. O recurso demonstra o período em que

Tony já aparenta estar no mundo especial.

•  Mudança de cenário e atmosfera narrativa. Montana e Manny se divertem na praia, de

manhã, com bebidas coloridas, ao som de animada música latina. Esses aspectos contrastam

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Montana e Gina. No contexto do  plot duplo (como exposto por Bordwell), os dois dilemas

afetivos se desenvolverão de forma independente. Mas ambos sofrerão forte influência do plot  

pragmático: o envolvimento de Tony Montana com o tráfico de drogas.

Também nessa etapa da jornada, Montana conhecerá um personagem que terá papel decisivo

na narrativa, ora entendido como aliado, ora como inimigo: o poderoso traficante de drogas

boliviano, Alejandro Sosa. Já no primeiro contato, Montana chamará a atenção de Sosa pela

coragem, iniciativa e liderança. Ao ser chamado a tratar com o traficante em nome de

Lopez, em um momento nítido de teste, Montana assumirá o comando da negociação e irá

estabelecer as regras para comprar cocaína pura, diretamente fabricada por Sosa, e revendê-la

em Miami. Um negócio de altíssimo investimento financeiro que irá consolidar a sociedadeentre Montana e Sosa.

A ligação entre os traficantes representa, por um lado, o início do afastamento entre Montana

e Lopez e, consequentemente, a criação de um inimigo em potencial. Ao negociar e se aliar a

Sosa, sem o conhecimento prévio de Lopez, Montana confirma a insubordinação à autoridade

do personagem e se lança de vez à ascensão no mundo do tráfico. Enquanto Montana se

entusiasma e procura impulsionar Lopez diante com o avanço dos negócios, Frank apenasalerta: “Eu sou o chefe. (...) Ele (Sosa) ataca pelas costas, não é de confiança”.

Por outro lado, o momento representa a proximidade entre Montana e Sosa, um homem ainda

mais poderoso e perigoso, o que pode ser verificado com o assassinato brutal e surpreendente

de Omar Suarez, considerado delator pelo traficante. Com uma casa imponente e um grande

número de empregados prontos a lhe atender, Sosa confere confiança a Montana: “Vou com

sua cara, porque você não mente”, mas também ameaça: “Não me traia, jamais tente metrair”. Portanto, ao transitar como força aliada e da sombra, Sosa se mostra, além de um

inimigo em potencial, um personagem perigoso e imprevisível. Como define Vogler (2006),

essas diferentes máscaras contempladas por um personagem representam um risco para o

herói, uma vez que ele nem sempre será capaz de reconhecer o verdadeiro perfil dos que estão

a sua volta.

Importante destacar que, neste momento, Montana não se abate com a desconfiança de Lopez,

nem com o alerta ameaçador de Sosa. Demonstrando coragem e força de caráter, o

personagem se impõe e se fortalece diante aos dilemas e obstáculos: “Nunca traí ninguém que

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não merecesse. Tenho meus colhões e minha palavra. E não quebro nenhum por nada”. A

lealdade de Montana aos compromissos assumidos é um forte traço de sua personalidade.

Ainda como obstáculo a ser enfrentado nessa etapa de testes, Montana será chantageado pelo

detetive Mel Bernstein que, conhecendo os crimes já cometidos pelo traficante, pedirá muito

dinheiro em troca do silêncio. Por fim, ainda no cenário do Clube Babilônia e em companhia

de Manny, Montana terá novo ataque de ciúme em relação à irmã, após flagrá-la dançando

com outro homem. Desta vez, em uma sequência mais longa e intensa, enriquecida com o uso

de trilha sonora (que transita entre o som ambiente e um instrumental mais subjetivo), closes,

câmera lenta e cortes rápidos, Montana agredirá a própria irmã em uma demonstração clara de

que pode ser bruto e cruel até com quem mais ama. Essa complicação dramática, como defineVogler (2006), causa um nítido abatimento no personagem e antecipa um desafio ainda maior.

É o momento da Aproximação da Caverna Oculta (fig. 16).

Entregue à bebida e às drogas, em aparente vulnerabilidade, Tony Montana enfrentará a crise

propriamente dita ao sofrer uma nova tentativa de assassinato por dois desconhecidos. A

 jornada atinge a fase da Provação. Surpreendido por um tiroteio em um ambiente de música,

luzes e agitação, o que sugere desviar o foco do crime iminente, Montana parece despertar deum estágio de torpor e, desta vez sozinho, consegue novamente escapar da morte. Sentindo-se

desafiado e principalmente traído por alguém ainda não revelado, o personagem parte para o

segundo momento da provação: o acerto de contas com o inimigo. Após preparar-se

 juntamente a Manny e mais um de seus companheiros, Montana decide encontrar Frank

Lopez, o principal alvo de suas suspeitas.

Como aponta Vogler (2006), nesse estágio de enfrentamento o clima é de suspense e tensãopela ameaça e incerteza do que irá ocorrer. Na companhia de Bernstein e um de seus

seguranças, Lopez primeiramente surpreende-se com a chegada de Montana, buscando manter

a naturalidade. Depois, ao confessar a intenção de matá-lo, Lopez é o retrato do desespero,

enquanto Montana, mais uma vez, reflete frieza e determinação. Essa diferente posição dos

personagens é demonstrada na narrativa a partir de aspectos específicos. Assim, enquanto

Lopez, de pé, passa da condição de aparente superioridade para total submissão ao implorar

perdão a Tony e ajoelhar-se aos seus pés, Montana permanece sentado durante toda a

sequência, com arma em punho mirada para o inimigo (fig. 17 e 18). Se por um lado Lopez

chora e esbraveja tentativas de reverter a situação, com a oferta de dinheiro e até mesmo da

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A partir do momento que Montana atinge o auge, a história parece alcançar uma zona de

ordem e equilíbrio e chega ao terceiro ato. Torna-se necessária uma nova motivação capaz de

trazer o personagem de volta à jornada, marcando o Caminho de Volta. Em Scarface essa

motivação partirá de diferentes situações e se seguirá à recompensa de forma quase imediata.

Logo após a ascensão, Montana passa a sentir os efeitos negativos do poder e da riqueza. Para

manter o esquema de lavagem de dinheiro, por exemplo, o mafioso precisa lançar mão de

quantias cada vez maiores para cobrir a taxação bancária. Por sua vez, a mansão, mesmo

equipada com muitos recursos de segurança, passa a ser motivo de atenção para Montana que

se sente constantemente ameaçado pelos inimigos.

A preocupação excessiva do personagem com as questões financeiras passa a afetar também o

seu relacionamento com Manny e o casamento frágil com Elvira. Em uma sequência

emblemática, ambientada no imenso e luxuoso banheiro da mansão, Elvira e o marido

discutem após ela reclamar das queixas constantes de Montana sobre dinheiro. Neste sentido,

a cor predominantemente dourada do aposento faz referência direta à riqueza do personagem.

Humilhada por Montana, que a acusa de se ocupar apenas de “pó e cabelo”, Elvira retira-se doambiente, enfurecida. Da mesma forma, Manny, ao tratar de negócios com o amigo, é acusado

de sua incapacidade: “Você gosta mais de mulheres do que de dinheiro, você não é

negociante”, declara Montana em tom irônico. Abandonado por Elvira e Manny, Montana fica

sozinho, na grande banheira. Enquanto o mafioso grita não poder confiar e nem precisar de

ninguém, os olhos da câmera em movimento de trajetória para cima e para trás se afastam do

personagem até atingir o plano geral. Tony Montana é então focalizado sozinho, como um

ponto em meio à tamanha riqueza (fig. 20). Diante do império, a insensibilidade e solidão deMontana parecem premeditar o início da queda.

Finalmente, após essa nova complicação dramática, uma sequência de circunstâncias

recolocará Montana de forma definitiva na jornada. Primeiro, ele é flagrado por policiais em

ação de lavagem de dinheiro. Depois, confirma com o próprio advogado sobre o risco de ser

 julgado e preso pelo crime por um período próximo de três anos. Diante da difícil situação,

Tony recebe uma proposta de Alejandro Sosa. Para ser ajudado por Sosa e se livrar do risco

de prisão, Montana deve ir à Nova York com Alberto, empregado do boliviano, e acompanhá-

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lo no assassinato de um homem público que ameaça denunciar, em rede mundial, o esquema

do crime organizado envolvendo seu nome e o de empresários, políticos e chefes do Exército.

Diante de um novo Chamado à Aventura, Montana novamente não hesita, mostrando-se

pronto ao desafio. Porém, antes de enfrentá-lo, o personagem mais uma vez sucumbirá no

campo afetivo, o que confirma o desenvolvimento paralelo entre os  plots romântico e

pragmático. Ainda mais entregue à bebida e à cocaína, Montana irá novamente humilhar

Elvira, sendo desta vez abandonado por ela de maneira definitiva. “Será que você não vê?

Nossa vida é um desastre, não ganhamos nada”, reclama Elvira diante do marido atônito a

refletir um nítido fracasso físico e também moral (fig. 21).

Prestes a atravessar um novo limiar na jornada, Montana prepara-se para cumprir a missão

estabelecida por Sosa. Em Nova York, na companhia de Alberto e dois seguranças, uma

bomba é colocada no carro do “delator”. Porém, ao perceber que o homem a ser morto

também se faz acompanhar da esposa e de seus dois filhos, o mafioso se recusa

imediatamente a prosseguir: “Isto eu não faço nunca e jamais! Acha que vou matar uma mãe

com os filhos? Nunca.” Indignado com a situação e diante da insistência de Alberto que se

recusa a mudar de decisão e prepara-se para acionar a bomba, Montana o mata a sangue frio.

Ao recusar-se a prejudicar inocentes com a mesma veemência que combate o inimigo, o

personagem revela mais uma vez seu lado humano e determinado, capaz de defender os

valores nos quais acredita até as últimas consequências. Neste ponto da narrativa, a história

aproxima-se de seu clímax. De aliado, Sosa torna-se agora inimigo declarado: “Te disse para

não me trair, seu canalha”. Frente ao risco, Montana decide entrar em guerra: “Comeremos

Sosa vivo”.

Com a ameaça de Sosa cada vez mais próxima, a narrativa ainda contará com um último

estágio anterior à provação final. Em um crescendo de tensão e perigo que acompanha a

visível decadência do protagonista, cada vez mais entorpecido pelo uso de drogas, Montana

buscará Gina e Manny. Ao surpreendê-los juntos, vivendo na mesma casa, o mafioso, tomado

de ciúme e cólera, irá atirar fatalmente no próprio amigo (fig. 22). O suspense e intensidade

da cena são valorizados pelo uso de câmera lenta, com os closes de Montana, Manny e Gina e

trilha sonora marcada por poucas e esparsas notas musicais. Totalmente abalada pela morte do

marido, Gina é levada para a casa do irmão. Calado, Montana retorna ao lar com uma

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do corpo, a inscrição “O Mundo é Seu” permanece imponente, concluindo, de forma irônica,

o trágico destino de Tony Montana.

O momento refere-se à fase do Retorno com Elixir, pois expressa o resultado final da

 jornada de um anti-herói. O desfecho de Scarface mostra-se redondo: no contexto do

submundo, um homem parte da marginalidade, infiltra-se no crime organizado, atinge a

ascensão e, logo após, fracassa, encerrando o ciclo de uma vida baseada na criminalidade.

Ainda, sendo a morte de Montana causada por outro criminoso, tão ou mais perigoso que ele

próprio, a sensação é de que o caos permanece, o que confirma os riscos de uma realidade

contemplada “abaixo da lei”.

 4.4.2 O perfil do personagem 

Como protagonista de Scarface, Tony Montana é a representação fiel do anti-herói trágico.

Um personagem que enfrenta ascensão e queda no submundo da criminalidade e lida com a

realidade a partir de suas próprias leis. Com base no arquétipo definido por Vogler (2006) e

no estilo comum do gênero de gângster, Tony Montana é uma personalidade marcada pelos

defeitos, pela aversão às regras da sociedade e que, após alcançar o ápice de suas conquistas,tem como desfecho o fracasso.

O vilão Montana destaca-se pelo sarcasmo, frieza, violência, ambição e destemor. É também

determinado, corajoso e resistente, com um perfil de liderança e iniciativa. Desta forma, o

protagonista assume um caráter predominantemente repreensível, mas sem deixar de lado as

marcas que o igualam ao homem comum sedento por conseguir vencer na vida. Por outro

lado, o mafioso também tem momentos claros de sensibilidade, como no reencontro com afamília e quando se obstina a evitar a morte de uma mãe e duas crianças. De forma mais sutil,

Montana também se mostra sensível ao fragilizar-se com o distanciamento do amigo Manny,

da esposa Elvira e da irmã Gina, já no fim da história. O personagem ainda confere grande

peso ao valor da palavra e do compromisso e tem a lealdade como um de seus principais

valores. Como conflito íntimo, sofre com o ciúme excessivo, o vício nas drogas e a

brutalidade incontrolável, aspectos que funcionarão como sombras no caminho do herói. Essa

variedade de aspectos confirma Tony Montana como um personagem redondo, complexo e

multidimensional e, portanto, imprevisível ao longo da narrativa.

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O personagem Frank Lopez assume os arquétipos de arauto, camaleão e sombra. Como

arauto, Lopez é o responsável por colocar no caminho de Montana os dois desafios iniciais

que o impulsionarão ao mundo especial: assassinar Rebenga e negociar com os traficantes

colombianos. Nos dois casos, o chamado chega a Montana por intermédio de Manny e Omar

Suarez, respectivamente.

Após agir inicialmente como um mentor às avessas, que tem afinidade com o herói e o

envolve na criminalidade, Lopez mostra-se como um camaleão ao demonstrar contrariedade

em relação a certas atitudes do herói sem, contudo, enfrentá-lo plenamente. O personagem

torna-se, assim, imprevisível, e gera dúvidas quanto ao que realmente sente. Tal aspecto é

demonstrado, por exemplo, na cena em que os personagens discutem sobre o envolvimentoentre o Sosa e o cubano. Lopez tenta dissuadir Montana em seus propósitos com a aparente

intenção de protegê-lo, mas seus sentimentos não se mostram claros. Não sem motivos, Lopez

se torna a principal suspeita de Montana após ele ter a vida ameaçada.

Finalmente, ao ser desmascarado como mandante do assassinato de Montana, Lopez assume-

se como sombra. É a força contrária às intenções do herói com o objetivo de derrotá-lo.

Assim como no caso do anti-herói, o inimigo também se mostra vulnerável quando estáprestes a ser destruído. O pedido de perdão a Montana, antes de sua morte, comprova essa

fragilidade.

Alejandro Sosa, ainda mais perigoso que Lopez, é também arauto, camaleão e sombra. Na

figura de arauto, “convida” Toni ao desafio quando lhe propõe parceria no tráfico e,

principalmente, quando o pede para acompanhar o assassinato de uma figura pública em Nova

York. A faceta de Sosa como camaleão revela-se já a partir de seu perfil ambicioso eimpiedoso com os inimigos, tal qual Montana. O bom relacionamento entre os personagens

causa dúvidas e parece frágil, uma vez que pode, a qualquer momento, transformar-se em

rivalidade tal logo uma das partes se sinta prejudicada ou ameaçada. Exemplo disso é o alerta

dado pelo mafioso a Montana: “Não me traia, jamais tente me trair”. Ainda, os conselhos de

Lopez, maldizendo o caráter de Sosa, são indícios que criam dúvidas (no protagonista e no

espectador) quanto à verdadeira personalidade do boliviano.

A transformação de Sosa em sombra é determinante para a conclusão da narrativa, pois será a

principal causa da destruição do herói. Diferentemente de Lopez, ou mesmo Montana, Sosa

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não demonstra vulnerabilidade e nem uma tendência às forças positivas. A reação após sentir-

se traído por Montana confirma o perfil cruel e vingativo.

Ainda como camaleão há a personagem de Gina, irmã de Montana. Se durante a maior parte

da narrativa os dois vivenciam um relacionamento afetivo intenso, de carinho recíproco e

marcado pelo ciúme doentio de Montana, a personagem surpreenderá ao tentar matar o

próprio irmão após revoltar-se com o assassinato de Manny.

Como personagens que têm a função de servir de obstáculo ao avanço do herói na jornada,

funcionando como guardiões do limiar, estão três grupos de representantes das sombras: os

traficantes colombianos, que ameaçam a vida de Montana durante a negociação das drogas nafase da travessia do primeiro limiar; os dois assassinos contratados por Frank Lopez para

assassinar o gângster no Clube Babilônia, no momento da provação; e os homens enviados

por Alejandro Sosa para invadir a casa de Montana e matá-lo, já na etapa da ressurreição. Os

primeiros acabam sendo contidos pelo gângster, o que garante o seu progresso na narrativa. Já

os representantes de Sosa conseguem derrotá-lo, marcando a vitória da sombra sobre o herói.

Importante destacar que este arquétipo de Vogler possui definição menos precisa, pois

algumas vezes ele pode parecer simplesmente uma figura "auxiliar" da sombra, como ocorrecom os personagens citados.

Por fim, Manny se destaca como aliado, arauto e pícaro. Como aliado, Manny mostra-se fiel

a Montana ao longo de toda a história. Parte com ele do Mundo Comum, enfrenta os

principais obstáculos ao seu lado (como a travessia do primeiro limiar, os testes e a provação),

acompanha sua ascensão e ironicamente, compartilha do mesmo fracasso. O personagem é

cúmplice das atitudes de Montana e o auxilia nos desafios, o que demonstra ao assassinarFrank Lopez e ao assumir a segurança de sua mansão. Ainda que de forma velada, Manny

também busca advertir o herói em situações arriscadas, como na ligação com Sosa, e

aconselhá-lo quanto ao conflituoso relacionamento com Elvira.

Como arauto, Manny funciona como uma espécie de intermediário nos dois convites à

aventura feitos ao herói: apresenta o desafio de assassinar Rebenga e traz a Montana o contato

de Omar Suarez, que irá prepará-lo para a travessia do limiar. Ainda que revele um perfil

criminoso, afeito às ações de Montana, Manny demonstra uma personalidade mais leve e bem

humorada em comparação ao anti-herói. Por isso, em certa proporção, Manny assume também

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o papel de pícaro ao garantir breves momentos de alívio cômico à história. Como exemplos,

o diálogo inicial entre ele e Montana a caminho do Centro de Detenção em Miami, e as piadas

na praia logo após a travessia do primeiro limiar.

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5 CONCLUSÃO

Após a análise dos filmes de gângsteres com base no modelo da Jornada do Herói, torna-se

possível concluir que, em termos de estrutura narrativa, as obras guardam mais semelhanças

do que diferenças entre si, o que confirma o processo de remake realizado por Brian de

Palma, em 1983. Por outro lado, as particularidades se referem especialmente ao uso de

alguns recursos técnicos, perfil dos personagens e abordagem da criminalidade, fatores que

podem ser explicados, em grande parte, pela própria diferença de duração e de contexto

histórico dos filmes. Scarface - A vergonha de uma nação é de 1932 e possui cerca de 1h30.

Já Scarface, do ano de 1983, tem duração aproximada de 2h50. Enquanto o primeiro trata da

criminalidade durante a Lei Seca nos Estados Unidos da década de 1920, este destaca otráfico de drogas nos anos de 1980 tendo como cenário o território estadunidense no período

da Guerra Fria.

Em termos de estrutura narrativa, as fases da jornada do herói se apresentam de forma

semelhante nas duas histórias, com conteúdos, ordenamento e transições similares. As

exceções são a etapa do Encontro com o Mentor que, em 1932, diferentemente da versão de

Palma, ocorre antes do Chamado à Aventura, e a própria fase do Chamado. Enquanto estemomento se mostra bem marcado na versão de 1983, com o convite feito a Montana para a

arriscada negociação com os colombianos, no original essa etapa se mostra mais superficial,

não específica. Isso, pois o convite feito por Lovo a Camonte para negociar com os

dissidentes da gangue sul acontece no momento em que o gângster já se encontra melhor

inserido na aventura, praticamente no mundo especial.

No que diz respeito à duração das fases narrativas, os contrastes devem-se à própria diferençade duração dos filmes, como já citado. Nesse sentido, as diferenças implicam, naturalmente,

no uso distinto do tempo para enfatizar determinadas etapas da história ou aprofundar-se na

condução de certos personagens. Assim, por exemplo, o estágio referente ao Caminho de

Volta desenvolve-se de forma mais duradoura e com mais implicações dramáticas na versão

de 1983,  assemelhando-se a uma nova fase de Testes, Aliados e Inimigos. Já na versão de

Hawks, essa etapa se desenvolve de forma mais rápida, funcionando como uma breve

transição entre a Recompensa e a Ressurreição. Ainda no que diz respeito aos personagens,

Manny e Elvira de Scarface, por exemplo, detêm mais ações na narrativa e desenvolvem mais

aspectos de sua personalidade do que Guido e Poppy na produção de Hawks.

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Em termos de recursos técnicos, ambas as produções seguem uma narrativa clássica, com

montagem predominantemente linear e câmera objetiva que tem o protagonista como foco na

maior parte do tempo. Há o uso estratégico de primeiro plano e close para dar destaque às

expressões e reações dos personagens em momentos de tensão e suspense. Enquanto no preto

e branco de Hawks os elementos da morte, violência e criminalidade são especialmente

representados por recursos de iluminação, com o jogo de luzes e sombras em ambientes

internos e noturnos, na produção de 1983 são as cores fortes, como o preto e o vermelho, que

adquirem um valor simbólico associado à temática dos gângsteres. O registro excessivo e

realista do sangue em Scarface, por exemplo, dá lugar a uma apresentação menos gráfica das

feridas em 1932, com planos mais afastados em situações violentas. Talvez de forma asuavizar a agressividade das cenas e atender aos padrões da censura cinematográfica. Ainda,

se na obra original a trilha sonora musical é praticamente descartada, sendo substituída por

efeitos sonoros de tiros, metralhadoras, movimentos de carros e assobios, no remake os

recursos musicais são diversificados para representar as diferentes etapas narrativas e também

a condição íntima dos personagens.

Com respeito aos gângsteres, personagens centrais da análise, a vida pregressa apresenta-se deforma semelhante em ambos os filmes. Em Scarface - A vergonha de uma nação um crime

ocorrido nas primeiras cenas já oferece indícios de criminalidade referentes à vida do

protagonista. Em Scarface a narração inicial do cenário político entre Estados Unidos e Cuba

também cria expectativas em relação ao refugiado imediatamente apresentado. Ainda que

Tony Camonte e Tony Montana rebatam as acusações iniciais que lhes são feitas, tão logo a

história avance os indícios tornam-se fatos e são estabelecidos a personalidade e anseios que

os protagonistas irão assumir ao longo de toda a jornada.

Os personagens detêm aspectos físicos similares. Estrangeiros, possuem estatura semelhante,

têm pele clara, cabelo, olhos escuros e uma cicatriz na face esquerda. Ambos falam muito e de

forma articulada. Em termos psicológicos, são irônicos, destemidos, ambiciosos, violentos,

frios e determinados. Compreendem-se autossuficientes e capazes de vencer sem a ajuda de

outros. Têm um relacionamento conflituoso com a família, principalmente pelo ciúme

excessivo que sentem da irmã. No campo afetivo, também não enfrentam relações

satisfatórias. No romance mantêm uniões instáveis e têm como amigo apenas um aliado que,

ironicamente, irá sucumbir sob seu próprio jugo ao final. Como aspecto moral, ambos dão

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valor ao compromisso e à importância de se honrar a palavra, aspecto especialmente

destacado em Tony Montana. E na mesma medida em que são traídos e confrontados, também

buscam a vingança.

Apesar das semelhanças, alguns traços psicológicos, morais e de relacionamento definem

importantes particularidades para cada anti-herói. Montana demonstra um nível de

sensibilidade que é praticamente imperceptível no perfil de Camonte. Apesar de toda a

truculência e destemor, Tony Montana revela um lado mais humano no trato com a família,

apesar de não menos intenso, e demonstra preocupação com a vida de inocentes. Na maior

parte das vezes mata em situações críticas, quando a ação mostra-se questão de defesa da

honra ou da própria vida. Já Camonte, mais esquemático, demonstra uma frieza praticamenteconstante, com exceção do momento em que enfrenta a morte da irmã. Sarcástico ao extremo,

o personagem parece se divertir diante dos riscos e, diferentemente de Montana, parece matar

de forma antes despropositada, como impulsionado por prazer ou compulsão. Exemplo disso

são os diversos assassinatos de membros da Zona Norte e o massacre de São Valentin. A

morte dos adversários é vista pelo personagem como apenas mais uma etapa em sua busca

pelo poder.

Ainda, a decadência do personagem em Scarface apresenta-se de forma mais explícita e

gradual do ponto de vista físico, psicológico e moral. O vício nas bebidas e drogas, a obsessão

pelo poder e riqueza, o ciúme pela irmã e os desentendimentos com Elvira e Manny, por

exemplo, atribuem ao personagem uma demência gradativa que parece arrastá-lo

irresistivelmente ao descontrole de si mesmo e à derrota diante do inimigo. Por outro lado, a

narrativa de Hawks não destaca esses aspectos. Camonte alcança a etapa final mais íntegro

físico e psicologicamente, demonstrando apenas ligeiro abalo pela morte de Guido. Asensação é de que o personagem enfrentou menos conflitos e foi afetado por estes de maneira

mais superficial. Tony Montana revela-se assim um personagem mais complexo e paradoxal,

o que o torna, consequentemente, mais interessante e imprevisível na narrativa e, finalmente,

mais próximo à realidade do homem cotidiano.

A morte dos gângsteres, em ambos os casos, é a concretização do fracasso do anti-herói após

a ascensão e o apogeu pela riqueza e prestígio. Tanto Tony Camonte quanto Tony Montana

sucumbem diante do inimigo, quando são contemplados de maneira irônica pelos dizeres “O

Mundo É Seu” em uma forma de coroamento trágico do mundo na criminalidade. Ao decorrer

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em sua generalidade. Compreender o contexto em que se inserem é compreender a própria

realidade capaz de resultar em tantos outros de mesmo perfil.

Finalmente, como resultado da análise com base na Jornada do Herói, cabe destacar que tal

modelo mostrou-se válido, ao atender generalidades da produção narrativa; prático, ao sugerir

referências de análise; e eficiente, ao possibilitar uma compreensão ampla dos objetos

propostos, tanto de forma isolada como comparativa. Da mesma forma, a consideração de

conceitos sobre a linguagem cinematográfica e o personagem de ficção, a partir de outros

autores, garantiu um exercício mais detalhado de percepção dos objetos, contribuindo para o

resultado final.

A análise possibilitou não apenas compreender a construção do gângster em duas narrativas

específicas, mas ampliou a visão geral do cinema enquanto linguagem ao demonstrar de

forma sistemática sua capacidade de contar histórias, transmitir sentidos, construir e conduzir

personagens.

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ANEXOS

Figura 1 – Camonte na barbearia, ao se deparar com o policial Guarino.

Figura 2 – Camonte se prepara para atirar em homem no hospital.

Figura 3 – Tony Camonte.

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Figura 4 – Johnny Lovo, Tony Camonte e Poppy na casa de dança.

Figura 5 – Guido e Camonte chegam ao clube para o acerto de contas com Lovo.

Figura 6 – Close de Tony Camonte momento antes do assassinato de Johnny Lovo.

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Figura 10 – X formado pelo jogo de luzes no quarto de Gaffney.

Figura 11 – X em algarismo romano na porta da casa de Guido e Cesca.

Figura 12 – Após chegar de Cuba, Montana é interrogado por policiais nos Estados Unidos.

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Figura 13 – Montana é ameaçado durante negociação com colombianos.

Figura 14 – Montana e Manny na praia, três meses após conhecerem Frank Lopez.

Figura 15 – Montana reencontra a irmã Gina depois de 5 anos.

Figura 16 – Montana no Clube Babilônia após agredir Gina.

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Figura 17 – Montana ameaça Frank Lopez.

Figura 18 – Frank Lopez implora pelo perdão de Montana.

Figura 19 – Montana no escritório de sua mansão.

Figura 20 – Montana sozinho no luxuoso banheiro após discutir com Manny e Elvira.

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Figura 24 – Já atingido, Montana resiste e atira nos inimigos.

Figura 25 – Montana é morto dentro da mansão.