A Ciência e a Arte da Fotografia - Jorge Calado

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A CINCIA E A ARTE DA FOTOGRAFIAA fotografia apareceu h 150 anos como uma resposta da cincia s necessidades da arte. As suas singularidades em relao s outras artes conferem-lhe um estatuto especial e constante fascnio.

JORGE CALADO

A

na parede duma caixa ou sala escura e projectam na fotografia uma das conquistas gloriosas do sparede, ou face oposta, uma imagem invertida do exteculo XIX e, tal como outras descobertas da mesrior. ma poca (por exemplo, o estabelecimento A qumica veio mais tarde. Johann Heinrich Schulze, da lei da conservao da energia ou primeiro princpio da professor de anatomia em Altdorf, mostrou, em 1727, que termodinmica) um caso de descoberta simultnea. Mais certos sais de prata (o nitrato e outros que hoje conheceadiante se ver quem foram os principais intervenientes mos com o nome geral de halogenetos, vulgo cloreto, na descoberta da fotografia; para j interessa notar que brometo ou iodeto) escurecem sob a aco da luz. O ela apareceu naquela zona cinzenta mas potencialmente passo seguinte parece bvio faltava s aparecer quem, explosiva onde confluem as artes e as cincias. A fotograna gria, pudesse juntar 2 com 2, isto fia surgiu como uma resposta da , usasse os sais de prata como meio cincia s necessidades da arte, a ser impressionado (desenhado) pela nomeadamente o desenvolvimento luz. Todavia aquilo que hoje se ofedum mtodo expedito de registo de rece evidente pde representar na alobservaes visuais que substitusse, tura um enorme salto qualitativo, um por exemplo, o tradicional caderno tremendo rasgo de imaginao. O de esboos do pintor. Vem, tambm, ovo de Colombo s o depois de na sequncia de mtodos mecnicos Colombo aparecer. Mas esta uma das e qumicos de reproduo e multiplicaractersticas da criao cientfica cao de imagens, cada vez mais fiis a imprevisibilidade da descobere realistas (xilogravura, ponta seca, ta, mesmo quando as circunstncias gua-forte, litografia, etc.). No munso, ou aparentam ser, as mais propdo de hoje, submerso por bilies de cias. S no cientistas como os fotografias, as bases cientficas das historiadores Helmut e Alison Gerntcnicas fotogrficas so um dado sheim poderiam escrever que a ciradquirido, mas, tambm, esquecido. cunstncia da fotografia no ter sido Com a entrada da fotografia nos inventada mais cedo permanece como museus e nos leiles especializados, um dos grandes mistrios da sua quase ningum contesta o seu estahistria. tuto de arte independente e autnoma. Licenciado em Engenharia pelo Instituto Superior O entendimento da geometria proOs princpios que levaram des- Tcnico e doutorado em Qumica pela Universidacoberta da fotografia estavam perfei- de de Oxford (1970), Jorge Calado professor jectiva e da ptica geomtrica foram tamente estabelecidos nos meados catedrtico do I.S.T. e professor catedrtico adjun- determinantes para a obteno duma do sculo XVIII. A transmisso de to da Universidade de Cornell. Investigador repu- maior fidelidade na representao tado no domnio da Termodinmica experimenimagens era do domnio da ptica; o tal, publicou mais de uma centena de trabalhos do real, em particular na evocao da seu registo, mais ou menos perma- em revistas da especialidade. Premiado pela Socie- terceira dimenso no plano bidimennente, pertencia fotoqumica. A dade Portuguesa de Qumica, membro da Acade- sional do papel ou da tela. Por exemdas Cincias tambm se tecnologia puramente ptica da fo- miaao estudo dasde Lisboa, entre artestem dedica- plo, a descoberta do escoro ou redo relaes e cincias, tografia era conhecida de Aristteles: sendo colaborador do Times Literary Supplement duo efectiva do comprimento dos objectos que se dispem perpendiraios de luz atravessam um orificio, e da revista Opera Now.31

Fig. 1 Princpio de funcionamento da cmara escura, ilustrado pela primeira vez no tratado De radio astronomico et geometrico de Reiner Gemma Frisius, publicado em 1545.

Fig. 3 Andrea Mantegna, Cristo Morto, Pinacoteca di Brera, Milo.

Fig. 2 Representao do cubo, evidenciando o efeito de escoro.

cularmente ao plano do desenho em relao ao dos que nele assentam, trouxe um novo realismo s representaes pictricas. o escoro que nos leva a desenhar as faces laterais e de topo dum cubo como paralelogramos e no como losangos (lados iguais) e foi o desconhecimento deste efeito que levou os egpcios a representa-

rem lateralmente as caras e os ps e frontalmente os corpos, nos baixos-relevos e pinturas da sua arquitectura monumental. Embora fosse uma conquista dos gregos (o que levou Plato a denunciar os truques da arte moderna...), foi s no sculo XV que o escoro veio a ser explorado exaustivamente por pintores como Andrea Mantegna (1431-1506), por exemplo na sua obra-prima na Pinacoteca di Brera, em Milo, Cristo Morto. Outro avano notvel foi a inveno, tambm no sculo XV, da perspectiva linear ou de ponto nico, que mostra a convergncia das linhas paralelas no ponto de fuga, conseguindo assim o domnio do horizonte e do espao infinito. A perspectiva , em geral creditada a Leon Battista Alberti (1404-1436) e ao seu tratado DELLA PITURA (1436).

Fig. 4 Paolo Ucello, Caada, Ashmolean Museum, Oxford.

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Fig. 5 Carlo Crivelli, Anunciao com Santo Emdio, National Gallery, Londres.

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Esta preocupao com a perspectiva evidente em pintores como Paolo Uccello (1397-1475). Humilhado pelas crticas de Donatello sua obra, Uccello tornou-se num recluso em sua prpria casa, passando as noites em claro procura dos melhores pontos de fuga para as suas complexas composies, no dando ouvidos mulher, que constantemente o chamava para a cama. A sua resposta era sempre: Oh, que bela coisa que a perspectiva! Isto contado por Giorgio Vasari em As Vidas dos Mais Excelentes Pintores, Escultores e Aquitectos (1568). Mesmo cenas naturalmente desorganizadas e caticas como as caadas e batalhas aparecem em Uccello subtilmente organizadas pela lei da perspectiva. Basta observar, por exemplo, a Caada (c. 1460), do Ashmolean Museum de Oxford: cavalos, infantes e galgos colaboram com a estrutura florestal para a definio de um ponto de fuga, e a perspectiva aqui a grande responsvel pelo dinamismo da cena. No final do sculo XV o domnio da perspectiva era total, como o mostra a cena da Anunciao com Santo Emdio, pintada por Carlo Crivelli (1430/35 -1493/95), em exposio na National Gallery de Londres. Estas descobertas so concomitantes com os aperfeioamentos e explorao da camera obscura, como instrumento auxiliar da mo do artista. Na sua forma mais simples a caixa escura j citada e conhecida de Aristteles. A reduo da abertura aumentava a nitidez

Fig. 6 Verso da camera obscura, em uso no sculo XVII.

das imagens, mas reduzia a sua intensidade; a utilizao de uma lente ou sistema de lentes convergentes permitia resolver o problema, concentrando os raios luminosos e aumentando a definio da imagem. Se a parede onde esta era projectada fosse translcida (vidro) o artista podia copiar mo na prpria parede ou decalcar em papel a imagem projectada. Alguns dispositivos eram ainda mais sofisticados, incorporando sistemas auxiliares de espelhos reflectores para tornar o processo de cpia mais praticvel e a imagem ser directa, no invertida.

Fig. 7 Antonio Canale (CANALETTO), vista de Veneza, decalcada na camera obscura.

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O seu tamanho tambm variava desde as cmaras minsculas que podiam ser camufladas no casto de uma bengala, at s divises suficientemente grandes para encerrar o artista (a entrada no Museu de Fotografia de Munique fez-se, precisamente, atravs duma camera obscura); coches eram muitas vezes transformados em cmaras escuras para possibilitar ao viajante o registo do que ia vendo, sem se apear. A partir do sculo XVI o uso da camera obscura est generalizado. Pintores to diversos como Vermeer (1632 - 1675) nos Pases Baixos e Canaletto (1697 - 1768) um pouco por toda a parte, recorreram a este instrumento quer para conseguir um toque de modernidade realista na composio, quer para pintar em srie vistas de atraces tursticas. Uma vez decalcada a imagem projectada, era fcil transferir para a tela o que a cmara tinha visto. Um decalque da camera obscura podia ser usado para produzir vrios quadros mltiplos na corrente acepo do termo. Estas vedutas funcionavam para os turistas da poca (em geral gente de boas famlias e endinheirada a fazer o Grand Tour da Europa meridional) como os actuais diapositivos e postais ilustrados a lembrana e a prova de que se tinha l estado. Toda uma indstria de pintura em srie, tornada possvel pelo manejo da camera obscura, floresceu em locais como Veneza, onde pintores como o j citado Canaletto, o seu sobrinho Bernardo Bellotto

Fig. 9 William Hogarth, frontispcio para Dr. Brook Taylors Method on the perspective made easy, de John Joshua Kirby (1754).

Fig. 8 Francesco Guardi, A Feira da Ascenso, Museu Gulbenkian, Lisboa.

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Fig. 10 Frederic von Martens, Panorama de Paris visto das torres de Notre-Dame, 1837.

(1720 - 1780), e Francesco Guardi (1712 - 1793) produziram verses standardizadas do Grande Canal, da Praa de So Marcos e das outras atraces venezianas. O Museu Gulbenkian pode orgulhar-se de possuir aquela que talvez a melhor e mais representativa coleco de Guardis do mundo. Olhando para estes quadros a duzentos anos de distncia o que surpreende o realismo fotogrfico (e note-se, de passagem, que foram as vistas que Bellotto pintou em Varsvia que permitiram a reconstituio fiel da cidade velha, aps o seu arrasamento durante a ltima Grande Guerra), que no mais do que o realismo ptico da camera obscura, com os seus resultados de perspectiva linear. O domnio desta nova maneira de ver permitiu tambm o jogo com a sua subverso, por exemplo nas falsas perspectivas e no trompe-loeil. Hogarth (1697-1764) criou uma sensao com a capa que gravou para o livro de John Joshua Kirby, Dr. Brook Taylors Method on Perspective Made Easy (Londres, 1754). Mais no nosso tempo, as imaginativas construes de M. C. Escher continuam essa tradio. A perspectiva gera um palco, varrido pelas vrias linhas que definem o ponto de fuga (como bvio da leitura do quadro de Guardi, aqui reproduzido). No admira que a cenografia teatral da poca tenha beneficiado e tambm contribudo para uma maior percepo do novo realismo a que chamaremos ptico-fotogrfico. Alguns dos precursores da verdadeira fotografia (e do cinema) foram pintores e designers teatrais. Citam-se os casos de Philip James de Loutherbourg (1740-1812), o pintor do sublime industrial, cenarista das peas de Sheridan e inventor do eidophusikon (um dispositivo de animao de imagens que antecipa o cinema), e o de Jacques Louis Mand Daguerre (1787-1851), decorador teatral e criador do Diorama, e que viria a ter o seu nome associado descoberta da fotografia. Pelo contrrio, a perspectiva invertida reduz o observador a um ponto a partir do qual divergem as linhas para o horizonte. O ponto de fuga agora o ponto de partida, e a vista obrigada a rodar para acompanhar a narrativa da imagem. A estrutura bsica da imagem deixa de ser o tringulo de pice no horizonte para passar a ser o rectngulo. Aparecem os panoramas, e as vistas de perspectivas mltiplas outra das grandes invenes do final do sculo XVIII.

So em geral conseguidas por justaposio de imagens ou atravs do uso de superficies curvas de projeco. O movimento, que a cobertura do espao, tambm, para Santo Agostinho, a continuidade do tempo. Tempo e espao, comeam a misturar-se e esta vai ser uma das caractersticas da nova arte da fotografia.

HISTRIA A ptica proporcionava as imagens da camera obscura mas s a qumica as poderia fixar. Com efeito, uma vez extinta a luz, da imagem no restava trao, a menos que a mo do artista a tivesse pacientemente copiado. A histria da descoberta da fotografia a histria da fixao das imagens produzidas pela luz. No , todavia, necessrio ser-se qumico para perceber que a luz pode ter uma aco modificadora (reaco) sobre certas substncias. A pele humana exposta ao sol por um processo gradual e suave (para evitar as leses) escurece. Todos conhecemos o anedotrio associado ao desenho que os trajes balneares (do fato de banho ao monoquini) deixam no corpo humano queimado pelo sol. So verdadeiras fotografias que registam a transformao de certas substncias chamadas furocumarinas em melanina. Deve notar-se que aces mecnicas podem ter efeito semelhante no me refiro s ndoas negras mas, antes, aos processos de degradao e oxidao induzidos em hortalias e frutos (bananas, mas, etc.) quando so apalpados e pressionados. Mas quaisquer que sejam as imagens assim produzidas, elas no so permanentes com o andar dos tempos a tez dos caucasianos volta a ser plida, e a fruta escurece toda e apodrece. Os primeiros estudos fotoqumicos dos sais de prata no prometiam muito melhor. Continuando os trabalhos de Schulze, o qumico sueco Carl Wilhelm Scheele (17421786) o co-descobridor do oxignio mostrou que, de todo o espectro solar, eram os raios violeta que escureciam mais rapidamente o cloreto de prata, AgCl. Pela mesma altura, Jean Senebier, um bibliotecrio de Genebra, dedicava-se ao estudo da aco do sol sobre vrias substncias, descobrindo que certas resinas (hidrocarbonetos de elevado peso molecular) endurecem e se tomam insolveis em essncia de terebintina, aps serem submetidos aos raios solares; igualmente verificou que o escurecimento produzido no cloreto de prata por

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luz vermelha em 20 minutos equivalente ao escurecimento obtido por luz violeta em 15 segundos. Por outras palavras, a qumica poderia separar as cores. Scheele tinha provado que a aco da luz sobre os sais de prata era de natureza qumica: o cloreto de prata escuro no era solvel em amnia, ao contrrio do que sucedia com o cloreto de prata normal e branco. Mais tarde descobrirse-ia que o cloreto de prata escuro no passava de prata metlica (os metais muito subdivididos ou em p so pretos). A aplicao destes factos ao desenho de imagens pela luz parece imediato, e de facto Thomas Wedgwood

produo de imagem, experimentava com substncias resinosas do tipo das que endurecem por aco da luz (asfalto). Usando placas de pedra, vidro, cobre, prata ou estanho cobertas com uma camada de betume da Judeia dissolvido em leo de alfazema, foi-lhe possvel captar os contrastes de luz e sombra definidores das imagens, mergulhando as placas em essncia de terebintina aps

Fig. 12 Nicphore Nipce, Heliografia gravada do Cardeal dAmboise, 1826-27.

Fig. 11 Lonard Franois Berger, Retrato pstumo de Nicphore Nipce, 1853-54.

(o filho de Josiah Wedgwood, o fundador da indstria cermica inglesa e uma das figuras tutelares da primeira revoluo industrial), de colaborao com Sir Humphry Davy (o grande qumico da poca e presidente da Royal Institution de Londres), conseguiram obter imagens de insectos, folhas, rendas, etc., colocando-os em papel ou couro branco impregnados de cloreto de prata. Os resultados foram publicados no Journal of the Royal Institution, em 1802, mas tais raiogramas ou fotografias de contacto tinham um tempo de vida curto, e apenas podiam ser observadas luz de vela. A imagem era transitria, no estava fixada e com o decorrer do tempo toda a superfcie acabava por escurecer. Entretanto, em Frana, Nicphore Nipce (1765-1833), guiado pelo seu interesse em processos litogrficos de re-

exposio; as partes do betume no impressionadas devido interposio de objectos dissolvem-se, restando as zonas endurecidas (insolveis) pela aco da luz. Obtinha assim um baixo-relevo desenhado pela luz e fixo que podia ser em seguida usado como matriz gravada para a produo de tiragens, como nos outros processos de reproduo mecnica. O prprio Nipce se espantava com o resultado: Limage des objets se trouve reprsente avec une nettet, une fidlit tonnantes, jusq ses moindres dtails et avec leurs nuances les plus dlicates [...]. Leffet a quelque chose de magique. De colaborao com o gravador Lematre, Nipce produziu uma srie de tiragens, a mais conhecida das quais a do retrato do Cardeal Georges dAmboise baseado na gravura de Isaac Briot (1650); mas trabalhou tambm com aquilo a que chamou points de vue, obtidos directamente com a cmara escura. So tudo heliografias a escrita do sol ou desenho da luz. A heliografia (fotografia) mais antiga que se conhece (hoje na posse do Harry

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Fig. 13 Nicphore Nipce, Ponto de vista natural, tirado na casa Le Gras em Saint-Loup-de-Varennes, 1826-27.

Ransom Humanities Research Center, da Universidade do Texas em Austin) uma vista da janela do estdio de Nipce na sua propriedade Le Gras, em Saint-Loup-deVarennes. Como o endurecimento do betume pela luz um processo lento (formam-se ramificaes das cadeias dos hidrocarbonetos que conduzem a uma complexa estrutura de malha reticular rgida) os tempos de exposio eram muito grandes, da ordem da dezena de horas, at superiores a um dia! As projeces das sombras vm, pois, de ambas as direces, o que dificulta a leitura das imagens. Mesmo assim, fcil identificar na heliografia histrica de Nipce, o pombal esquerda, a pereira de copa esfarrapada deixando ver o cu por entre os ramos a meio, a cobertura enviezada do celeiro, o torreo da casa direita. A imagem aparece, evidentemente, transposta, os contrastes so esbatidos, mas com a prtica Nipce melhorou a definio das zonas claras e escuras graas ao tratamento com vapor de iodo, que transformava a prata em iodeto de prata.

Fig. 14 - Retrato de Daguerre ern daguerreotipia.

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Fig. 15 Diagrama ilustrativo da feitura dum daguerretipo: (a) preparao da placa; (b) exposio; (c) revelao; (d) fixao.

Daguerre, um arrogante pintor parisiense com jeito para o negcio (explorava o diorama com sucesso) muito interessado nas aplicaes da camera obscura, sabendo por terceiros dos progressos de Nipce, perseguiu-o insistentemente com o intuito de formarem uma parceria. A princpio desconfiado, Nipce acabou por ceder, sendo o acordo celebrado em 1829. Nipce trazia os frutos das suas investigaes laboratoriais, Daguerre uns vagos aperfeioamentos da ptica da cmara escura. Tanto bastou para trasformar a heliografia em daguerreotipia... Nipce, que faleceu em 1833, no viria a gozar o triunfo da descoberta. Daguerre utilizou o mesmo suporte que Nipce: folha de cobre prateada, tornada sensvel por exposio aos vapores de iodo (que formam o iodeto de prata, AgI, um sal fotossensvel) Figura 15 (a). Iluminada pela cena que pretendia fotografar, a placa continha uma imagem latente que interessava revelar. As zonas atingidas pela luz enegreciam gradualmente devido presena da prata metlica Figura 15 (b); as zonas de sombra permaneciam brancas (a cor do iodeto de prata) enquanto se mantivessem s escuras. Por outras palavras, o processo gerava um negativo da cena fotografada as regies iluminadas apareciam negras e as zonas escuras e de sombra, brancas. Para revelar a imagem positiva, Daguerre expunha a placa aos vapores de mercrio quentes que em contacto com a prata metlica formavam uma amlgama esbranquiada (o mercrio no se combina com o iodeto de prata) figura 15 (c). A imagem era finalmente fixada, neutralizando o iodeto de prata que no tinha sido atingido pela luz, por lavagem com uma soluo de sal, das cozinhas (cloreto de sdio, NaCl) figura 15 (d). O resultado um daguerretipo de grande definio e nitidez, em que se contrastam o branco-

Fig. 16 J. Moffat, Retrato carte-de-visite de W. H. Fox Talbot, 1864.

metlico da amlgama e o cinzento-escuro metlico da prata. A observao em condies ptimas jogam com as reflectncias (poder reflector) de ambas as superfcies metlicas, o que justificou a designao de espelho com memria que lhe foi atribuda por Oliver Wendell Holmes.

Fig. 17 Camara obscura utilizada por W. H. Fox Talbot.

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Fig. 18 Desenho de W. H. Fox Talbot (Lago Lecco, Itlia, 1833) traado com a ajuda da camera obscura.

Fig. 19 W. H. Fox Talbot, Janela reticulada, negativo, Agosto de 1835.

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No daguerretipo o negativo gera, in situ, o positivo e a imagem , por consequncia, nica, e no pode ser multiplicada. Neste sentido a tcnica um beco sem sada, e uma traio ideia original de Nipce. Do outro lado da Mancha, um matemtico distinto, scio da Royal Society (F. R. S.), bem versado nos clssicos, amante da arte William Henry Fox Talbot (1800-1877) , procurava ultrapassar a sua bvia falta de talento para o desenho recorrendo camera obscura e tambm camera lucida (um dispositivo ptico reflector e refractor baseado num prisma de vidro de reflexo total).

Os resultados, mesmo assim, no eram animadores porque a presso da mo e lpis sobre o papel tende a fazer tremer e deslocar o instrumento [...]; e uma vez mexido o instrumento muito difcil traz-lo de novo sua posio inicial, e reatar o traado do desenho. A soluo era encontrar um meio mais eficiente do que o lpis infiel para captar as imagens fugidias que admirava no vidro fosco das suas cmaras. E acrescentava que a imagem... no mais do que uma sucesso ou variedade de luzes mais fortes atiradas para certas partes do papel, e de sombras mais profundas nas outras partes. Ora a luz, onde existe, pode actuar [...]. Suponhamos que

Fig. 20 Hippolyte Bayard, Auto-retrato, o Afogado, positivo directo em papel, Outubro 1840.

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o papel pode ser visivelmente alterado pela luz ... O resto a histria da fotografia. Talbot recorreu, ele tambm, aos sais de prata primeiro ao nitrato e, depois, ao cloreto precipitado, in situ, no papel (papel sensvel); para isso mergulhava o papel embebido em nitrato de prata numa soluo diluda (fraca) de cloreto de sdio. Para reduzir os tempos de exposio, pensou em concentrar os raios luminosos utilizando cmaras muito pequenas, cerca de 6 cm x 6 cm (a mulher chamava-lhe ratoeiras ...). A imagem era fixada mergulhando-a num banho de cloreto de sdio em ebulio. O excesso de cloreto estabilizava o sal de prata (AgCl) que no se tinha transformado em prata por aco da luz. Assim se obtinha um negativo sobre papel. Mas esta inverso dos valores claros e escuros podia ser rectificada, fotografando novamente o negativo para obter, desta vez, um positivo. essa descoberta de dualidade reversvel do negativo-positivo que est na base da fotografia moderna. O negativo mais antigo que sobrevive o da janela de biblioteca de Lacock Abbey a manso senhorial de Talbot com a sua inscrio manuscrita; quando acabada de tirar, os quadrados do vidro, em nmero de 200 aproximadamente, podiam ser contados com a ajuda duma lupa e datado de Agosto de 1835. , pelo menso, curioso que os documentos mais antigos que restam dos dois processos que esto na origem da descoberta da fotografia sejam fotografias de janelas. Metaforicamente a fotografia, que era uma nova maneira de ver, abria tambm janelas para o mundo. Entretanto Daguerre procurava avidamente explorar comercialmente a sua inveno, vendendo-a por subscrio. No teve sucesso. Apresentado na corte de LouisPhilippe, teve aceso s grandes personalidades da poca e conseguiu interessar o secretrio-geral da Academia das Cincias, o fsico Franois Arago (1786-1853), que se notabilizara pelas suas investigaes sobre o electromagnetismo. Foi Arago quem convenceu o governo francs a comprar a Daguerre os direitos daguerreotipia, e a oferec-los, depois, generosamente ao mundo inteiro. Il semble donc indispensable que le Gouvernment dedommage directement M. Daguerre et que la France, ensuite, dote noblement le monde entier d'une dcouverte qui peut tant contribuer aux progrs des arts et des sciences, conforme comunicao Academia das Cincias a 7 de Janeiro de 1839. Sabendo disto, Talbot resolve actuar. Envia a amigos e correspondentes, entre eles Michael Faraday, o director da Royal Institution de Londres e o maior cientista do seu tempo, exemplos dos seus desenhos fotognicos. Impressionado, Faraday comunica os resultados dos trabalhos de Talbot na sesso de 25 de Janeiro, convidando depois os membros presentes a admirarem, na biblioteca da instituio, os espcimens cedidos por Talbot. Uma semana depois, a 31 de Janeiro, o prprio Talbot que apresenta a sua descoberta Royal Society, numa comunicao intitulada Some account of the Art of the Photo-

genic Drawing, or the process by which natural objects may be made to delineate themselves without the aid of the artist's pencil (Uma descrio da Arte do Desenho Fotognico, ou o processo pelo qual se pode fazer com que os objectos naturais se desenhem a si prprios sem a ajuda do lpis do artista). Talbot chamaria caltipos (do grego, para significar imagem bela) aos seus desenhos fotognicos; mais tarde tambm conhecidos como talbotipos. Em Paris, o funcionrio de finanas Hippolyte Bayard (1801-1887) seguia uma via semelhante, obtendo tambm os seus desenhos fotogenados; deles d conta, a 5 de Fevereiro, ao fsico Csar Desprets. Bayard consegue imagens directamente positivas de elevada qualidade; no entanto, Arago convence-o a no revelar a sua descoberta a fim de no prejudicar o andamento das suas negociaes entre o governo e Daguerre (mais o filho de Nipce). Mesmo assim, Bayard expe, a 24 de Junho de 1839, os seus positivos directos (imagens de arquitectura e naturezas-mortas) numa festa de caridade a favor das vtimas dum terramoto na Martinica. O ano de 1839 veria ainda a publicao da memria de Daguerre, Historique et Description des Procds du Daguerrotipe et du Diorama, par Daguerre Peintre, inventeur du Diorama, officier de la Lgion-d'Honneur, membre de plusieurs Acadmies, etc., etc., e a descrio feita por Arago, perante a sesso conjunta das Academias de Cincias e de Belas-Artes a 19 de Agosto, do processo de Daguerre. Bayard tinha sido totalmente ignorado, muito embora viesse a conseguir que a Academia de Belas-Artes reconhecesse, em sesso de 2 de Novembro, a superioridade do seu processo sobre o de Daguerre, j que as imagens tinham l'avantage inaprciable et unique [...] d'tre fixes sur le papier. Em Outubro de 1840 Bayard faz um auto-retrato, em que se representa semi-nu como o cadver de um afogado, com uma legenda nas costas com um certo sabor de humor negro: O governo que deu demasiado ao Sr. Daguerre, nada fez pelo Sr. Bayard, e o desgraado afogou-se. Talbot tinha razo quando escreveu (1844) que o ano de l839 pode ser razoavelmente considerado como a data real do nascimento da Arte Fotogrfica, quer dizer, a da sua revelao pblica no mundo. Se a inveno do(s) processo(s) por cada um dos intervenientes (Nipce, Daguerre, Talbot, Bayard e outros) tinha sido um acto privado, no isolamento do estdio ou laboratrio, o anncio pblico tornou a inveno uma descoberta. 1989 MARCOU ASSIM O SESQUICENTENRIO DA DESCOBERTA DA FOTOGRAFIA. O principal problema na infncia da tcnica fotogrfica era a fixao da imagem, isto , a neutralizao do sal de prata no transformado pela luz. (O cloreto de sdio s resolvia parcialmente o problema.) A soluo bvia era a sua remoo, mas os halogenetos de prata so dificilmente solveis. Talbot experimentou com o ferrocianeto de potssio, mas foi Sir John Herschel (1792-

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Fig. 21 Anna Atkins, Festuca ovina, cianotipo, 1854.

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1871) quem props o hipossulfito de soda (hoje chamado tiossulfato de sdio) para a completa solubilizao e consequente remoo de todo o sal de prata no sensibilizado pela luz. este o mtodo ainda hoje utilizado. Matemtico, qumico e astrnomo, antigo presidente da Royal Society, Herschel era um dos mais distintos e generosos cientistas ingleses. Sempre atento aos progressos cientficos e tcnicos do seu tempo, ao tomar conhecimento dos trabalhos de Daguerre e de Fox Talbot, Herschel resolveu decifrar, ele prprio, alguns dos problemas e mistrios da fotografia. No seu caderno de apontamentos e observaes (hoje no Science Museum de Londres) pode ler-se a entrada para 29 de Janeiro de 1839: Experincia 1013: Experimentei o hipossulfito de soda para travar a aco da luz, arrastando todo o Cloreto de Prata ou outro sal prateado sucesso perfeito. De facto, Herschel tinha descoberto, em 1819, o cido tiossulfrico (a que chamou hipossulfuroso); era natural que investigasse as propriedades dos seus sais. Foi Herschel tambm quem criou a palavra fotografia, registando-a pela primeira vez a 13 de Fevereiro de 1839: Um dia belo e soalheiro. Todo o dia com grande interesse e sucesso na fotografia e raios qumicos. O seu uso do ferrocianeto (chamava-lhe ferrocianato de potassa) levou-o impresso a azul ou cianotipo, outro termo por ele criado, tal como tinha criado a terminologia do positivo-negativo e a fotografia em vidro (recoberto com carbonato de prata, o mais fotossensvel dos sais de prata).

Deve-se tambm a Herschel a inveno (1860) da palavra snapshot (ou instantneo), que viria a ficar como eptome da facilidade fotogrfica: a possibilidade de tirar uma fotografia como se fosse atravs dum snapshot. Talbot soube por Herschel do papel do tiossulfato na preservao ou fixao das fotografias e passou a us-lo correntemente. Em carta (em francs) a Arago, Talbot referiria escrupulosamente a importncia da descoberta do amigo: O meu prezado amigo, Sir J. Herschel mostrou-me recentemente um mtodo muito belo que ele inventou para preservar as imagens fotognicas. Mas no o posso descrever sem lhe pedir autorizao. Direi apenas que repeti as experincias dele com xito completo. QUMICA Um filme para fotografia um material estratificado, formado por vrias camadas sobrepostas, cada uma desempenhando um papel especfico.

Fig. 23 Estrutura do filme fotogrfico: (A) gelatina; (B) emulso fotossensvel; (C) base; (D) camada anti-halo.

Fig. 22 Julia Margaret Cameron, Sir John Herschel, Abril de 1867.

A base ou substrato , em geral, um plstico orgnico flexvel (o tereftalato de polietileno que substitui o antigo nitrato de celulose, instvel e perigosamente inflamvel). Sobre ela assenta uma fina camada de gelatina contendo em emulso a substncia fotossensvel um halogeneto de prata. Esta emulso protegida de eventuais abrases e outros desgastes mecnicos por uma capa de gelatina. Para evitar que a luz que atravessa o filme seja reflectida na superfcie de fundo da base (retrodifuso), causando novas aces fotoqumicas que prejudicariam a qualidade da imagem, a base forrada com uma camada antihalo capaz de absorver a luz. Esta camada removida durante a revelao. O fundamento qumico da fotografia , na sua essncia, simples: a reduo dum sal de prata a prata metlica, por aco da luz. A reduo (que o inverso da oxidao) uma transformao qumica especial que envolve a captao dum ou mais electres. Os cristais dum halogeneto de prata no so constitudos por molculas isoladas mas sim por ies (isto , tomos com excesso ou defeito de electres e por isso carregados electricamente) situados nos vrtices duma estrutura cbica. A parte sensvel do filme fotogrfico contm, em geral, uma mistura de cloreto e brometo de prata. Por exemplo, no brometo de prata os ies brometo so tomos de bromo com um electro a mais e por isso carregados negativamente, Br-, e os ies prata so tomos

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Fig. 24 - Estrutura cbica do cristal de cloreto de prata.

de prata a que falta um electro, isto , possuem carga positiva, Ag+. O nmero de ies prata igual ao nmero de ies brometo, e assim o cristal electricamente neutro. As linhas que unem os ies na figura tm apenas existncia virtual, e representam as foras de atraco elctrica entre partculas de cargas opostas que mantm a estrutura rgida. Os raios luminosos, por outro lado, podem ser entendidos como feixes de partculas de determinada energia os fotes. A energia dos fotes est ligada com a cor da luz, isto , o seu comprimento de onda ou frequncia. Assim, os fotes vermelhos tm menos energia que os fotes violetas; no admira, por isso, que a sua aco sobre os sais de prata seja mais fraca, como notou Senebier. Ao atingirem os ies brometo, os fotes suficientemente energticos removem-lhe o electro extra que imediatamente captado pelo io prata vizinho, sequioso de electro para ficar electricamente neutro. (Recorde-se que o electro, e -, a carga .elementar negativa). Ag+ + eio prata + electro Ago prata (metal)

lugar certo. Pode haver buracos, isto , um vrtice da estrutura sem io; pode haver troca de ies, isto , um io Ag+ onde devia estar um Cl- e vice-versa, com as deformaes da rede cristalina que tudo isto implica (cubo distorcido). O ataque ao cristal comea, em geral, pelas zonas mais vunerveis, isto , pelos seus defeitos. Os tomos de prata Ag o podem tambm perder o electro capturado e voltar ao estado inicial de io Ag+; o electro assim libertado pode ser apanhado por outro io prata, neutralizando-o em prata metlica. (Podia, tambm, ser captado pelo tomo de cloro transformando-o novamente em io cloreto Cl-, mas a gelatina do filme fotogrfico ou a celulose do papel impede este processo, combinando-se com os cloros livres.) A tendncia para os electres migrarem atravs do cristal at reunir os tomos de prata num conjunto prximo chamado agregado ou espculo de prata. este o mecanismo exemplificado na figura 26.

Fig. 26 Formao de agregados de prata.

Este esquema est ilustrado de maneira mais sugestiva na figura 25, correndo o risco, embora, duma licena qumica (os electres no deixam lacunas nos tomos ou ies, nem criam excrescncias; apenas modificam a simetria das possibilidades de ligao).

Os cristais de brometo de prata tm uma forma lamelar que os torna particularmente adequados a receberem luz. Quanto maior for a superfcie exposta do cristal maior o nmero de fotes que nele incidem. Todavia, o aumento do tamanho dos cristais na emulso fotogrfica (elevado gro) reduz a definio de imagem. o controle do tamanho dos cristais de halogeneto de prata que

Fig. 25 Esquema da reduo do io Ag+ a prata metlica Ago.

No h cristais perfeitos, isto , com todas as posies ocupadas pelos ies correspondentes o io certo no

Fig. 27 Estrutura lamelar dos cristais de brometo de prata, vistos ao microscpio electrnico.

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Fig. 28 Mecanismo de revelao: passagem da imagem latente imagem visvel.

determina a sensibilidade (rapidez) do filme. Assim, o dimetro mdio dos gros (cristais) num filme normal cerca de 800 nm (ou seja 0,0008 milmetro), enquanto o dum filme rpido ronda os 1100 nm. Uma vez impressionada pela luz, a pelcula guarda uma imagem latente. O processo, no entanto, tem de ser ampliado porque nos curtos tempos de exposio da pelcula fotogrfica no h um nmero suficiente de fotes a atingirem os cristais de brometo de prata para transformarem todos os ies Ag+ da zona iluminada em prata metlica negra, dando assim uma imagem contrastada de luz e sombra. esta ampliao do efeito da luz que constitui a fase de revelao. O revelador ter de ter um papel semelhante ao da luz, isto reduzir os ies prata a prata metlica. Estes. redutores qumicos (isto , fornecedores de electres) so em geral compostos orgnicos derivados do benzeno, contendo grupos hidroxilo (OH) ou amino (NH2). Os mais comuns so a hidroquinona e o metol (sulfato de Nmetil-p-aminofenol), que se usam em soluo aquosa. Antes de submetida ao processo de revelao a imagem latente constituda por cristais contendo espculos de prata de variadas dimenses: s zonas que tinham sido mais iluminadas correspondem agregados maiores, s zonas menos iluminadas agregados, em mdia, mais pequenos, e s zonas escuras correspondem os cristais de brometo de prata no transformados em prata. Estas trs situaes esto representadas por (a), (b), (c) na figura 28.

O mistrio est em que sendo o revelador um agente redutor, isto , capaz de reduzir o io Ag+ a prata metlica Ago, porque que ele no actua sobre todos os ies Ag+ de todos os cristais, gerando assim uma imagem (negativo) completamente negra? Este problema foi recentemente esclarecido por investigadores do CNRS, que confirmaram o facto das propriedades dos tomos isolados serem diferentes das dos pequenos agregados de tomos, e diferentes ainda da substncia macroscpica. Por outras palavras, um tomo de prata, um espculo de prata ou uma barra de prata, embora sejam exemplos do mesmo elemento, com a mesma composio, tm propriedades (nomeadamente propriedades elctricas) diferentes. A nvel atmico isto no mais do que a constatao dum facto de todos conhecido: o comportamento dos indivduos isolados ou em grupo pode ser completamente diferente. Entre as propriedades que variam est, por exemplo, a energia necessria para remover um electro ao tomo de prata para o transformar em io Ag + (ou a energia libertada quando se fornece um electro ao io para o transformar num tomo electricamente neutro, Ago). No vcuo esta energia maior para o tomo isolado, diminuindo com o nmero de tomos de agregado; por outras palavras, mais difcil retirar um electro a um tomo isolado do que a um tomo no seio de outros tomos. De certo modo, a companhia de outros tomos enfraquece o tomo em questo. Em soluo este mecanismo mais complexo, mas sucede, como indica a Figu-

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ra 29, que essa energia de remoo do electro (chamada potencial electroqumico quando medida em relao ao que se passa com o hidrognio) aumenta com o nmero de tomos do agregado. Por consequncia, a estabilidade dos agregados de tomos de prata em relao

Fig. 29 Variao de energia de ionizao e do potencial electroqumico de agregados de tomos de prata com o nmero de agregao (adaptado de la Recherche, 21, 52 (1990)).

perda de um electro varia em sentido oposto no vcuo e em soluo. No vazio predomina a estabilidade do tomo de prata isolado; mas em soluo prevalece a estabilidade do io isolado ou num agregado pequeno.

Para que o revelador possa actuar como dador de electres necessrio que o seu potencial electroqumico seja superior ao da Ag + /Ag o no agregado. (Como em todos os potenciais, o fluxo s se d do nvel mais alto para o mais baixo.) De acordo com a figura 29, isso s acontece a partir dum nmero de agregao igual a 5 (ponto de cruzamento da linha correspondente ao revelador com a curva do potencial electroqumico dos agregados de prata em soluo). Pelo contrrio, ies Ag+ em agregados inferiores a 5 tomos so estveis em relao ao revelador. Isto explica a razo por que o revelador apenas actua sobre os ies Ag+ em agregados grandes, acabando por transformar todo o cristal em prata figura 28 (a) enquanto deixa imutveis os agregados pequenos figura 28 (b). As vrias gradaes negro, menos escuro ou cinzento, claro so assim o reflexo do tamanho dos espculos de prata nos cristais (imagem latente). Pelo contrrio, se a pelcula com a imagem latente fosse mergulhada numa soluo dum agente oxidante (actuao inversa do redutor) dava-se a dissoluo dos agregados de prata de potencial mais negativo, desaparecendo a imagem latente (regresso). Como h sempre oxidantes presentes em soluo (por exemplo, o oxignio do ar dissolvido na gua) essencial juntar um antioxidante ao revelador para combater a aco de potenciais oxidantes. E este o papel do sulfito (que reage com o oxignio para dar sulfato).

Fig. 30 Heinrich Khn, Sem ttulo, goma bicromatada, ca. 1910, Museum of Modem Art, Nova Iorque.

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CARCTER Se certo que foi a qumica que gerou a fotografia, bom no esquecer que a fotografia foi tambm criada por artistas para artistas. O prprio Daguerre escreveu que a sua descoberta iria dar um novo impulso s artes [...] e, longe de prejudicar aqueles que as praticam, vai-lhe trazer grandes benesses. A classe ociosa ach-la- uma ocupao muito atraente ... e o pequeno trabalho que ela d agradar muito s senhoras. E assim foi. S em 1849 foram tirados cerca de 100 000 daguerretipos (retratos) em Paris e em 1862 produziram-se para cima de 105 milhes de fotografias em Inglaterra. O mais sublime dos fotgrafos, Eugne Atget (1857-1927) ps tabuleta porta de casa com o anncio do seu mester, Documents pour artistes, com a concluso implcita de que no era um deles. E embora Atget fosse um fotgrafo de olhar lmpido e corao puro, que registava sem alindamento aquilo que via, outros se encarregavam de meter a fotografia nos tiques e truques da pintura. Eram a focagem ou desfocagem macia, o uso de glicerina e gazes para aumentar o poder difusor das lentes, a adopo de tcnicas pontilistas como o bromleo

ou a goma bicromatada, a violao do negativo atravs do risco, da pintura e do borro. O resultado causava espanto por ter sido produzido por uma mquina. David Octavius Hill (1802-1870) foi convidado a pintar, em 1843, um retrato dum grupo de mais de quatrocentas pessoas, para comemorar a primeira assembleia geral da nova congregao de ministros que tinha abandonado a Igreja Presbiteriana da Esccia. Tratava-se duma encomenda herclea que, para manter um mnimo de verosimilhana, s a fotografia poderia ajudar. Por isso Hill entrou em contacto com o fotgrafo Robert Adamson (1812-1848) e juntos fotografaram todos os membros da congregao mais de 1800 calotipos. O resultado final The First General Assembly of the Free Church of Scotland Signing the Act of Separation and Deed of Demission 23 May 1843 m pintura (embora talvez digno de figurar no Guinness Book of Records) mas pelo caminho tinha ficado uma excelente galeria de retratos fotogrficos. Os primeiros grandes praticantes de fotografia foram os pintores e alguns, como Degas, depressa transportaram para a tela as singularidades da nova arte: enquadramentos arrojados, com os corpos e objectos decepados

Fig. 31 Ansel Adams, Nascer da Lua, Hernandez, New Mexico; 1941.

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pelo permetro do rectngulo. A pouco e pouco uma nova mquina a cmara fotogrfica estendia as possibilidades do olhar (tal como o microscpio e o telescpio faziam na cincia). E as novas tcnicas fotogrficas (coldio hmido, coldio seco, papel salgado, platinotipia, etc.) determinavam aquilo que se podia ver. A fotografia vai procura do evanescente das nuvens e das guas revoltas, das pessoas e carruagens em movimento at porque o voltil extremamente rico em emoes. A partir de 1888 tudo se simplificou com a inveno, por George Eastman, da mquina Kodak, fcil de transportar e de usar. Voc carrega no boto deixe o resto connosco era o slogan que pegou at hoje. Mas se o carregar no boto o mesmo, o resultado sempre intrigantemente diferente. No h dois fotgrafos, por semelhantes que sejam esttica e temperamentalmente, que fotografem o mesmo objecto da mesma maneira. E mesmo aqueles fotgrafos que preservam a perfeio tcnica, como Ansel Adams (1902-1984), conseguiram instintivamente algumas das suas melhores imagens seguindo as leis do acaso. Foi o que aconteceu com o celebrrimo Moonrise over Hernandez, New Mexico (1941).

o prprio Adams que conta a histria, depois de um dia de desiluses procura da fotografia que nunca aparecia: Viajvamos em direco ao sul, ao longo da auto-estrada, e no estvamos muito longe da espaola quando olhei para a esquerda e vi uma situao extraordinria, uma fotografia inevitvel. Quase fui parar com o carro a um barranco, mas sa a correr com a minha cmara 8x10. Gritava para os meus companheiros para me trazerem as coisas do carro, enquanto eu me esforava por mudar os componentes das lentes Cooke-Triple-Convertible. Eu tinha uma visualizao clara da imagem que pretendia, mas quando o filtro Wratten No 15 (G) e o rolo de filme estavam finalmente no seu lugar, no consegui encontrar o medidor de tempo de exposio Weston! A situao era desesperada: o sol baixo estava a roar a borda das nuvens a ocidente, e as sombras depressa escureceriam as cruzes brancas [...]. Estando ciente, enquanto disparava o obturador, que tinha uma fotografia invulgar que merecia um negativo em duplicado, inverti num pice o carregador mas quando me preparava para puxar o caixilho, a luz do sol deixou de iluminar as cruzes brancas, e falhava por poucos segundos. O negativo isolado tornara-se, de repente, precioso. Este acaso (outros chamar-lhe-o sorte) menos o

Fig. 32 Eadweard Muybridge, O Cavalo em Movimento, 1878.

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acaso da transformao dum objet trouv numa obra de arte, e mais o acaso da descoberta cientfica no premeditada. A arte fotogrfica to singular que no necessita sequer do intermedirio, a mquina. Talbot obteve os primeiros desenhos fotognicos colocando objectos em cima de papel sensvel. Moholy-Nagy (1895-1946) e Theodore Roszak fariam o mesmo, cem anos depois. Conta-se que a grande fotgrafa humanista Dorothea Lange (1895-1965) foi visitada no seu leito de morte no hospital por Robert Frank (n. 1924). sada Frank notou que ela o olhava de maneira especial. Julgando que ela lhe queria ainda falar, Frank deteve-se para lhe perguntar se precisava de alguma coisa. No foi a resposta, acabo de te fotografar. O carcter especfico da fotografia deriva tambm da sua posio charneira entre as artes do espao e as artes do tempo. Fora Lessing quem apontara que a provncia de pintura (como da escultura ou arquitectura) o espao, e que s a msica (e o romance) podem representar capazmente o tempo. A msica, por ser uma arte essencialmente no descritiva, a mais pura e abstracta das artes, a forma de arte qual todas as outras aspiram. (Nas cincias, posio semelhante ocupada pela matemtica.) Que a msica descreve a progresso do tempo, coisa que qualquer de ns pode constatar um quadro ocupa espao na parede, mas precisamos de tempo para ouvir uma sinfonia. Todavia a introduo do

Fig. 33 George Stubbs, Placa com Dezanove Estudos de Cavalos, Jaspe Verde Wedgwood, 1788/9.

Fig. 34 Eadweard Muybridge, Mulher Nua voltando-se, subindo escadas, Placa 104 de The Human Figure in Motion, 1887.

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tempo na pintura faz-se no atravs da msica, mas sim atravs da fotografia. Claro que tinha havido outras tentativas, como a da pintura narrativa da poca victoriana (pr-rafaelita e no s) em que as cenas pintadas contavam uma histria. Por outro lado, Monet (1840-1926) tentou descrever o tempo na pintura atravs da captao de instantes bem espaados: as vistas sucessivas que pintou ao amanhecer, em pleno sol, com nevoeiro, ao crepsculo das catedrais francesas e das casas do Parlamento em Londres. Espao e tempo combinam-se para construir o movimento e a anlise deste, feita pela fotografia, que tornou a pintura mais cintica e tambm mais futurista. Tudo comeou com uma aposta, e com a obsesso do governador da Califrnia e presidente dos Caminhos-de-Ferro do Pacfico Central, Leland Stanford, com os temas equestres. Stanford era um criador de puros-sangues e

pediu ao seu amigo e grande fotgrafo do Oeste americano, Eadweard Muybridge (1830-1904), para fotografar o seu cavalo favorito, Ocidente. A aposta depois foi distinguir o papel das patas traseiras e dianteiras do cavalo no trote, nomeadamente se haveria algum instante em que o cavalo conservava as quatro patas no ar. Muybridge concebeu um engenhoso sistema para fotografar cavalos em movimento na quinta do governador em Palo Alto: uma bateria de mquinas fotogrficas a serem sucessivamente disparadas passagem do cavalo em frente da objectiva (o disparo era accionado pelo prprio cavalo, ao quebrar um fio atravessado no percurso). As fotografias eram tiradas a intervalos de 27" (cerca de 70 cm) e 1/25 segundos e com tempos de exposio inferiores a 1/2000 seg. O resultado pode admirar-se na Figura 32 e contrasta vincadamente com a representao clssica do cavalo em movimento, por exemplo por

Fig. 35 tienne-Jules Marey, Cronofotografia de Cavalo branco em fundo negro, 1886.

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George Stubbs (1724-1806), o grande pintor de cenas equestres e autor do importante estudo anatmico Anatomy of the Horse (1766). A partir de 1872, Muybridge iniciou um trabalho sistemtico de exame fotogrfico do movimento, culminando nas duas publicaes monumentais Animal Locomotion (1886-89) e The Human Figure in Motion (1901). Entretanto, em Frana, o fisiologista tienne-Jules Marey (1830-1904) tinha sido o primeiro cientista a dedicar-se ao estudo do movimento em todas as suas formas: as contraces dos msculos, a corrente sangunea, o voo das aves e insectos, etc.. Para isso inventou uma srie de aparelhos que lhe permitiam observar e registar os movimentos que por uma razo ou outra a vista humana no conseguia destrinar. Entre os mtodos que utilizou salienta-se a fotografia contra fundo de papel grafitizado ou vestindo os seus modelos com fatos de treino pretos, sendo as linhas dos membros avivadas a metal branco brilhante. Criou assim as cronofotografias. Os mtodos e objectivos de Marey e de Muybridge eram significativamente diferentes. Muybridge procurava canalizar o movimento decompondo-o nos seus passos essenciais; Marey queria sintetizar numa nica placa fotogrfica os movimentos sucessivos, tomados dum ponto de vista nico, por uma lente que seguia a trajectria do sujeito. Daqui at ao Nu a Descer a Escada de Duchamp (1887-1968), que tanta sensao criou ao ser exibido no famoso Armory Show de Nova Iorque, em 1913, ia um passo. Conforme o autor escreveria mais tarde, esta pintura uma organizao de elementos cinticos, uma expresso do tempo e espao atravs da apresentao abstracta do movimento. Mas notem bem, quando consideramos o movimento duma forma atravs do espao, entramos no domnio da geometria e da matemtica, tal como o fazemos quando construmos uma mquina com esse fim. Por exemplo, se eu quiser mostrar um aeroplano a levantar voo, tentarei mostrar o que ele faz; no pintarei uma natureza-morta. Quando tive a ideia para este nu eu sabia que ele quebraria para sempre as cadeias escravizantes do naturalismo. H um certo paradoxo no facto da fotografia, que nasceu para ser o espelho do real, vir a ser um dos instrumentos da destruio do naturalismo. Mas o seu jogo dialctico entre o preto, que a ausncia de cor, e o branco que so todas as cores , j de si, antinaturalista. Octavio Paz afirmou algures que a realidade mais real a preto e branco. Esta a realidade da poesia. H

lugar para a poesia num mundo onde a comunicao feita por prosa, assim como h lugar para a fotografia a preto e branco num universo que se v a cores. O preto e o branco so tambm os dois domnios (espaos) e os dois tempos da fotografia: a noite e o dia, as trevas e a luz, a cidade e o campo, o fogo e o gelo, a ignorncia e a sabedoria, o passado e o futuro. Logo no incio da fotografia (1861), Nadar (18201910) conquistou estes dois espaos e estes dois tempos: desceu s catacumbas de Paris para, no escuro, fotografar o passado arqueolgico (a repousam 6,7 milhes de esqueletos, cobrindo dez sculos de histria Le noir rendez-vous de l'immense nant); e voou de balo sobre Paris para saborear o futuro. O tempo do futuro o do progresso cientfico e tecnolgico, de que a fotogafia , ainda, uma testemunha privilegiada. Para Nadar o futuro estava no balo, mas ele viveu o suficiente para conhecer os embries das aeronaves. Hoje os limites do Universo atingem o limiar do nosso consciente atravs de imagens espectrais, processadas por computador. Em 1989, no sesquicentenrio da descoberta da fotografia, foi possvel ver o aspecto dos nossos vizinhos Saturno e Trito. No seu Goodbye to Berlin (1939), Christopher Isherwood, (1904-1985) comea a narrao com a vista da janela, olhando a rua macia, solene e profunda: Sou uma cmara com o obturador aberto, completamente passiva, registando sem pensar. Registando o homem a barbear-se janela em frente, e a mulher de quimono a lavar a cabea. Um dia, tudo isto ser revelado, cuidadosamente impresso e fixo. Os termos so todos os do acto fotogrfico que, como o acto de amor, sempre a violao duma intimidade. O escritor regista as grandezas e misrias de todo o mundo e ningum, do everyman, do homem da rua, annimo, que uma imagem eminentemente fotogrfica. W. H. Auden (1907-1973) no seu belo poema I AM NOT A CAMERA responde ao seu amigo Isherwood The camera records visual facts: i.e. all may be fictions. *** Flash-backs falsity the Past: they forget the remembering Present. Sim, a cmara mente. Como as outras artes a fotografia no passa de uma fico que a da imaginao. Da o seu fascnio.

Fig. 36 Marcel Duchamp, Nu a Descer uma Escada, 1912.

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Fig. 37 Honor Daumier, Caricatura de Nadar (Nadar elevando a fotografis altura da arte), litografia, 1862.

SUGESTES DE LEITURA BEAUMONT NEWHALL: Latent Image. The Discovery of Photography Doubleday, New York, 1967 MICHEL FRIZOT, ANDR JAMMES, PAUL JAY E JEAN-CLAUDE GAUTRAND, 1839: La Photographie Rvle. Centre National de la Photographie, Photocopies, Paris, 1989.

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