33
Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 130 Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012. Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade Entrevista com a Professora Leonilde Servolo de Medei- ros Academia e movimentos sociais: uma pequena biografia de Leonilde Servolo de Medeiros Concedida a Revista IDeAS Graduada e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1971), Mestre em Ciências Políticas também pela Universidade de São Paulo (1983) e Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1995), Leonilde Servolo de Medeiros tem pesqui- sado ao longo de sua trajetória acadêmica e profissional temas como mo- vimentos sociais rurais, reforma agrária, políticas públicas, dentre ou- tros. Contemplada por três vezes pelo programa Cientistas do Nosso Estado da Faperj - Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro, Leonilde Medeiros é pesquisadora do CNPq e também foi secretária da Associação Latino Americana de Sociologia Rural (Alasru), no período 2006/2010 e presidente da Redes de Estudos Rurais (2010/2012) Atualmente é professora associada no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Uni- versidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde é coordena o Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políti-

6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 130

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade

Entrevista com a Professora Leonilde Servolo de Medei-ros

Academia e movimentos sociais: uma pequena biografia de Leonilde Servolo de Medeiros

Concedida a Revista IDeAS

Graduada e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São

Paulo (1971), Mestre em Ciências Políticas também pela Universidade

de São Paulo (1983) e Doutora em Ciências Sociais pela Universidade

Estadual de Campinas (1995), Leonilde Servolo de Medeiros tem pesqui-

sado ao longo de sua trajetória acadêmica e profissional temas como mo-

vimentos sociais rurais, reforma agrária, políticas públicas, dentre ou-

tros.

Contemplada por três vezes pelo programa Cientistas do Nosso Estado

da Faperj - Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro, Leonilde

Medeiros é pesquisadora do CNPq e também foi secretária da Associação

Latino Americana de Sociologia Rural (Alasru), no período 2006/2010 e

presidente da Redes de Estudos Rurais (2010/2012)

Atualmente é professora associada no Programa de Pós-graduação de

Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Uni-

versidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde é coordena o Núcleo de

Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políti-

Page 2: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 131

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

cas Públicas no Campo e pesquisadora do Observatório de Políticas

Públicas para a Agricultura (OPPA). Nesta entrevista, realizada na sala

de reuniões do CPDA, Leonilde Medeiros fala sobre sua trajetória

acadêmica e profissional, bem como sua relação com a pesquisa sobre

movimentos sociais: o sindicalismo rural, os movimentos sociais rurais,

dentre outros.

A partir de uma conversa, visamos explorar a trajetória, ou ainda, a ‘vi-

da de uma intelectual’, buscando entender como se opera e se dá a rela-

ção processual de um pesquisador cujo seu tema investigativo é os movi-

mentos sociais. Da mesma maneira, buscamos entender como é a relação

de uma pessoa envolvida com os movimentos sociais, quando esta se en-

contra no seio da academia.

Esta entrevista teve também por intento captar sua perspectiva quanto

às atuais ações políticas no campo, bem como mobilizações mais gerais,

tais como as chamadas “primaveras” e aquelas originadas e coorde-

nadas pela internet.

Desejamos que ao leitor uma leitura com prazer igual à nossa atual ale-

gria: de inaugurar em nossa revista uma sessão permanente dedicada a

entrevistas.

Revista IDeAS: Nos conte sobre sua carreira acadêmica: como foi sua en-

trada na graduação em Ciências Sociais na USP, o mestrado em Ciência

Política na mesma universidade e o doutorado em Ciências Sociais na

Unicamp?

Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações políticas. Foi um momento também em que a demanda pelos cursos de Ciências Sociais era enorme. No ano em que eu fiz o vestibular, a procura por Ciências Sociais era quase equivalente à da Medicina, em termos da re-lação candidato/vaga. E isso justamente por conta da conjuntura do Brasil: muitos achavam que estudar Ciências Sociais seria uma saída para resolver os problemas da Nação etc. Na cidade de São Paulo só ha-via cursos de Ciências Sociais na USP e na PUC. Uma alternativa era ir para o interior. Mas é óbvio que o sonho de todo mundo era ir para a USP, pelo prestígio de que essa Universidade gozava. Eu consegui en-

Page 3: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 132

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

trar no primeiro vestibular, e isso, fundamentalmente, devido ao tipo de curso colegial que eu fiz.

Naquela época, havia primário, ginásio e colégio (dividido em Clássico, Científico e Normal). Fiz o curso Clássico. E esse foi um momento ex-tremamente importante na minha vida. Eu vivia na periferia de São Paulo, de uma família que não tinha posses, família operária, com baixo grau de instrução: meu pai era semi-analfabeto, minha mãe tinha ape-nas concluído o curso primário. Quando tive de começar o ginásio, o co-légio mais perto da minha casa, por acaso, era considerado um dos mel-hores colégios públicos de São Paulo (Instituto de Educação Nossa Sen-hora da Penha). Fui estudar lá por acaso, não por decisão dos meus pais de me colocar numa boa escola. Simplesmente, fui para a escola mais próxima. Nesse colégio, onde cursei o ginásio e o clássico, o nível do en-sino era extremamente alto, e isso permitiu que os estudantes, grande parte deles filhos de operários ou de classe média baixa dos arredores da Penha, bairro da Zona Leste de São Paulo, pudessem se qualificar rapi-damente, pela excelência do nível de ensino. Era um colégio extrema-mente exigente, que tinha professores de uma qualidade impressionante e muito dedicados. Eu já lia muito, meu avô era professor primário apo-sentado e me estimulava muito a ler. Mas no colégio, abriram-se os ho-rizontes. Eu lembro que, no colegial, a professora de português nos con-vidava para ir ao teatro no final de semana. Foi nossa introdução (de quem vivia num lugar onde teatro era uma coisa inexistente), ou, pelo menos, a minha introdução, ao teatro, à música e ao cinema. Essas ati-vidades faziam parte do trabalho com literatura, dos trabalhos com as demais matérias. Por exemplo, no caso de francês, eu tive três anos de francês no clássico, cinco aulas semanais. A partir do segundo ano, tinha aula de conversação, que era sempre às segundas-feiras. Quem não fosse ao cinema no domingo não tinha o que falar na aula, porque o pro-fessor queria que comentássemos os filmes do fim de semana. Nós tínhamos que ir ver os filmes franceses. Era época do Godard, do Truf-faut etc. Isso fez com que, por exemplo, eu tenha adquirido nesse perío-do um francês muito bom, além de cultura geral. O curso de história era maravilhoso, o professor de História era fantástico, o de Geografia, o de Latim, enfim, um nível de ensino extremamente elevado e muito moti-vador dos alunos.

Page 4: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 133

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Isso fez com que na minha turma,- cerca de 23 ou 24 alunos terminaram o clássico - 18 de nós entrássemos na USP direto, em diferentes cursos, sem passar pelo “cursinho”: Letras, Ciências Sociais, alguns História, outros Geografia. E mesmo no caso do pessoal que fez Científico, alguns entraram em Medicina direto, em Engenharia, que eram cursos difíceis de entrar.

Com isso, quero assinalar a importância que a escola pública teve na minha vida. Na minha e na dos meus contemporâneos, dos meus vizin-hos lá do bairro onde eu morava, porque todos nós íamos todos para a mesma escola.

Eu decidi fazer Ciências Sociais sem muita clareza do que eu queria. Eu gostava muito de História, mas tinha dúvidas sobre se deveria fazer esse curso. Ir para Ciências Sociais aparecia como uma possibilidade de pensar o Brasil, os processos que estavam acontecendo. E optei sem muita clareza do que era e quais os desdobramentos em termos de car-reira profissional para o futuro.

Quando entrei na Universidade, ela estava ocupada pelos estudantes. Eu não tinha militância política prévia. Eu lia muito, mas nenhuma mi-litância política. Por isso, aquele clima que eu encontrei na USP me deixou extremamente perplexa. Eu não entendia muito bem o que esta-va se passando. Eu comecei a ir a uma assembleia ou outra. Comecei a tentar me inteirar do que era aquilo, mas muito preocupada, porque eu tinha entrado na Universidade, as aulas não começavam e eu queria iniciar logo o curso. Eu lembro que íamos, eu e uma amiga de colégio, que tinha entrado comigo, com nossos cadernos, novinhos, perguntar na secretaria: “Quando as aulas vão começar?” [risos]. Nós estávamos an-gustiadas.... Até que as aulas se iniciaram. Foi aí que eu comecei a en-trar no clima da efervescência política, apesar de não ter nenhuma mili-tância. Ia a uma assembleia ou outra, a algumas passeatas, mas não a todas. Estavam em pauta tanto a luta contra a ditadura como a luta por reforma universitária, fim da cátedra, composição de comissões pa-ritárias... Enfim, acompanhava o movimento estudantil, integrada, mas de longe. Não tinha qualquer participação mais direta.

Page 5: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 134

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Uma das atividades da USP, nesse período de ocupação foram módulos fornecidos por professores sobre determinados temas brasileiros. Eu olhei a lista dos que estavam sendo oferecidos e achei interessante fazer um módulo com a Maria Isaura Pereira de Queiroz, sobre o mundo ru-ral, movimentos messiânicos, que era o tema de pesquisa dela. Não me perguntem porque. Achei interessante. Acabei me encantando com-pletamente. Comecei a frequentar muito o Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU), dirigido pela Maria Isaura, que era uma professora excepcional.

Estou começando a entrar nas pessoas que marcaram minha vida. Ma-ria Isaura foi uma delas. Ela me via lá, sentadinha, lendo e um dia che-gou para mim e perguntou: “Por que você vem tanto aqui? Qual teu in-teresse?” Eu falei que tinha gostado desse módulo especial que ela tin-ha oferecido e que estava querendo ler coisas sobre o tema. Aí ela foi à estante, me deu alguns livros e textos: “Você tem que ler isso, isso, is-so...”. E eu comecei a ler e fiquei muito impressionada. Ela me deu vários livros de geógrafos para ler, para tentar entender o meio rural (nesse momento, os geógrafos tinham uma produção riquíssima sobre o rural: Pierre Monbeig, Nice Lecoq Muller, entre outros). O estudo do CIDA sobre o Brasil, que era um diagnóstico das questões rurais no país...

Estou falando de 1968 e 1969, anos em que eu estava cursando as disci-plinas obrigatórias, porque na USP era assim: nos dois primeiros anos eram só disciplinas obrigatórias, as teóricas básicas, e só no terceiro e quarto ano se faziam as optativas. No terceiro ano, quando terminei as obrigatórias, obviamente optei por um curso de Sociologia Rural com a Maria Isaura. E foi quando eu me iniciei efetivamente em pesquisa. A Maria Isaura, por meio do CERU, tinha um convênio com o Serviço do Vale do Paraíba e com o Serviço do Vale do Ribeira, que permitia a ela colocar estudantes de graduação em campo. Ela dava um curso de um ano, em duas partes (tínhamos que fazer matrícula a cada semestre). No primeiro semestre, preparávamos um projeto da pesquisa, a partir de um tema proposto por ela: eram leituras, discussões etc. Nas férias íamos para o campo e, no segundo semestre, complementávamos as leituras, trabalhávamos os dados e escrevíamos o relatório de pesquisa. Eu comecei, então, fazendo pesquisa no Vale do Paraíba sobre pequenos

Page 6: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 135

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

agricultores que produziam arroz irrigado. A partir daí a questão do ru-ral não me deixou mais: ficou algo extremamente forte para mim.

Eu tinha, ao mesmo tempo em que uma vontade e um interesse enormes de continuar estudando os temas rurais, também pensar sobre outros ângulos. Nesse mesmo momento, eu estava cursando as optativas, uma série de disciplinas que me deram uma bagagem teórica melhor para isso. Eu fiz cursos com o Francisco Weffort (foi quando tive meu pri-meiro contato com Gramsci). Também estudei com o Luiz Pereira, que na época era considerado um grande nome da sociologia do desenvolvi-mento (ele faleceu muito precocemente, deixou alguns livros publicados sobre o tema). Naquele momento, o Luiz Pereira era uma pessoa extre-mamente importante na USP, com diálogo forte com a sociologia francesa, com a ciência política francesa. Nos cursos do Luiz Pereira líamos Althusser, Poulantzas. Com Weffort também líamos Poulantzas.

Nesse meio tempo, eu já estava acabando a graduação e comecei, ob-viamente, a pensar em entrar para o Mestrado. Desde o segundo ano da graduação, eu trabalhava, dando aula, primeiro no colégio em que eu estudei, depois num curso de “madureza” (atual supletivo, para adultos), um pouco depois em outro colégio. Dava aulas de história, para o ginásio e colégio. Eu gostava muito do que eu fazia, mas achava que tinha que fazer o mestrado. Estava meio dividida, pensando em como eu poderia conciliar as duas coisas. Naquela época eram raras as bolsas de estudo. Só a Fapesp tinha um sistema regular de bolsas, dadas por meio dos orientadores. Para além dessa questão, que tinha a ver com minhas opções profissionais, havia outro problema: fazer mestrado com quem? Onde?

O caminho natural seria continuar com a Maria Isaura. Eu gostava muito dela, ela gostava muito de mim. Mas, nesse momento, estava despontando um nome novo na Sociologia, o José de Sousa Martins. Ele tinha acabado de defender a tese de doutorado e estava se credenciando para ser orientador de Mestrado. Era uma pessoa com quem eu tinha feito o curso de Sociologia I e que despontava como uma possibilidade de um outro olhar sobre o rural.

Eu optei por fazer o mestrado com o Martins, que representava outra vertente teórica. Minha turma foi a primeira turma de orientação do

Page 7: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 136

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Martins. E nós éramos uma turma, ou melhor, nos tornamos uma tur-ma, bastante unida. Tinha muita gente de fora de São Paulo. Naquele momento a USP era um dos poucos lugares do Brasil onde havia pós-graduação institucionalizada. Então, o pessoal de outros estados ia para lá fazer o Mestrado, o Doutorado. Na turma do Martins tinha duas ou três pessoas do Paraná (entre eles Walquíria Leão Rego e Rubem Murilo Leão Rego , que hoje são professores da Unicamp), o José Vicente Ta-vares dos Santos, do Rio Grande do Sul, a Élide Bastos, que na época já era professora da PUC/SP, o Cândido Vieitez, meu colega da graduação, que hoje é professor em Marília...

No Mestrado a formação foi intensa. Novamente, além da disciplina com o Martins, fiz cursos com o Luiz Pereira, com o Weffort. Foi nesse mo-mento, nas aulas do Martins, que comecei a ler os autores marxistas li-gados à questão agrária: Marx (a teoria da renda da terra), Lênin, Kautsky, Lefebvre. Tinha de começar a pensar um projeto de pesquisa e meu interesse, como era a marca da época, era tentar entender o desen-volvimento do capitalismo no campo.

Aí houve um desentendimento com o Martins sobre procedimentos acadêmicos. A USP tinha um sistema de admissão segundo o qual o aluno entrava no Programa de Pós por meio do orientador e o orientador era o senhor do seu destino, completamente. Num determinado momen-to, quando já tínhamos finalizado as disciplinas, Martins nos avisou que tínhamos um prazo para apresentar o projeto de mestrado. Fizemos uma reunião com ele, pedindo orientação sobre como fazer o projeto, quando poderíamos discutir etc e ele nos disse que só discutiria depois dos projetos entregues e apenas os que ele considerasse adequados. Aqueles cujos projetos ele considerasse inadequados seriam desligados. Isso criou certa preocupação, até porque ele já havia desligado uma alu-na de nossa turma de uma forma que consideramos arbitrária. No final, decidimos nos desligar coletivamente dele, mas permanecer na Pós e pedir tutela da Comissão de Pós-graduação até conseguirmos outro orientador, o que criou um tumulto na USP. Só um estudante do grupo permaneceu e demos todo apoio à sua decisão, porque ele era de fora e tinha uma bolsa da Fapesp. A ruptura implicaria em cancelamento da bolsa...

Page 8: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 137

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

A comissão de pós graduação da Faculdade de Filosofia, na época presi-dida pelo Azis Ab’Saber, nos deu apoio. Tratava-se de uma situação ab-solutamente excepcional. Cada um procurou então o seu caminho. Eu busquei a possibilidade de trabalhar com um professor que estava che-gando da França e que tinha sido orientado pelo Poulantzas: era o Brás de Araujo, que também já faleceu. Fomos eu e mais uma colega desse grupo conversar com ele e ele aceitou, dizendo que tinha interesse em trabalhar com a questão agrária, embora não tivesse pesquisa sobre o tema. Mas ele era de outra área, da Ciência Política e eu estava na So-ciologia. A transferência era impossível e tive que fazer nova seleção. Mas os créditos foram validados e eu fiz um curso adicional com ele. E aí comecei a repensar a minha tese, eu estava pensando em trabalhar al-guma coisa sobre os anos 1960, com o debate sobre reforma agrária, mas não sabia bem o que e como.

Eu reingressei no Mestrado em 1975. Para vocês verem como os prazos eram enormes: nesse tempo, o prazo regulamentar de mestrado na USP era de sete anos. Mas quase não havia bolsas. O suposto era que nós todos tínhamos que trabalhar...

Revista IDeAS: Você continuou dando aula de história, nesse período to-

do?

Professora Leonilde: Continuei. O tempo inteiro. Meu trabalho era esse: eu dava aula em colégio, normalmente à noite. Cerca de quinze ou vinte horas semanais de aula. E eu ficava com o dia livre, para poder estar na universidade, ir a bibliotecas, estudar. O ritmo de leitura era uma coisa alucinante, muito intenso e nenhum professor perguntava se os alunos conheciam ou não língua estrangeira. Esse era um dado. Nesse sentido, minha formação escolar prévia foi muito importante, pois eu lia bem em francês e inglês e conseguia acompanhar o ritmo.

Em 1976, uma amiga, que tinha sido minha colega de graduação e que continuava trabalhando com Maria Isaura e que, nesse momento, era

Page 9: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 138

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

professora na Faculdade de Ciências Agronômicas na Unesp de Botuca-tu me procurou e disse: “Olha, nós vamos começar uma pesquisa, esta-mos precisando de um pesquisador, você não quer ir? Tem que ficar três dias por semana em Botucatu”. Aceitei.

Era uma pesquisa intitulada “Estrutura agrária e produção de sub-sistência no Brasil”. A ideia dessa pesquisa era, com base nos cadastros do INCRA, tentar entender o que era chamada de “produção de sub-sistência” e qual era a sua contribuição para a agricultura brasileira. Eu não tinha nenhum preparo em métodos quantitativos. Mas havia duas pessoas na equipe que conheciam bem isso: o José Graziano da Silva, que coordenava a pesquisa, e a Ângela Kageyama, que estava sendo contratada naquele momento, como eu. O Graziano tinha acabado o Mestrado na Esalq fazia pouco tempo e a Angela ainda cursava. Fui trabalhar com essa equipe, da qual participava também a Sonia Berga-masco, e lá se consolidou meu interesse pelo rural.

Foi minha primeira experiência profissional como pesquisadora e foi muito rica, porque nós discutíamos muito, líamos muitos textos juntos para construir o que chamávamos de “quadro teórico” da pesquisa. Foi então que, pela primeira vez que eu ouvi falar em Contag. Não tinha ideia do que era ela. A Contag é quem tinha encomendado essa pesquisa para o Departamento de Economia Rural. Até hoje eu brinco com o pes-soal da Contag: “O meu primeiro emprego como pesquisadora, vocês é que bancaram!” [risos]. Como a pesquisa era financiada pela Contag, vez por outra um assessor da Contag ia lá, saber como estava o trabal-ho. Eu achava muito estranho aquilo: uma organização sindical enco-mendando uma pesquisa para a universidade. Estávamos em plena di-tadura... Mas achava ótimo! A equipe era maravilhosa e o trabalho mui-to interessante. E fui me integrando cada vez mais ao Departamento, gostando muito do clima de debate de lá, que dava vida às discussões teóricas que eu fazia na USP.

Nessa época o Departamento fazia também reuniões anuais sobre mão de obra volante, para discutir o problema desse tipo de trabalho que se disseminava rapidamente em São Paulo, como efeito da intensa moder-nização da agricultura paulista. Eu não participei da primeira reunião, que foi em 1975, mas a partir da segunda comecei a participar, não só

Page 10: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 139

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

da reunião, mas da organização. Porque eu estava lá, por dois ou três dias por semana, no departamento. Eu não era professora, mas me en-volvia com o trabalho, porque era muito interessante. Essas reuniões eram eventos em que se traziam pessoas para pensar o que era esse fe-nômeno do trabalho volante, que estava começando a aparecer em São Paulo. Foi nessas reuniões que eu comecei a ter um contato um pouco maior com o sindicalismo rural, porque nelas iam sindicalistas de São Paulo, do Rio de Janeiro. Foi quando conheci o Afrânio Garcia e a Lygia Sygaud, que eram chamados para falar sobre as pesquisas que estavam fazendo. O Afrânio, nessa época, era assessor da Fetag/Rio de Janeiro. O presidente da Fetag/RJ, o Eraldo Lirio de Azeredo, também freqüentava essas reuniões. E aí eu comecei a conhecer esse universo e me interessar enormemente por ele.

Essas discussões me ajudaram a definir melhor o meu tema de disser-tação e a começar a pensar em estudar a questão da reforma agrária no Brasil. Eu queria efetivamente entender o que tinha sido esse debate nos anos de 1950 e 1960. Foi aí que comecei a fazer um enorme levan-tamento de revistas de entidades patronais, de jornais de esquerda, le-vantamento bibliográfico. Obviamente, entrevista era uma coisa muito complicada: as pessoas não podiam falar, a linha de frente desse debate, tanto representantes de trabalhadores como intelectuais, estava em grande parte fora do Brasil. O trabalho de dissertação teria que ser feito com documentos: imprensa, revistas acadêmicas e políticas.

Ao mesmo tempo que eu estava começando a pensar minha tese, a deli-near o projeto, abriu uma vaga no Departamento e eu me inscrevi para o concurso e fui aprovada. Naquele momento a gente podia entrar na uni-versidade sem titulação alguma. Até porque não tinha muita gente titu-lada. Ingressei no Departamento de Economia Rural da Unesp de Botu-catu, na área de Sociologia e Extensão Rural, em 1977. Mudei para lá. Nesse momento eu já havia abandonado as aulas em colégio e era pro-fessora da PUC de Campinas, no curso de Arquitetura, da disciplina Es-tudos Socioeconômicos da Arquitetura e do Urbanismo. Também larguei esse trabalho e comecei a organizar minha vida em Botucatu, um local onde, naquele momento, circulava muita gente, por conta das reuniões de mão de obra volante, dos seminários e debates, das atividades cultu-rais promovidas pela associação dos docentes.

Page 11: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 140

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Em 1978, o Graziano foi para Campinas, a Ângela foi fazer o doutorado na Unicamp também. E na Unicamp constitui-se um outro polo de dis-cussão sobre o rural. Havia vários seminários lá, que eu também fre-quentava regularmente. Nesse tempo, Nazareth Wanderley tinha volta-do para o Brasil e também freqüentava esse grupo o Sérgio Silva. Naza-reth foi contratada como professora. Nós éramos conhecidos como “Gru-po do Matinho”, como éramos chamados por alguns professores do De-partamento de Economia da Unicamp, basicamente o João Manoel Car-doso de Melo e o Luciano Coutinho. Fizemos vários seminários discutin-do a questão agrária no Brasil naquele momento, as transformações em curso. Eu estava dividida entre estar envolvida nessas discussões todas, participar de pesquisas em Botucatu e escrever a dissertação, que eu precisava acabar.

Nesse meio tempo, o Roberto Moreira (que eu conhecia apenas de nome, quando ele ainda estava nos Estados Unidos, pois era amicíssimo do Graziano), me escreve (naquele tempo se escreviam cartas!) [risos] me perguntando se eu gostaria de ir trabalhar no CPDA, no Rio de Janeiro. A indicação de meu nome para ele tinha partido do Graziano. Num desses seminários da Unicamp, eu conheci o Nelson Delgado, que me chamou para ir conhecer o grupo. Eu não tinha nenhum vínculo com o Rio. Tinha ido a passeio uma vez e outra para fazer pesquisa de jornais na Biblioteca Nacional. Não conhecia o grupo do CPDA, a não ser por uma reunião com um deles, que foi a Botucatu conversar conosco sobre um enorme projeto de intercâmbio de pesquisa que eles estavam mon-tando.

Vim conhecer o CPDA, achei super interessante a proposta do Curso, uma excelente oportunidade profissional e resolvi arriscar. Pedi rescisão de meu contrato na Unesp e vim trabalhar no CPDA. Isso foi no início de 1979, ia começar a quarta turma de mestrandos. Para vocês terem ideia da diferença dos tempos: eu ainda nem havia acabado minha dis-sertação de mestrado (que só finalizei em 1982, devido à enorme carga de trabalho). Contudo, eu já tinha um livro publicado, produto dessa pesquisa, e que foi super reconhecido.

Quando cheguei ao CPDA, a minha tarefa era dar uma disciplina na área de Ciências Sociais. Até então predominavam os economistas e a

Page 12: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 141

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

ideia era ampliar os horizontes do curso. Eu tinha basicamente duas funções. Além de montar um curso na área de Ciências Sociais, sobre o que eu quisesse, eu deveria coordenar um projeto de intercâmbio, que estava ainda na fase final de desenho, o Projeto de Intercâmbio de Pes-quisa Social em Agricultura - o PIPSA.

A disciplina que eu resolvi montar, após conversar com alguns profes-sores e buscar apreender a estrutura do Curso, foi sobre movimentos sociais no Brasil. O ano de 1979 foi um momento de ascenso das lutas no campo e na cidade, mas a ideia de um curso desse tipo vinha também do que eu estava descobrindo na pesquisa e redação da minha disser-tação de Mestrado: a enorme importância das lutas no campo para o de-bate sobre reforma agrária. Não tinha praticamente nada de bibliogra-fia, a não ser sobre messianismo, a tese da Aspásia Camargo sobre as Ligas Camponesas e Sindicatos.... Foi muito interessante porque em razão disso montamos um pequeno programa de pesquisa com os alu-nos. Cada aluno fazia um trabalho sobre um tema, pesquisando biblio-grafia, jornais, documentos.... A bibliografia que eu tinha era mais teórica: eu me apropriava muito da bibliografia com que eu tinha tido contato nos cursos do Martins.

Foi a partir daí que eu comecei a trabalhar efetivamente com o tema dos Movimentos Sociais. Paralelamente, o PIPSA me deu outras possibili-dades. Os grupos do PIPSA, de alguma maneira, centravam o que era considerado, naquele momento, os grandes temas do Brasil. Eram cinco grupos: Movimentos Sociais, Pequena produção, Grandes produções agrícolas (que envolvia os debates sobre agroindústria), Amazônia e Es-tado e agricultura. Quando eu cheguei ao CPDA, esses temas já estavam dados, a partir das consultas que os professores do CPDA fizeram para a formatação do projeto. Eu não só estava na coordenação do PIPSA, como participava de um dos grupos, o grupo de Movimentos Sociais. Nas reu-niões desse grupo, eu conheci gente que estava pesquisando o tema do Brasil inteiro.

O PIPSA era uma experiência absolutamente inovadora nesse período. O Brasil não se conhecia. As pessoas estavam muito ilhadas nos seus locais. Eu, como era de origem “uspiana”, obviamente, achava que a USP era o centro do mundo e que, fora dos seus corredores, não havia

Page 13: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 142

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

nada de interessante. Na época, a USP era uma universidade que tinha mestrado e doutorado e abrigava os grandes nomes da Sociologia bra-sileira. Mesmo depois de cassados, de aposentados compulsoriamente, a imagem de Fernando Henrique, Ianni, Florestan Fernandes, Paula Bei-guelman pairava ali. Nós continuamos tendo aula com os herdeiros deles. Então, realmente, a gente se achava o centro do mundo. E, para minha surpresa, descobri, nos grupos do PIPSA, que havia uma enorme produção de conhecimento, de uma qualidade impressionante, fora dos muros da USP. O PIPSA virou uma parte importante da minha vida. Organizar o PIPSA, ir aos encontros: foi uma coisa fundamental. Porque, ao mesmo tempo que havia uma discussão teórica em torno dos nossos trabalhos, nesses grupos, em especial no de Movimentos Sociais, de alguma maneira, havia um embate político. Um embate sobre con-cepções de desenvolvimento, concepções sobre quais eram os atores fun-damentais. Para vocês terem uma ideia, no grupo de movimentos So-ciais do PIPSA foram discutidos os projetos de teses da Regina Novaes, da Élide Bastos, do Fernando Azevedo, do José Arlindo Soares, entre outros.

Naquele momento todos estavam em situação semelhante, escrevendo a dissertação de mestrado. Todos muitos jovens, começando carreira como pesquisadores. Mas havia alguns já titulados, como a Aspásia Camargo, que frequentava o grupo Estado e Agricultura. A Lygia Sygaud também frequentava o grupo de Movimentos Sociais.

Nesse momento, além das aulas e da coordenação do PIPSA, começamos uma grande pesquisa, sobre trabalho rural e educação, que juntava pro-fessores do CPDA e do IESAE (Instituto Superior de Estudos Avançados em Educação), que era um outro centro da Fundação Getúlio Vargas, onde trabalhavam o Cândido Grzybowski e a Julieta Calazans. Foi nesse momento que os conheci e que começamos a trabalhar juntos, num estudo sobre assalariados e formação profissional em Campos, no Rio de Janeiro. O Roberto Moreira coordenava esse trabalho pelo CPDA.

Revista IDeAS: Nesse momento o CPDA ainda era da Fundação Getúlio

Vargas?

Page 14: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 143

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Professora Leonilde: Era da Fundação Getúlio Vargas. Com condições de trabalho excepcionais, apesar de certa precariedade do prédio onde a gente estava lá no Horto (o Solar da Marquesa que hoje está belíssimo, foi todo reformado). Nós tínhamos uma excelente estrutura: mimeógrafo e operador, datilógrafos, boa secretaria...Quando eu terminei minha dis-sertação de mestrado, não tive problemas para datilografar a disser-tação e fazer cópias em mimeógrafo. Eu fiz várias cópias. Da mesma forma, havia muita facilidade para viagens. Um exemplo: como eu tinha conhecido o pessoal da Fetag do Rio de Janeiro nesses encontros em Botucatu, quando vim para o Rio, o Eraldo, presidente da Fetag, me procurou e convidou para ir ao III Congresso da Contag, como observa-dora. Falei do convite para o Nelson Delgado, que, na época, era o coor-denador do CPDA e imediatamente ele providenciou passagens e diárias para eu ir. Ou seja, o CPDA, desse ponto de vista, não só tinha in-fraestrutura, como sua coordenação era muito aberta para essas solici-tações.

Fui a esse III Congresso e foi outro momento marcante da minha vida! Eu tinha uma ideia muito teórica das lutas do pré-64, com base em pes-quisa para minha dissertação em curso (nesse momento ela estava bem adiantada, mas obviamente, fazendo tudo isso, o ritmo era mais lento, não é?). E o III Congresso foi uma experiência impressionante! Porque você via ali uma organização forte e porque, uma coisa é você falar com um dirigente ou outro, outra coisa é você estar lá. Eram cerca de 1600 delegados, uma empolgação muito grande. Você entrava na fila do al-moço e, enquanto faz hora na fila para se servir, você começa a conver-sar com o vizinho de fila e ele fala que participou das Ligas Camponesas de não sei onde, depois ficou um tempo na clandestinidade! Era um mundo! Uma coisa assim... uma emoção absoluta! Obviamente, a partir daí, a Contag virou um objeto de enorme interesse para mim. É até hoje, porque me parece que faltam pesquisas que deem sua correta dimensão e a importância política.

Foi nesse congresso que eu conheci pessoalmente o Moacir Palmeira, que era assessor da Contag, e já era uma referência nos estudos sobre o

Page 15: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 144

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

rural. Era um tipo de pessoa instigante, que tinha um pé na academia e um pé no movimento social.

O que eu conhecia de antes era militância política em organização política. Como eu disse, nunca militei mas vários amigos meus o faziam e eu era próxima de uma ou de outra. Eram organizações políticas, aquelas milhares de dissidências que se geraram nos anos 70. E ali, no congresso da Contag, eu vejo uma outra coisa: um movimento de trabal-hadores, organizadíssimos, que traziam em seus rostos as marcas da sua trajetória. E foi uma surpresa perceber a enorme diversidade do que eram os trabalhadores rurais do Brasil, sentados organizados por esta-dos nas plenárias (bastava olhar as feições para perceber essas diferen-ças) ou quando as questões e demandas eram apresentadas nas plenárias.

Nessas idas e vindas, o Eraldo me procurava muito e começou a me aproximar de um sindicato aqui do Rio, possivelmente com interesse de que eu assessorasse o sindicato de Cachoeiras de Macacu. Eu comecei a ir às reuniões do sindicato. Tinha acabado de acontecer uma ocupação de terras e havia uma divergência grande entre CPT e o sindicato, em termos de linha de ação. E eu ia para Cachoeira de Macacu com a Leilah Assunção, de carro, nós duas, ela pela CPT e a outra pelo sindicato, isso criava um estranhamento. Obviamente não deu certo...

Revista IDeAS: Isso foi quando, 1982?

Professora Leonilde: Não, foi em 1980, 1981.

Frequentando uma ou outra reunião da Fetag, como observadora, eu conheci o José Pureza da Silva, que me chamava para ir a um e outro lugar com ele e no caminho ia me contando coisas da sua militância no pré 64 (ele havia sido uma das principais lideranças de lutas por terra no Rio de Janeiro e havia coordenado a ocupação do Imbé em Campos). Era uma coisa incrível falar com ele e com a Josefa, sua esposa: eram histórias e mais histórias. Era uma pessoa densa, muito íntegra, que tinha passado por muitos sofrimentos, tanto quando esteve clandestino, como na prisão.

Page 16: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 145

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Nessa época também começaram as ocupações de terras, toda a história de Encruzilhada Natalino. Aí começaram atos de solidariedade na As-sembleia do Rio Grande do Sul e me chamaram para ir falar sobre o de-bate sobre a reforma agrária. O CPDA dava muita abertura para isso. Se os organizadores das atividades não davam passagem, o CPDA co-bria a ida.

Olhando pelo lado do CPDA, é preciso lembrar que esse foi o momento em que começou a crise com a Fundação Getúlio Vargas, em que foi denunciado o convênio que mantinha o Curso e nos transferimos para a Rural [UFRRJ], em início de 1982. Nós nos transferimos institucional-mente, mas não fisicamente, pois ficamos mais um ano ainda lá no Hor-to. A Rural nos recebeu de uma maneira excepcional: ela recebeu o curso todo, professores, alunos e funcionários. Abriu vaga para todo mundo, e nós nos transferimos em bloco.

Revista IDeAS: Para tentar contextualizar, quem eram os professores?

Professora Leonilde: Neste período estavam no CPDA: o Nelson Delga-do, que era o coordenador do curso e coordenou o processo de transição; o Paulo Beskow (que hoje está na UFScar); o Ivan Ribeiro, que morreu anos depois, num pouco esclarecido acidente de avião, com o ministro da Reforma Agrária; o Roberto Moreira; o João Carlos Duarte; a Regina Bruno, que era funcionária da Embrapa cedida ao CPDA; a Ana Célia Castro; a Maria José Carneiro, o Luiz Flávio Costa, a Eli Lima; o Anto-nio Carlos Nogueira, que é o atual diretor do nosso Instituto; a Silvana de Paula; o Cândido Grzybowski, que tinha vinco do IESAE; o Francisco Carlos Teixeira da Silva, que optou por não ir para a Rural , a Maria Yeda Linhares, que também optou por não ir, a Margarida Moura, que também não foi.

Quando fomos para a Rural, tivemos que nos adaptar a uma nova si-tuação, com mais dificuldade de recursos e com muito mais formalismo burocrático. Os recursos eram poucos e ao mesmo tempo estávamos diante do desafio de consolidar o Programa. Nesse momento começavam a serem defendidas as primeiras dissertações. Era um contexto de for-

Page 17: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 146

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

talecimentos das pós- graduações a nível nacional, com o sistema de avaliação começando a ser implantado... Nós tivemos que acompanhar esse movimento, nos situar.

Eu continuei com o estudo dos movimentos sociais, agora juntamente com Cândido Grzybowski e Regina Bruno. Criamos Núcleo de Movimen-tos Sociais, que agregava também vários de nossos alunos e pesquisa-dores do Rio. Participavam Neide Esterci, Regina Novaes... Fazíamos reuniões regulares de discussão e atividades de seminários. Nós acom-panhávamos muito a conjuntura. E isso alimentava a reflexão e a pes-quisa. Chegamos a fazer dois seminários (que estamos processando ago-ra para disponibilizar para consulta no Núcleo de Pesquisa, Documen-tação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo), para os quais convidamos quatro ou cinco sindicalistas de vários pontos do Brasil e os colocamos para falar sobre suas expe-riências. Não era um seminário grande, era para um público pequeno, cerca de trinta pessoas. Eram experiências tanto de sindicatos ligados à Contag, mas que tinham uma prática mais inovadora e “combativa” ( como se dizia naquele momento), quanto de sindicatos que eram fran-camente de oposição.

Então, nós vimos esse movimento de oposições nascendo. Conseguimos apoio da Fundação Ford, que garantiu recursos para arcar com a vinda dessas pessoas. Isso criou um certo estranhamento na Rural. A gente estava aprendendo, também, os novos caminhos burocráticos, as novas hierarquias....

Para vocês terem uma ideia do caráter artesanal desses encontros, esses sindicalistas vinham e ficavam nas nossas casas. Não tinha dinheiro para pagar hotel. Usávamos todo o dinheiro disponível para compra de passagens. Nos encontros do PIPSA, muitas vezes era a mesma coisa: as casas viravam como que hospedarias, ficavam dois, três em cada casa, e todo mundo achava ótimo: ninguém reclamava, ninguém pedia diária, todo mundo estava achando muito legal, porque era um momento de en-contros até então pouco usuais. O Alfredo Wagner tem um artigo intitu-lado “O momento dos primeiros encontros” (ou algo parecido) e eu sempre pego emprestado essa expressão, embora o Alfredo estivesse se

Page 18: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 147

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

referindo aos movimentos, especialmente da Amazônia, aos primeiros encontros que estavam ocorrendo lá.

Nesse meio tempo, eu já tinha defendido minha dissertação de mestrado e começado a pensar num doutorado. É interessante porque nós não tínhamos essa ideia, nem a pressão de titulação rápida. Metade dos pro-fessores do CPDA (ou quase isso) não tinha doutorado naquele momen-to. E isso não era um grande problema, porque não havia muitos dou-tores ainda no mercado. Isso vai virar problema no final dos anos 80, começo dos anos 90. Nesse momento aumenta a pressão e o estímulo pa-ra que se fizesse o doutorado e a própria Capes começa a reduzir concei-tos dos cursos onde havia grande número de não doutores. Na universi-dade, para se especializar, havia um programa de apoio à capacitação docente, em que você saía por quatro anos, com a bolsa, mantendo salário, desde que você fosse para outro estado. Se você ficasse no mes-mo estado, você saía só com o salário. Houve muito estímulo para à titu-lação dos docentes.

Eu estava com dúvidas sobre onde fazer meu doutorado. Uma possibili-dade era no Museu Nacional, onde eu tinha feito um curso em 1983, com Moacir Palmeira, como ouvinte. Foi um curso que me marcou. O tema era Campesinato e Política, um exercício fantástico, em termos de expe-riência pessoal: éramos levados a ler os textos em profundidade, trabal-har o texto por dentro e, ao mesmo tempo, ter debates muito bons. Era um curso, normal, de 15 aulas, mas deve ter tido umas vinte sessões. Nós tínhamos aulas à noite, na casa de alguém, para completar o pro-grama. O grupo era muito bom e as discussões excelentes... Foi um mer-gulho numa literatura teórica e depois nós apresentamos os nossos tra-balhos de pesquisa e discutimos.

Minha dúvida era: se eu fosse para o Museu teria que fazer a formação antropológica, com várias teorias, e eu não tinha muita certeza se que-ria fazer essa formação. Nesse momento se anunciou a abertura, na Unicamp, de um doutorado interdisciplinar em Ciências Sociais e achei que era o que mais se adequava ao meu perfil. Mas não pude fazer a seleção para a primeira turma, pois estava grávida e teria que ingressar e trancar. Por isso fiz seleção para a segunda turma, que foi seis meses depois.

Page 19: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 148

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Revista IDeAS: Isso foi quando?

Professora Leonilde: Eu comecei em março 1986, minha filha tinha nas-cido em agosto de 1985. O curso na Unicamp também foi uma expe-riência excepcional. Era um curso interdisciplinar, com várias áreas temáticas, e o que as agregavam era um Seminário Metodológico de dois semestres, coordenado pelo Roberto Cardoso de Oliveira, pelo Juarez Brandão Lopes e pelo Vilmar Faria. As discussões eram extremamente interessantes, reunindo pessoas de diferentes áreas temáticas. As ou-tras disciplinas eu fiz com os professores da minha área temática, Agri-cultura e Questão Agrária. Fiz também uma disciplina no curso de História, uma Teoria da História, com o Edgar de Decca. Depois fiz mais outra e cheguei a pensar se eu não deveria me transferir para o douto-rado na História, mas achei melhor ficar onde eu estava e, na tese, cru-zar as abordagens. Essa formação na História foi básica para mim, pelo contato com esses historiadores do grupo da História Social da Uni-camp. Foi uma outra vertente importante da minha formação.

Daí para frente fiz os créditos do doutorado muito tranquilamente, afas-tada, com bolsa (mas a tese só fui defender em 1995).

Revista IDeAS: Quanto tempo de doutorado?

Professora Leonilde: Naquele tempo? Sete anos, mas a bolsa era por quatro. Eu estava afastada, mas estava acompanhando ativamente o CPDA, porque foi um momento de inflexão, de crise, de divisão por áreas de concentração, de muitas discussões.

Nessa mesma época, Neide Esterci e Regina Novaes me chamaram para participar do grupo do CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e In-formação), que dava assessoria ao que estava naquele momento se cons-tituindo como o Departamento dos Trabalhadores Rurais da CUT. Aceitei e comecei a participar em vários eventos, organizar encontros com os trabalhadores, pensar uma série de coisas, sobre o que eram as

Page 20: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 149

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

oposições sindicais, e participar desses debates, escrevendo documen-tos... Meu tempo era dividido entre a tese, participação nos debates do CPDA, porque para mim o CPDA era mais que um trabalho... O CPDA sempre foi, para vários de nós, muito mais do que um local onde se tra-balha e ganha salário, era um envolvimento muito grande nas dis-cussões, na política institucional. Além disso, tinha o trabalho docente (em 1990 voltei à sala de aula e me encarreguei da disciplina Teorias Sociais), o trabalho de orientação que, neste momento, já era meio pesa-do, já tinha muitos orientandos.

Revista IDeAS: Isso nos anos 1990?

Professora Leonilde: É, eu comecei o doutorado em 1986. Essa crise do CPDA começa em 1988, 1989. Em 1989, 1990, eu estava ligada ao CEDI e ao trabalho junto ao DNTR, além, é claro, do envolvimento familiar (marido, dois filhos pequenos).

Esse foi um tempo de muita atividade. Nos anos 80, nós éramos cha-mados para muitas coisas. Durante a Nova República, na época do lan-çamento do PNRA ( Plano Nacional de Reforma Agrária), nós éramos sempre chamados para debates, vivíamos em programas de rádio, em debates públicos que ocorriam. Como eu tinha feito uma dissertação a respeito do debate sobre reforma agrária, obviamente as pessoas me chamavam muito.

Nessa época, ainda no início dos anos 80, tinha também o grupo de dis-cussão no IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas). Quando o Cândido saiu do CPDA e optou por ficar só no IBASE, nosso grupo continuou se reunindo lá. Também ia a algumas discussões na FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional). E isso foi me dando condições para uma reflexão sobre os movimentos sociais. Ao mesmo tempo em que lia e fazia reflexões teóricas, a participação nesses debates me colocava em contato com coi-sas que aconteciam em diversos pontos do país. Um resultado disso foi o livro que escrevi, por encomenda da FASE, a História dos Movimentos

Sociais no Campo: era um texto que a FASE pretendia usar como mate-

Page 21: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 150

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

rial de formação. Daí o formato, com mapas, ilustrações, linha do tem-po...

Revista IDeAS: Fiquei bem curiosa com uma coisa. Nessa época, a Regi-

na Novaes e você começaram a participar da formação [política] do

DNTR/CUT porque vocês tinham essa questão do rural bem forte. Isso

tem alguma relação com a formação dos “Rurais da CUT”? Vocês foram

chamadas para ser assessoras?

Professora Leonilde: Minha ida para o grupo do CEDI, como disse, foi no

final dos anos 80. O CEDI tinha um programa chamado Movimento Cam-

ponês e Igrejas, coordenado pela Neide Esterci, que nesse momento estava

muito preocupado com lutas por terra. Esse grupo era composto pela Neide,

Beto Novaes e a Regina Novaes que, nesse momento tinham voltado para o

Rio de Janeiro e saído de Campina Grande (eu os conheci em Campina

Grande, nesses encontros do PIPSA). Havia o Aurélio Vianna, o Luciano

Padrão, a Cecília Iório, a Mariana Pantoja, todos jovens, alunos da Neide,

que estavam fazendo mestrado. A Regina Bruno também foi chamada para

esse grupo.

Revista IDeAS: Fiquei tentando entender o que levou vocês a estarem em

um espaço como o da CUT nesse momento?

Professora Leonilde: Eu entrei no meio da história. A Regina Novaes tinha muita aproximação com as oposições sindicais na Paraíba e a Neide no Sul, com o pessoal sem terra. Certa vez, como eu já havia es-crito algumas coisas sobre a Contag, a Neide me chamou para falar sobre a Contag para o Avelino Ganzer, que era uma liderança de Santa-rém no Pará e, nesse momento, estava na Secretaria Nacional dos Tra-balhadores Rurais da CUT. Desde então, nessas reuniões da CUT, eu era sempre chamada para falar sobre a Contag.

O grupo do CEDI começou a assessorar a CUT e eu me agreguei ao gru-po. Inicialmente houve uma polêmica, na revista Teoria e Debate, entre

Page 22: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 151

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

a Regina Novaes e o Paulo de Tarso Venceslau, que era assessor do Ave-lino, sobre o lugar dos pequenos agricultores na CUT. Eu lembro que participei de um seminário no Instituto Cajamar (que na época era chamado de Universidade dos Trabalhadores), do qual participaram re-presentantes dos pequenos agricultores de vários pontos do país. A ideia era fazer a defesa de que eles tinham lugar no sindicalismo de trabalha-dores rurais.

Então, é um pouco isso, minha posição era de observadora em relação ao que ocorria no campo e aos movimentos sociais, participando dos de-bates, atendendo aos chamados que eles faziam, mas nunca me dispus a ter um trabalho mais orgânico com nenhum deles.

Revista IDeAS- O contato com o MST foi por esses grupos do movimento

sindical?

Professora Leonilde: É. Eu conheci alguns dirigentes do MST nesses en-contros da CUT, porque eram também sindicalistas. No início dos anos 1990 essas águas se separaram melhor, mas até o final dos anos 1980, eram muito misturadas. Do nosso grupo, o Cândido era o mais próximo deles. Eu lembro que uma vez, logo no início dos anos 1980, fui para o Rio Grande do Sul, acho que para uma banca de tese, e ele falou: "Olha vai entrevistar, conversar com fulano e fulano" e me deu o nome das pessoas. Eu nem sabia bem quem eram essas pessoas naquele momento. Era o João Pedro Stédile e o Vladimir Araújo, que era o editor do jornal do Sem-Terra. Enfim, são contatos para os quais você vai meio cru, sem saber exatamente quem são as pessoas e vai conversar totalmente des-preparada para conversa, mas, ao mesmo tempo, você acaba aprendendo muito com esses contatos.

Bom, essa minha aproximação com os movimentos sociais vai por aí, e também porque, obviamente, isso também foi tema da minha tese.

Não por acaso, eu sempre trabalhei num cruzamento entre sociologia, ciência política e história. Essa formação histórica para mim foi impor-tante. Não por acaso, também, eu me fixei em termos de maior investi-mento de pesquisa no período de 1945 e 1964, que foi o que eu estudei

Page 23: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 152

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

na minha tese de doutorado e da minha dissertação de mestrado. Ainda preciso voltar a esse período, que tem coisas interessantes, pouco es-tudadas.

Revista IDeAS: De maneira geral, quem são suas principais influências

teóricas? E destes, quem a senhora mais admira? E por quê?

Professora Leonilde: Em termos de influências teóricas, acho que eu já pincelei um pouco no que disse anteriormente. Tive uma influência teórica marxista forte, a partir, fundamentalmente, da minha entrada para o mestrado, via José de Souza Martins. Depois, quando eu já esta-va sob a orientação do Brás de Araújo, fizemos um grupo de leitura de “O Capital”. Nós lemos os três volumes de “O Capital”, nos reunindo uma vez por semana. Foram uns dois anos de leitura e discussão. Com o Martins, eu já tinha lido também partes dos “Gründisse”, a teoria da renda da terra. Era uma influência marxista muito multifacetada, porque veio de diferentes correntes. Por exemplo, uma pessoa outra pes-soa que pesou muito na minha formação foi o Luiz Pereira, com o qual líamos Althusser. Com o Francisco Weffort, eu comecei a ler Gramsci. Era uma tensão muito grande com o meu orientador, que tinha sido orientado pelo Poulantzas. Ele tinha uma forte vertente estruturalista, também. Eu fui caminhando sempre mais próxima a uma vertente his-toricista do marxismo, do que propriamente à vertente estruturalista. E isso tem a ver com a influência do Martins também.

Essa abordagem se consolida com as leituras de Thompson. Eu já tinha lido a “Miséria da Teoria”, um livro crítico ao Althusser, mas eu não tinha entendido o essencial do livro, não tinha ido fundo na crítica. De-pois eu comecei ler mais, quando foi traduzida para o português “A Formação da Classe Operária Inglesa”. Na sequência foi o artigo “Luta de classes sem classes?” e alguns artigos que depois foram publicados no livro “Costumes em comum”, como, por exemplo, o estudo sobre a economia moral. Mas o que fez totalmente a minha cabeça foi mesmo a “A Formação da Classe Operária Inglesa”.

Page 24: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 153

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Um outro autor importante para mim, que eu descobri quando fui fazer o curso do Moacir Palmeira, foi o Bourdieu e os autores que trabalha-vam muito próximos a ele.

Então, eu diria que essas foram as maiores influências, aquilo que está na minha raiz mesmo: Marx,Gramsci, Bourdieu e Thompson.

Mas, ao mesmo tempo, me beneficiei muito da leitura dos antropólogos, em especial os que estudam campesinato no Brasil: Moacir Palmeira, Lygia Sigaud, Beatriz Heredia, Neide Esterci, Afrânio Garcia... E o tempo inteiro eu continuei lendo o Martins, e várias questões que ele trouxe para pensar o rural e a sociologia que estuda o rural tiveram in-fluência sobre a minha forma de pensar. Acho que ele teve uma impor-tância fundamental na minha formação, mesmo discordando de algumas abordagens.

Hoje, eu navego mais em diferentes correntes de pensamento, mas são esses autores: são meu porto seguro, onde eu volto quando tenho neces-sidade de me aprofundar mais nas minhas questões. E, mais recente-mente, eu voltei a ler autores que já tinha lido bastante, mas agora, com um outro olhar. O meu interesse, que é mais ou menos recente, em So-ciologia do Direito me fez voltar a autores como Weber, Luhmann e ler mais Boaventura Santos.

Revista IDeAS: Como a senhora vê atualmente os estudos dos movimen-

tos sociais rurais, em termos de renovação e de diálogo da academia com

os atores sociais? E como a senhora vê os movimentos sociais rurais bra-

sileiros, atualmente?

Professora Leonilde: Acho que temos muita coisa, um acúmulo impor-tante de conhecimento produzido, mas que, me parece, necessita de uma sistematização, porque são muitos estudos pontuais. Há uma quanti-dade enorme de produções, que estão precisando de uma sistematização e de um adensamento teórico. Você tem muitos estudos de caso, uma riqueza enorme, mas para onde tudo isso aponta? Se eu fizer um balan-ço geral nesses estudos, que questões eles me trazem? Que influências teóricas é possível identificar?

Page 25: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 154

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

É uma tema que, inclusive, comecei a explorar. Cheguei a escrever em um texto preliminar, que apresentei num encontro da LASA (Associação de Estudos Latino-Americanos), mas não voltei a investir para publicar sobre quais as vertentes teóricas que iluminam a pesquisa sobre movi-mentos sociais no Brasil. Eu já orientei também uma tese de doutorado sobre isso. Eu tentei, depois, trabalhar um pouco mais, mas trata-se de um investimento de fôlego, que precisa de muito tempo para fazer. Não que eu ache que os casos não sejam importantes: acho que são essen-ciais. Mas estamos num momento - talvez até já tenha passado o mo-mento-, de fazer um grande balanço desses estudos, que mostre, no seu conjunto, que tipo de conhecimento está sendo produzido, quais as ques-tões que estão sendo trabalhadas e as que não. O que não está sendo olhado? O que não está sendo percebido nesses estudos? Quais questões ficam subjacentes? Acho que isso está fazendo falta: um grande balanço. Eu nem sei se é possível fazer esse balanço. A quantidade é tão grande que, se você for ver, seria um imenso investimento coletivo fazer isso.

Sobre os movimentos sociais, especificamente, hoje é um momento par-ticularmente difícil de falar sobre eles. Houve um momento, os anos 1980 e 1990, em que se percebia uma ofensiva muito grande dos movi-mentos sociais, de alguns movimentos, pelo menos. Eram os sindicalis-tas, o MST, pelo menos no que eu acompanhei, a Contag, as oposições sindicais e o MST. Depois eu acompanhei, de longe, a constituição da FETRAF, que era uma vertente do sindicalismo. Mas havia outras coi-sas como os seringueiros etc.

Hoje você tem a proliferação, ou melhor dizendo, talvez, eles sejam mais visíveis, diversos movimentos locais que apontam para uma grande ga-ma de reivindicações, que estão se fazendo em diferentes espaços e em diferentes lugares. E o grande desafio é saber se é possível algum tipo de articulação, para além de articulações pontuais. Eu acho que isso é uma questão a ser pensada, eu não tenho nenhuma certeza se é possível ou se é necessário.

O fato é que, se começamos a mapear essas reivindicações aparecem es-sas diferentes vozes que se manifestam, em encontros de diferentes ti-pos. É possível ver, inclusive, que as demandas, muitas vezes, são con-traditórias entre si. Então, eu acho que hoje está sendo necessário um

Page 26: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 155

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

olhar mais fino sobre o que essas lutas no campo produzem. Há algum tempo trabalhou-se com a ideia da unidade, que precisava unir em al-gum lugar, que tudo que não convergisse para um lugar era entendido como uma coisa ruim, desruptiva. Talvez hoje estejamos mais abertos para trabalhar com essa dificuldade de unir e compatibilizar agendas.

Trata-se de uma dimensão extremamente rica essa proliferação e essa afirmação de diversidade, da localidade. E, ao mesmo tempo, clara-mente, esses movimentos todos, essas lutas sociais estão acuadas. Quer dizer, as políticas públicas, as políticas de grandes projetos, ... mas eles resistem. Mas, quando você vai olhar as experiências concretas, como Belo Monte, Açu, a situação hoje é complicada. Há essa resistência contínua, que é extremamente interessante, mas é uma resistência em um momento difícil, até porque ela está muito dispersa. Se, olhando por um lado, é um fator positivo, por outro lado, essa desarticulação pode ser vista como negativa também. São tensões inerentes a esse processo.

Quando eu olho essa conjuntura, eu fico pensando, por exemplo, nos de-bates no final dos anos 1970. O que se dizia naquele momento era que a questão agrária havia acabado, a agricultura se modernizara, a reforma agrária era uma palavra fora de lugar. Esse era o pilar forte de algumas vertentes do debate intelectual no final dos anos 1970. Nesse mesmo momento, começaram as ocupações de terra que mostraram o quanto esse olhar das grandes linhas, das grandes tendências é frágil. Na ver-dade, as ocupações do sul foram a face mais visível disso, de um movi-mento de resistência também mais atomizado e que, numa conjuntura propícia, começou a ser mais visível e mostrou também, já naquele momento, atores diversificados que, ao longo dos anos 1980 e 1990, conseguiram reajustar o lugar dessas populações. Antes dos anos 1980 e meados dos 1990, quem falava de quilombola? Quilombola era uma coi-sa histórica, do passado e, de repente, (obviamente não é tão simples assim, tinha muita coisa por de trás), os quilombolas são reconhecidos, inclusive no texto constitucional. A partir daí, outros grupos começam a mostrar essas diferentes faces possíveis da resistência: Atingindo por Barragem, Seringueiros...

Revista IDeAS: Ribeirinhos?

Page 27: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 156

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Professora Leonilde: As Quebradeiras de Coco... Nesses vinte anos, nós descobrimos muitas formas de identidades que já existiam, mas que não se reconhecia e que não apareciam como atores políticos. Hoje você tem uma lista impressionante, que aponta, para o seu reconhecimento en-quanto sujeitos políticos e, o que chama atenção, principalmente en-quanto demandantes de políticas públicas. Quer dizer, a relação dos movimentos é uma relação, no geral, principalmente com o Estado. É uma relação com o Estado nas suas diferentes facetas, o Estado capaz de produzir políticas públicas, política de crédito, políticas de reconhe-cimento, políticas de reconhecimento de território, seja através de as-sentamentos, regularização de posseiros, reconhecimento até das cha-madas populações tradicionais, do seu direito de viver nas áreas de re-servas e áreas de conservação etc., tudo isso se traduzindo em norma-tizações. Daí meu trânsito para refletir sobre as leis e o Direito. Eu acho que o direito hoje, o Poder Judiciário, se tornou um campo importante de disputa política (se é que em algum momento deixou de ser). Eu diria que é um dos campos fundamentais de disputa e, de alguma maneira, ele acaba tendo um papel fundamental, tanto na constituição dos movi-mentos sociais, quanto na sua dinâmica. Este é um aspecto pouco es-tudado, que valeria a pena aprofundar: como os grupos sociais subalter-nos se aproximam e se apropriam do direito.

Mas, ao mesmo tempo você também tem se articulando, de diferentes maneiras, a ideia de que um outro mundo é possível, que temos que construir esse mundo e, ao lado disso, volta e ganha força uma perspec-tiva classista. O MST é exemplar deste ponto de vista, na medida em que ele começa a partir da luta pela terra e, em linhas gerais e sem olhar as nuances, o grande adversário nomeado pelo MST hoje são as grandes empresas transnacionais, o que significa atacar todo o sistema de produção e comercialização de produtos agrícolas, as grandes empre-sas químicas e biotecnológicas. Quer dizer, o grande inimigo é, como eles próprios dizem, o capital.

Nesta lógica classista, há um paradoxo: a classe que foi destinada pelo pensamento de esquerda a fazer a grande revolução social, não a fez. E quem está à frente deste processo talvez sejam grupos que querem fazer

Page 28: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 157

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

grandes mudanças, mas não sob a ótica da esquerda tradicional. São os camponeses que, por meios desses movimentos buscam reconstruir uma identidade política própria, são os desempregados... Então, isto é uma questão que está pautada, porque junta, numa articulação complexa, que absolutamente não é clara, a demanda pelo reconhecimento do local, pelo reconhecimento de modos de vida, com uma luta contra o grande capital. Isso não é muito simples, não é nada, nada simples. Mas é esse o panorama.

É interessante você ver quem são os grandes atores das lutas sociais hoje no mundo. São, de um lado, se pensarmos em América Latina, são as populações atingidas pelos grandes empreendimentos, que afetam seu modo de vida. São nações indígenas, o campesinato indígena, de diferentes países da América Latina, que articulam um projeto baseado em outros valores (como é o caso “bom viver” boliviano). A gente fala “o campesinato indígena latino- americano”, mas o que existe são vários campesinatos indígenas com diferentes perspectivas. Reconhecer esta pluralidade é fundamental. Voltando para o Brasil, quando falamos nessa categoria guarda-chuva chamada “agricultura familiar”, o que está aí dentro são setores extremamente diferenciados com graus de or-ganização também muito diversos. Ela é boa para fazer estatística, mas é redutora e centra em um determinado tipo de agricultor: aquele mais integrado ao mercado ou com boas possibilidades de integrar o mercado.

Então olhar o Brasil hoje é olhar essa diversidade de situações, que é de uma complexidade incrível.

Revista IDeAS: Nesta questão de conjuntura e movimentos sociais, sain-

do um pouco do rural e olhando no âmbito mais global da informa-

tização, como a senhora vê esses movimentos sociais, como o “ocupa Wall

Street”, “ocupa Rio”, essas chamadas primaveras e esses movimentos vir-

tuais também?

Professora Leonilde: Grande parte das mobilizações internacionais é composta por segmentos desempregados, a juventude, os ameaçados de desemprego; não é um setor que está integrado de forma sólida ao setor

Page 29: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 158

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

produtivo. As grandes mobilizações estão sendo feitas mais pelos setores que estão, digamos, em situação mais precária. Não por acaso, muito desses movimentos de ocupação são feitos por jovens, que olham para o futuro e têm um panorama pouco animador, especialmente nesta si-tuação de crise.

Agora, é interessante, quando você olha o panorama internacional é difícil fazer generalizações. Ao mesmo tempo que você tem na Europa Ocidental essa situação de desemprego e que está levando a uma ebuli-ção muito grande, cada país à sua moda, de acordo com a sua cultura política, quando se olha para a chamada Primavera Árabe, parece que eles estão redescobrindo outras formas políticas, mais democráticas, e questionando as suas regras tradicionais. Então você tem tudo isso se combinando e, de alguma maneira, é como se fossem rastilhos de fogo que vão sendo acesos aqui e ali e que vão contaminando outros lugares, às vezes até com raízes diferentes, mas vai contaminando, não é?

E aí tem a questão do papel destes novos meios de comunicação. Se a imprensa representou no século XIX uma força para os movimentos so-ciais (Thompson fala muito sobre o papel que os jornais operários tive-ram, os panfletinhos), hoje, o tempo, o ritmo das mobilizações mudou com a internet. E essa mudança de ritmo implica uma mudança de qua-lidade. Vamos pensar um evento marcante, normalmente utilizado como grande exemplo dessa mudança, que é Chiapas. Você tinha lá um mo-vimento aparentemente isolado, na selva, do campesinato indígena. De repente, pela internet, eles começam mobilizar forças do mundo inteiro, e conseguiram uma articulação extremamente bem sucedida que, de al-guma maneira, funcionou como uma rede de proteção. E hoje, o que se passa aqui, por conta desses meios todos, é imediatamente visível. Eu fico lembrando, por exemplo, no caso de Eldorado de Carajás, uma pes-soa que estava lá e que por acaso tinha uma filmadora, e filmou - por acaso entre aspas - e colocou na internet. De repente, o mundo inteiro estava vendo uma cena de um massacre que teve efeitos políticos enormes. O massacre de Eldorado dos Carajás foi só mais um, não foi o primeiro (gostaríamos que fosse o último). Como ele houve outros. Por que Eldorados dos Carajás se tornou tão importante? Porque imedia-tamente as imagens circularam pelo mundo. O governo brasileiro foi ex-tremamente acuado pelos organismos internacionais porque aquilo,

Page 30: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 159

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

num país democrático, era inaceitável. A velocidade da circulação da notícia, antes que a notícia esfriasse, teve um papel- chave.

Hoje não dá para pensar nos movimentos sociais sem o uso desses ins-trumentos todos, dessa capacidade de convocação e de articulação políti-ca via e-mail, twitter, facebook, Você tem a constituição de grupos que aproxima as pessoas. Obviamente há barreiras; a barreira da língua é muito séria, mas ela encontra meios de ser, pelo menos, suavizada.

Embora a transnacionalização dos movimentos não seja nova, o ritmo em que isso está se dando e a possibilidade que a internet tem de dar espaço para muitas vozes, é uma coisa sobre a qual nós temos de nos debruçar e entender melhor. A Flávia Braga, nossa colega da UFRRJ, tem um trabalho muito interessante sobre a Via Campesina, no qual ela analisa as internacionais operárias do século XIX e início do XX, a for-mação das internacionais, para mostrar que, enfim, se há uma face de novidade, também não é a Via Campesina que inventa a internacionali-zação dos movimentos.

Uma coisa é você pensar uma internacionalização que é feita por orga-nizações, a outra coisa é essa possibilidade que eu acho que a internet fornece, em que vozes aqui e ali podem entrar na discussão. Não quero dizer que a internet é totalmente democrática porque o acesso a internet é limitado, mas sem dúvida, ela abre portas incríveis, porque as pessoas têm mais possibilidade de expressar suas vozes, suas discordâncias, se constituir enquanto grupos e se fazer ver, de obter apoios. Porque essas vozes, essas discordâncias muitas vezes foram abafadas, silenciadas e a internet é um espaço onde elas podem explodir, de uma maneira in-crível. Essa rede produz articulações interessantes. Acho que é uma coi-sa que tem que se olhar com muito cuidado, essas novas possibilidades que esses instrumentos fornecem.

Eu fico pensando, hoje, com um mínimo de tecnologia, com uma tecnolo-gia relativamente barata, é possível colocar em contato um dirigente do Brasil com um dirigente do Japão, via e-mail, via Skype... Basta você ter o computador na mão. Essa velocidade de circulação de ideias tem um efeito qualitativo importante, não é uma questão só de aumento de ve-locidade... É um aumento de velocidade que produz transformações im-portantes nas possibilidades de articulação política.

Page 31: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros... 160

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

Page 32: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros...

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

161

Page 33: 6. Entrevista Leonilde Servolo Medeiros IDEAS (rev) · Professora Leonilde: Bem, entrei no Curso de Ciências Sociais na USP em 1968. O ano de 1968 foi marcado por grandes mobilizações

Entrevista com a professora Leonilde Servolo de Medeiros...

Revista IDeAS, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.

162

Entrevista realizada em:

16 de julho de 2012.

Entrevista autorizada para publicação em:

29 de julho de 2012.

Como citar esta entrevista:

MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Entrevista- Academia e movimentos sociais: uma pequena biografia de Leonilde Servolo de Medeiros. Revista IDeAS – Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro – RJ, v. 6, n. 1, p. 130-162, 2012.