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Temática Livre Artigo original DOI - 10.5752/P.2175-5841.2011v9n23p839 Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 839 O “ensino do religioso” e as Ciências da Religião Teaching “of the religious” and Sciences of Religion Faustino Teixeira Resumo Tendo em vista o amplo debate que divide a opinião de pesquisadores hoje no Brasil em torno da complexa questão do “ensino religioso” na escola pública, este artigo busca situar o tema na perspectiva das ciências da religião. Busca-se apontar a possibilidade de um aporte singular desse novo campo disciplinar no “ensino do religioso”. Sem cair num proselitismo problemático, busca-se mostrar a pertinência e plausibilidade de uma reflexão que favoreça a aproximação e o conhecimento por parte dos alunos das distintas manifestações do fenômeno religioso, bem como das plurais opções espirituais em curso no cenário mundial. Trata-se de uma aproximação que vem enriquecida com a dinâmica transversal e multidisciplinar das ciências da religião, movida também por uma distinta sensibilidade ao mundo do outro e da perspectiva dialogal, de forma a superar a dinâmica das afirmações identitárias e a buscar com sinceridade e abertura, o respeito e o aprendizado diante do patrimônio religioso do outro. Palavras-chave: Educação; Ensino Religioso; Ciências da Religião; Pluralismo. Abstract Taking into account the wider debate that involves opposing views of researchers in Brazil on the complex issue of religious education at public schools, this essay situates this thematic from the standpoint of sciences of religion. This article reflects on the possibility of a singular approach to this new problematic concerning the “religious education” in public schools. It is necessary to show the possibility of a reflection that helps students to learn about different manifestations of religious phenomenon, as well as the plurality of religious spiritual experiences nowadays available, without falling in a questionable proselytise. This experience can be enriched by transversal and multidisciplinary approaches in sciences of religion. This means to take a dialogic perspective with a special sensibility to the others‟ worldview in such a way that allows us to overcome the tendency to affirm one‟s own identity rather than the identity of the other. In this way, we are sincerely open to respect the religious experience of the other. Key-words: Education; Religious Education; Sciences of Religion; Pluralism. Artigo recebido em 04 de outubro de 2011 e aprovado em 30 de novembro de 2011. Nota do Editor: O presente texto retoma versão reduzida publicada em TEIXEIRA, Faustino. Ciências da Religião e “ensino do religioso”. In: SENA, Luzia (Org.). Ensino religioso e formação docente. 1 ed. São Paulo: Paulinas, 2006. p 63-77. A versão completa do texto, com novas notas, referências e uma conclusão, tornam sua publicação e seu registro importantes para a acessibilidade ao tema e o seu debate. Doutor em Teologia (Gregoriana Roma), Professor do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião PPCIR, UFJF. Pesquisador do ISER. País de origem: Brasil. E-mail: [email protected]

2517-12143-1-PB (1)

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  • Temtica Livre Artigo original DOI - 10.5752/P.2175-5841.2011v9n23p839

    Licena Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 839

    O ensino do religioso e as Cincias da Religio Teaching of the religious and Sciences of Religion

    Faustino Teixeira

    Resumo

    Tendo em vista o amplo debate que divide a opinio de pesquisadores hoje no Brasil em

    torno da complexa questo do ensino religioso na escola pblica, este artigo busca situar o tema na perspectiva das cincias da religio. Busca-se apontar a possibilidade de um aporte singular desse novo campo disciplinar no ensino do religioso. Sem cair num proselitismo problemtico, busca-se mostrar a pertinncia e plausibilidade de uma reflexo

    que favorea a aproximao e o conhecimento por parte dos alunos das distintas

    manifestaes do fenmeno religioso, bem como das plurais opes espirituais em curso no cenrio mundial. Trata-se de uma aproximao que vem enriquecida com a dinmica

    transversal e multidisciplinar das cincias da religio, movida tambm por uma distinta

    sensibilidade ao mundo do outro e da perspectiva dialogal, de forma a superar a dinmica das afirmaes identitrias e a buscar com sinceridade e abertura, o respeito e o

    aprendizado diante do patrimnio religioso do outro.

    Palavras-chave: Educao; Ensino Religioso; Cincias da Religio; Pluralismo.

    Abstract

    Taking into account the wider debate that involves opposing views of researchers in Brazil

    on the complex issue of religious education at public schools, this essay situates this thematic from the standpoint of sciences of religion. This article reflects on the possibility

    of a singular approach to this new problematic concerning the religious education in public schools. It is necessary to show the possibility of a reflection that helps students to

    learn about different manifestations of religious phenomenon, as well as the plurality of religious spiritual experiences nowadays available, without falling in a questionable

    proselytise. This experience can be enriched by transversal and multidisciplinary

    approaches in sciences of religion. This means to take a dialogic perspective with a special sensibility to the others worldview in such a way that allows us to overcome the tendency to affirm ones own identity rather than the identity of the other. In this way, we are sincerely open to respect the religious experience of the other.

    Key-words: Education; Religious Education; Sciences of Religion; Pluralism.

    Artigo recebido em 04 de outubro de 2011 e aprovado em 30 de novembro de 2011. Nota do Editor: O presente texto retoma verso reduzida publicada em TEIXEIRA, Faustino. Cincias da Religio e ensino do religioso. In: SENA, Luzia (Org.). Ensino religioso e formao docente. 1 ed. So Paulo: Paulinas, 2006. p 63-77. A verso completa do texto, com novas notas, referncias e uma concluso,

    tornam sua publicao e seu registro importantes para a acessibilidade ao tema e o seu debate. Doutor em Teologia (Gregoriana Roma), Professor do Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio PPCIR, UFJF. Pesquisador do ISER. Pas de origem: Brasil. E-mail: [email protected]

  • Faustino Teixeira

    840 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    Introduo

    H em curso hoje no Brasil um acirrado debate em torno da questo do ensino

    religioso nas escolas pblicas. um tema extremamente complexo, que envolve uma srie

    de variantes para sua abordagem equilibrada. No h como trabalhar essa questo

    desconsiderando as conquistas republicanas do Estado Laico, sobretudo a liberdade

    religiosa; bem como o reconhecimento de uma afirmao cada vez mais decisiva da

    pluralidade religiosa no pas. O Brasil vem passando por importantes mudanas no campo

    religioso nestas ltimas dcadas, e isso recondiciona o tratamento da questo do ensino

    religioso. H aqueles que insistem na defesa de um ensino religioso confessional nas

    escolas pblicas, com garantias do controle doutrinal dos contedos a serem ministrados e a

    seleo reservada de seus docentes; e outros que defendem um ensino religioso no

    confessional, a ser ministrado por docentes que manifestem conhecimento adequado e

    amplo para abordar a histria das religies, suas bases antropolgicas e a fora espiritual

    das religies, enquanto inspiradoras de prticas alternativas e conferidoras de um

    fundamental horizonte de sentido para as pessoas1 (GIUMBELLI; CARNEIRO, 2004). A

    crescente afirmao do campo de estudos em cincias da religio hoje no Brasil vem,

    certamente, favorecer uma importante ampliao de visada do fenmeno religioso, de

    capacitao de profissionais instrumentados para essa reflexo especfica e de contribuio

    efetiva para o enriquecimento pedaggico nesta delicada e fundamental rea. E isso revela-

    se novidadeiro num pas onde o estudo mais objetivo da religio enfrentou tanto o

    preconceito positivista das tradicionais instituies de ensino como sua desqualificao por

    parte de segmentos eclesiais, concentrados na valorizao quase exclusiva dos estudos

    teolgicos. O objetivo deste breve artigo situar para o leitor o campo das cincias da

    religio, as nfases e desafios presentes nessa rea acadmica, bem como algumas de suas

    possveis contribuies para o ensino do religioso.

    1 Tendo como referencia o debate realizado no estado do Rio de Janeiro, essa questo foi amplamente apresentada no estudo realizado pelo Instituto de Estudos da Religio (Iser).

  • Temtica Livre: Artigo: O ensino do religioso e as Cincias da Religio

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 841

    1 Uma rea acadmica em afirmao

    As cincias da religio vm se firmando cada vez mais no panorama acadmico

    internacional e nacional. Trata-se de campo disciplinar marcado por uma estrutura dinmica

    e aberta, cujo estatuto epistemolgico permanece ainda em processo de definio. Como

    assinala Luis Felipe Pond, no h ainda nesse campo uma estabilidade epistmica

    constituda, o que reflete a instabilidade histrico-filosfica da prpria gnese das

    chamadas 'cincias do esprito', ou 'cincias humanas', ou 'cincias da cultura' (POND,

    2003)2 As cincias da religio nascem no terreno da modernidade filosfico ps-

    cartesiana, e no mbito desta modernidade que se firmam seus pressupostos

    epistemolgicos (VAZ, 1992, p. 106).

    Em mbito europeu e norte americano, as cincias da religio j gozam de

    estabilidade e reconhecimento mais definidos. A gnese da cincia da religio remonta ao

    final do sculo XVII e incio do sculo XVIII, no clima de afirmao do desmo e do

    iluminismo. Mas sua institucionalizao, propriamente dita, se d no sculo XIX, com a

    criao da primeira ctedra da rea na Sua, em 1873. Posteriormente, esse campo de

    estudos foi se firmando em outros pases como Holanda, Frana, Blgica e Alemanha

    (PYE, 2004, p. 26).

    Talvez em razo da indefinio epistmica das cincias da religio, ou decorrncia

    de sua dinmica multifacetada, esse campo acadmico ganha perspectivas diferenciadas. Na

    Gr-Bretanha e Estados Unidos privilegia-se falar em estudos da religio (religious

    studies), indicando o acento na variedade das abordagens e uma perspectiva de abertura

    reflexiva. Na Alemanha, h uma preponderncia do singular: cincia da religio

    (Religionswissenschaft), e uma tendncia crescente em favor da autonomia de seu perfil,

    com respeito aos influxos da teologia e da fenomenologia. E tambm a disposio de uma

    orientao mais emprica, sob as normas das cincias sociais. Na Frana e Itlia fala-se em

    cincias religiosas e histria das religies, de forma a privilegiar a perspectiva de

    2 Ver tambm: Vaz (2002). Esse autor fala da cincia das religies como um dos ramos das cincias humanas de contornos ainda indefinidos.

  • Faustino Teixeira

    842 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    abordagem histrica dos grandes sistemas religiosas e os enfoques temticos e

    comparativos das principais correntes religiosas da humanidade (PYE, 2004, p. 12-17).

    No Brasil, a perspectiva dominante a das cincias da religio, ou seja, um campo

    de estudos marcado por multidisciplinaridade, tendo como objeto a religio. Mas h

    tambm controvrsias a respeito. H aqueles que defendem a cincia da religio, no

    singular, no s para marcar sua autonomia disciplinar mas tambm para indicar a

    necessidade de um mtodo unificador. E outros que defendem a nomenclatura no plural,

    cincias da religio, para enfatizar o seu carter pluridisciplinar e a riqueza da

    diversidade metodolgica (CAMURA, 2003, p. 139-155). O que se verifica um esforo

    cada dia mais crescente de somar esforos em favor do aperfeioamento da compreenso

    do fenmeno religioso em toda a sua pluralidade. O aluno de cincias da religio tem a rica

    oportunidade de ampliar o seu conhecimento do fenmeno religioso com os aportes

    diferenciados das vrias disciplinas, sem que isso implique o distanciamento de uma

    perspectiva especfica que escolheu para firmar sua formao acadmica (seja na rea de

    estudos comparados das religies, de cincias sociais da religio, de filosofia da religio

    etc.)3. H hoje no Brasil um nmero significativo de cursos de ps-graduao em cincias

    da religio recomendados pela Capes, que chegam a ultrapassar o nmero dos cursos de

    ps-graduao em teologia tambm recomendados por essa agncia de fomento4. No

    campo das cincias da religio existem atualmente no Brasil dez cursos recomendados,

    sendo sete em universidades privadas5 e trs em universidades pblicas6.

    3 Trata-se de uma peculiaridade das cincias da religio a abertura ao aporte de distintas disciplinas que se inserem no mbito das cincias humanas, mas concentradas no fenmeno religioso. Os alunos de cincias da religio tm a rica oportunidade de aprofundar seu conhecimento especfico com um domnio maior sobre o fenmeno religioso (OLIVEIRA, 1995, p. 106-107). 4 Com base na avaliao trienal de 2010, eram seis as Instituies de Ensino Superior com cursos recomendados de teologia: Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia (BH Mestrado e Doutorado, com nota 6); Escola Superior de Teologia (RS Mestrado e Doutorado, com nota 6 e um Mestrado Profissional, com nota 4); Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (RS Mestrado, com nota 4) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (RJ Mestrado e Doutorado, com nota 5); Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PR Mestrado, com nota 3); Centro Universitrio Assuno (SP Mestrado, com nota 3). 5 Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP Mestrado e Doutorado, com nota 5); Universidade Metodista de So Paulo (Umesp Mestrado e Doutorado, com nota 5); Pontifcia Universidade Catlica de Gois (UCG Mestrado e Doutorado, com nota 4); Universidade Catlica de Pernambuco (Unicap Mestrado, com nota 3); Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM Mestrado, com nota 3), Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC-MG Mestrado, com nota 3); Faculdade Unida de Vitria (FUV Mestrado Profissional, com nota 3). 6 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF Mestrado e Doutorado, com nota 5), Universidade Federal da Paraba (UFPB Mestrado, com nota 3) e Universidade do Estado do Par (UEPA Mestrado, com nota 3). O Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio da UFJF (PPCIR) foi pioneiro em universidade pblica, tendo sido criado em 1991. H que registrar que o departamento de cincia da religio da UFJF nasceu em 1969, tendo sido o primeiro do Brasil a

    oferecer um curso de graduao em cincias da religio, na dcada de 1970.

  • Temtica Livre: Artigo: O ensino do religioso e as Cincias da Religio

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 843

    2 A diversificao do leque de abordagens

    Ao longo de sua trajetria, as cincias da religio enfrentaram crises e

    redimensionamentos visando ao seu aperfeioamento metodolgico. No nada simples a

    tarefa de aproximao do fenmeno religioso e de sensibilizao para a diversidade de suas

    abordagens. Como assinalou Luis Henrique Dreher, a marca do estudioso da religio , em

    primeiro lugar, isso: o fato de que lida com um objeto de estudo extremamente complexo,

    que exige uma formao multifacetada e que resiste a simplificaes (DREHER, 2001, p.

    155). Tomando como base a experincia do programa de ps-graduao em cincia da

    religio da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR-UFJF), h que reconhecer, apesar

    do programa se definir no singular (cincia da religio), a vigncia de uma

    polimetodologia e pluridisciplinaridade, tomando as expresses utilizadas por Luis

    Dreher em artigo j citado. Isso no significa ausncia de exerccios efetivos de

    interdisciplinaridade7, que acontecem em momentos pontuais do processo acadmico dos

    alunos, como o caso dos exames de qualificao e seminrios onde as reas se conectam.

    Mas de fato, o que se verifica a presena de um campo disciplinar marcado por um

    pluralismo metodolgico.

    O objeto de estudo das cincias da religio o fenmeno religioso em toda a sua

    complexidade. Mas o modo de captar este fenmeno segundo as diversas disciplinas que

    compem esse campo tem seus matizes diferenciados. H, por um lado, as disciplinas mais

    especulativas, como a filosofia da religio e a teologia da religio, e outras mais positivas e

    empricas, como a fenomenologia da religio8, a histria das religies, o estudo comparado

    das religies, a psicologia da religio e as cincias sociais da religio (antropologia e

    sociologia) (Cf. CANTONE, 1981, p. 5-9).

    No mbito da reflexo sobre o tema h determinados autores que impem

    resistncias insero da teologia e filosofia da religio no campo das cincias da religio,

    em razo da peculiaridade de seus mtodos, mas, sobretudo, em funo da compreenso

    7 Mas Luis Dreher chama a ateno, com razo, para os custos epistemolgicos altos que envolvem um tal exerccio interdisciplinar, o que leva os alunos a preferirem permanecer nos limites fixados por suas cincias estabelecidas (DREHER, 2001, p. 172-173). 8 H, porm, controvrsias quanto caracterizao da fenomenologia da religio. Em estudo sobre o tema, Antnio Gouva Mendona busca sublinhar a filiao filosfica dessa disciplina (MENDONA, 1999, p. 65-89).

  • Faustino Teixeira

    844 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    redutora das cincias da religio como empreendimento estritamente emprico

    (USARSKI, 2001; FILORAMO; PRANDI, 1999). A resistncia contra a teologia advm de

    uma compreenso problemtica do atesmo metodolgico das cincias da religio, ou seja

    de um temor contra possveis ingerncias das motivaes de ordem religiosa na

    abordagem objetiva do fenmeno religioso. Sem desconhecer a peculiaridade do lugar da

    teologia nas cincias da religio, h que reconhecer os grandes avanos que vm ocorrendo

    na compreenso da teologia como cincia hermenutica, que leva profundamente a srio a

    historicidade no s das expresses escritursticas como tambm dos enunciados

    dogmticos. No h como desconhecer hoje a dinmica de cientificidade que anima o

    mtodo teolgico, que recorre, necessariamente, s contribuies do mtodo histrico, da

    lingustica e da sociologia do conhecimento para a afirmao de seu sistema de

    interpretao. E isso ocorre de forma muito particular no campo da teologia das religies.

    Na viso de Claude Geffr,

    [...] o telogo das religies deve absolutamente recorrer s mais asseguradas

    concluses da cincia das religies, de seus enfoques histrico, antropolgico,

    lingustico, sociolgico, psicolgico. Trata-se de uma necessria ascese que a

    protege dos riscos das aproximaes prematuras e recuperaes facilitadoras. A

    este respeito a teologia est submetida s mesmas exigncias que a

    fenomenologia das religies que postula muito rapidamente uma essncia comum

    subjacente infinita diversidade das formas religiosas (GEFFR, 2006, p. 138)9.

    No campo especfico da teologia das religies, firma-se a importncia do recurso ao

    mtodo comparativo para favorecer a superao de uma perspectiva apologtica que

    dominou o campo teolgico at recentemente e a criao de condies para o

    reconhecimento de um pluralismo religioso de direito ou princpio, ou seja, a abertura de

    espao para o reconhecimento da positividade das religies no plano salvfico de Deus. Em

    lugar de ser uma fase histrica provisria, o pluralismo religioso consolida-se como uma

    expresso mesma da vontade de Deus, que necessita da diversidade das culturas e das

    religies para melhor manifestar as riquezas da Verdade ltima (GEFFR, 2006, p. 137).

    9 Mas Geffr (1997) tambm acrescenta o papel crtico da razo teolgica com respeito ao risco de positivismo ou reducionismo presentes em certas abordagens do fenmeno religioso vigentes nas cincias humanas.

  • Temtica Livre: Artigo: O ensino do religioso e as Cincias da Religio

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 845

    3 Uma tendncia em curso: o acento no carter emprico do fenmeno religioso

    No processo de sua afirmao histrica, houve um momento determinado em que as

    cincias da religio, para demarcar uma nova dinmica, deixaram-se orientar pelas normas

    das cincias sociais. No que isso tenha sido uma generalidade, mas um dado que ocorreu

    em espaos importantes de sua presena, como, por exemplo, na Alemanha. (USARSKI,

    2001). A nfase recaiu sobre o carter emprico das cincias da religio, para inclusive

    demarcar uma distncia com respeito aos procedimentos habituais da fenomenologia da

    religio. Recorreu-se, assim, ao importante aporte das formulaes tericas dos fundadores

    da sociologia. De fato, todos os grandes clssicos da sociologia confrontaram-se com a

    anlise do religioso e esta anlise ocupa, amide, um lugar no negligencivel no conjunto

    de suas obras (HERVIEU-LGER; WILLAIME, 2001, p. 2). Mas ao recorrer a esse

    aporte, veio tambm na bagagem o atesmo metodolgico (PRITCHARD, 1986, p. 11-

    19)10

    . A teoria sociolgica da religio, no mesmo ritmo das disciplinas empricas, trabalhou

    sempre o tema da religio sub specie temporis, ou seja, enquanto uma projeo humana

    (BERGER, 1985, p. 186). A ateno concentra-se na religio enquanto fenmeno social,

    sem indagar o que ela poderia significar sub specie aeternitatis11. E para poder favorecer

    a compreenso desse aspecto social presente no fato religioso, recorreu-se ao atesmo

    metodolgico, ou seja, suspenso provisria das opinies pessoais do investigador

    acerca da existncia e da ao dos seres sobrenaturais, no deixando que tais opinies

    penetrem na investigao cientfica com a funo de critrios. Como acentuou Otto

    Maduro (1981, p. 46), fazer sociologia da religio ver e estudar as religies (todas da

    mesma maneira) como fenmenos sociais. Vale dizer, como fenmenos socialmente

    produzidos, socialmente situados, limitados, orientados e estruturados, e com uma

    influncia sobre a sociedade em que se encontram.

    10 Vale registrar, como lembrou Evans Pritchard, uma tendncia agnstica e positivista entre importantes socilogos e antroplogos contemporneos, entre os quais Frazer, Radcliffe-Brown e Malinowski. E a tendncia predominante no

    tratamento dado por eles religio consistia em consider-la uma superstio para a qual era necessria e podia ser oferecida alguma explicao cientfica (PRITCHARD, 1986, p. 11-19). 11 E esse um dado que provoca a resistncia de certos telogos, para os quais o estudo do fato religioso 'de fora' no proporcionaria o acesso verdade religiosa, sendo sua nica porta de entrada a experincia da f (MIRANDA, 2002, p. 12-13).

  • Faustino Teixeira

    846 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    Enquanto defensor de uma perspectiva emprica da cincia da religio, Frank

    Usarski sustenta uma posio alternativa vigente na fenomenologia da religio, que a seu

    ver, aproxima-se do mundo religioso emprico de forma dedutiva e no indutiva12

    . Associa-

    se a determinados representantes que defendem um paradigma alternativo, em que se

    destaca a necessidade de um depsito amplo de conhecimentos empricos sobre o maior

    numero possvel de religies singulares como um pr-requisito de uma obra comparativa.

    E essa sistematizao no transcende a esfera racional por meio da suposio de uma

    dimenso extraemprica da vida onde todas as manifestaes religiosas concretas

    encontram sua ltima instancia (USARSKI, 2001, p. 92-93).

    4 A emergncia de novos desdobramentos e horizontes

    a. O questionamento de certo atesmo metodolgico

    O debate em torno do campo de abrangncia das cincias da religio vem hoje

    enriquecido com reflexes significativas que acontecem no mbito da antropologia,

    filosofia e fenomenologia da religio. Trabalhos recentes vm advertindo os pesquisadores

    para a captao de uma originalidade irredutvel do fenmeno religioso e a essencial

    abertura para a dinmica da interdisciplinaridade. Como apontado em outro trabalho,

    [...] trata-se de um estudo do fenmeno religioso, considerado em toda a sua

    complexidade e que no descarta a singularidade e especificidade do "religioso"

    presente no fenmeno, uma condio imprescindvel para o conhecimento e a

    apreciao verdadeiramente objetiva do mesmo. Para avizinhar-se ao mundo das

    religies, necessrio superar o velho "preconceito racionalista"; para alm de

    um simples fair play, exige-se uma "verdadeira aptido religioso-experiencial",

    uma capacidade de sintonia com o corao da religio, uma ateno sua

    especificidade mais autntica (TEIXEIRA, 2001, p. 317).

    O nus da herana de uma tradio objetivadora na antropologia vai ser

    problematizado por Otvio Velho em artigo sobre a contribuio da religio para as

    cincias sociais. Sem desconsiderar as vantagens que acompanham o cuidado da

    objetivao, este autor assinala a absoluta impossibilidade de manter uma tal perspectiva

    de mera observao num campo complexo como o do estudo da religio. Assinala o

    importante desafio de aperfeioamento do ouvido musical para a religio, e isso implica o

    12 Esse autor opta pela designao no singular e no no plural.

  • Temtica Livre: Artigo: O ensino do religioso e as Cincias da Religio

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 847

    exerccio de uma ousadia nem sempre contemplada benignamente pelos cientistas sociais

    mais tradicionais. Uma ousadia que pode ser traduzida pelo esforo de empatia em favor

    de uma nova e rica ao comunicativa com os nativos (VELHO, 2001, p. 234-239)13. Em

    semelhante linha de reflexo, Rita Segato relativiza o discurso racional da antropologia,

    sobretudo no que tange sua aproximao da temtica religiosa. Para essa autora, h que

    questionar o trao reducionista que marcou o recorte clssico da teoria da interpretao, que

    teria sacrificado uma parte da verdade dos seres humanos retratados nos relatos

    etnogrficos. Em casos concretos, tais prticas interpretativas acabaram perdendo de vista

    ou mesmo censurando as evidncias que falam de um horizonte ntimo em que ocorre a

    experincia humana do transcendente (SEGATO, 1992, p. 114)14. Ainda no campo das

    cincias sociais, Pedro Ribeiro de Oliveira aborda a complexa questo da relao entre o

    discurso cientfico e o discurso nativo. Ao buscar responder sobre a importncia ou no da

    maior aproximao do observador ao grupo a ser estudado, Oliveira assinala vantagens

    numa observao que busca maior neutralidade, mas tambm aponta para o risco do

    reducionismo. Mostra ser indispensvel ao observador que busca estudar uma religio, o

    entendimento de uma linguagem que por metforas e analogias, fala de experincias,

    emoes e sentimentos profundos. Para aquele que estuda de fora a experincia como

    se lidasse com uma lngua estrangeira, necessitando, assim, de uma traduo, que nem

    sempre pode ser fiel. Por sua vez, o risco de quem tem mais familiaridade com o grupo

    estudado o de introduzir categorias religiosas no discurso cientfico. Mas diante dessas

    duas possibilidades, Oliveira prefere correr o risco da contaminao num conhecimento de

    boa qualidade cientfica, do que, de tanto precaver-se contra as interferncias da religio,

    no ir alm de trabalhos acadmicos sem qualquer importncia prtica (OLIVEIRA,

    1998a, p. 15).

    13 O autor recupera em seu artigo a posio de um antroplogo indiano, T. N. Madan, para o qual o antroplogo, ao invs de manter-se como um simples observador deve correr o risco de perder as amarras intelectuais para recuper-las num outro nvel (VELHO, 2001, p. 241). Em outro texto, o autor prope uma antropologia apoftica, que convida atitude de colocar entre parnteses o conhecimento intelectualista prvio, para poder favorecer uma nova familiaridade com o objeto a ser captado em campo, de modo a resguardar o impacto do acaso, da surpresa e da imprevisibilidade. E assinala:

    o reconhecimento do outro no pode ser apenas intelectualista e que se assim o for, corremos o risco de a nossa atividade ser atingida no que ela tem de mais precioso (VELHO, 2005, p. 4-9). 14 No h como deixar margem na anlise antropolgica a autoconscincia do ncleo a ser estudado. o que aponta Pierre Sanchis (1998, p. 41) em artigo que aborda, entre outras questes, o tema do dialogo dos antroplogos com os telogos.

  • Faustino Teixeira

    848 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    Partindo de uma reflexo epistemolgica, Luiz Felipe Pond levanta decisivos

    argumentos contra o posicionamento do atesmo metodolgico, que para ele revela-se

    problemtico em termos de consistncia. Em razo de uma postura marcada por uma

    espcie de contgio, definido como horror do invisvel, esse procedimento

    metodolgico acaba justificando no uma perspectiva de neutralidade objetiva, mas de

    militncia antirreligiosa. Como mostra Pond,

    [...] o "atesmo metodolgico" tem pavor de adentrar uma regio da experincia

    interna humana que simplesmente desconhece, ainda que se diga especialista

    nela. No seria a no experincia do "tato religioso" um caso particular e

    culturalmente recente de uma "misria" da cognio? (POND, 2001, p. 57)15 .

    Na viso de Pond, o argumento que sustentaria um tal procedimento metodolgico,

    ou seja, a excluso apriorstica da 'substncia' religiosa seria uma postura

    essencialmente antirreligiosa na qual seria trada uma viso da experincia e vida religiosas

    como algo necessariamente danoso para a vivencia racional e 'cognitivamente' emancipada

    do ser humano [...] (POND, 2001, p. 54 -55).

    Em favor de uma compreenso mais integral do fenmeno religioso posicionam-se

    autores da rea de fenomenologia da religio, para os quais urge recuperar e valorizar

    outras dimenses da razo que no conseguem ser apreendidas ou reconhecidas pelos

    aportes de uma restrita racionalidade cientfica. Como indica Giovanni Magnani, no s

    no mbito da fenomenologia da religio, como tambm nos campos da psicologia,

    sociologia e antropologia da religio toma-se cada vez mais distncia de posicionamentos

    reducionistas. E aponta como uma das tarefas singulares da fenomenologia histrico-

    comparada a de desbastar o campo dos preconceitos que obstaculizam a anlise objetiva

    do fenmeno religioso (MAGNANI, 1999, p. 147).

    b. Uma nova aproximao do fenmeno religioso

    Apesar de reconhecer que o tradicional princpio regulador no contrato

    epistemolgico das cincias da religio recuse o contedo do tato religioso, h que

    sustentar com pertinncia a plausibilidade de uma aproximao distinta com respeito ao

    15 O autor continua sua provocante interrogao: Ser que a misria de nosso 'tato religioso' ocidental no poderia mudar de registro epistemolgico e passar a ser demanda de mitigao da misria cognitiva dos 'sem tato'? (POND, 2001, p. 57).

  • Temtica Livre: Artigo: O ensino do religioso e as Cincias da Religio

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 849

    fenmeno religioso, que inclua uma sensibilidade nova. No h como enriquecer a

    cognio desse fenmeno complexo descartando a priori o tato religioso. Tem razo

    Pond ao indagar sobre o significado da ausncia de um exerccio em favor dessa

    aproximao. No poderia revelar, na prtica, uma carncia epistemolgica altamente

    prejudicial quando no letal? (POND, 2001, p. 55).

    As indagaes levantadas por Pond resultam tambm de suas pesquisas na rea da

    mstica, considerada um ncleo duro da experincia religiosa. Nesse mbito, revela-se

    fundamental o toque da experincia, de um saber que experimentado. Os relatos

    msticos falam da presena de um livro da experincia cujo acesso s revelado para

    aqueles que se dispem a um movimento distinto de aproximao. Como fala Bernardo de

    Claraval, a inteligncia humana no compreende nada alm, seno mediante o

    aprendizado da experincia (CHIARAVALLE, 1996, p. 230). Pond chama, assim, a

    ateno para este dado, sinalizado pelos msticos, do primado da experincia para o

    conhecimento, e esta experincia mstica um evento do 'tato interno' da religio

    (POND, 2001, p. 57)16

    . H que registrar, no mbito das cincias da religio no Brasil, a

    crescente afirmao dos estudos, dissertaes e teses na rea de mstica ou mstica

    comparada, a publicao de pesquisas em curso, bem como a realizao de seminrios de

    pesquisa envolvendo as instituies de ensino17

    .

    No tarefa fcil para o pesquisador da religio abrigar na sua reflexo a

    especificidade do religioso vivido. H que ampliar o olhar, aperfeioar a escuta e alargar

    o conceito de verificao18. Para Henrique Cludio de Lima Vaz, nem as filosofias da

    religio, nem as cincias da religio, enquanto saberes gestados na modernidade ps-

    cartesiana, esto plenamente instrumentadas para traar a hermenutica do vivido

    religioso. No h como reduzir, para ele, a figura do fato religioso a um fato de cultura.

    16 Os relatos msticos sugerem a presena de um outro lado, de um mundo alm das palavras. E os estudos da mstica, como observa Vitria Peres, se constituem em geral em torno deste 'algo alm do que se pode observar'. Sem ter que necessariamente tomar partido, os estudiosos do tema encontram como uma das possibilidades de compreenso do

    fenmeno mstico, levar a srio o que dizem os msticos, e isto significa destinar um lugar especial experincia, sem a qual no h conhecimento possvel para os msticos (OLIVEIRA, 2006). 17 Dentre as publicaes, pode-se registrar: Teixeira (2004; 2006; prelo). 18 Vitria Peres de Oliveira lanou o desafio desse alargamento do conceito de verificao, de forma a envolver tambm a experincia espiritual daqueles que esto sendo analisados. Na arena das controvrsias presentes no campo das cincias da religio, essa autora defendeu a plausibilidade de novos olhares que possibilitem ir alm das regras impostas pelo jogo cientfico e filosfico (OLIVEIRA, 2006, p. 170).

  • Faustino Teixeira

    850 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    Em sua anlise, Vaz chama a ateno para a singularidade da experincia da santidade,

    que habita no espao de um universo espiritual em cujas fronteiras parecem emudecer as

    filosofias e as cincias da religio. No h como proceder sua interpretao autntica

    seno no mbito da teologia mstica (VAZ, 1992). Encontra-se aqui um importante desafio

    para as cincias da religio, em seu dilogo com a teologia: de buscar captar esta

    especificidade do religioso, de somar esforos para avanar neste terreno cujas dimenses

    so pontuadas por insondvel profundidade.

    5. Ensino do religioso e Cincias da Religio

    A presena do ensino religioso vem sendo garantida pela Constituio brasileira

    desde 1934. A posio a esse respeito na Constituio de 1988 bem clara, como reza o art.

    210 1 na Seo I sobre a educao: O ensino religioso, de matrcula facultativa,

    constituir disciplina dos horrios normais das escolas pblicas de ensino fundamental

    (BRASIL, 1988). Tambm a Lei das Diretrizes e Bases da Educao Nacional estabelece

    diretrizes a respeito, na nova redao do art. 33 da Lei 9.394 (BRASIL, 1996):

    O ensino religioso, de matrcula facultativa, parte integrante da formao bsica

    do cidado e constitui disciplina dos horrios normais das escolas pblicas de

    ensino fundamental, assegurado o respeito diversidade cultural religiosa do

    Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

    Com a crescente diversificao religiosa no Brasil e a afirmao de um pluralismo

    religioso insupervel, h, certamente, que lanar novas bases para a reflexo do ensino da

    religio na escola pblica. No h como manter posicionamentos que defendam em mbito

    pblico um ensino confessional, embora no Brasil ainda persistam em casos especficos

    modelos de ensino religioso nesta direo, cuja plausibilidade vem reforada por fortes

    lobbies confessionais19

    . Pode-se tambm levantar questes sobre a pertinncia de posies

    19 Veja-se, por exemplo a situao do estado do Rio de Janeiro, com a aprovao da Lei n. 3459/2000 promulgada pelo governador Anthony Garotinho, que marca a confessionalidade do ensino religioso nas escolas da rede pblica de ensino. Ela retoma, com algumas modificaes, o projeto de lei apresentado em 1999, pelo deputado Carlos Dias, com o apoio da Arquidiocese local. De acordo com esta Lei, os professores de ensino religioso devero ser credenciados pela autoridade religiosa competente, que dever exigir do professor, formao religiosa obtida em Instituio por ela mantida ou reconhecida (art. 2 II). Em defesa dessa Lei pronunciou-se o ento bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Filippo Santoro, responsvel no ocasio pela pastoral da educao do Leste 1: Justamente os contedos no podem ser definidos por uma autoridade que no tem essa competncia; quem ensina a doutrina e a dimenso tica so as autoridades religiosas que deram corpo s vrias tradies culturais do Pas (GIUMBELLI; CARNEIRO, 2004, p. 31-32).

  • Temtica Livre: Artigo: O ensino do religioso e as Cincias da Religio

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 851

    sintonizadas com uma perspectiva mais laicista, que excluem qualquer possibilidade do

    ensino da religio na escola pblica20

    . Outros modelos vm sendo apresentados, numa linha

    de maior respeito ao pluralismo religioso, como o vigente no Estado de Santa Catarina, com

    a aprovao do Decreto 3.883, em dezembro de 2005, que regula o ensino religioso nas

    escolas pblicas. E tambm o projeto defendido por Carlos Minc no Rio de Janeiro, a

    proposta apresentada por uma equipe da Unicamp e a perspectiva defendida pelo Frum

    Permanente do Ensino Religioso (FONAPER, 2006). No Estado de Santa Catarina foi

    aprovado em dezembro de 2005 um decreto aprovando a adoo do ensino religioso na rede

    pblica estadual, com contedos que abrangem as diversas religies, sem discriminao de

    crena21

    . Em linha semelhante, pode-se apontar o projeto de lei defendido por Carlos Minc,

    em reao legislao vigente no Estado do Rio de Janeiro sobre o ensino confessional, e

    que foi aprovado em 2003 pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, mas que recebeu

    o veto da governadora Rosinha Garotinho. Em seu projeto, Carlos Minc dava prioridade

    aos contedos de histria das religies e as bases antropolgicas da religio e atribua ao

    Sistema Educacional de Ensino tanto a definio dos contedos curriculares, 'ouvida a

    entidade civil constituda pelas diferentes denominaes religiosas', quanto o

    estabelecimento das normas para a habilitao, admisso e a capacitao dos professores

    religiosos (GIUMBELLI, 2004, p. 54)22. Apostando tambm num modelo de ensino

    religioso que privilegia a interveno acadmica posicionou-se uma equipe de especialistas

    do departamento de ps-graduao em Histria da Unicamp, que realizou um trabalho em

    parceria com a Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, em 2001, visando

    produo de material de apoio didtico para alunos da 8 srie. A abordagem apresentada

    visava a oferecer uma viso sobre o 'fenmeno religioso' considerado na sua pluralidade e

    no vnculo indissocivel entre textos e prticas. Nessa proposta, as religies deveriam ser

    apresentadas como parte de um patrimnio cultural histrico coletivo e como constitutivas

    das identidades pessoais. E abria-se igualmente espao para a discusso de valores e

    20 o caso de Roseli Fischmann, que participou em 1995 de uma Comisso Especial sobre o Ensino Religioso em Escolas Pblicas, criada por iniciativa do governo do Estado de So Paulo. Em texto sobre a questo, pronunciou-se tanto contra o ensino confessional como contra o ensino religioso interreligioso ou ecumnico, voltado para um denominador comum entre as religies e denominaes, ver Fischmann (2006). 21 Em adequao com a LDB, o modelo implantado em Santa Catarina, no final de 2005, estabelece a criao de uma disciplina especfica de ensino religioso na rede pblica estadual, mas de carter optativo. Cf. Bela Santa Catarina (2006). 22 Nesse artigo, o autor comenta as vrias posies em jogo sobre o tema.

  • Faustino Teixeira

    852 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    princpios ticos (GIUMBELLI, 2004, p. 55). Vale tambm registrar o importante trabalho

    que vem sendo realizado pelo Frum Nacional Permanente do Ensino Religioso

    (FONAPER, 2006), desde 1995, em favor da constituio do ensino religioso como

    disciplina escolar, da criao de espao e condies para a formao de profissionais do

    ensino religioso em bases mais abertas e plurais e seu amplo empenho em favor da

    construo de parmetros curriculares nacionais de ensino religioso23

    .

    Esse debate sobre o ensino da religio na escola pblica vem ocorrendo tambm em

    mbito internacional. Na realidade francesa, marcada pelo forte acento da laicidade, tem-se

    defendido no o ensino religioso, mas o ensino do religioso (l'enseignement du religieux),

    como pode ser observado no interessante relatrio de Regis Debray (2002), sobre o

    ensinamento do fato religioso na escola pblica, datado de fevereiro de 2002. O desafio

    apontado por Debray refere-se incultura religiosa que envolve o estudante das escolas

    pblicas, decorrente da ruptura dos canais de transmisso da memria religiosa na tradio

    secular francesa. Esse desconhecimento, a seu ver, acaba gerando uma dificuldade singular

    na compreenso de fenmenos histricos ou culturais, como o 11 de setembro de 2001, a

    realidade do jazz e a figura de personagens como Martin Luther King; bem como o

    favorecimento de fenmenos religiosos patolgicos ligados acerbao identitria24

    . Esse

    modelo francs, distinto de outros vigentes em pases como Irlanda, Grcia, Espanha,

    Portugal, Dinamarca e Alemanha, visa a reforar o estudo do religioso na escola pblica,

    mediante uma aproximao descritiva, factual e nocional das religies em sua

    pluralidade, sem privilgios e exclusividades. um modelo que opta por um enfoque

    sensvel, transversal e interdisciplinar dos fenmenos religiosos. E o seu

    encaminhamento no se d mediante uma disciplina especfica, mas pela ampliao do

    campo visual de disciplinas j existentes, como letras e lnguas, filosofia, artes, histria e

    geografia. E, para isso, os professores receberiam uma preparao especfica, profissional e

    intelectual, de forma a manejarem com maior competncia a questo da religio, que incide

    de forma substantiva na identidade mais profunda dos alunos e sua famlias. A insero do

    estudo do religioso no significaria romper com a tradio da laicidade francesa, mas

    23 Contedo disponvel em , acesso em 6 jun. 2006. 24 Como sublinha o relatrio Debray (2002, p. 26), a relegao do fato religioso para fora das muralhas da transmisso racional e publicamente controlada dos conhecimentos favorece a patologia do terreno em vez de sane-lo.

  • Temtica Livre: Artigo: O ensino do religioso e as Cincias da Religio

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 853

    passar de uma laicidade de incompetncia (o religioso, por construo, no nos interessa)

    a uma laicidade de inteligncia ( nosso dever compreend-lo). A posio defendida por

    Debray e pela Comisso sobre a Laicidade, criada pela Presidncia da Repblica francesa25

    ,

    implantada parcialmente na Frana, no deixa de enfrentar resistncias tanto do lado laico

    para o qual a proposta pode refletir um clericalismo camuflado -, como do lado

    eclesistico ou crente, que reage contra o que consideram uma abordagem de fora, que

    pode favorecer tanto um confusionismo ou relativismo. So objees que tm sua

    validade, reconhece o prprio Debray, mas ele sublinha a pertinncia de sua proposta, que

    no pode ser confundida com um ensino religioso. Trata-se de uma oferta de saber, no

    de catequese ou proposio de f; de um aperfeioamento e afinao do conhecimento e

    no de uma afinao da f.

    Tendo em vista os vrios posicionamentos apresentados, tanto no Brasil como na

    Frana, o caminho apontado neste artigo busca uma perspectiva equidistante seja com

    respeito proposta de um ensino religioso confessional, como de uma rigidez laicista que

    simplesmente exclui qualquer possibilidade do ensino da religio na escola pblica.

    Levando-se em considerao a perspectiva das cincias da religio, h que se posicionar em

    favor da criao de condies para o aperfeioamento do estudo do religioso na escola

    pblica. Opta-se, aqui, pela terminologia adotada por Regis Debray no artigo j assinalado,

    sem com isso significar a admisso de todos os desdobramentos da perspectiva por ele

    defendida. Levando-se em conta a importncia do fator religio na sociedade brasileira e de

    sua relevncia para a compreenso da prpria cultura, no h como excluir a possibilidade

    do acesso sua apropriada reflexo na escola pblica. E as cincias da religio constituem

    um canal importante para possibilitar este exerccio reflexivo: de aperfeioamento da

    compreenso do religioso como objeto de cultura26, ou fenmeno de cultura.

    25 Essa Comisso tambm elaborou um relatrio sobre o tema e apontou trs dados como diagnstico sobre a presena da religio na sociedade francesa, que foram sintetizados por Giumbelli: a) a constatao do pluralismo do campo religioso e espiritual; b) o reconhecimento de uma desigualdade no modo como essas diferentes expresses religiosas e espirituais esto presentes na Frana; c) a denncia do 'comunitarismo', termo que pretende designar dinmicas sociais que exacerbam a identidade cultural (GIUMBELLI, 2004, p. 49-50). O texto do relatrio foi publicado no jornal Le Monde, em sua edio de 12 de dezembro de 2003, p. 17-24. 26 Privilegia-se, como lembra Debray, a tica do conhecimento, sendo a dinmica do aprimoramento da adeso religiosa, da religio como objeto de culto, uma tarefa especfica da famlia e da comunidade religiosa onde o aluno pode estar inserido.

  • Faustino Teixeira

    854 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    Dentre as diversas contribuies das cincias da religio para o ensino do

    religioso, algumas merecem destaque. Em primeiro lugar, pode-se apontar a pista do

    aperfeioamento do olhar e da escuta do mundo da alteridade. H aqui uma importante

    contribuio advinda da antropologia da religio, no trabalho de campo, que privilegia de

    forma singular o ver e o escutar. Segundo Roberto Cardoso de Oliveira, a afinao das

    faculdades de ver e ouvir constitui um dos traos mais caractersticos do trabalho

    antropolgico: ambas complementam-se e servem para o pesquisador como duas muletas

    [...] que lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimento.

    (OLIVEIRA, 1998b, p. 21)27

    . O outro sempre um enigma extremamente complexo, que

    resiste a qualquer apreenso simplificadora. Nesse sentido, compreender o outro , antes de

    tudo, uma arte que exige uma atitude de grande abertura e despojamento, e, sobretudo,

    uma sensibilidade hermenutica, na medida em que a relao com o outro envolve sempre a

    possibilidade efetiva de uma apropriao de outras possibilidades (TRACY, 1997, p.

    141)28

    . Na viso de Gadamer (2000, p. 23),

    [...] compreender no , em todo caso, estar de acordo com o que ou quem se

    compreende. Tal igualdade seria utpica. Compreender significa que eu posso

    pensar e ponderar o que o outro pensa. Ele poderia ter razo com o que diz e com o que propriamente quer dizer29.

    H aqui uma responsabilidade muito grande do educador em sua tarefa de

    apresentar o fenmeno religioso. Dele se exige no apenas um aprimoramento de

    conhecimentos tericos sobre as religies, mas um aperfeioamento de sua sensibilidade

    face ao enigma das religies.

    H que abrir espao no mbito da escola para uma abordagem honesta e digna do

    fenmeno religioso, que exige do quadro acadmico responsvel uma formao rica e

    multifacetada. As tradies religiosas so portadoras de um rico patrimnio espiritual, e

    sua justa avaliao pressupe no apenas o aprimoramento no campo do conhecimento,

    27 Na verdade, como diz esse autor, o ouvir complementa o ver, favorecendo a eliminao de todos os rudos que interditam o acesso ao conhecimento do outro. 28 Para esse autor, em toda autntica conversao entre pessoa e pessoa, ou entre pessoa e texto, existe uma abertura mtua transformao [...]. Qualquer interpretao de algum 'outro' constitui uma apropriao de uma possibilidade que j no exatamente a mesma que era em sua forma original (TRACY, 1997, p. 141). 29 mediante a virtude da hermenutica que se abre o caminho de acesso ao mistrio do outro, da possibilidade da convivncia com ele e de uma possvel solidariedade com a sua causa. Mas h que reconhecer a realidade de

    especificidades e singularidades de uma estranheza intransponvel no mundo (GADAMER, 2000, p. 25).

  • Temtica Livre: Artigo: O ensino do religioso e as Cincias da Religio

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 855

    mas tambm o exerccio de uma maior aproximao existencial, um contato mais estreito

    com elas. E isso deve ser feito com especial sensibilidade. H que reconhecer, como lembra

    Dalai Lama (1999, p. 52), que um dos melhores mtodos para aprimorar a compreenso e o

    respeito para com as outras tradies religiosas manter um contato estreito e fazer

    intercmbios entre as diferentes formas de f (cf., tambm, LELOUP, 2002). E, para isso,

    faz-se necessrio tambm o aperfeioamento do tato religioso, que favorece a superao

    de certa mentalidade que resiste adentrar-se em esferas particulares da experincia humana,

    limitando-se a reduzir o engajamento vivido pelo outro a uma mera rapsdia de

    observaes exteriores e frias. No h como compreender o contexto histrico das

    religies desconectando-o da espiritualidade que o anima.

    tambm necessrio criar condies para o reconhecimento da alteridade e o

    respeito sua dignidade. O estudo do fenmeno religioso deve possibilitar o exerccio de

    uma dinmica que seja marcada por um profundo respeito s diversas convices

    religiosas. H que respeitar profundamente o destino espiritual que marca a trajetria de

    cada ser humano, que tem o direito de procurar a verdade em matria religiosa30. Da a

    fundamental importncia do respeito liberdade religiosa. Deve-se, assim, evitar na prtica

    pedaggica todo proselitismo e utilizao de linguagem exclusivista, que transmita

    preconceitos ou viso de superioridade de uma determinada tradio sobre as outras.

    tarefa importante o favorecimento da percepo da riqueza e do valor de um

    mundo plural e diversificado. As religies no so apenas genuinamente diferentes, mas

    tambm autenticamente preciosas. H que honrar essa alteridade, em sua especificidade

    peculiar, reconhecendo o valor e a plausibilidade de um pluralismo religioso de direito ou

    princpio. A diversidade religiosa deve ser reconhecida, no como expresso da limitao

    humana ou fruto de uma realidade conjuntural passageira, mas como trao de riqueza e

    valor, um valor que irredutvel e irrevogvel. A abertura ao pluralismo constitui um

    imperativo humano e religioso. Trata-se de uma das experincias mais enriquecedoras

    realizadas pela conscincia humana. Assegurar o respeito diversidade religiosa garantir

    30 Cf. Declarao Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa, n.3, 1968. Em singular reflexo, Paul Ricoeur chamou a ateno para o risco de uma espcie de violncia que se insinua no corao da convico; o risco de algo potencialmente intolerante na convico, ou seja, o impulso de querer impor aos outros uma convico alheia. O desafio que se coloca para todo educador o de reconhecer o trao fundamental de que a adeso do outro s suas crenas , ela mesma, livre. Para Ricoeur, s mediante esta liberdade que a crena vem situada sob a categoria da pessoa e no da coisa e, ao mesmo tempo, a torna digna de respeito (RICOEUR, 1995, p. 183).

  • Faustino Teixeira

    856 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    a integridade das diferentes tradies religiosas e potencializar a perspectiva dialogal. Os

    telogos que vm trabalhando o tema do pluralismo religioso insistem em dizer que no h

    como compreender o enigma do Mistrio maior excluindo as mltiplas expresses do

    fenmeno religioso, que ao longo da histria vm concorrendo para a sua manifestao.

    Aqueles que no conseguem reconhecer a positividade das outras tradies religiosas

    enquanto contextos autnticos de salvao/libertao acabam por operar com uma

    concepo de Deus distante da criao (HAIGHT, 2003, p. 479; cf., tambm, GEFFR,

    2004).

    E, por fim, uma outra contribuio a ser elencada refere-se recuperao da fora

    espiritual das religies (KNG; KUSCHELL, 1995, p. 24). Num tempo marcado por

    tantos conflitos, tambm inter-religiosos, de afirmao de tantos dogmatismos e arrogncias

    identitrias, h que desentranhar as foras de renovao espiritual em suas mltiplas formas

    de expresso. So foras espirituais que vm conferindo vida humana uma fidelidade de

    fundo e um horizonte de sentido essenciais, e que despontam para as pessoas a

    viabilidade de caminhos alternativos, marcados pelos valores da compaixo, cortesia e o

    cuidado com todas as formas de vida.

    Concluso

    As atuais reflexes em torno da laicidade podem servir de apoio para situar de

    forma pertinente a questo do ensino do religioso na escola pblica. Embora mais

    recorrentes no cenrio europeu, essas discusses revelam-se tambm pertinentes para o

    debate no Brasil, sobretudo nesse momento onde o debate torna-se vivo e caloroso. Em

    tempos de pluralismo religioso, no h mais lugar, em mbito pblico, para um ensino

    religioso confessional que acaba por desconsiderar a singularidade, o significado e a

    originalidade das diferentes tradies religiosas. H que honrar a alteridade no que ela tem

    de mais fundamental. O pensador francs, Henri Pena-Ruiz (1998, p. 102), um dos grandes

    estudiosos do tema da laicidade, sinaliza que a laicidade requer a rejeio de toda

    discriminao na interpretao das doutrinas e das crenas31. Isso no significa deixar de

    31 Cf., tambm, Pena-Ruiz (2003).

  • Temtica Livre: Artigo: O ensino do religioso e as Cincias da Religio

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841 857

    lado a considerao e o estudo das diversas tradies religiosas e dos encaminhamentos

    espirituais. Eles tambm se revelam fundamentais para o entendimento do horizonte

    cultural. Nada mais equivocado hoje em dia, nesse tempo de efervescncia religiosa, do que

    propugnar uma laicidade de excluso, que acaba se revelando uma laicidade de

    incompetncia. As religies e opes espirituais merecem, antes, um estrito e rigoroso

    respeito, enquanto sinalizam encaminhamentos particulares que procedem do destino de

    cada ser humano, no seu livre direito de procurar a verdade em matria religiosa (DH 3).

    No h como negar aos alunos a possibilidade de acesso inteligente ao fato

    religioso, bem como compreenso das grandes referncias espirituais. E isso pode

    acontecer de forma transversal e interdisciplinar, como o tem demonstrado o caminho

    favorecido pelas cincias da religio. E a aproximao a esse complexo fenmeno deve

    acontecer de forma aberta e sensvel, sem que a reflexo se reduza a uma rapsdia de

    observaes exteriores e frias.

    A sociloga francesa Danile Hervieu-Lger tem defendido a ideia de uma

    laicidade mediadora, pontuada pela tnica amistosa e no mais de combate. Trata-se de

    uma proposta cooperativa entre o Estado e as diferentes famlias espirituais. Enquanto a

    perspectiva tradicional na Frana acabava suscitando ou legitimando uma incultura

    religiosa dos alunos, a nova perspectiva abre espao para a insero na escola pblica do

    ensino das diferentes culturas religiosas. Rompendo com um regime de neutralidade,

    abre-se caminho para uma cooperao razovel em matria de produo das referncias

    ticas, de preservao da memria e de construo do vnculo social (HERVIEU-LGER,

    2008, p. 226). Esse reconhecimento da contribuio das distintas famlias espirituais

    significa, na verdade, um enriquecimento da laicidade, e igualmente um potencial vetor de

    mediao nos conflitos que traduzem e expressam a normatividade republicana

    (HERVIEU-LGER, 2008, p. 230).

    tambm um importante trabalho a ser realizado pelas cincias da religio,

    relativizar a ideia recorrente de que as religies so portadoras de fanatismo e legitimadoras

    de agresses e conflitos violentos. No h dvida de que isso tambm acontece, em razo

    da ambiguidade das religies, mas as tradies religiosas propiciam tambm outras

    possibilidade e perspectivas. Elas podem igualmente favorecer a renovao espiritual de

    que a humanidade tanto carece nesses tempos da disperso do sentido. Como apontou com

  • Faustino Teixeira

    858 Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 839-861, out./dez. 2011 - ISSN: 2175-5841

    acerto o Parlamento das Religies Mundiais, em sua Declarao em favor de uma tica

    mundial, as foras espirituais das religies encontram-se em condio de conferir vida

    dos homens uma fidelidade de fundo, um horizonte de sentido e uma ptria espiritual

    (KNG; KUSCHELL, 1995, p. 24). E isso possvel quando a perspectiva dialogal

    prepondera sobre a dinmica das afirmaes identitrias arrogantes, e se busca, com

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