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2 Sistema interamericano de direitos humanos · Malu Romancini SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS A efetivação dos direitos da personalidade pela interconstitucionalidade

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Da Contextualização do Conceito de Meio Ambiente do Trabalho // 3

SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

A efetivação dos direitos da personalidade pela interconstitucionalidade

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Da Contextualização do Conceito de Meio Ambiente do Trabalho // 5

Daniela Menengoti Ribeiro Malu Romancini

SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

A efetivação dos direitos da personalidade pela interconstitucionalidade

Primeira Edição E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida!

Maringá – PR

2015

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Copyright 2015 by

Daniela Menengoti Ribeiro; Malu Romancini EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR Dr. Lorella Congiunti – PUU - Roma

Dr. Ivan Dias da Motta - UNICESUMAR REVISÃO ORTOGRÁFICA:

Prof. Antonio Eduardo Gabriel DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Editora Vivens CAPA:

Leandro Correia

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou

transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem

permissão escrita da Editora. Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida!

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http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

Ribeiro, Daniela Menengoti.

R484s Sistema interamericano de direitos

humanos: a efetivação dos direitos da

personalidade pela interconstitucionalidade.

/ Daniela Menengoti Ribeiro, Malu Romancini.

- 1. ed. e-book - Maringá,PR : Vivens, 2015.

224 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN 978-85-8401-055-4

1.Direito humanos. 2. Direitos da

personalidade. 3. Direito internacional.

I.Título.

CDD 22.ed.341.481

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO................................................................... PREFÁCIO................................................................................ INTRODUÇÃO........................................................................... 1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO CLÁSSICO......................................... 1.1 DO CONSTITUCIONALISMO ANTIGO AO CONSTITUCIONALISMO MODERNO................................ 1.2 DO CONSTITUCIONALISMO MODERNO AO CONSTITUCIONALISMO DO BEM-ESTAR..................... 1.3 DO CONSTITUCIONALISMO DO BEM-ESTAR AO CONSTITUCIONALISMO NEOLIBERAL............................. 1.4 O NEOCONSTITUCIONALISMO E O CONSTITUCIONALISMO PLURINACIONAL LATINO-AMERICANO.............................................................

1.4.1 O constitucionalismo latino-americano.......................... 2 TENDÊNCIAS DO CONSTITUCIONALISMO GLOBAL................................................................................... 2.1 GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO................... 2.2 DA CRIAÇÃO DE UM CONSTITUCIONALISMO GLOBAL.................................................................................... 2.3 INTERCONSTITUCIONALIDADE E TRANSCONSTITUCIONALISMO............................................

2.3.1 A ideia da Europa unida............................................. 2.3.2 A Interconstitucionalidade da Europa...........................

2.4 A INTERCONSTITUCIONALIDADE NA AMÉRICA LATINA....................................................................

2.4.1 A Organização dos Estados Americanos – OEA......... 2.4.2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos......... 2.4.3 A Interconstitucionalidade e suas razões de existir na América Latina....................................................

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3 CASOS DE INTERCONSTITUCIONALIDADE ENVOLVENDO DIREITOS DA PERSONALIDADE NA AMÉRICA LATINA................................................................ 3.1 DO DIREITO DA PERSONALIDADE NAS PRINCIPAIS CONSTITUIÇÕES DA AMÉRICA LATINA............... 3.2 DA ANÁLISE DOS CASOS DE EFETIVAÇÃO DA INTERCONSTITUCIONALIDADE ENVOLVENDO DIREITOS DA PERSONALIDADE NA AMÉRICA LATINA...........

3.2.1 O caso 11.552 – Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) Vs. Brasil............................................ 3.2.2 O caso 12.465 – Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador............................................ 3.2.3 O caso 12.051 – Maria da Penha Maia Fernandes Vs. Brasil................................................................................. 3.2.4 O caso 12.051 – Karen Atala e filhas Vs. Chile................

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................... REFERÊNCIAS............................................................................ ANEXOS......................................................................................

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APRESENTAÇÃO O período pós-Segunda Guerra Mundial, os documentos

internacionais e o sentimento da necessidade de mudança global trouxeram uma evolução positiva em relação aos direitos humanos. Consequentemente, iniciou-se um processo de acentuada integração da sociedade, e assim, os problemas relacionados aos direitos humanos tornaram-se impossíveis de serem amparados somente no âmbito doméstico dos Estados. Este novo desafio passou a ser uma preocupação constante dos juristas, em especial dos constitucionalistas. Neste contexto, nota-se o surgimento de um direito constitucional que transcende as fronteiras dos Estados e busca resolver problemas constitucionais comuns por meio da inter-relação entre ordens jurídicas diversas, denominada interconstitucionalidade. Este fenômeno estuda as relações de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de ordens jurídicas constitucionais e de poderes constituintes no mesmo espaço político, visando uma solução mais efetiva e protetiva para os casos concretos. Neste sentido, a pesquisa busca identificar a ocorrência e analisar esta abordagem interconstitucional no âmbito da América Latina, por meio dos julgados e recomendações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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PREFÁCIO Sobre a proteção de direitos humanos/fundamentais em rede

Prof.ª Dr.ª Alessandra Silveira*

A teoria da interconstitucionalidade surgiu da necessidade

de captar o fenómeno da interação reflexiva entre normas constitucionais de distintas fontes que convivem no mesmo espaço político – aquele da União Europeia. Tal convivência implica a atuação em rede para a solução de problemas constitucionais comuns, sobretudo aqueles relacionados com a proteção direitos fundamentais, ditos “jusfundamentais”. A metáfora das redes traduz a ausência de hierarquia e é utilizada para explicar que os instrumentos do direito constitucional nacional já não conseguem captar o sentido, os limites, nem fornecer compreensões juridicamente adequadas para os problemas da integração europeia, o que exige o desenvolvimento de uma teoria da interconstitucionalidade que explique o que se está a passar.1 Como explica Gomes Canotilho, a teoria da inteconstitucionalidade enfrenta o intrincado problema da articulação entre constituições e da afirmação de poderes constituintes e legitimidades diversas, a partir de uma perspectiva amiga do pluralismo de ordenamentos e de normatividades. O termo interconstitucionalidade foi, portanto, originariamente cunhado pela academia portuguesa – e reproduz, de forma porventura mais feliz do que a conhecida expressão anglo-saxónica multilevel constitutionalism (constitucionalismo multinível),2 a ideia de um modelo de

* Titular da Cátedra Jean Monnet em Direito da União Europeia. Diretora do Centro de Estudos em Direito da União Europeia (CEDU) da Universidade do Minho, Portugal. 1 Sobre o tema da interconstitucionalidade cfr. J. J. Gomes Canotilho, “Brancosos” e interconstitucionalidade. Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional, Almedina, Coimbra, 2006; Alessandra Silveira, “Interconstitucionalidade: normas constitucionais em rede e integração europeia na sociedade mundial”, in Alexandre Walmott Borges/Saulo Pinto Coelho (coords.), Interconstitucionalidade e interdisciplinaridade: desafios, âmbitos e níveis de interação no mundo global, LAECC, Uberlândia, 2015. 2 Para a compreensão do conceito cfr. Ingolf Pernice, “Multilevel constitutionalism in the European Union”, in European Law Review, 27, 2002; “Today’s

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interconexão onde não há espaço para níveis que pressupõem hierarquia.3

Tal ideia de interconstitucionalidade, brilhantemente recuperada por Gomes Canotilho, foi primeiramente avançada por outro insigne Mestre da academia coimbrã e grande europeísta, Francisco Lucas Pires (entretanto falecido) numa obra publicada em 1998 e intitulada “Introdução ao direito constitucional europeu”. Diz-se que a originalidade do pensamento de Lucas Pires assenta numa particular conceção do constitucionalismo tendente a permitir a sua reconstrução num contexto de pluralismo de fontes constitucionais nacionais e europeias.4 Por isso Poiares Maduro explica que o pensamento constitucional europeu de Lucas Pires foi marcado por duas questões fundamentais: i) a relação entre o constitucionalismo nacional e o constitucionalismo europeu e ii) o modelo que o constitucionalismo europeu podia e devia assumir num contexto não estadual. Não se tratava só de teorizar uma Constituição que admita o pluralismo de ordenamentos (oficiais, oficiosos e marginais), mas de teorizar o próprio “pluralismo de constituições”.5 Por isso Lucas Pires

multilayered legal order: current issues and perspectives”, in Liber Amicorum in honour of Arjen W. H. Meij, Paris Legal Publishers, Zutphen, 2011. 3 Em inglês a expressão corrente para identificar o fenómeno seria «multilevel constitutionalism». Sobre a pertinência da expressão portuguesa cfr. Leonard Besselink, “Multiple political identities: revisiting the maximum standard”, in Alessandra Silveira/Mariana Canotilho/Pedro Froufe (eds.), Citizenship and solidarity in the European Union – from the Charter of Fundamental Rights to the crisis, the state of the art, Peter Lang, Bruxelles/Bern/Berlin/Frankfurt am Main/New York/Oxford/Wien, 2013, p. 236, onde se lê: «In Portuguese, the equivalent expression lacks the adjective “multilevel”: it speaks of “interconstitucionalidade”, literally “interconstitutionality”. I strongly prefer this over the expression “multilevel constitutionalism”. The metaphor “multilevel” presupposes the existence of “levels”. In turn, levels imply hierarchy: one level is by definition higher than, i.e., superior to the other; the other is subordinate to the one. In the day and age of globalization, hierarchy has become a contested concept also in constitutional law. It may no longer adequately explain the relationship between constitutional orders». 4 Cfr. Miguel Poiares Maduro, “Um constitucionalismo para várias constituições: o pensamento constitucional europeu de Francisco Lucas Pires”, in A revolução europeia por Francisco Lucas Pires – antologia de textos, Publicação do Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu, maio/2008, p. 121. 5 Cfr. Paulo Castro Rangel, “Uma teoria da «interconstitucionalidade»: pluralismo e constituição no pensamento de Francisco Lucas Pires”, in O estado do Estado. Ensaios de política constitucional sobre justiça e democracia, Dom Quixote, Alfragide, 2009, p. 164.

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colocava a tónica mais numa espécie de teoria da interconstitucionalidade do que num novo constitucionalismo.6

Assim, a teoria da interconstitucionalidade surgiu para captar i) o fenómeno da pluralidade/interação de distintas fontes constitucionais e reivindicações de autoridade constitucional, bem como ii) as tentativas judiciais de as acomodar num contexto jurídico-constitucional não hierarquicamente estruturado. Por isso o mote daquela teoria foi originariamente fornecido pelos riscos de conflito/disputa pela última instância decisória em matéria jurídico-constitucional no espaço da União (entre Tribunal de Justiça da União Europeia e os tribunais constitucionais dos Estados-Membros).7 Todavia, a teoria da interconstitucionalidade tem revelado outras virtualidades – e são estas que importa agora destacar e prosseguir – quer na definição da identidade do constitucionalismo europeu, quer na atualização da teoria do constitucionalismo em geral. Como explica Poiares Maduro, a interconstitucionalidade emerge hoje como uma teoria do pluralismo constitucional na União Europeia (ou a mais bem-sucedida hipótese teorética sobre a natureza do constitucionalismo europeu) e não apenas como um remédio para a solução de conflitos constitucionais de autoridade (ou uma teoria sobre a natureza das relações entre a ordem

6 Cfr. Francisco Lucas Pires, Introdução ao direito constitucional europeu, Almedina, Coimbra, 1997, p. 18. Eis, no entendimento de Paulo Rangel, o que difere a proposta de “interconstitucionalidade” daquela de “transconstitucionalismo”, na medida em que a última parece sugerir “um momento de transcendência ou superação do direito constitucional clássico”, fazendo “deslocar o objecto do direito constitucional da ‘constituição’ (…) para a dinâmica das ‘relações jurídico-constitucionais’. Cfr. Paulo Castro Rangel, “Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade. Uma leitura crítica do pensamento ‘transconstitucional’ de Marcelo Neves”, in Tribunal Constitucional - 35.º aniversário da Constituição de 1976, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 152-157. 7 Cfr. Miguel Poiares Maduro, “Constitutional pluralism as the theory of European constitutionalism”, in Fernando Alves Correia/Jónatas Machado/João Loureiro (coords.), Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, vol. III, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade d e Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 451, onde se lê: «It has been stated that constitutional pluralism has emerged as a response to the Maastricht Judgment of the German Constitutional Court. This judgment brougt to the fore the risks of constitutional conflicts between EU law and national constitutions emerging from the claims of final authority embodied in the case law of the European Court of Justice and national constitutional courts. Constitutional pluralism is often presented as a reaction to this judgment, attempting simultaneously to describe that reality and accommodate those competing constitutional claims».

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constitucional da União e outras ordens constitucionais, nacionais e internacional). Originariamente serviu para isso, mas pode e deve fazer mais. Ou seja, a teoria que nos ocupa está antes focada na legitimidade do constitucionalismo europeu e no seu modelo de organização do poder – ou noutras palavras, na própria natureza da União Europeia enquanto comunidade jurídico-política.8

Mas para além disso, a “galáxia conceitual da interconstitucionalidade”9 – como lhe chama Paulo Rangel – não suscita questões e ensaia respostas apenas para problemas constitucionais próprios e exclusivos da União Europeia, o que aparentemente teria levado Marcelo Neves a recusá-la e propor a ideia de transconstitucionalismo.10 Ao contrário, na medida em que fornece um arsenal teórico para lidar com a fenomenologia da pluralidade de ordenamentos que são reconhecidamente paralelos, desiguais e concorrentes, a teoria da interconstitucionalidade abre as portas à renovação da teoria da constituição, facilitando a tarefa de a redesenhar para um universo político em que o Estado deixou de ser o referente exclusivo dos materiais constitucionais. A teoria da interconstitucionalidade não convoca propriamente a superação do conceito de constituição enquanto tal, isto é, não o transcende (como porventura o prefixo “trans” possa sugerir), apenas o renova porque o desliga da referência exclusiva ao modo político estadual e o abre ao “mundo-da-vida” pós-vestefaliano.11 Neste sentido, a interconstitucionalidade apenas adapta o constitucionalismo à mudança da natureza da

autoridade política e do espaço político.12 Eis a razão do crescente interesse por esta teoria em quadrantes científicos não europeus, pois fornece um modelo de integração jurídico-constitucional.

8 Cfr. Miguel Poiares Maduro, “Constitutional pluralism as the theory of European constitutionalism”, cit., pp. 450-451. 9 Cfr. Paulo Castro Rangel, “Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade. Uma leitura crítica do pensamento ‘transconstitucional’ de Marcelo Neves”, cit., p. 155. 10 Marcelo Neves, Transconstitucionalismo, Martins Fontes, São Paulo, 2009. 11 Cfr. Paulo Castro Rangel, “Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade, cit., pp. 153 e155. 12 Cfr. Miguel Poiares Maduro, “Constitutional pluralism as the theory of European constitutionalism”, cit., p. 469.

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É nesta perspetiva que Gomes Canotilho tem falado da crise do método no direito constitucional, manifestando dúvidas sobre a bondade de uma metódica que, não obstante responder aos apelos da praxis ou aos desafios da realidade à hermenêutica aplicativa, insiste em reduzir os problemas constitucionais a problemas de aplicação das normas constitucionais. Aqui cabem os tópicos centrados na efetividade das normas constitucionais, no aprofundamento hermenêutico da concretização constitucional, ou na reiterada dilucidação dogmática da distinção entre princípios e regras. É certo que o direito constitucional, tal como as outras disciplinas jurídicas, é uma ciência de aplicação de normas, sejam elas normas em forma de princípios, sejam elas normas em forma de regras. Todavia, diante da erosão da substantividade própria do direito constitucional, importa saber se o que está em causa não serão antes problemas epistemológicos em vez de problemas dogmáticos de aplicação de normas constitucionais. Ou em jeito de inquietações: Que oportunidades a teoria constitucional oferece à reflexão sobre a crise económico-financeira? Em que medida a crise pode ter um impacto no pensamento jurídico-constitucional? Em que medida as relações entre o económico, o político, e o jurídico-constitucional são compreendidos e tematizados num contexto de crise em termos de causas e soluções? Qual o valor específico e autónomo do direito constitucional nos dias que correm? O que resta da Constituição depois da globalização?13

Tudo isso interpela o tema do controlo democrático dos processos políticos e económicos num contexto globalitário (ou numa ambiência pós-estatal). Os problemas constitucionais que atualmente aproximam o constitucionalismo português e o brasileiro derivam da globalização em curso – e por isso importam, neste contexto, as implicações do constitucionalismo em rede e as soluções partilhadas, em termos de políticas públicas, no contexto da União Europeia. O certo é que as Constituições estão em rede – em discussão, em tensão, em convivência com outras normas constitucionais –, o que nos obriga a interagir com as Constituições alheias e afinar os

13 Cfr. J. J. Gomes Canotilho, “Da Constituição dirigente à jurisprudência dirigente”, in Newton De Lucca/Samantha Meyer-Pflug/Mariana Baeta Neves (coords.), Direito Constitucional Contemporâneo – Homenagem ao Professor Michel Temer, Editora Quartier Latin do Brasil, São Paulo, 2012., p.549.

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nossos esquemas organizativos e a nossa praxis jurídico-política a partir do programa normativo de outras ordens jurídicas. Talvez seja esta a questão mais relevante para a linguagem hermenêutica e a discussão teorética entre o constitucionalismo português e brasileiro nos dias que correm, pois enquanto a concessão de Constituição dirigente assentava na centralidade do sujeito (capaz de ordenar a realidade através da vontade e da racionalidade conformadora), a interconstitucionalidade acompanha a progressiva descentralização do sujeito globalitário (incapaz de garantir a centralidade constitucional por um ato de consciência, de razão ou de vontade).14 Por isso importa refletir se mais vale uma Constituição cidadã enclausurada ou uma Constituição cidadã em rede.

Em busca dos pressupostos filosóficos dessa teoria, diríamos que o diálogo intersubjetivo proposto pela interconstitucionalidade exige a capacidade de pôr-se na posição do outro e deixar-se afetar/motivar por razões aceitáveis por todas as ordens jurídicas envolvidas. Neste sentido, busca arrimo na proposta filosófica da intersubjetividade, segundo a qual a racionalidade não depende diretamente do sujeito, mas sim do confronto discursivo com as posições dos outros, num exercício que conduz ao que Piaget entendia por descentralização progressiva da compreensão egocêntrica e etnocêntrica que cada qual tem de si mesmo e do mundo.15 Habermas explica que não há como desenvolver a concessão de subjetividade independentemente das suas relações com a intersubjetividade, sendo ambas noções complementares. Por isso aquele Autor sugere a reestruturação intersubjetiva da racionalidade – ou seja, que lancemos sobre novos fundamentos toda a nossa compreensão da razão, do ser humano, da sociedade. Daí que tentar esclarecer as condições da

14 Cfr. Agostinho Ramalho Marques Neto, in Canotilho e a Constituição dirigente, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (coord.), Renovar, Rio de Janeiro/São Paulo, 2003, p. 52. 15 Sobre o tema da intersubjetividade cfr. Jürgen Habermas, A ética da discussão e a questão da verdade, Martins Fontes, São Paulo, 2004; Alessandra Silveira, “Intersubjectividade, interdemocraticidade, interconstitucionalidade – filosofia política e juridicidade europeia”, in João Cardoso Rosas/Vitor Moura (coords..), Pensar radicalmente a humanidade, Ensaios em Homenagem ao Prof. Doutor Acílio da Silva Estanqueiro Rocha, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, 2011.

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intercompreensão normativa e identificar os termos de uma fundamentação intersubjetiva de normas jurídicas seja tão relevante no presente momento histórico – algo em que a teoria da interconstitucionalidade está empenhada. Tem de ser assim porque, num sistema de pluralismo constitucional, as ordens jurídicas envolvidas não podem ignorar-se umas às outras e decidir, unilateralmente, sobre dimensões materiais que a todas afetam.

Em jeito de conclusão, cumpre-me agradecer, penhoradamente, pela generosidade e empenho com que a Professora Daniela Menengoti Ribeiro e a Mestre Malu Romancini transpuseram os fundamentos da interconstitucionalidade para o contexto/sistema interamericano de direitos humanos. Os europeus carecem de evoluir a partir da expertise de outras partes do mundo, numa espécie de partilha criativa de conhecimento, pois a União Europeia precisa desesperadamente aprender com o que os outros pensam dela e com o que estiverem dispostos a lhe ensinar. Em ambos os lados do Atlântico as expectativas dos cidadãos deixaram de ser compatíveis com os arranjos institucionais que deveriam satisfazê-los, sendo necessário reorganizar tudo novamente, contra resistências e contradições. E aqui a teoria da interconstitucionalidade pode dar o seu contributo, sempre numa abordagem prospetiva, projetando o futuro, pois a academia deve ser o lugar da crítica, mas também o espaço onde se engendram soluções – credíveis, viáveis, tendencialmente consensuais.

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LISTA DE ABREVIATURAS OU SIGLAS ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental AL – América Latina CADH – Convenção Americana de Direitos Humanos CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço CEE – Comunidade Econômica Europeia CF – Constituição Federal de 1988 CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos Corte IDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos EUA – Estados Unidos da América OEA – Organização dos Estados Americanos OI – Organização Internacional OIT – Organização Internacional do Trabalho OMC – Organização Mundial do Comércio ONU – Organização das Nações Unidas PCdoB – Partido Comunista do Brasil SIDH – Sistema Interamericano de Direitos Humanos TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia UE – União Europeia VS. – Versus

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INTRODUÇÃO A globalização e o consequente fortalecimento do direito

internacional, juntamente com o sentimento de mudança e troca de experiências que se instauraram no globo trouxeram uma evolução positiva considerável em relação aos direitos humanos, e dentro destes, os direitos da personalidade. Em razão disto, iniciou-se um processo de acentuada integração da sociedade mundial, e assim, os problemas relacionados aos direitos da personalidade – aqueles que são inerentes aos seres humanos – tornaram-se impossíveis de serem amparados somente no âmbito doméstico dos Estados devido à importância de sua efetivação e tutela.

É neste contexto que surge o interconstitucionalidade que pode ser compreendido, de maneira breve, como a utilização de conversações constitucionais, bem como o estudo das relações interconstitucionais de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político.

Partir desta proposição, a pesquisa realizada propôs-se a analisar se a teoria interconstitucionalidade apresentada por J. J. Canotilho é utilizada no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como uma forma de fortalecimento e efetivação da tutela de problemas constitucionais envolvendo os direitos da personalidade.

Para tanto, o presente estudo fora dividido em três capítulos. No primeiro analisar-se-á a evolução do constitucionalismo, desde suas origens – com o constitucionalismo antigo – até que se chegue à esta nova forma de constitucionalismo que assola os Estados da América Latina, denominado constitucionalismo latino-americano.

No segundo capítulo, a pesquisa voltar-se-á às tendências do Constitucionalismo global. Assim, abordar-se-á a mudança no Direito Constitucional tradicional e no Direito Internacional clássico, para tentar encontrar um direito intermediário, que melhor se encaixe com os problemas globais atuais. Para tal, tratar-se-á de duas hipóteses para solucionar a questão e melhor tutelar os direitos da personalidade. A primeira delas seria a construção de um constitucionalismo global, e a

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segunda, por sua vez, é a intensificação e a legitimação da interconstitucionalidade para a tutela dos direitos inerentes aos seres humanos. Por fim, dentro do mesmo capítulo, será analisada a presença deste fenômeno na Europa – dentro da União Europeia – e na América Latina – dentro da Organização dos Estados Americanos.

A terceira e última parte deste estudo tratará da análise de casos práticos que envolvam os direitos da personalidade, em que se percebe a presença da interconstitucionalidade na América Latina, dentro do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Para chegar a este fim, a pesquisa voltar-se-á a priori

ao exame de períodos históricos que marcaram o constitucionalismo latino americano, bem como à análise das Constituições dos principais países que fazem parte da América Latina, objetivando encontrar pontos de convergência acerca dos direitos da personalidade, que servirão como elementos para abertura de “conversações” com outras ordens jurídicas. Posteriormente, far-se-á uma análise jurisprudencial para se chegar ao objeto principal desta pesquisa: investigar se efetivamente ocorre a abordagem interconstitucional no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos e se esta dinâmica favorece a tutela mais efetiva dos direitos da personalidade dos indivíduos.

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A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO CLÁSSICO

O termo “constitucionalismo” é utilizado para

caracterizar um sistema jurídico que tenha uma Constituição para regulamentar o poder do Estado. Nas palavras de Fachin, o vocábulo permite dupla interpretação. Em sentido amplo, significa que todos os Estados têm uma Constituição, que independe do regime político adotado ou do momento histórico em que vivem. Em sentido estrito, diz respeito a uma técnica jurídica de proteção das liberdades dos indivíduos, que surgiu no final do século XVIII, com o intuito de proteger os cidadãos das arbitrariedades dos governos absolutistas1.

Canotilho conceitua constitucionalismo como “a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma sociedade”2.

Sobre a função do constitucionalismo, Riccitelli esclarece que “é fundamentar os princípios ideológicos, alicerce de organização interna de qualquer Constituição”3.

É possível identificar várias definições para o constitucionalismo, mas a principal característica dessa diversidade terminológica é a evolução que o instituto sofre com o passar dos tempos. Sendo assim, buscar-se-á, neste capítulo, analisar esse desenvolvimento do constitucionalismo, desde o antigo até ao novo constitucionalismo latino-americano.

1 FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 35. 2 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 51. 3 RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 45.

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1.1 DO CONSTITUCIONALISMO ANTIGO AO CONSTITUCIONALISMO MODERNO

Desde os primórdios, os homens vêm se organizando

em grupos, que mais tarde, seriam denominadas sociedades. Para que isso fosse possível, era necessário que houvesse uma certa “ordem”, que surgiu com a figura da Constituição e do Estado.

O termo Constituição, advém da conjunção do prefixo originado do latim cum com o verbo stituire forma o termo Constituição, que, em sentido comum, significa o conjunto dos caracteres morfológicos, físicos ou psicológicos de cada indivíduo ou a formação material das coisas. Também pode ter dois significados: em sentido lato sensu, para a ciência do direito, Constituição representa o conjunto dos elementos estruturais do Estado, sua organização básica, abrangendo sua composição geográfica, política, jurídica, administrativa, econômica e social. O sentido stricto sensu define a palavra Constituição como a lei fundamental de um Estado que organiza e limita o exercício do poder estatal.4

Canotilho, remetendo-se à origem da Constituição, afirma que “de uma forma historicamente mutável, a Constituição de uma comunidade organizada assentou sempre em três pilares: poder, dinheiro e entendimento”5.

Há ainda uma preocupação em estabelecer um conceito de Constituição que se adapte tanto ao sistema de common law6

4 RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 68. 5 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 21. 6 No sistema jurídico denominado common law, também conhecido como sistema jurídico anglo-saxão, o direito se revela e se legitima não através de normas escritas, mas por meio dos costumes e pela jurisdição. Ou seja, no common law o direito é misto, costumeiro e jurisprudencial, portanto, é um direito coordenado por precedentes. “As fontes do direito britânico são, em ordem crescente de importância, o costume, a lei e os precedentes judiciários [...] Como todos os grandes sistemas jurídicos, também o Common Law absorve e organiza os costumes [...] admitindo, porém, a prova em contrário [...] Como o precedente jurisdicional é a principal fonte da Common Law, os juízes sempre interpretaram de modo restritivo a legislação (Statute Law), limitando ao máximo a incidência desta na Common Law.” In: LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. Tradução de

A evolução histórica... 25

quanto ao sistema civil law7. Dessa forma, Canotilho afirma que se deve ter em mente um conceito histórico de constituição, que seria “o conjunto de regras (escritas ou consuetudinárias) e de estruturas institucionais conformadoras de uma dada ordem jurídico-política num determinado sistema político-social”8.

Para Canotilho, haveria primeiramente um constitucionalismo antigo, que seria caracterizado como simplesmente um conjunto de princípios, escritos ou não, que alicerçavam os direitos do povo perante o monarca e, ao mesmo tempo, limitavam o poder deste9.

Na segunda metade do século XV, surge o denominado Estado Moderno10, que emerge, lógica e historicamente, como um tipo de organização básica e originária, devendo a Constituição articular-se com este modelo pré-constitucional. Como primeiro fim e o único adequado à sua essência, o Estado tinha por fim garantir a paz e a segurança11.

Como elementos indispensáveis para a existência desse Estado Moderno, Dallari aponta a soberania, o território, o povo e a finalidade12, sendo a soberania a sua base e característica indispensável à constituição do Estado. A soberania é a qualidade que faz com que o poder do Estado seja supremo internamente, e que, seja igual e independente em relação aos demais Estados, externamente.

Marcela Varejão. Revisão da tradução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 333-334. 7 O sistema civil law, também chamado de sistema romano-germânico é o sistema jurídico mais comumente encontrado no mundo. Ele tem origem no direito romano por meio da interpretação feita pelos glosadores a partir do século XI, e posteriormente, manifestou-se através do fenômeno da codificação do direito, a partir do século XVIII. Em outras palavras, o direito manifesta-se primordialmente, através da lei escrita e dos códigos, não dispensando a aplicação de costumes e jurisprudências, também consideradas fontes do direito. 8 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 53. 9 Ibidem, p. 52. 10 O Estado Moderno nasceu na segunda metade do século XV, a partir do desenvolvimento do capitalismo mercantil nos países como a França, Inglaterra e Espanha, e mais tarde na Itália. 11 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 114. 12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.70

26 Sistema interamericano de direitos humanos...

Nesse contexto, tem-se que o absolutismo é a primeira forma de Estado moderno. Sendo assim, durante a existência deste constitucionalismo rudimentar – o constitucionalismo antigo – o Estado que se via na época, era o Estado absoluto monárquico, no qual o monarca governava de maneira plena e o fazia em nome de Deus13. Na vigência deste tipo de Estado, o excessivo poder do monarca era justificado por teorias que isentavam o rei de qualquer tipo de responsabilidade, tais como a teoria do the king can do no wrong14, advinda da Inglaterra, na qual a falta de responsabilização do monarca estava assentada no fato de ele ser o representante de Deus na terra15.

O Estado absoluto monárquico contou com monarcas conhecidos, tais como Luiz XIV da França, conhecido como Rei Sol16, que representou o símbolo do absolutismo monárquico com sua célebre frase “O Estado sou Eu”17.

Neste momento histórico, em razão do absolutismo latente, o povo estava excluído de toda participação pública. O pensamento predominante era o de que o poder emanava diretamente de Deus, portanto, a Igreja poderia exercer uma grande influência nas decisões políticas. No entanto, tal intervenção caracteriza veemente e insuportável afronta à tentativa de instituir-se um poder absoluto – e indiretamente um

13 RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 27. 14 Se tratava de uma teoria/fórmula que orientava o espírito norteador da irresponsabilidade estatal face os atos cometidos em contrariedade ao direito dos súditos. 15 RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 27. 16 É considerado o maior dos reis absolutistas. Durante seu reinado, extinguiu o cargo de primeiro-ministro, governando apenas com um chanceler, quatro secretários e um administrador das finanças, submetidos a seu controle. Seu reinado durou mais de 50 anos e destacou-se politicamente pelo absolutismo monárquico, no qual o monarca controlava até os detalhes mais insignificantes do governo. Luiz XIV incentivou as atividades culturais, pois para ele era assunto do Estado. Construiu o Palácio de Versalhes, onde viveu a corte francesa. Em seu governo, reorganizou o exército dando ao país o maior poderio militar da Europa. Ficou conhecido como Rei Sol por escolher a imagem do astro-rei como seu emblema. Ao morrer, em Versalhes, deixou o país em péssima situação econômica. 17 RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 28.

A evolução histórica... 27

atentado ao poder soberano do monarca –, o que fatalmente gerou o rompimento entre o clero e a nobreza.18

Assim, em razão da oposição existente, este cenário foi se modificando com o advento das publicações de documentos com conteúdo constitucional – como a Magna Carta (1215), a Petição de Direito (1628) e a Lei do Habeas Corpus (1679).

A faísca do parlamentarismo surgiu no ano de 1213, quando, o “João sem Terra” convocou cavaleiros de cada condado, para com eles conversar sobre os assuntos do reino. Bem sabe que somente reuniam pessoas de igual condição política, econômica e social, mas com o propósito de poderem influenciar nas decisões do Estado.19 Com a criação do parlamentarismo inglês, o povo passaria, nesse momento histórico, a ser representado, por meio de uma constituição mista, pela qual o poder não está concentrado somente nas mãos de um monarca, mas está partilhado com o Parlamento.20

O filósofo inglês John Locke21 é a figura que representa o antiabsolutismo, mas que foi também sustentada por inúmeros filósofos, tal como Charles de Secondat, o Conde de

18 BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. Introdução ao curso de teoria geral do Estado e Ciências Políticas. Campinas: Bookseller, 2004, p. 139-141. 19 DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos da Teoria Geral do Estado, Saraiva, 19º edição, São Paulo, 1995, p. 195. 20 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 55-56 21 Conhecido como o “pai do liberalismo”, e um dos principais teóricos do contrato social. Suas ideias ajudaram a combater o absolutismo na Inglaterra. Isso porque, Locke acreditava que todos os homens, quando do nascimento, tinham direitos naturais, quais sejam, direito à vida, à liberdade e à propriedade. Assim, para que esses direitos naturais fossem garantidos, os homens criaram os governos. No entanto, se esses governos, não respeitassem a vida, a liberdade e a propriedade, o povo tinha o direito de se revoltar contra eles. Nesse caso, as pessoas podiam contestar um governo injusto e não eram obrigadas a aceitar suas decisões.

28 Sistema interamericano de direitos humanos...

Montesquieu22, e Jean-Jacques Rousseau23. O antiabsolutismo serviu como combustível aos acontecimentos mais marcantes que viriam a ocorrer na história da humanidade: as Revoluções Americana e Francesa. As Constituições, que ocorreu a partir destes marcos, buscavam conferir aos direitos uma dimensão permanente e segura, que se consolida na ideia de solidariedade e de fraternidade.

O constitucionalismo moderno, por sua vez, é caracterizado por Canotilho como o movimento político, social e cultural que se manifestou na Inglaterra, no século XVII, na França e nos Estados Unidos, no século XVIII e que “[...] questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo ao mesmo tempo, a invenção de uma nova fase de ordenação e fundamentação do poder político”24.

A negociação da Paz de Westfália25 iniciou-se em 1644, e colocou fim a guerras religiosas entre católicos e protestantes,

22 Montesquieu foi um dos primeiros sociólogos e cientista político a tentar descobrir as conexões existentes entre as leis e a realidade social de cada grupo humano. Durante os últimos anos de vida, lançou as bases das ciências sociais e econômicas, inspirando as constituições francesa (1791) e espanhola (1812), que serviram de modelo para todas as constituições liberal-democráticas posteriores. Suas teorias exerceram inspiraram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), durante a revolução francesa, e a constituição dos Estados Unidos (1787), que criou o presidencialismo. Sua obra De l'esprit des lois (1748), tratou do princípio da separação dos poderes e foi considerada a mais influente publicação do século XVIII, na Europa, influenciando especialmente o direito constitucional da época. 23 Rousseau foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata suíço. Foi considerado um dos principais filósofos do iluminismo e um precursor do romantismo. Acreditava e defendia um Estado social legítimo, próximo da vontade geral e distante da corrupção. Para Rousseau, a soberania do poder deveria estar concentrada nas mãos do povo. Pensava que a população tem que ser cuidadosa ao transformar seus direitos naturais em direitos civis, porque, segundo ele, o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. 24 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 52. 25 Entre os dias de 15 de maio a 24 de outubro de 1648, os principais plenipotenciários europeus assinaram nas cidades alemãs de Münster e Osnabrück um grande tratado de paz que fez história: a Paz de Westfália. Com ela puseram fim a desastrosa Guerra dos Trinta anos, tida como a primeira guerra civil generalizada da Europa, como igualmente lançaram as bases de um novo sistema de relações internacionais. Acordo este baseado no respeito ao equilíbrio dos poderes entre os estados europeus que passou a imperar no mundo desde então.

A evolução histórica... 29

tendo sido negociada por três anos por representantes destas religiões. O tratado significou a dissolução da antiga ordem imperial e permitiu o crescimento de novas potências em suas partes componentes. Firmada em Münster e Osnabrück, em 1648, trouxe a primeira previsão positivada da concepção de igualdade soberana entre os Estados. Desvincularam-se da Santa Sé os nascentes Estados europeus, iniciando-se um processo de identidade própria.

[...] a denominada Paz de Westafália consagraria a regra que passaria a ser conhecida em sua formulação no latim cartorário da época: hujus regio, ejus religio, traduzido, literalmente, ‘na região dele, a religião dele’. Na verdade, a regra da Westfália nada mais quer significar do que: na região (leia-se, no território) sob império de um príncipe, esteja vigente unicamente uma ordem jurídica, sua ordem jurídica [...] o próprio Estado, como uma forma de organização da sociedade, nasceria, assim, com a marca indelével de possuir, como condição essencial para sua existência, uma base territorial, e o sistema jurídico nacional que dele se origina, por outro lado, passaria a ser eminentemente territorial.26

As conversações de paz envolviam o fim da guerra de

oitenta anos entre Espanha e Países Baixos e da guerra dos trinta anos na Alemanha. O tratado de paz entre Espanha e Países Baixos foi assinado em 30 de janeiro de 1648. Já em 24 de outubro do mesmo ano foi assinado o tratado de paz entre o Sacro Império Romano-Germânico, os outros príncipes alemães, a França e a Suécia. Todos estes diplomas foram depois reunidos no Ato Geral de Westfália em Münster em 24 de outubro de 1648.

Os três tratados que fazem parte da Paz de Westfália – Tratado Hispano-Holandês, Tratado de Westfália e o Tratado dos Pirineus – inauguraram o moderno Sistema Internacional, ao cristalizar consensualmente noções e princípios como o de soberania estatal e o de Estado nação.

Assim, se estabelecia um paradigma realista nas relações internacionais, no qual os Estados realizavam acordos entre si seguindo suas próprias vontades soberanas. E, ao mesmo tempo eram concebidos como iguais juridicamente e

26 SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2002, pp. 30-31.

30 Sistema interamericano de direitos humanos...

independentes entre si, como Estados Soberanos, traçando o surgimento do Estado Nacional Europeu, e a supremacia do poder temporal sobre o religioso.27 Por essa razão, a Paz de Westfália marcou o fim do primeiro grande conflito europeu e costuma ser considerada como o marco inicial dos estudos de Relações Internacionais.

Este contexto gera repercussões em toda a Europa, que iniciou a busca por mudanças em seu constitucionalismo com o fim de que o ordenamento melhor se adequasse à situação vivenciada pela população. Apesar da Inglaterra ser regida sob o sistema do common law, e de não ter uma Constituição escrita, o constitucionalismo deste país foi sendo construído pouco a pouco.

Já a França era considerada o centro dos debates, tendo presenciado aquilo que seria uma das maiores revoluções de todos os tempos. Por meio da Revolução Francesa, o povo tomou o poder, em uma tentativa de liquidar com o absolutismo e elaborou uma Constituição em que, pela primeira vez, teoricamente, não fazia distinção entre indivíduos, tornando todos iguais perante a lei. O povo, antes rechaçado da vida política francesa, passou a assumir o poder através da representação na Assembleia Nacional.28

No entanto, há que se frisar que a Revolução Francesa representou mais certeiramente um golpe ao monarca, o rei Luís XVI, do que um ataque ao absolutismo propriamente dito. Ademais, deve-se atentar ao fato de que a suposta igualdade positivada na Constituição Francesa foi tramada pela burguesia, como um ato para chegar ao poder. Em outras palavras, a burguesia afirmava que todos eram iguais para ganhar o apoio popular que a levou ao poder. No entanto, a igualdade tal qual conhecemos nos dias atuais não se verificava no período pós-Revolução Francesa.

Deve-se ainda destacar, neste período, a figura importantíssima de Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836), que foi o autor do famoso Qu’est-ce que le Tiers État (O que é o Terceiro Estado), panfleto que circulou pelas ruas parisienses e

27 DA SILVA, Caíque Tomaz Leite. PICININI, Guilherme Lélis. Paz de Vestefália & soberania absoluta. Revista do Direito Público, Londrina, v.10, n.1, p.127-150, jan./abr.2015, p. 131. 28 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 141.

A evolução histórica... 31

influenciou certeiramente a Revolução Francesa com seus trinta mil exemplares vendidos. Sieyés reafirma a doutrina da soberania da Nação, dizendo que “em toda Nação livre – e toda Nação deve ser livre – só há uma forma de acabar com as diferenças que se produzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é à própria Nação”29.

Este grande nome da Revolução Francesa escreveu que o povo “quer ter verdadeiros representantes nos Estados Gerais, ou seja, deputados oriundos de sua ordem, hábeis em interpretar sua vontade e defender seus interesses”30. Sieyès também criticou e afirmou categoricamente que “o Terceiro Estado pede, pois, que os votos sejam emitidos por cabeça e não por ordem”31.

No que concerne ao constitucionalismo francês, pode-se afirmar que este ocorreu de forma diferenciada do inglês. Isso porque, em primeiro lugar, o constitucionalismo inglês foi gradativo e não rompeu de forma definitiva com os esquemas dos “direitos dos estamentos”32, enquanto que o constitucionalismo francês se deu por meio de revoluções, principalmente, pela Revolução Francesa, que tinha por objeto edificar uma nova ordem sobre os direitos naturais das pessoas – de todos os indivíduos – e não de indivíduos enquanto integrantes de alguma ordem jurídica estamental33. No entanto, o que se percebe é que, mesmo no constitucionalismo francês, as castas permaneceram, porém, com outra roupagem. Suscintamente, o que ocorreu foi a extinção das castas, entretanto, os pertencentes de uma casta – a burguesia – governavam e detinham o poder em detrimento dos demais.

Em segundo lugar, tem-se a diferença na legitimação do novo poder político. Em outras palavras, enquanto que na Inglaterra, os homens deram a si próprios uma lei fundamental,

29 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 113. 30 Ibidem, p. 78. 31 Ibidem. 32 A sociedade estamental era o tipo de estrutura social existente antes da Sociedade Industrial; era dividida em estamentos (grupos sociais) e não permitia a ascensão social. No caso, o constitucionalismo inglês ocorreu de forma gradativa e não rompeu totalmente com esta divisão da sociedade. 33 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 57-58.

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através de um contrato social, na França isto foi feito de modo revolucionário – através do surgimento do Poder Constituinte34.

O constitucionalismo francês culminou na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembleia Nacional Francesa em 26 de agosto de 1789, e tinha como o lema a liberté, égalité, fraternité – liberdade, igualdade, fraternidade. A Declaração trouxe importante renovação institucional, possibilitando o surgimento do primeiro Estado jurídico, guardião das liberdades individuais e da separação dos poderes, e influenciou as Constituições democráticas contemporâneas ocidentais.

O povo francês tinha urgência em divulgar a Declaração para legitimar o governo que se iniciava com o afastamento do rei Luís XVI, decapitado35 quatro anos depois, em 21 de janeiro de 1793. Existia uma necessidade de fundamentar o exercício do poder, não mais na suposta ligação dos reis com Deus, mas em normas que justificassem e guiassem legisladores e governantes.

A igualdade era o mais importante dos direitos para os revolucionários, uma vez que no turbulento período que se seguiu à revolução, sempre que fosse necessário optar, os cidadãos estavam dispostos a sacrificar a liberdade em detrimento de ter sua igualdade garantida.

Nota-se que os direitos sociais não são sequer mencionados no texto do documento, pois o mesmo trata com mais prioridade os direitos civis, que garantem a liberdade

34 Ibidem. 35 A primeira parte do governo de Luís XVI foi marcada por tentativas de reformar a França, de acordo com os ideais iluministas. A nobreza reagiu com hostilidade e em ferrenha oposição às reformas propostas. Após este fato, houve o descontentamento do povo em geral. Em 1776, Luís XVI apoiou os colonos norte-americanos que buscavam sua independência da Grã-Bretanha, gerando dívida e crise financeira na França. Tudo isto contribuiu para a impopularidade do Antigo Regime, que culminou no Estado Geral de 1789. O descontentamento entre os membros das classes média e baixa da França resultou em reforçada oposição à aristocracia francesa e à monarquia absoluta, das quais Luís e sua esposa, a rainha Maria Antonieta, eram vistos como representantes. A credibilidade do rei foi extremamente comprometida. Em um contexto de guerra civil e internacional, Luís XVI fugiu, porém, foi suspenso e preso na época da insurreição de 10 de agosto de 1792, um mês antes da monarquia constitucional ser abolida e a Primeira República Francesa ser proclamada em 21 de setembro do mesmo ano. O monarca foi julgado pela Convenção Nacional (auto-instituída como um tribunal para a ocasião), considerado culpado de alta traição e executado na guilhotina em 21 de janeiro de 1793.

A evolução histórica... 33

individual e os direitos políticos, relativos à igualdade de participação política. Isso porque, o grupo que assumiu o poder, qual seja, a burguesia não possuía interesse em garantir tais direitos.

São, pois, direitos individuais a) quanto ao modo de exercício, pois é individualmente que se afirma, por exemplo, a liberdade de opinião; b) quanto ao sujeito passivo do direito, uma vez que o titular do direito individual pode afirmá-lo em relação a todos os demais indivíduos, já que estes direitos têm como limite o reconhecimento do direito do outro36; e c) quanto ao titular do direito, que é o homem na sua individualidade.37

Por fim, o constitucionalismo americano, também integrante do período do constitucionalismo moderno, surgiu da mesma forma, por meio de revolução, mas diferenciava-se do francês, uma vez que não se pretendia reinventar uma Nação, mas tinha como objetivo

permitir ao corpo constituinte do povo fixar num texto escrito as regras disciplinadoras e domesticadoras do poder, oponíveis, se necessário, aos governantes que actuassem em violação da constituição, concebida como lei superior.38

O estopim se deu quando as Treze Colônias resolveram

construir seu caminho próprio, rompendo com o poder central, que estava na Inglaterra. O movimento foi formalizado com a Declaração de Direitos da Virgínia39, que declarou sua

36 Neste sentido afirma o artigo 4º da Declaração francesa de 1789: “[...] l’exitence des droits naturels de chaque homme n’a de bornes que celles qui assurent aux autres membres de La societé La jouissance de ces mêmes droits.” In: ASSEMBLEE NATIONALE. Déclaration des droits de l’homme et du citoyen de 1789. Disponível em: <http://www.assemblee-nationale.fr>. Acesso em: 19 nov. 2014. 37 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 126-127. 38 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 59. 39 Reza o artigo 1º do documento, de inspiração iluminista, no qual as Treze Colônias da América do Norte declararam sua independência do Reino Unido: “Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança.” (tradução livre) In: CONSTITUTION SOCIETY. The Virginia

34 Sistema interamericano de direitos humanos...

independência, e consequentemente fez com que as ex-colônias elaborassem cada uma a sua própria Constituição. Por fim, em 1787, foi aprovada a Constituição dos Estados Unidos da América, a qual vige até os dias de hoje40.

No que se refere às diferenças entre as revoluções francesa e americana, tem-se em Luhmann:

Em 1789, a França recepciona o conceito inglês de constitution

conjuntamente com todas as suas imprecisões e, sobre essa matriz, limita-se simplesmente a discutir as dimensões da redistribuição sempre (ormai) necessária dos pesos. Na América, ao contrário, em contraposição à situação jurídica inglesa, acentuava-se a unidade do texto constitucional redigido de forma escrita. O que requeria uma determinação conceitual que introduzisse uma distinção entre a constitution e o demais Direito, em clara discrepância com o uso linguístico inglês41.

Pode-se afirmar que o constitucionalismo é, portanto,

um produto das revoluções liberais norte-americanas e francesas e tinham um mesmo objetivo:

[...] controlar o poder através da vigência do princípio democrático e, com isso, pôr fim ao absolutismo, produto de acumulação dos poderes feudais na figura do rei como soberano. Quando a soberania do rei é substituída pela soberania do povo e a vontade geral se impõe ao interesse particular dos privilegiados, nesse momento podemos começar a referir-nos à Constituição42.

Declaration of Rights, 1776. Disponível em: <http://www.constitution.org>. Acesso em: 31 jan. 2015. 40 FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucionaal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 38-39. 41 LUHMANN, Niklas. A constituição como Aquisição Evolutiva. Tradução realizada a partir do original (“Verfassung als evolutionäre Errungenschaft”. In: Rechthistorisches Journal . Vol. IX, 1990, pp. 176 a 220), cotejada com a tradução italiana de F. Fiore (“La costituzione come acquisizione evolutiva”. In: ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jörg. Il Futuro della Costituzione . Torino: Einaudi, 1996), por Menelick de Carvalho Netto, Giancarlo Corsi e Raffaele De Giorgi. Notas de rodapé traduzidas da versão em italiano por Paulo Sávio Peixoto Maia (texto não revisado pelo tradutor), p. 06. 42 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.).

A evolução histórica... 35

As revoluções liberais burgueses pavimentaram o Estado liberal de direito, restringindo o excesso de poder atribuído ao monarca decorrente das teorias divinas absolutistas, que foram então substituídas pela teoria democrática. É nesse contexto que surgem as primeiras raízes do constitucionalismo, quando o poder se desloca das mãos do monarca, onde tinha lugar exclusivo, e começa a aparecer nas mãos do povo e da vontade geral. 1.2 DO CONSTITUCIONALISMO MODERNO AO CONSTITUCIONALISMO DO BEM-ESTAR

O constitucionalismo moderno, explanado no tópico

anterior, iniciou-se na Inglaterra, com repercussões na França e Estados Unidos, porém, somente se pode falar em constitucionalismo – e de suas origens – quando a soberania do rei é substituída pela soberania do povo.43

Com a evolução da sociedade e das ideias, foi-se criando uma conscientização de que haveria a necessidade se buscar uma unidade, que seria, ao final, concretizada pelo poder soberano, reconhecido como o mais alto dentro de uma precisa delimitação territorial.

Após as Revoluções, começou-se a tomar consciência de que sem uma Assembleia Nacional Constituinte, escolhida pelo povo, que era o titular do Poder Constituinte Originário, uma verdadeira Constituição não poderia ser aprovada.

O Poder Constituinte é compreendido por Canotilho como “soberania constituinte do povo, ou seja, o poder de o povo, através de um acto constituinte criar uma lei superior juridicamente ordenadora da ordem política, parece hoje uma evidência”44. Assim, a origem do constitucionalismo clássico representa a transferência do poder soberano de uma elite ou de uma só pessoa para uma coletividade nacional ou Estado

Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 45. 43 Ibidem. 44 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 48.

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nação, e ainda implicaria na sujeição de todos a este poder, inclusive dos governantes45.

As mudanças ocorridas no século XV e XVI, com o advento do capitalismo mercantil e a superação do modo de produção ligada ao feudalismo, culminaram na redefinição do Estado. Foram profundas mudanças nessa nova sociedade, e o Estado precisou se tornar forte e centralizado, culminando no surgimento do Estado Liberal.

O Estado Moderno, em sua fase liberal, pode ser considerado em três níveis: jurídico, político e sociológico, exercendo, respectivamente, funções de soberania, de concentração do poder e de administração.46 Neste sentido tem-se que:

Do ponto de vista jurídico, o liberalismo por estar intimamente ligado ao constitucionalismo, sempre se manteve fiel ao princípio (medieval) da limitação do poder político mediante o direito, de tal forma que somente as leis são soberanas, justamente aquelas leis limitadoras do poder do Governo. Do ponto de vista político, o Liberalismo sempre se apresentou como defensor das autonomias e das liberdades da sociedade civil, em contraposição, como valor positivo, ao poder central, que opera de maneira minuciosa, uniforme e sistemática.47

O pressuposto do Estado Liberal é o de proporcionar o

máximo de bem-estar comum em todos os campos com a menor presença possível do Estado48, não negando que a natureza humana é egoísta e ambiciosa, mas acreditando que essas características são capazes de fazer com que o homem, buscando o seu bem-estar individual, alcançará o bem-estar coletivo.

45 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 45. 46 MATTEUCCI, Nicola. Liberalismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed. Trad. Carmen Varriale et al.; coord. Trad. João Ferreira. Brasília: UnB, 1998, v.1, p. 698. 47 Ibidem. 48 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 6 ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004, p. 212.

A evolução histórica... 37

Esse período era regido pelo constitucionalismo clássico, que “compreendiam e tratavam o direito como um sistema de legislatio, [...] ou seja, como instituição de dois sistemas – o jurídico e o político”49.

Registra-se, igualmente, que o indivíduo do liberalismo do século XIX, quedou-se cada vez mais racional e atomizado, e calculador de custos e benefícios da maximização material. Em outras palavras, as pessoas esqueceram-se dos direitos humanos em detrimento do crescimento econômico. No século XX, o capitalismo puro tornou-se absolutamente incompatível com os preceitos de dignidade humana, situação da qual adveio a necessidade de nova modificação do Estado, que culminou na organização do Welfare State50 ou Estado do Bem-Estar Social51. Assim, o princípio democrático teve seu auge na história da humanidade até o momento, o fenômeno constitucional surgia como uma solução efetiva para os problemas sociais que afligiam os povos.52

Após este momento de esplendor, o constitucionalismo passou por um período obscuro, mormente porque a teoria democrática de Constituição limitou-se somente às primeiras experiências constituintes do período pós-guerra.

49 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, pp.188-189. 50 Welfare State (termo em inglês), Estado de Bem-estar Social, também conhecido como Estado-Providência, é a organização política e econômica que coloca o Estado como agente da promoção social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida social, política e econômica do país, em parceria com sindicatos e empresas privadas. Cabe, no entanto, ao Estado do Bem-estar Social garantir os serviços públicos e a proteção à população. 51 MACPHERSON, Crawford Brough. Ascensão e queda da justiça econômica e outros ensaios: o papel do Estado, das classes e da propriedade na democracia do século XX. Trad. Luiz Alberto Monjardim. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 69. 52 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 46.

38 Sistema interamericano de direitos humanos...

1.3 DO CONSTITUCIONALISMO DO BEM-ESTAR AO CONSTITUCIONALISMO NEOLIBERAL

Infortunadamente, a teoria democrática de Constituição

quedou-se limitada às primeiras experiências do período pós Segunda Guerra Mundial. Nessa época, deu-se conta de que sem uma Assembleia Constituinte escolhida livremente pelo povo, uma verdadeira constituição não poderia ser aprovada. A esse texto que organizava as instituições do país deu-se o nome de Lei Fundamental.53

Conscientes deste fato, nesse período, os franceses votaram negativamente um referendo sobre a lei constitucional proposta pela Assembleia Constituinte francesa, a qual entenderam não refletir o interesse de seu povo. Ademais, na Itália, houve um correto processo constitucional que determinou a forma de Estado, além de incluir no rol de proteção, os direitos políticos e individuais, bem como alguns direitos econômicos e sociais54.

Assim, surgia uma nova fase do constitucionalismo, que foi denominada de “Constitucionalismo do Bem-estar”, definido como um constitucionalismo normativo, de profunda articulação com o princípio democrático55, resultado da estagnação da concepção liberal56.

Durante o período do pós-Segunda Guerra, além da democracia que se destacava no mundo, também ganharam evidência os países com regimes comunistas da União Soviética. O confronto entre capitalismo e comunismo na Europa provocou novamente o enfraquecimento do incipiente constitucionalismo democrático.57

53 Ibidem. 54 Ibidem, p. 46-47. 55 Ibidem, p. 47. 56 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Os desafios da justiça brasileira frente ao novo constitucionalismo latino-americano: diversidade e minorias. In: MORAIS, Jose Luis Bolzan de; BARROS, Flaviane de Magalhães. (Orgs.). Novo constitucionalismo latino-americano: o debate sobre novos sistemas de justiça, ativismo judicial e formação de juízes. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014, p. 121. 57 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 47.

A evolução histórica... 39

Nesse sentido, duas foram as situações que levaram ao abafamento do constitucionalismo do bem-estar. O primeiro, os setores empresariais enxergaram este novo regime como impedimento para a obtenção de maiores lucros. E, o segundo, o choque entre os partidos de esquerda e os partidos conservadores fizeram com que a classe média demonstrasse preocupação em perder o recém-conquistado bem-estar.

Ainda na década de quarenta, John Maynard Keynes propôs uma política intervencionista que consistia na intervenção estatal na vida econômica com o objetivo de conduzir a um regime de pleno emprego. A política keynesiana foi abordada mais detalhadamente no último capítulo de sua obra “A Teoria Geral do Emprego, Juros e Moeda”, no qual Keynes afirma que há dois problemas centrais no capitalismo da época.

O primeiro problema tratado por Keynes seria a excessiva concentração de renda e riqueza que separava as classes sociais. A concentração excessiva dificultava em sustentar a política do pleno emprego nas economias modernas. Isso porque, os ricos, que se beneficiavam da concentração, consumiam relativamente pouco em proporção à sua renda, enquanto que os pobres, que consumiriam proporcionalmente mais, eram privados dessa possibilidade. O resultado desse sistema era uma demanda total por bens de consumo mais fraca, que desestimulava a produção de bens de consumo e, indiretamente, a de bens de investimento. Ademais, a concentração de renda excessiva abalava a legitimidade do capitalismo, pois criava grupos sociais que desfrutavam da riqueza social sem terem contribuído para sua criação58. Já o segundo dilema do capitalismo moderno era a impossibilidade desse sistema em gerar nível de demanda agregada capaz de sustentar o pleno emprego e a plena utilização da capacidade produtiva disponível. Dessa forma, Keynes acreditava que o combate ao desemprego exigiria uma postura ativa do Estado.59

Considerando os elementos do pensamento keynesiano, pode-se afirmar que suas propostas prejudicam os direitos dos indivíduos, uma vez que a economia prevalece sob

58 KEYNES, John Maynard. A Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Tradução de Mário R. da Cruz. São Paulo: Editora Nova Cultural LTDA, 1996, p. 341-349. 59 Ibidem.

40 Sistema interamericano de direitos humanos...

o Estado de Bem-Estar social e sobre os direitos por ele consagrados.

Nesse sentido, alega-se que

[...] durante o período compreendido entre as décadas de quarenta e setenta do século passado, ocorreu o auge da aplicação das medidas keynesianas, mas as políticas do bem-

estar foram desenvolvidas de costas para a lógica constitucional, já que os direitos econômicos, sociais e culturais foram excluídos dos sistemas gerais de proteção, nos quais cabiam sim, os direitos civis e políticos.60

Dessa forma, não se pode falar em Estado de Bem-Estar

social antes de 195061, considerando-se, ainda, a necessidade de pelo menos quatro grandes pilares sobre os quais assentaram sua viabilidade.

O primeiro pilar é constituído por fatores materiais e econômicos, tais como: a) a generalização do paradigma fordista; b) valores e crescimento do pleno emprego; c) consenso paralelo em torno das políticas keynesianas; d) manutenção de um ritmo de crescimento econômico constante e sem precedentes na história capitalista; e, e) ganhos fiscais crescentes que foram alocados por coalizões políticas socialmente orientadas.62

O segundo pilar é constituído pelo “ambiente econômico global” criado pelos acordos de Bretton Woods63 e que ocasionou a abertura de um espaço de conciliação entre o

60 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 48. 61 MISHRA, Ramesh. The Welfare State in Capitalist Society: policies of retrenchment and maintenance. In: Europe, North America And Australia, studies in international social policy and welfare. London: Harvester/Wheatsheaf, 1990. Disponível em: <http://esp.sagepub.com/content/1/1/75.full.pdf>. Acesso em: 08.abr.2015. 62 FIORI, José Luís. Estado de Bem-Estar Social: Padrões e Crises. In: PHISIS: Revista Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 7(2), 1997, p. 134. 63 Acordo de Bretton Woods ou ainda “Acordos de Bretton Woods” é o nome com que ficou conhecida uma série de disposições acertadas por cerca de 45 países aliados em julho de 1944, na mesma cidade norte-americana que deu nome ao acordo, no estado de New Hampshire, no hotel Mount Washington. O objetivo de tal concerto de nações era definir os parâmetros que iriam reger a economia mundial após a Segunda Guerra Mundial.

A evolução histórica... 41

desenvolvimento do welfare e a estabilidade da economia internacional64.

A terceira base que Fiori aponta é referente ao “clima de solidariedade nacional” que se inaugurou no período pós Segunda Guerra Mundial entre países vencedores e vencidos, e, posteriormente, pela solidariedade supranacional gerada pelo novo quadro geopolítico65.

Por fim, a quarta e última pilastra foi o avanço das democracias partidárias e de massa que, pelo menos nos países centrais, “permitiu que a concorrência eleitoral aumentasse o peso e a importância das reivindicações dos trabalhadores”66.

O constitucionalismo do Bem-Estar perdeu forças, já que as ideias neoconservadoras é que acabaram politicamente vitoriosas, alavancando os projetos neoliberais de reforma dos Estados, desacelerando a expansão ou desativando muitos de seus programas do Estado de Bem-Estar Social.67

Este enfraquecimento aconteceu paulatinamente, como assevera Fiori:

[...] a verdade é que se a desmontagem dos welfare states não ocorreu de forma abrupta e estrondosa, são inúmeros os sinais que indicam uma lenta transformação a transição de quase todos os casos ou tipos em direção às formas mais atenuadas ou menos inclusivas de cobertura dos vários sistemas que compuseram o welfare em seu período áureo. Lenta

desativação que acompanhou os processos de estabilização e desindustrialização dos países periféricos68.

O que se conclui é que o “constitucionalismo do bem-

estar” jamais se consolidou na forma pela qual se pretendia, por meio das revoluções. Ou seja, o Estado do Bem-Estar social que deveria atuar como agente da promoção social e organizador da economia, saúde social, política do país, bem como garantir serviços públicos e proteção à população não se concretizou por inteiro.

64 FIORI, José Luís. Estado de Bem-Estar Social: Padrões e Crises. In: PHISIS: Revista Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 7(2), 1997, p. 134. 65 Ibidem. 66 Ibidem, pp. 134-135. 67 Ibidem, p. 142. 68 Ibidem.

42 Sistema interamericano de direitos humanos...

Todas estas razões levaram a promoção e retorno do Estado liberal, agora denominado de “Estado Neoliberal”, que se fortaleceram nos anos setenta e oitenta, fazendo com que suas políticas se multiplicaram quase sem obstáculos. A doutrina do neoliberalismo surgiu em 1944 com Fridrich Hayek69 e fortaleceu-se com os governos de Margareth Tatcher70, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos71, tendo sido difundido pelo mundo nos anos 80 e 90, sobretudo por influência do Banco Mundial e do FMI.

O neoliberalismo se apresentou como um modelo que retiraria do Estado funções que haviam sido adquiridas junto com o Estado Social – como a de garantia de todos os direitos sociais e a intervenção fervorosa na economia – mas que não estavam sendo devidamente cumpridas. Isso porque, inúmeros problemas insurgiam-se dessa modalidade de Estado, dentre os quais cita-se a hiperinflação, o elevado déficit público, o aumento da dívida pública, o excesso de burocracia, a corrupção, o desemprego e, sobretudo, a alta carga tributária72. Em outras palavras, havia uma dificuldade de harmonizar os gastos públicos com o crescimento da economia capitalista.

Basicamente, o neoliberalismo se transparecia como um pensamento antagônico ao Estado do Bem-Estar social. O Estado neoliberal tornar-se mais leve do o anterior, mais enxuto, e desempenha apenas as funções básicas que se esperam dele: educação e saúde.

Para os neoliberais, o termo “menos Estado” deveria ser enxergado como um “Estado diferente”. Isso porque, o Estado teria menos responsabilidade no que se refere aos direitos sociais, porém, jamais conseguirá o Estado, ainda que se criem

69 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 30 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 326. 70 Segundo Wallerstein, Margaret Thatcher lançou o chamado neoliberalismo, que era na realidade um conservadorismo agressivo de um tipo que não era visto desde 1848, e que envolveu uma tentativa de reverter a redistribuição do Estado de Bem-Estar, de modo a beneficiar as classes superiores e não as classes mais baixas. WALLERSTEIN, I. O declínio do poder americano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, p. 61. 71 De acordo com Bastos, nestes países inclusive, à época, acreditava-se que a crise era ocasionada em razão dos excessivos benefícios sociais. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 6 ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004, p. 220. 72 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 6 ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004, p. 218.

A evolução histórica... 43

fundos de pensões mantidos por particulares, se desvincular totalmente de seus encargos sociais, pois sempre hão de existir pessoas carentes, que necessitarão de ajuda estatal.73

No âmbito da América Latina, o Chile adotou um dos primeiros sistemas neoliberais, denominando tal ação de “Chicago Boys”, em referência à Escola de Chicago74, nos Estados Unidos, conhecida pelo viés liberalista. Já no Brasil, pode-se afirmar que algumas premissas na Constituição Federal de 1988 sofreram influência desse novo. Muito embora os dispositivos constitucionais vigentes na América Latina ressaltem um liberalismo formal, não se pode falar em neoliberalismo, que pressupõe, por certo, necessários controles até para que sejam evitados abusos de toda ordem, inclusive para as empresas, concorrentes entre si.75

Nesse contexto, pouco a pouco, percebe-se a transição do constitucionalismo do Bem-Estar para o “constitucionalismo neoliberal”, no qual os cidadãos não têm seus direitos básicos garantidos pelo Estado – que é a função do Estado de Bem-Estar em sua essência –, mas são obrigados a pagar se quiserem ter acesso a tais direitos, como educação, saúde, moradia ou até mesmo, em muitos casos, exigir judicialmente uma provisão do Estado para fazer valer tais direitos. 1.4 O NEOCONSTITUCIONALISMO E O CONSTITUCIONALISMO PLURINACIONAL LATINO-AMERICANO

A forma pela qual a América Latina foi colonizada e

explorada reforça o projeto uniformizador da modernidade, que tinha por objetivo a homogeneização econômica e social, o qual possibilita melhores condições de vida àqueles que nada ou pouco têm, porém, dificulta a diversidade. Nesse sentido, existe

73 Ibidem, p. 220-221. 74 Essas teorias refletiram-se fortemente nas políticas do Banco Mundial e de outras instituições financeiras baseadas em Washington, tais como o Departamento do Tesouro americano e o Fundo Monetário Internacional, que passaram a adotar o fundamentalismo de livre mercado como receita para os países em dificuldades econômicas, como expresso pelo Consenso de Washington. 75 FILOMENO, José Geraldo. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 158.

44 Sistema interamericano de direitos humanos...

uma problemática envolvida, vez que a sociedade não é homogênea, e por isso, não deve ser tratada como se fosse.

Há teorias que buscam resolver esta problemática, ao criar um novo tipo de constitucionalismo que melhor se adequaria ao modelo latino-americano. No entanto, para que se possa compreender este “novo” constitucionalismo, deve-se fazer uma rápida retrospectiva histórica e perpassar brevemente pelo neoconstitucionalismo, que deu início à discussão acerca do modelo latino-americano de constitucionalismo.

Durante o Estado Liberal, o que se tinha era uma versão formal dos direitos que era feita para quem encontrava-se no poder, excluindo-se desta prestação as minorias. Com o advento do Estado de Bem-estar social, o objetivo era outro, no caso, a garantia dos direitos básicos às minorias. No entanto, este objetivo não foi cumprido, uma vez que as prestações positivas do Estado aconteciam de forma burocrática e tinham como objetivo homogeneizar social e economicamente os cidadãos, deixando novamente de lado as minorias.76

A consolidação do Estado Neoliberal passou a pregar que as políticas sociais seriam direcionadas àqueles realmente necessitados, afastando a socialização e universalização destes direitos. No entanto, este viés mostrou-se inadequado às expectativas da sociedade global atual. E, visando achar uma solução para esta questão, é que se chegou ao que os autores denominam de neoconstitucionalismo.

A corrente neoconstitucionalista foi defendida e divulgada no Brasil por meio dos escritos de Lênio Streck. Após os textos lenianos, vieram os textos acerca do constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo do italiano Luigi Ferrajoli.

Ferrajoli acredita que o neoconstitucionalismo se distanciaria do positivismo e se aproxima de uma visão jusnaturalista do direito.

Com a incorporação nas Constituições de princípios de justiça de caráter ético-político, como a igualdade, a dignidade das pessoas e os direitos fundamentais, desaparece o principal traço distintivo do positivismo jurídico: a separação entre

76 DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito administrativo pós-moderno: novos paradigmas do direito administrativo a partir do estudo da relação entre o estado e a sociedade. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 144.

A evolução histórica... 45

direito e moral, ou seja, entre validade e justiça. Segundo esta tese, a moral, que no velho paradigma juspositivista correspondia a um ponto de vista externo ao direito, agora faria parte do seu ponto de vista interno.77

Baseando-se em Ronald Dworkin e Robert Alexy e seus

escritos sobre princípios e ponderação, Ferrajoli defende um neoconstitucionalismo com os seguintes aspectos: normas constitucionais não como simples regras suscetíveis de observância e de aplicação, mas como princípios suscetíveis a ponderações e balanceamentos; e, por consequência, a centralidade conferida à argumentação na própria concepção de direito78.

Möler, por sua vez, conceitua o neoconstitucionalismo como “um movimento jurídico que abarca grande parte das práticas judiciais do constitucionalismo contemporâneo e que aproximam ordenamentos jurídicos do civil law de algumas características do direito constitucional próprio do sistema do common law”79, citando algumas características do neoconstitucionalismo:

A aplicação direta de princípios – ao invés da restrição ao modelo normativo de regra – determina uma adaptação da solução da norma ao caso concreto, porquanto esta não é estática, mas pode ser construída pela ponderação. A indeterminabilidade dos princípios também permite que o direito incorpore discussões sobre o sentido de termos relacionados a valores morais, trazendo ao âmbito jurídico discussões antes reservadas aos entes políticos. A ampliação do controle da constitucionalidade permite um controle da livre disposição do legislador, ao mesmo tempo em que a lei cede um pouco de seu espaço como doente de direito à sentença. A posição de supremacia da constituição permite que os microssistemas dos códigos não estejam isolados, mas também submetem-se a uma regulação hierarquicamente

77 FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo. Trad. de André Karam Trindade In: Anais do IX Simpósio de Direito Constitucional da ABDConst. Curitiba: ABDConst., 2011, p. 96. 78 Ibidem, p. 97. 79 MÖLER, Max. Teoria geral do neoconstitucionalismo: bases teóricas do constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 43.

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superior, tal como a sua necessidade de adequação e por respeito aos direitos fundamentais80.

Em outras palavras, o “neoconstitucionalismo” mais

significa um movimento do “constitucionalismo contemporâneo” que tem por objetivo a mudança de atitude dos operadores jurídicos.81 Assim, o neoconstitucionalismo, teoricamente, surge como uma alternativa diante da insuficiência do positivismo jurídico. Isso porque,

[...] o positivismo jurídico seria incapaz de explicar os métodos de interpretação que demanda o direito constitucional contemporâneo. O positivismo jurídico seria caracterizado por reconhecer a subsunção como único método de interpretação e, por isso, deixaria de fora de suas considerações a aplicabilidade dos princípios, que somente seriam aplicáveis a partir do método de ponderação.82

De acordo com a concepção neoconstitucionalista, é o

texto normativo máximo, ou seja, a constituição – através da previsão de valores e princípios – que permite trazer para dentro do ordenamento jurídico essa discussão sobre a necessária adequação das normas jurídicas a esses conteúdos materiais relacionados à moral.83

A discussão acerca do neoconstitucionalismo continua no Brasil com Luís Roberto Barroso, que aponta as principais inovações do novo direito constitucional, a saber, a) o reconhecimento da força normativa da Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; e, c) a nova interpretação constitucional.84

O neoconstitucionalismo foi um dos fenômenos mais visíveis nos últimos 20 anos no Brasil e, resumidamente, consiste em: aplicar mais princípios do que regras; ponderação em substituição à subsunção; incentivar a justiça particular, por meio da análise do caso concreto em detrimento da justiça geral;

80 Ibidem. 81 Ibidem. 43-44. 82 Ibidem, p. 44. 83 Ibidem, p. 47. 84 BARROSO, Luíz Roberto. Neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito: o trunfo tardio do direito constitucional no Brasil. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (Orgs.) A constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 203-249.

A evolução histórica... 47

supervalorização do Poder Judiciário; aplicação da Constituição em substituição da lei.85

O neoconstitucionalismo pode ser considerado como

[...] um conjunto de abordagens teóricas que produziram uma certa convergência de sentido ao analisar e buscar definir os novos delineamentos do direito contemporâneo, particularmente naqueles Estados que, a partir do segundo pós-guerra, adotaram constituições caracterizadas pela forte presença de princípios, valores, direitos fundamentais e mecanismos de controle de constitucionalidade atuados por órgãos jurisdicionais especializados [...].86

Consiste, pois em uma tendência teórica, ideológica ou

um método de análise do direito; ou para designar alguns elementos estruturais de um sistema jurídico e político, ou um modelo de Estado de direito87, ou ainda para se referir as tendências comuns entre os países latino-americanos que conformam uma nova cultura jurídica.

Dentre os novos traços do constitucionalismo contemporâneo, tem-se que as constituições possuem mais princípios que regras, mais ponderação do que subsunção, mais Constituição do que lei, mais juiz do que legislador, e pela coexistência de uma miríade de valores em contraponto com a homogeneidade ideológica.88

No entanto, alerta-se que, “o paradigma da ponderação, se aceito como critério geral de aplicação do ordenamento jurídico, gera [...] um “anti-escalonamento” da ordem jurídica”89. Ou seja, o ordenamento jurídico, da forma pela qual se apresenta hoje, possui vários níveis hierárquicos –

85 ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. In: Revista eletrônica de direito do Estado (REDE). Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17, jan./mar. 2009, pp. 2-3. 86 MELO, Milena Petters. As recentes evoluções do constituicionalismo na América Latina: neoconstitucionalismo?. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 62. 87 RUFINO, André. Aspectos do Neoconstitucionalismo. In: Revista brasileira de direito constitucional – RBDC. n. 09 – jan./jun. 2007, p. 67. 88 SANCHÍS, Luis Pietro. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, p. 107. 89 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 81.

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compreendendo a Constituição, a lei, os regulamentos, os decretos, os contratos – e que, cada qual exerce uma função específica.

Em contrapartida, tem-se o positivismo jurídico, no qual “o conceito de direito só admite um objeto: o direito positivado. O direito natural não é concebido como direito, mas lago com pretensão de um dia vir a ser positivado e, somente assim, tornar-se direito”90, e que surgiu como resposta a liberal-burguesa, que buscava no direito uma forma de proteção não apenas contra a incerteza do direito natural, mas também, contra o próprio Estado91.

O positivismo clássico, segundo Bobbio possui primordialmente sete características, a saber: 1) o direito deve ser visto como um fato e não como um valor; 2) o direito deve estar ligado à ideia de se fazer cumprir através de coação e não pelo cumprimento voluntário; 3) a principal fonte do direito é a lei; 4) a norma jurídica deve ser vista como um mandado; 5) cada norma jurídica deve ser vista como parte de um todo – o ordenamento jurídico – e é justamente isto que lhe dá validade e compatibilidade; 6) a atividade jurídica é vista como mero ato de declaração do direito; 7) teoria da obediência, na qual a lei deve ser obedecida, seja qual for seu conteúdo.92

A teoria do positivismo do austríaco Hans Kelsen93 parte de uma concepção normativa de direito, na qual toda a norma encontra seu critério de pertencimento a um determinado sistema jurídico. Sempre uma norma será hierarquicamente superior ou inferior quando comparada a outra. A única exceção à regra diz respeito à denominada norma fundamental (grundnorm), que é caracterizada como uma norma que não encontra critério de validade em nenhuma outra.

90 MÖLER, Max. Teoria geral do neoconstitucionalismo: bases teóricas do constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 75. 91 Ibidem, p. 77. 92 BOBBIO, Norberto. El positivismo jurídico. Madrid: Editorial Debate, 1993, pp. 141-143. 93 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

A evolução histórica... 49

No que se refere ao positivismo defendido por Hart94, pode-se dizer que com esta teoria, o positivismo ganhou uma nova perspectiva. Isso porque o direito, para Hart, é visto como um fato social. Por conta disso, Hart despertou o interesse pelo positivismo nos sistemas anglo-saxões, uma vez que conseguiu inserir pitadas de formalismo legal em um sistema que, anteriormente, era baseado exclusivamente em jurisprudências e costumes.

Se por um lado, o neoconstitucionalismo sustenta uma Constituição principiológica, de outro, a teoria do positivismo de Hart influenciou as teorias do positivismo clássico, fazendo com que o mesmo tomasse outro rumo, diferente daquele que tratava simplesmente do formalismo legal.

Apesar do neoconstitucionalismo ser defendido por diversos autores, existem aqueles que possuem opinião divergente. Nesse sentido, Sarmento formaliza severas críticas ao neoconstitucionalismo, descrevendo três principais objeções: 1) a de que a supervalorização do judiciário seria antidemocrática; 2) a de que a preferência por princípios, ao invés de regras, é perigosa, especialmente no Brasil, pelas peculiaridades da cultura; 3) a de que pode acabar por gerar uma panconstitucionalização do Direito.95

O constitucionalista que tece críticas mais fervorosas contra o neoconstitucionalismo é o próprio Lenio Streck, que, inusitadamente, foi um dos primeiros autores a defender esta corrente quando esta teoria surgiu. E, ao falar da mudança de posicionamento, explica o porquê, começando pela concepção de que até o termo utilizado estaria incorreto:

[...] a adoção do nomen juris “neoconstitucionalismo”

certamente é motivo de ambiguidades teóricas e até (ou sobremodo) de mal-entendidos. Em um primeiro momento, foi de importância estratégica a importação do termo e de algumas das propostas trabalhadas pelos autores da Europa Ibérica. Isto porque o Brasil — assim como a América Latina

94 HART, Herbert L. A. Positivism and the searation of law and moral. In: Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford: Oxford University Press, 1983, pp. 58-59. 95 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: QUARESMA, Regina; OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula; OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de (Orgs.) Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 288.

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— ingressou tardiamente nesse “novo mundo constitucional”, fator que, aliás, é similar ao da realidade europeia, que, antes da segunda metade do século XX, não conhecia o conceito de constituição normativa. Portanto, em países como o Brasil, falar de neoconstitucionalismo implicava ir além de um constitucionalismo de feições liberais — que, no Brasil, sempre foi um simulacro em anos intercalados por regimes autoritários — na direção de um constitucionalismo compromissório que possibilitasse, em todos os níveis, a efetivação de um regime democrático96.

Streck acredita que, a bandeira neoconstitucionalista

defende, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade, um direito assombrado pela ponderação ilimitada de valores, uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento, a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo. Sendo assim, não haveria sentido nessa teoria, até porque, como justifica o autor, muitos se utilizaram de expressões de justiça e ponderação para propagar e impor teorias extremistas, sem qualquer controle, assim como fez Hitler.97 1.4.1 O constitucionalismo latino-americano

Esta noção da teoria neoconstitucionalista se fez

necessária à medida que, foi a partir dela, que se começou a esboçar um constitucionalismo latino-americano. Este fenômeno que ocorre atualmente na América Latina, evoluiu para um “novo” constitucionalismo inerente aos povos latinos que vem sendo construído. No entanto, para se chegar a um pensamento epistemológico e verificar o avanço em direção à um constitucionalismo pluralista e intercultural, deve-se analisar a trajetória do constitucionalismo desde a colonização da América98.

96 STRECK, Lenio Luiz. Eis porque abandonei o “neoconstitucionalismo”. Consultor Jurídico, São Paulo/SP, 13 mar. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mar-13/senso-incomum-eis-porque-abandonei-neoconstitucionalismo>. Acesso em: 03.jun.2015. 97 Ibidem. 98 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 21.

A evolução histórica... 51

Wolkmer explica que a independência das colônias da América Latina não representou no início do século XIX uma mudança total e definitiva com relação à Espanha e Portugal, mas tão somente uma reestruturação, sem uma ruptura significativa na ordem social, econômica e político-constitucional99.

Isso porque, [...] na América Latina, tanto a cultura jurídica imposta pelas metrópoles ao longo do período colonial, quanto as instituições jurídicas formadas após o processo de independência (tribunais, codificações e constituições) derivam da tradição legal europeia, representada, no âmbito privado, pelas fontes clássicas dos Direitos romano, germânico e canônico100.

A América Latina como um todo construiu sua história

com identidades culturais, uma vez que todos possuem colonizações ou Espanholas ou Portuguesas, e os antecedentes do regionalismo na América do Sul são encontrados ainda no século XIX, quando da realização do processo de integração política e proposta de unidade entre os países das Américas apresentada por Simón Bolívar101, o qual pregava a necessidade de independência de várias províncias espanholas da América Latina102.

Por consequência, o constitucionalismo do século XX se caracterizou por constituições que incorporaram o novo comunitarismo internacional admitindo a celebração de tratados de integração entre Estados para conformar organizações supraestatais e interestatais, mediante normas de maior ou menor exigência que possibilitem o ingresso de associados. Os textos constitucionais que exigem requisitos mais qualificados, em geral, impõem a aprovação de adesão no âmbito legislativo.

99 Ibidem. 100 Ibidem, p. 22. 101 Por tal motivo, tornou-se mundialmente respeitado como gênio político, líder e figura mítica dessa época. Além de Simón Bolívar, José de San Martín teve proeminente atuação nas revoluções, outros três patriotas merecem destaque por imaginarem uma pátria americana para os hispanoamericanos, são eles: Miranda, Sucre, O’Higgins e Artigas. 102 LOPRESTI, Roberto Pedro. Constituciones del Mercosur. 2. ed. Buenos Aires: La Ley, 2007, p. 03.

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Para Peter Häberle, a Constituição deve ser concebida como cultural, pois não é somente um ordenamento jurídico voltado aos juristas, tampouco um mero texto jurídico, mas sim uma expressão de uma situação cultural e instrumento de autorrepresentação do povo.103 Logo, a interpretação constitucional sendo concebida como um produto cultural e aberto deve pressupor um exercício de participação democrática.104

De acordo com Peter Häberle, vivemos um Estado constitucional cooperativo que se apresenta como um Estado constitucional voltado não mais para si mesmo, mas que se disponibiliza como referência para os outros Estados constitucionais membros de uma comunidade e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos.105

A teoria constitucional häberiana volta-se para “aceitar o outro” dentro da realidade da sociedade mundial hodierna. Contribui de modo expressivo para o fortalecimento do Estado constitucional, principalmente nos países de transição democrática.106

Sua teoria do desenvolvimento do direito transcendeu o continente europeu e chegou à América Latina com o objetivo de ajudar o processo não somente de integração política, mas também cultural, buscando desenvolver a concepção de um “direito constitucional comum”. Para Gilmar Mendes “a concepção de um direito constitucional comum se relaciona diretamente à ideia de um Estado constitucional cooperativo”107.

O direito constitucional inicia, assim, um processo de transformação desde o século passado, que começaram a

103 HÄBERLE, Peter; HABERMAS; Jürgen; FERRAJOLI, Luigi. VITALE, Ermanno. La constitucionalización de Europa. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2004, p. 25. 104 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. La noción de constitución abierta de peter haberle como fundamento de una jurisdicción constitucional abierta y como presupuesto para la intervención del amicus curiae en el derecho brasileño. In: Estudios Constitucionales, Año 8, Nº 1, 2010, pp. 283 – 304. 105 Ver a respeito em: HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 106 MENDES, Gilmar. Homenagem à doutrina de Peter Häberle e sua influência no Brasil. Disponível em: http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfAgenda_pt_br/anexo/Homenagem_a_Peter_Haberle__Pronunciamento__3_1.pdf>. Acesso em: 26.ago.2014. 107 Ibidem.

A evolução histórica... 53

preocupar-se com os novos desafios de um direito que transcendeu as fronteiras dos Estados para diversas ordens jurídicas. Sob este aspecto, Peter Häberle já afirmou que os diversos Estados constitucionais não existem mais “para si próprio”, e sim, constituem uma comunidade universal aberta.108

Quanto ao contexto histórico da região, Flávia Piovesan destaca a existência de dois períodos que marcaram o cenário latino americano: a) os regimes ditatoriais e b) a transição política de tais regimes à democracia. O primeiro período foi marcado por inúmeras violações de direitos e liberdades, bem como por execuções sumárias, desaparecimentos forçados, torturas, prisões ilegais, perseguições políticas, abolições de certos tipos de liberdades, entre outros. No segundo período, mesmo que os países latino-americanos tenham abolido o regime ditatorial, ainda se tenta consolidar o efetivo respeito aos direitos humanos, haja vista que a região é marcada tanto pelo elevado grau de desigualdade social, quanto pela cultura de violência e impunidade no âmbito doméstico.109

Com o advento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) em 1978, dos onze Estados que ratificaram a Convenção na época, menos da metade possuíam governos eleitos de forma democrática. Dessa forma, a dificuldade encontrada no sistema interamericano era lidar com o paradoxo de ser instituído em um período em que havia o regime ditatorial que não possuía abertura para a tríade “Democracia - Estado de Direito - Direitos Humanos”.110

É nesse sentido que as semelhanças culturais fazem com que a vertente constitucionalista nos Estados da América Latina se assemelhe. Isso porque, a história comum dos povos colonizados na América reflete traços significativos nas culturas.

O Estado [na América Latina] surge, nesse sentido, como instrumento de imposição de uma cultura às demais, como local para a concretização de um planejamento moderno, que ia desde o reconhecimento de direitos jurídicos e políticos aos

108 HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Traducción de Héctor Fix-Fierro. Distrito Federal: Universidad Autónoma de México, 2003, p. 75. 109 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 123-124. 110 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, n. 19, jan-jun, 2012, pp. 67-93.

54 Sistema interamericano de direitos humanos...

diferentes que aceirassem o julgo europeu, enquadrando-se como “cidadãos”, às práticas de etnocídio e epistemocídio111.

Os Estados latino-americanos, em sua maioria foram

explorados e viram suas riquezas serem levadas à Coroa Europeia, tiveram seus povos indígenas massacrados, domados ou escravizados.112

Este cenário começa a se modificar no final do século XX, refletindo no constitucionalismo latino-americano. Durante este período, “a América Latina passa por um novo processo constitucional que busca superar não apenas os problemas dos paradigmas social e liberal, mas também que busca superar o ranço autoritário que lhe marcou”113.

O chamado “novo” constitucionalismo latino-americano tem por objetivo priorizar as construções teóricas que contemplam as pretensões histórico-jurídicas da região, e não meramente buscar a reprodução da cultura eurocêntrica repleta de ambiguidades. Esta nova versão do constitucionalismo deriva da identidade sul americana caracterizada pelas comunidades indígenas e dos povos originários da região dos Andes, os quais fazem com que o estereótipo de “inferioridade” dos povos colonizados seja definitivamente substituído.114

Pode-se dizer que a primeira etapa de reformas constitucionais visando aproximar-se de um constitucionalismo latino-americano deu-se com o constitucionalismo pluralista, do final dos anos 80 e ao longo dos anos 90, com as Constituições brasileira (1988) e colombiana (1991).115

111 SILVA, Heleno Florindo da. Teoria do estado plurinacional: o novo constitucionalismo latino-americano e os direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2014, p.46. 112 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 28. 113 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Os desafios da justiça brasileira frente ao novo constitucionalismo latino-americano: diversidade e minorias. In: MORAIS, Jose Luis Bolzan de; BARROS, Flaviane de Magalhães. (Orgs.). Novo constitucionalismo latino-americano: o debate sobre novos sistemas de justiça, ativismo judicial e formação de juízes. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014, p. 121. 114 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 10. 115 Ibidem, p. 30.

A evolução histórica... 55

Na sequência, adveio a Constituição da Venezuela com a constituição de 1999, que foi o exemplo mais rotundo deste novo fenômeno observado na América Latina, que passou a ser chamado de “novo constitucionalismo latino-americano”.116 Por fim, a terceira e última etapa deste constitucionalismo veio com as constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009)117.

Para Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, é possível identificar alguns elementos de um direito constitucional comum na América Latina, tais como:

[...] a) direitos humanos como princípios; b) supremacia da Constituição; c) estados democráticos de direito; d) jurisdição constitucional; e) proteção às minorias culturais e étnicas; f) desenvolvimento da educação com vistas a erradicar o analfabetismo; g) um tribunal constitucional que auxilie nesse processo de integração; h) processo de recepção dos tratados internacionais expresso nos textos constitucionais; i) criação de uma esfera pública comum e proteção e promoção da arte, da cultura e do meio ambiente; j) paulatina integração econômica; k) separação dos poderes.118

Melo afirma que, nas últimas três décadas, sob o

impulso dos movimentos de “abertura democrática” percebe-se, indubitavelmente, uma nova fase da história constitucional e política na América Latina, caracterizada por sistemas orientados à tutelar os direitos fundamentais.119

Nesse sentido, é possível afirmar que:

116 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 53. 117 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 32. 118 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. A internacionalização do direito constitucional brasileiro. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (Coord.). Direito constitucional e internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 280. 119 MELO, Milena Petters. As recentes evoluções do constituicionalismo na América Latina: neoconstitucionalismo?. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 59-60.

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[...] já no final dos anos 90 o constitucionalismo latino-americano se caracterizava por uma difusa adesão à forma de Estado Constitucional, social e democrático de direito, radicada na ideia de força normativa da Constituição, que supera a concepção semântica da Constituição, como documento predominantemente político e programático e propende pela sua imediata e direta aplicação120.

O Estado passou a ocupar uma perspectiva diferenciada

dentro deste novo constitucionalismo latino-americano. Isso porque, o Estado democrático de direito é um paradigma de administração, planificação e promoção da vida social – que encontra os seus delineamentos, de forma e conteúdo, na positividade da constituição, na tutela dos direitos humanos e dos direitos fundamentais e na promoção da justiça social, do desenvolvimento e do pluralismo democrático, e não um modelo de Estado abstrato.121

Canotilho afirma que

O problema central do constitucionalismo moderno é, porém, o de se poder transformar numa aporia científica e numa ilusão político-constitucional, pelo facto de assentarem – e viverem de – pressupostos estatais que o Estado não pode garantir. Em palavras luhmannianas: as constituições dos Estados deixarão de desempenhar a sua função quando não conseguirem estabilizar as expectativas normativas122.

Para Wolkmer,

A constituição não deve ser tão somente uma matriz geradora de processos políticos, mas uma resultante de correlações de forças e de lutas sociais em um dado momento histórico do desenvolvimento da sociedade. Enquanto pacto político que expressa a pluralidade, ela materializa uma forma de poder que se legitima pela convivência e coexistência de concepções divergentes, diversas e participativas123.

120 Ibidem, p. 71. 121 Ibidem. 122 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 27-28. 123 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO,

A evolução histórica... 57

Wolkmer aduz que a constituição em si não só disciplina e limita o exercício do poder institucional, mas também busca compor as bases de uma organização social e cultural. A norma constitucional deve ainda, reconhecer e garantir os direitos conquistados por seus cidadãos, materializando o quadro real das forças sociais hegemônicas e das forças não dominantes.124

Assim, pode-se afirmar que a Constituição de um Estado congrega e reflete seu pluralismo. É nesse sentido que surge o constitucionalismo latino-americano e o Estado Plurinacional verificado atualmente na América Latina. O constitucionalismo latino-americano surge uma vez que

ainda hoje os movimentos neoconstitucionalistas, partindo da mesma lógica constitucional do Estado nacional moderno, não conseguem resolver os problemas inerentes a diversidade cultural existente dentro de uma mesma sociedade [...].125

Essa diversidade, originária de inúmeros fatores

culturais e sociais, como os explanados neste estudo, coloca “em xeque” conceitos que foram forjados para serem as bases do Estado nacional na modernidade (nação, soberania, democracia, cidadania, identidade, e outros), deflagra a impotência desse paradigma moderno em dar respostas satisfatórias aos anseios sociais.126 Assim, o paradigma moderno, de matiz liberal, capitalista, europeizado, de Estado não responde mais – se é que algum dia já respondeu – às necessidades inerentes à pluralidade epistemológico-cultural que vivencia-se na sociedade global e na sociedade latino-americana.127

Nesse contexto surge o novo constitucionalismo Latino-Americano,

[..] que emerge junto ao Estado Plurinacional, promove um diálogo entre o Eu/Nós e os Eles/Outros não por mecanismos

Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 19. 124 Ibidem, p. 20. 125 SILVA, Heleno Florindo da. Teoria do estado plurinacional: o novo constitucionalismo latino-americano e os direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2014, p. 22. 126 Ibidem. 127 Ibidem, p. 24-25.

58 Sistema interamericano de direitos humanos...

de reconhecimento por aquilo que o Eles tem de igual ao Nós, mas por aquilo que o Eles tem em si, ou seja, por aquilo que lhes caracterizam enquanto diferente – uma identidade cultural128.

Esse novo constitucionalismo latino-americano, também

denominado de constitucionalismo andino, plurinacional ou transformador, é marcado pela proteção aos povos originários e pelos direitos aos bens comuns.129

As Constituições mais recentes que vislumbram esse novo constitucionalismo latino-americano, como do Equador e da Bolívia trazem uma série de inovações. Dentre elas, pode-se citar a consagração de direitos acerca da biodiversidade e recursos naturais, tidos como direitos próprios da natureza e direito ao desenvolvimento do bem viver, garantidos pela Constituição equatoriana.

A Constituição Equatoriana rompe com a tradição constitucional clássica do Ocidente que atribui aos seres humanos a fonte exclusiva de direitos subjetivos e direitos fundamentais para introduzir a natureza como sujeito de direitos130.

O direito ao bem viver, por sua vez, traduz-se em uma vida harmoniosa entre todas as comunidades humanas e a natureza. Em outras palavras, trata-se de ver a natureza não como um objeto, mas como um espaço de vida, expressando uma visão integral da convivência humana e social com a natureza, da justiça com o meio ambiente. Assim, não há como ter um direito do bem viver sem que haja uma natureza – ou Pachamama – protegida e conservada.131

Já a Constituição boliviana prevê direitos como o igualitarismo jurisdicional entre a jurisdição ordinária e a indígena; consagra o direito ao diálogo intercultural; e, quanto ao direito aos bens comuns, consagra direitos como o direito ao meio ambiente saudável, proteção e conservação dos recursos naturais, subsolo, terra, biodiversidade, entre outros.

128 Ibidem, p. 30. 129 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 29. 130 Ibidem, p. 33. 131 Ibidem, p. 35.

A evolução histórica... 59

Assim, pode-se concluir que, nos primórdios, no tempo da colonização da América, os modelos de Estados latino-americanos nasceram a partir da sobreposição de uma cultura – a europeia – sobre as demais. Houve a imposição de uma vontade, de um querer, de um modelo de sociedade, entendida como a única possível. E, a partir dessas características e perspectivas sociopolíticas, que os Estados latino-americanos se insurgem em busca da construção de um constitucionalismo representativo de seu povo e suas culturas.

2

TENDÊNCIAS DO CONSTITUCIONALISMO GLOBAL O cenário que se instaurou pós Segunda Guerra Mundial

fez com que se buscasse um ambiente baseado na paz, na harmonia e na proteção mais efetiva dos direitos das pessoas, principalmente aqueles ligados à sua personalidade. Com isso, emergiu a necessidade premente de cooperação internacional para alcançar interesses comuns, e neste contexto, começou a se delinear o fenômeno da globalização.

Com o passar dos anos, houve o fortalecimento da globalização e das relações internacionais, e consequentemente, do direito internacional. Em um contexto atual, em razão da globalização e da modificação do cenário mundial, vive-se uma crise no Estado nacional à medida que as organizações supra-estatais ganham força. Ferrajoli aduz que se estabeleceu juntamente com estas mudanças, um quadro em que a globalização causa um “vazio de direito público internacional”, devendo se repensar a ordem internacional a partir dessas premissas:

A crise do Estado nacional e o déficit de democracia e do Estado de direito que caracterizam os novos poderes extra e supra-estatais não exigem repensar apenas o Estado, mas também, e diria que inclusive mais, a ordem (ou desordem) internacional; ou melhor, repensar o Estado dentro da nova ordem internacional e repensar a ordem internacional sobre a base da crise do Estado. Repensar a ordem internacional quer dizer dar-se conta da ausência de uma esfera pública internacional à altura dos novos poderes extra e supra-estatais, entendendo como “esfera pública” o conjunto das instituições e das funções que estão destinadas à tutela de interesses gerais, como a paz, a segurança e os direitos fundamentais e que formam, portanto, o espaço e o pressuposto tanto da política como da democracia.147

147 “La criris del Estado nacional y el déficit de democracia y de Estado de derecho que caracteriza a los nuevos poderes extra y supraestatales, nos pbligan a termatizar, junto a la crisis del Estado, el orden (y el desorden) internacional; o mejor dicho, a redefinir al Estado dentro del nuevo orden internacional y redefinir el orden internacional sobre la base de la crisis del

Tendências do constitucionalismo... 61

Em outras palavras, este vazio significaria que há uma falta de regras, limites e vínculos que garantam a paz e os direitos humanos – e dentre eles, os direitos da personalidade – diante dos novos poderes transnacionais, tanto públicos quanto privados, que destronaram os velhos poderes estatais ou que perderam o seu papel de governo e de controle.148

Estas mudanças trazem um problema de direito constitucional, vez que Canotilho149 explica que a questão atual que se coloca à Constituição e ao direito constitucional é saber se se pode continuar a considerar adequado um conceito de Constituição nos moldes de Luhmann, qual seja, pura e simplesmente como um horizonte de sentido dotado de instruções para uso suficiente de prática.

A tese de Luhmann é a de que, o conceito de Constituição é simplesmente uma reação à diferenciação entre direito e política, ou, em outras palavras, à total separação de ambos os sistemas de funções e à consequente necessidade de uma religação entre eles.150 Ademais afirma que a Constituição

Estado. Y redefinir el ordem internacional significa tomar consciência de la ausência de uma esfera pública internacional a la altura de los nuevos poderes extra y supraestatales: entendiéndose por “esfera pública” al conjunto de las instituciones y funciones a cargo dela seguridade y los derechos fundamentales, ya que forman el espacio y la premissa tanto de la política quanto de la democracia.” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: <http://www.senado.gob.mx/comisiones/justicia/docs/Ministros/Bib_Democracia_derecho.pdf>. Acesso em: 03.jun.2015, pp. 116-117. 148 FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: <http://www.senado.gob.mx/comisiones/justicia/docs/Ministros/Bib_Democracia_derecho.pdf>. Acesso em: 03.jun.2015, p. 117. 149 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p.190. 150 LUHMANN, Niklas. A constituição como Aquisição Evolutiva. Tradução realizada a partir do original (“Verfassung als evolutionäre Errungenschaft”. In: Rechthistorisches Journal . Vol. IX, 1990, pp. 176 a 220), cotejada com a tradução italiana de F. Fiore (“La costituzione come acquisizione evolutiva”. In: ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jörg. Il Futuro della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996), por Menelick de Carvalho Netto, Giancarlo Corsi e Raffaele De Giorgi. Notas de rodapé traduzidas da versão em italiano por Paulo Sávio Peixoto Maia (texto não revisado pelo tradutor), p. 04.

62 Sistema interamericano de direitos humanos...

deve ser entendida como “uma inovação de origem política no interior do próprio sistema do direito”151.

O autor explica que pode haver confusão ao se pensar que, no passado, havia a ideia apenas de leis particularmente importante e fundamentais, mas não a ideia de que houvesse uma lei que serviria de medida da conformidade ou não-conformidade ao direito de todas as outras leis e atos jurídicos. Essa posição particular, entretanto, somente adveio após a Declaração da Independência Americana de 1776.152

Nesse sentido, Canotilho afirma que o “risco de a Constituição não estar em condições de continuar a ser compreendida como estatuto jurídico do político torna-se agora indisfarçável”153. E continua explicando que “mesmo que haja um Legal Transplant154 da ideia constitucional a nível global, nem por isso a Constituição poderá aspirar a ser mais do que é: um texto útil para direitos e políticas simbólicas”155.

Ferrajoli concorda que há um problema de salvaguarda dos direitos dos indivíduos a nível global, uma vez que, segundo ele, o mundo vive atualmente à mercê de um “vazio de direito público internacional”.

A falta de uma esfera pública internacional no sentido aqui definido é a grande lacuna dramaticamente revelada pelas tragédias desses anos: pelas guerras, por tantos crimes contra a humanidade, pelo crescimento das desigualdades e pelas devastações ambientais. À crise dos Estados e, portanto, ao papel das esferas públicas nacionais, não correspondeu a construção de uma esfera pública à altura dos processos de globalização em curso. Faltam, ou são de todo débeis, não somente as garantias dos direitos solenemente proclamados, ou seja, a previsão de proibições e obrigações a eles correspondentes, mas também as instituições internacionais dedicadas às funções de garantia, quer dizer, à salvaguarda

151 Ibidem, p. 06. 152 Ibidem. 153 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 190. 154 Traduzido de forma livre como um transplante legal/legitimado. 155 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 190.

Tendências do constitucionalismo... 63

da paz, à mediação dos conflitos, à regulação do mercado e à tutela dos direitos e dos bens fundamentais de todos156.

Pode-se notar a preocupação do autor quanto à questão

da efetividade do direito internacional, de modo que se difere do direito interno, principalmente porque este tem formas de imposição, e possui coercibilidade, enquanto que aquele se funda na voluntariedade dos Estados. Em outras palavras, o direito interno dos Estados possui meios de coação, meios de ser respeitado, e, o direito internacional é uma jurisdição voluntária, isto é, os Estados não são obrigados a se submeterem às suas normas, a não ser que seja de sua livre vontade fazê-lo. E, uma vez submetidos à uma jurisdição internacional, o Estado fica vinculado e pode ser repreendido por meio de embargos econômicos, dentre outras sanções.

Nesse contexto, deve-se repensar a ordem internacional, em um cenário em que a globalização gerou efeitos tão significativos. O que se percebe é que o direito constitucional se viu obrigado a andar conjuntamente com o direito internacional, conforme assevera Canotilho:

No mundo globalizado, [...] a “eticização” do discurso constitucional andaria a par com a eticização do direito internacional e possibilitaria a observação e valoração da política – interna e externa – lá onde ela pudesse ferir o

156 “Por lo tanto, es la falta de una esfera pública internacional en el sentido antes definido, la gran laguna dramáticamente subrayada por las tragédias de estos años: las guerras, los muchos crímenes contra la humanidad, el crecimiento de las desigualdades, las de vastaciones ambientales. A la crisis de los Estados, y por consiguien te del papel de las esferas públicas nacionales, no le correspondió la construcción de una esfera pública a la altura de los procesos de globalización que se están verificando. Faltan, o son muy débiles, no só lo las garantías de los derechos proclamados incluso solemnemente, o sea la previsión de las prohibiciones y de las obligaciones que a éstos corresponden, pero faltan sobretodo las instituciones internacionales encargadas de las funciones de garantía, es decir, de la protección de la paz, de la mediación de los conflictos, de la regulación del mercado y de la tutela de los derechos y de los bienes fundamentales de todos.” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: <http://www.senado.gob.mx/comisiones/justicia/docs/Ministros/Bib_Democracia_derecho.pdf>. Acesso em: 03.jun.2015, p. 118

64 Sistema interamericano de direitos humanos...

inviolated level157 de qualquer acção político-comunitária

(genocídio, grave violação dos direitos humanos)158.

A preocupação de Ferrajoli é a de que este “vazio de

direito público internacional”, defendido por ele, ocasione a longo prazo “uma espiral sem controle de guerras, de violências e de terrorismo que colocam em perigo a sobrevivência mesma de nossas democracias”159.

Diante desta problemática, tentou-se conduzir este estudo de modo a encontrar uma solução para este “vazio de direito público”.

Primeiramente, deve-se modificar o direito constitucional, para o fim de que o constitucionalismo se adapte ao cenário jurídico global verificado atualmente. Canotilho afirma que o problema é que, o direito constitucional, no mundo atual, tornou-se vítima de vários positivismos. Do positivismo normativista, em primeiro lugar. O resultado disto foi a marginalização da Constituição face aos “Códigos”, continuando a velha ideia do direito constitucional como direito programático ou como direito da organização do poder, ou a aplicação acrítica de cânones interpretativos pouco operativos em face de normas tendencialmente principais160.

157 Pode ser traduzido como nível inviolável das ações dos países. 158 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 191-192. 159 “Éste es, precisamente, el enorme y dramático problema que actualmente tenemos frente a nosotros. De hecho, creo que este vacío de derecho público – en una sociedad global cada vez más frágil e interdependiente – no se puede sostener por mucho tiempo sin ir hacia un futuro de guerras, violencia y terrorismo que pondría en peligro la supervivencia de nuestras mismas democracias.” (Tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. (Tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: <http://www.senado.gob.mx/comisiones/justicia/docs/Ministros/Bib_Democracia_derecho.pdf>. Acesso em: 03.jun.2015, p. 121. 160 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 163-164.

Tendências do constitucionalismo... 65

O direito constitucional é muito mais do que mero direito programático. Essa era a visão das constituições dirigentes161, explica Canotilho. Como exemplo de constituições com textos carregados de programaticidade, tem-se desde a velha Constituição Mexicana de 1917, até à Constituição Brasileira de 1988, passando pela magna Carta Portuguesa de 1976. Este tipo de constituição estão sendo alvo de muitos escárnios e maldizeres162.

O constitucionalista português explica que

[...] os olhares políticos, doutrinários e teoréticos [...] não se cansam de proclamar a falência dos “códigos dirigentes” num mundo caracterizado pela conjuntura, a circularidade, os particularismos e os riscos.163

Isso porque, estas constituições “dirigentes”, também

conhecidas como constituições programático-estatais, fizeram com que o Estado se tornasse o “homem de direção” exclusiva (ou quase exclusiva) da sociedade e converteram o direito em instrumento funcional dessa direção164.

Neste cenário, “[...] o dirigismo normativo-constitucional repousa no dogma “Estado Soberano”, constituindo a “soberania constitucional” um corolário lógico deste mesmo dogma”165. E sabe-se que, no mundo em que se vive atualmente, a soberania estatal não ocupa mais o mesmo espaço que ocupava no passado, graças a diversos fatores, dentre eles, a globalização.

Jean Bodin166 foi o primeiro autor a dar um tratamento sistematizado à soberania e definiu-a como um poder perpétuo

161 Segundo Canotilho, as constituições dirigentes, também denominadas como constituições programático-estatais são aquelas que fazem do Estado a “homem de direção” exclusiva, ou seja, todas as atribuições político, econômicas e sociais devem ser de responsabilidade do Estado. 162 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 104. 163 Ibidem, p. 105. 164 Ibidem, p. 107. 165 Ibidem, p. 109. 166 Antes de Bodin, as obras do teólogo espanhol Francisco de Vitoria (1483 a 1546) traziam a tese da ordem mundial como communitas orbis, ou seja, como sociedades de repúblicas ou Estados Soberanos, igualmente livres e independentes, na qual estavam englobados não apenas os Estados cristãos, mas também todas as sociedades humanas organizadas. A ideia de Soberania de Vitoria era a dos Estados como sujeitos externamente a um mesmo direito

66 Sistema interamericano de direitos humanos...

tem como únicas limitações a lei divina e a lei natural. A soberania era, para ele, absoluta dentro dos limites estabelecidos por essas leis. Além disso, Bodin foi o primeiro a dar a real importância da soberania na formação do Estado Moderno, fixando sua natureza, essência e fundamento. Acreditava ainda, que a soberania era o poder absoluto dentro de um governo, e através deste poder supremo, o Estado possuía autorização para dar as leis, anulá-las e interpretá-las, sem limitações e obstáculos.

A soberania pode ser entendida “como a qualidade que o Estado possui, na esfera de sua competência jurídica, de ser supremo, independente e definitivo, dispondo, portanto, de decisões ditadas em último grau pela sua própria vontade”167. Em outras palavras, a soberania passa a ser a negação de toda subordinação ou limitação do Estado por qualquer outro poder. Há quem a defenda como um conceito que advém da fusão de estudos de Ciência Jurídica, Política e Economia. Para ele, a soberania é “um conjunto autônomo de princípios jurídicos, de regras e institutos sociais e políticos justificadores do poder nacional”168.

Analisando os conceitos produzidos pela doutrina, percebe-se que a soberania está, de uma forma ou outra, ligada à ideia de supremacia, independência, de não limitação de poder e de não subordinação, que se transcreve pelos princípios jurídicos e pelos institutos sociais e políticos que cada Estado se utiliza.

Assim, Norberto Bobbio afirma que, [...] o conceito político-jurídico de Soberania indica o poder de mando de última instância, numa sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas em cuja organização não se encontra este poder supremo, exclusivo e não derivado.169

das gentes e internamente às leis constitucionais que eles mesmos se deram. In: FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2007, p. 5. 167 MENEZES, Anderson de. Teoria geral do estado. Rio de Janeiro: Forense, 1993.p. 149. 168 LEAL, Rosemiro Pereira. Soberania e mercado mundial: a crise jurídica das economias nacionais. 2. ed. São Paulo: LED, 1999.p. 22. 169 MATTEUCCI, Nicola. O eclipse da soberania. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed.

Tendências do constitucionalismo... 67

Bobbio acredita, ainda, que, este conceito está intimamente ligado ao Poder Político, pois, evidentemente, a soberania pretende ser a racionalização jurídica do poder, ou seja, a transformação do que não se é certo, não está formalizado, caracterizado pelo poder de fato, em poder legítimo ou de direito.

Conforme entende Paulo Bonavides, o conceito de soberania, como qualquer outro conceito, passou por desdobramentos e por uma minuciosa revisão. Ainda segundo o mesmo autor, há juristas, doutrinadores e pensadores que acreditam que é um conceito em declínio. Atualmente, este tipo de ideologia pesa mais nas relações existentes entre os Estados e não mais em

relação ao próprio sentimento nacional de soberania.170

O que ocorre é uma mudança no conceito e na

apresentação da soberania clássica tal qual era conhecida. Outra razão pela qual o conceito de soberania nacional vem sendo modificado, é a constante necessidade e a pressão mundial que os Estados vêm sofrendo para que se crie uma ordem internacional, vindo essa ordem a ter um primado sobre a ordem nacional.

Canotilho afirma que as fronteiras entre o direito constitucional e o direito internacional estreitaram-se a tal ponto que hoje se trata do direito constitucional internacional e do direito internacional constitucional171.

Assim, o conceito clássico de soberania está hoje submetido a um processo de questionamentos que apresentam dupla origem: uma de âmbito supranacional e outra infranacional.172 O que significa dizer que a soberania clássica, como já se observou, expressa a ideia de não ser delegada de nenhuma fonte, e sim origina-se nela mesma, caracterizando-se como um poder supremo.

Trad. Carmen Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira. Brasília: UnB, 1998, v.1, p.1179. 170 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros Editores, 2001,

p.133. 171 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 285. 172 DIAS, Reinaldo. Ciência política. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.123.

68 Sistema interamericano de direitos humanos...

Verifica-se que atualmente, este conceito está sob questionamento, por um lado, pela existência de uma ordem internacional que vem limitando os poderes dos Estados; e, por outro lado, pela crescente importância de outros atores políticos que até então, não possuíam grande destaque, como organizações não governamentais e empresas.

Paulo Bonavides sustenta que os internacionalistas são adversos a esta soberania clássica, pois os mesmos a enxergam como obstáculo para a realização de uma comunidade internacional, à passagem do direito internacional, de um direito de bases meramente contratuais, com fundamentos de direito natural, a um direito que se pudesse, coercitivamente, impor a todos os Estados.173

Enfim, na era da globalização, o conceito e a aplicação do termo “soberania” vem sendo modificado. De fato, este conceito foi vítima de diversas mudanças provocadas pela inconstante dinâmica da vida na sociedade moderna. Com a intensificação do fenômeno da globalização, as fronteiras e capacidade de ação do Estado vêm sendo suplantadas pela dinâmica das relações internacionais. Sendo assim, a consequência gerada é a restrição ou limitação do seu poder supremo, ou seja, a soberania.

2.1 GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO

Por globalização, tem-se a ação positiva, um processo,

um esforço ou ato comissivo para completar um sistema inteiro que dele aproveitará a todos. A essência da globalização é o movimento rápido. O espaço deixou de ser obstáculo e não existem mais fronteiras naturais nem lugares óbvios a ocupar.174

Teubner, afirma que a globalização deve ser percebida não como uma sociedade que gradativa e paulatinamente move-se na direção de integrar-se a uma sociedade mundial, mas sim como uma sociedade mundial que é resultado da crescente abrangência da comunicação que ultrapassa barreiras culturais ou geográficas. Nesta perspectiva, as organizações internas dos

173 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros Editores, 2001,

p.133. 174 BAUMANN, Zygmunt. Globalização, as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 85.

Tendências do constitucionalismo... 69

Estados-nações nada mais são do que meras expressões localizadas de uma sociedade mundial.175

Para Zygmunt Bauman, a globalização está na ordem do dia, um termo da moda que se transforma, e, independente do significado atribuído a palavra em si, o inegável é que todos estão sendo globalizados:

Para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, “globalização” é o destino mediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo “globalizados” – e isso significa

basicamente o mesmo para todos.176

Acerca da globalização, Canotilho assevera: A globalização é [...] um processo policêntrico, que envolve vários domínios da atividade (economia, política, tecnologia, militar, cultural, ambiental). O policentrismo explica a função de vários subsistemas autónomos, articulados com a política internacional e em rede com outros subsistemas parciais globais177.

Ao corroborar com o pensamento de Baumann e Canotilho, Ferrajoli também se preocupa com os efeitos da globalização:

O efeito mais visível da globalização, na ausência de uma esfera pública mundial, é de fato o crescimento exponencial da desigualdade, signo de um novo racismo que ignora a miséria, a fome, as doenças e a morte de milhões de seres humanos sem valor. É uma desigualdade que não tem precedentes na história. A humanidade é, hoje, em seu conjunto, incomparavelmente mais rica do que no passado. Pior, é também, se se leva em conta as massas exterminadas e

175 TEUBNER, Günther. A Bukowina Global sobre a Emergência de um Pluralismo Jurídico Transnacional. In: Impulso. Revista de Ciências Sociais e Humanas. v. 14, n. 33, jan./abr. 2003, p. 12. 176 BAUMANN, Zygmunt. Globalização, as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 7. 177 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 294-295.

70 Sistema interamericano de direitos humanos...

crescentes de seres humanos, incomparavelmente mais pobre. Os homens são certamente, no plano jurídico, incomparavelmente mais iguais do que em qualquer outra época, graças às inumeráveis cartas, Constituições e declarações de direitos. Porém são também incomparavelmente mais desiguais na prática. O “tempo dos direitos”, para utilizar a expressão de Norberto Bobbio, é também o tempo de sua massiva violação e da mais profunda e intolerável desigualdade178.

Duarte, nesse sentido, aduz que: Talvez o maior desafio para uma contextualização atual da noção de soberania seja aquele de conciliar este conceito com a aspiração da comunidade internacional em garantir que a cada cidadão de cada Estado lhe sejam concedidos direitos humanos e que estes sejam respeitados por todos os Estados. O problema reside na busca pela forma como a comunidade internacional pode assegurar o respeito dos direitos humanos em face dos corolários de interdependência e não-intervenção nos assuntos internos de um Estado, naqueles casos em que este não tenha adquirido obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.179

178 “El efecto más vistoso de la globalización, en ausencia de una esfera pública mundial, es un crecimiento exponencial de la desigualdad, signo de um nuevo racismo que da por hecho la miseria, el hambre, las en fermedades y la muerte de millones de seres humanos sin valor. Es una desigualdade que no tiene precedentes en la historia. Hoy la humanidad es, en su conjunto, in comparablemente más rica que en el pasado. Pero, si se toman en cuenta las inmensas y crecientes masas de seres humanos, es también incomparablemente más pobre. Los hombres, sobre el plano jurídico, ciertamente son incomparablemente más iguales que en cualquier otra época, gracias a las innumerables cartas, constituciones y declaraciones de derechos. Pero en realidad, son también inmensamente más desiguales en lo concreto. El “tiem po de los derechos”, para usar la expresión de Norberto Bobbio, es también la época de su mayor violación masiva y dela más profunda e intolerable desigualdad.” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: <http://www.senado.gob.mx/comisiones/justicia/docs/Ministros/Bib_Democracia_derecho.pdf>. Acesso em: 03.jun.2015, pp. 122-123. 179 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 180.

Tendências do constitucionalismo... 71

Eis aqui a questão central deste estudo: como resolver este problema? Diante da globalização e da modificação da condição da soberania estatal frente ao direito internacional, o interconstitucionalidade se mostra uma alternativa eficaz para o fim de tutelar os direitos dos cidadãos – em especial os direitos da personalidade – em um âmbito internacional?

Canotilho traz à análise o seguinte problema, ao asseverar que:

[...] mesmo na era da globalização, o problema de constitucionalizar uma ordem política e econômica através do direito continua a residir na assimetria entre a “responsabilidade” imposta pelo Estado de direito democrático no plano político, social e econômico, e as suas reais capacidades de actuação, agora num contexto global crescentemente compressor da modelação jurídico-política estatal em matéria de segurança, de liberdade e do próprio direito180.

Nesse contexto, Duarte afirma que as transformações

global ou comunitariamente (pela Comunidade/União Europeia) impostas aos mecanismos estatais culminam em um necessário repensamento do próprio Estado181.

Wilson Engelmann sustenta ainda que, apesar das mudanças, o Estado continuará forte e necessário, porque as entidades transnacionais não possuem força para impor sozinhas as suas vontades. Assim, Estado e Constituição jogam um jogo onde aparecem influências externas e realidades internas182.

Deve haver conjuntamente, uma reflexão sobre as constituições dos Estados que deverão modificar-se no sentido de fornecer “o conjunto de parâmetros básicos. Isso é o que se pensa em termos de Constituição, como um mecanismo capaz

180 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 22. 181 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 16. 182 ENGELMANN, Wilson. A crise constitucional: a linguagem e os direitos humanos como condição de possibilidade para preservar o papel da Constituição no mundo globalizado. In: MORAIS, José Luis Bolzan de (Org.) O Estado e suas crises. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 243.

72 Sistema interamericano de direitos humanos...

de lidar com os influxos gerados pela globalização”183. Alerta-se, no entanto, que as Constituições deverão conter o conteúdo mínimo, ou seja, prever os parâmetros básicos, se tornando um mecanismo flexível para lidar com as inquietações que possam vir a aparecer no mundo globalizado184.

Com a globalização e o fortalecimento do direito internacional, e consequentemente, o enfraquecimento do direito interno dos Estados, Ferrajoli sustenta que “desapareceu o nexo democracia-povo e poder de decisão-Estado de direito, tradicionalmente mediado pela representação e pelo primado da lei e da política através da qual a lei se produzia”185. Com esta afirmação, o autor refere-se à crise inegável e irreversível dos Estados nacionais e de sua soberania, ao fim do monopólio estatal da produção jurídica, o que se vê pela grande quantidade de leis internacionais permeando os diversos ordenamentos jurídicos.

Duarte assevera que esta constatação deve servir como um alerta, uma vez que

[...] os organismos transnacionais acabam interferindo na produção das normas jurídicas implementadas pelo Estado, Assim, além de não se submeterem às regras comuns, acabam influindo na tomada de decisão sobre o conteúdo do Direito que o Estado deverá tornar obrigatório. Por outro lado, tal situação está demonstrando a necessidade de revisar a concepção acerca de/da Constituição, que não poderá mais

183 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 120. 184 ENGELMANN, Wilson. A crise constitucional: a linguagem e os direitos humanos como condição de possibilidade para preservar o papel da Constituição no mundo globalizado. In: MORAIS, José Luis Bolzan de (Org.) O Estado e suas crises. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 242. 185 “De modo que ha desaparecido el nexo democracia-pueblo y poderes de decisión-Estado de derecho, tradicionalmente mediado por la representación y por la primacía de la ley y de la política queda origen a dicha ley” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: <http://www.senado.gob.mx/comisiones/justicia/docs/Ministros/Bib_Democracia_derecho.pdf>. Acesso em: 03.jun.2015, pp. 110-111.

Tendências do constitucionalismo... 73

estar preocupada exclusivamente aos limites territoriais de cada Estado186.

O que se percebe é que o Estado, mesmo que lhe sejam

dadas atribuições, tem sua ação prejudicada no âmbito internacional, em um contexto globalmente interligado. Ferrajoli sustenta que, dessa forma, diminuem as possibilidades de controle dos Estados sobre a economia, sempre mais autônoma no mercado global.187

Canotilho, corroborando com o pensamento de Ferrajoli, assevera que o Estado se tornou um “herói local”, uma vez que

[...] quem quiser compreender o lugar e o sentido da Constituição terá de apelar para um patriotismo constitucional de inclusividade. Isso significa uma Constituição aberta a outros espaços, aberta a outras pessoas, aberta a outras normas, aberta a conflitos e consensos, aberta à sobreposição experiencial de consensos188.

Nessa conjuntura, bem assinala Duarte

Constata-se atualmente como o Estado-nação está perdendo paulatinamente sua capacidade de iniciativa e de controle com respeito às decisões políticas e econômicas que concernem à vida diária dos cidadãos, e que emanam principalmente das entidades financeiros e comerciais189.

186 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 120. 187 FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: <http://www.senado.gob.mx/comisiones/justicia/docs/Ministros/Bib_Democracia_derecho.pdf>. Acesso em: 03.jun.2015, p. 116. 188 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p.197. 189 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 108.

74 Sistema interamericano de direitos humanos...

Em meio a esta problemática, Canotilho trata de três temas190 a respeito das discussões sobre o constitucionalismo global: o primeiro deles é o constitucionalismo multilevel – ao qual o autor se refere como interconstitucionalidade; o segundo é a transnacional governance – ou governação transnacional; e o terceiro, o constitucionalismo internético191.

Tratar-se- à neste estudo acerca do primeiro e do segundo tema trazidos por Canotilho, ou seja, a hipótese de elaboração de um constitucionalismo regional ou global, e a aplicação do fenômeno da interconstitucionalidade, para abarcar e proteger mais eficazmente os direitos dos cidadãos. 2.2 DA CRIAÇÃO DE UM CONSTITUCIONALISMO GLOBAL

Em relação a hipótese de elaboração de um

constitucionalismo regional ou global, Ferrajoli propõe o desafio de construir uma esfera pública internacional.

[...] a perspectiva de uma extensão às relações internacionais do paradigma do Estado constitucional de direito – em breve, da construção de uma esfera pública mundial – é hoje o principal desafio lançado pela crise do Estado para a razão jurídica e para a razão política192.

190 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 261. 191 O constituicionalismo internético não será abordado nesta pesquisa. Ver mais em: CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008. 192 “Creo que la perspectiva de semejante expansión de las relaciones internacionales, del paradigma del Estado constitucional de derecho y de la jurisdicción —en resumen, la creación de una esfera pública mundial— representa hoy el principal reto que plantea la crisis del Estado a la razón jurídica y a la razón política.” (Tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: <http://www.senado.gob.mx/comisiones/justicia/docs/Ministros/Bib_Democracia_derecho.pdf>. Acesso em: 03.jun.2015, p. 131.

Tendências do constitucionalismo... 75

As constituições dos Estados “supranacionalizaram-se” ou “internacionalizaram-se”.193 Ou seja, os Estados se integraram em comunidades políticas supranacionais, ou em sistemas políticos internacionais globalmente considerados, como é o caso dos blocos econômicos. Consequentemente, suas constituições tiveram que adaptar-se à esta nova “posição” e flexibilizar-se, aceitando e recepcionando as normas criadas por estes blocos econômicos.

Primeiramente, para que qualquer das duas hipóteses que se abordará se torne viável, afirma Canotilho, que os Estados devem lançar mão de qualquer patriotismo constitucional. Isso porque:

Qualquer “patriotismo constitucional” será, aqui, um sentimento débil, pois, com a recusa e rejeição, por parte dos Estados, de uma “soberania nacional” e de um “poder soberano exclusivo”, também a magna carta de um país perde uma parte de seu simbolismo, da sua força normativa e do seu papel identificador. A “internacionalização” e a “europeização”, no caso português, e a internacionalização e a “mercosulização”, no contexto do Brasil, tornam evidente a transformação das ordens jurídicas parciais, nas quais as constituições são relegadas para um plano mais modesto de “leis fundamentais regionais”. Mesmo que as constituições continuem a ser simbolicamente a magna carta da identidade nacional, a sua força normativa terá parcialmente de ceder perante novos fenótipos político-organizatórios, e adequar-se, no plano político e no plano normativo, aos esquemas regulativos das novas “associações abertas de estados nacionais abertos”194.

O constitucionalista português pretende, com essa

assertiva, esclarecer que os Estados devem relativizar sua soberania frente aos novos fenótipos político-organizatórios. Ou seja, nesta comunidade internacionalmente interligada, os Estados devem subordinar-se e adequar-se às normativas

193 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 107. 194 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 109-110.

76 Sistema interamericano de direitos humanos...

internacionais para que o novo sistema funcione da forma pela qual foi criado.

Nessa conjuntura que o direito constitucional está inserido num contexto de mundialização econômica, ocasião em que se tornou incapaz de responder eficazmente aos problemas que suscitam.195 Deve haver a substituição da ideologia do constitucionalismo, na qual o Estado Constitucional fundamentou sua estrutura, pela ideologia de Constituição, de onde dificilmente se extraem critérios eficazes contra os demolidores efeitos da globalização.

Canotilho expressa sua preocupação com os rumos que o direito constitucional vem tomando, pois aduz que

[...] hoje, o direito constitucional corre o risco não apenas de perder a dimensão nuclear de um direito do político para o político, mas também o de ser relegado para um direito residual. Eis, aqui, uma primeira nota da presente récita discursiva: o direito constitucional é um “direito de restos”. “Direito do resto do Estado”, depois da transferência de competências e atribuições deste, a favor de organizações supranacionais (União Europeia, Mercosul). Direito do resto do “nacionalismo jurídico”, depois das consistentes e persistentes internacionalização e globalização terem reduzido o Estado a um simples “herói local”. “Direito dos restos da auto-regulação”, depois de os esquemas reguláticos haverem mostrado a eficácia superior da auto-regulação privada e corporativa relativamente à programática estatal196.

Para Bercovici, o que está ocorrendo é uma substituição

da Teoria Geral do Estado por uma Teoria da Constituição, em especial a teoria da Constituição Dirigente – de Canotilho – que, para Bercovici, é uma teoria ‘autossuficiente’ da Constituição. Em outras palavras, seria um Teoria da Constituição sem Teoria do Estado e sem política197. Até porque, se se pretende criar um

195 GARCÍA, Pedro de Vega. Mundialização e direito constitucional: a crise do princípio democrático no constitucionalismo atual. In: ALMEIDA FILHO, Agassiz; PINTO FILHO, Francisco Bilac Moreira (Orgs.) Constitucionalismo e Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 498. 196 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 185. 197 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 119.

Tendências do constitucionalismo... 77

constitucionalismo global, este não teria um Estado correspondente, mas sim, vários Estados envolvidos.

Neste sentido, Canotilho aduz que

vários processos referentes à mudança de funções da estatalidade moderna – a internacionalização/globalização e a europeização – obrigam a um repensamento da constituição aberta ao tempo.198

A respeito do tema, Julios-Campuzano199 afirma que

Com efeito, os elementos caracterizadores desse paradigma podem ser sintetizados nos seguintes aspectos: em primeiro lugar, a crise do modelo westfaliano das relações horizontais ente Estados; em segundo lugar, a progressiva imperatividade do direito internacional, que redimensiona princípios, valores e regras através de acordos, protocolos e convênios internacionais; e por último, a consagração da dignidade humana como pedra angular de todos os constitucionalismos.200

Dessa forma, tem-se que a globalização e a mudança

no constitucionalismo vêm caminhando, nos dias de hoje, de modo a culminar em uma nova dimensão do constitucionalismo que perpassa os âmbitos internos dos Estados.

No que se refere à primeira hipótese levantada por Canotilho, com referência à criação de um constitucionalismo transnacional – ou seja, que perpassa os limites territoriais do Estado –, tem-se que os primeiros indícios que demonstravam essa vontade surgiram juntamente com a Carta das Nações Unidas, conforme explica o autor português.

Alguns autores procuraram recortar a constituição global de uma forma muito semelhante à utilizada para as constituições internas. É o que se passa com a tentativa de erigir a Carta

198 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 27. 199 JULIOS-CAMPUZANO, Alfonso de. La transición paradigmática de la teoria jurídica: el derecho ante la globalización. Madrid: Dykinson, 2009. 200 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 98.

78 Sistema interamericano de direitos humanos...

das Nações Unidas, criada pela international community201 no

exercício de um poder político mundialmente legitimado202.

A ideia de um constitucionalismo global evoca a utopia

de um Direito cosmopolita, de uma paz perpétua sob um governo mundial assentado no respeito universal dos direitos humanos e na cooperação entre os povos.203

A singularidade da contribuição do filósofo alemão reside em sua fé em uma paz perpétua que se constrói uma vez que a razão tem mais força do que o poder, e a razão

[...] condena absolutamente a guerra como procedimento de direito e torna, ao contrário, o estado de paz um dever imediato, que, porém, não pode ser instituído ou assegurado sem um contrato dos povos entre si [...].204

Kant parte do pressuposto que o poder inevitavelmente

corrompe o livre julgamento da razão, e que, os dois segredos para a manutenção da paz perpétua são a natureza e a consulta aos filósofos, porque eles são incapazes de perder a razão diante do poder.205

Quanto ao direito cosmopolita em Kant, tem-se que a ideia de uma comunidade universal pacífica, ainda que não seja amigável, de todas as nações da Terra que possam entreter relações que as afetam mutuamente, não parte de um princípio filantrópico – ou ético –, mas de um princípio jurídico206. Sobre a questão, Kant esclarece:

Uma constituição segundo o direito cosmopolita (Weltbürgerrecht), enquanto importa considerar os homens e

os Estados, na sua relação externa de influência recíproca, como cidadãos de um estado universal da humanidade (ius cosmopoliticum). Esta divisão não é arbitrária, mas necessária

201 Termo em português: comunidade internacional. 202 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 286-287. 203 PRIETO SANCHÍS, Luis. Constitucionalismo y glbalización. In: JULIOS-CAMPUZANO, Alfonso de (Ed.). Dimensiones jurídicas de la globalización. Madrid: Dykinson, 2007, p. 47. 204 KANT, Immanuel. À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 1989, p. 40-41. 205 Ibidem, p. 57. 206 KANT, Metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 162.

Tendências do constitucionalismo... 79

em relação à ideia da paz perpétua. Pois, se um destes Estados numa relação de influência física com os outros estivesse em estado da natureza, isso implicaria o estado de guerra, de que é justamente nosso propósito libertar-se207.

Essa possível “união” de todas as nações diz respeito a

certas leis universais para o possível comércio entre elas, Kant denomina direito cosmopolita. Frisando que, na concepção do filósofo, o direito cosmopolita estaria limitado a condições de hospitalidade universal208.

Habermas, ao comentar a ideia de Kant acerca de paz perpétua, sustenta que esta construção não seria apropriada para nossas experiências históricas. Isso porque, existe um problema do qual Kant não trata, que reside na problemática em garantir a permanência de uma associação de Estados Soberanos sem que haja um caráter próprio de uma instituição semelhante à uma Constituição (da ordem internacional)209. Essa ideia de paz perpétua começou a permear os textos internacionais em meados de 1940 somente, no período pós Segunda Guerra Mundial.

Kant jamais poderia prever um fenômeno como a globalização e seus efeitos, e sendo assim, Habermas aduz que se torna insustentável a ideia de associação de Estados com sua soberania intacta, nos dias atuais. Isso porque, Kant concebeu a associação cosmopolita como uma federação entre Estados e não entre cidadãos do mundo.210

Entretanto, deixando a filosofia de lado por hora, Duarte sustenta que a dialética entre soberania nacional e globalização deve ser o ponto de partida no estudo de um possível constitucionalismo global, uma vez que a problemática entre esses dois conceitos ilustra com precisão o dilema da verificado na ordem internacional: de um lado, o particular, que busca manter a sua própria estrutura interna, e de outro, o universal, que busca derrubar as fronteiras e consolidar uma verdadeira

207 IDEM. Trad. Artur Morão. A Paz Perpétua: um projecto filosófico. Covilhã: LusoSofia Press, 2008, p. 11. 208 IDEM, Metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 194. 209 HABERMAS, Jürgen. La inclusión del otro: estudios de Teoría Política. Trad. Juan Carlos Velasco Arroyo y Gerard Vilar Roca. Barcelona: Paidós, 1999, p. 150-151. 210 Ibidem, p. 163.

80 Sistema interamericano de direitos humanos...

“sociedade global”211. Assim, na opinião de Duarte, seria possível a formação de uma sociedade global. Isso porque, para ele,

[...] somente com a criação de um Estado supranacional seria possível encerrar o estado de nações, uma vez que, mediante a transferência da autoridade soberana dos Estados a um modelo de Estado mundial supranacional, estar-se-ia criando estruturas de controle e repreensão das ações dos Estados-nação212.

Duarte defende tal posicionamento com base nas

transformações que o Estado constitucional contemporâneo vem sofrendo, pois “têm sido hoje referenciado categoricamente diferentes concepções sobre o contexto em que se encontra o Estado e a busca de sua identidade”213. O autor se refere ao impacto do neoliberalismo, bem como as consequências da globalização sobre a instituição do Estado.

Nesse contexto, a política interna de cada Estado passa a ter menor importância diante das ações transnacionais. Assim,

[...] nas últimas décadas se desenvolveu um novo âmbito de ação política transnacional. Neste âmbito, atuam, por um lado, os Estados e, por outro, as novas uniões de Estados (UE), os organismos internacionais e as organizações que compõem a nova “sociedade civil global”: uma multidão de atores transnacionais [...]214.

Desse modo, como enfatiza Duarte, o que interessa é

verificar como acontece a interação entre os Estados e a miríade de tratados internacionais, acordos e organizações que foram criadas para gerenciar as áreas de atividade transnacional e os problemas globais215.

Duarte traz as organizações internacionais e os blocos econômicos como órgão com papéis importantes neste cenário:

211 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 99. 212 Ibidem, p. 99-100. 213 Ibidem, p. 107. 214 Ibidem. 215 Ibidem.

Tendências do constitucionalismo... 81

Com tudo isso, dentro deste contexto se encontram também os organismos quem confiam nos Estados e promovem sua democratização como as instâncias encarregadas de gerar uma sociedade internacional pacífica e que promova a cooperação justa. Em todos estes modelos, as exigências normativas de democratização se situam nos Estados e se desdenha a criação de instituições de governo mundial que estejam por cima deles (ou das uniões de Estados, como a União Europeia). As instituições propostas parecem as mais adequadas para fazer a efetiva cooperação mundial, mas obtém sua legitimidade a partir da presença de representantes dos Estados216.

Desse modo, Duarte afirma haver uma relativização do

conceito de soberania estatal, que foi iniciada sorrateiramente durante rodo o curso do século XX e agravada nas últimas décadas deste, tem se constituído por uma série de processos que não visam somente uma mera crise decorrente da limitação do poder estatal. Este processo busca remover determinadas prerrogativas que historicamente caracterizam o Estado moderno desde a sua gênese e atribuí-las a agentes que supostamente seriam impessoais ou indefinidos.217

Nesse contexto, Teixeira218 sustenta que, pelo fato de que os Estados não têm a capacidade de atuar direta e fisicamente no território, os fenômenos inerentes ao globalismo político e jurídico aparecem e criam uma série de estruturas pluriestratificadas destinadas a condicionar e envolver os Estados nacionais em políticas públicas globais, tratando de assuntos que incluem temas como a manutenção da paz mundial, desenvolvimento econômico, repreensão ao crime internacional, proteção do meio ambiente e a tutela dos direitos humanos219.

Com essas transformações, durante os séculos XIX e XX, foram se formando grandes grupos de integração supranacionais – os blocos econômicos. Dentro deste conceito, encontra-se a denominada “metassoberania” de Zigmunt

216 Ibidem, p. 114. 217 Ibidem, p. 131. 218 TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 138. 219 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 131.

82 Sistema interamericano de direitos humanos...

Bauman. Essa metassoberania significaria mais do que uma limitação da soberania clássica do Estado; ela leciona que algumas das prerrogativas próprias da soberania interna e externa do Estado foram transferidas para uma instância supranacional. Isso porque, agora, o Estado deveria se submeter às políticas públicas e econômicas determinadas pelo bloco, e suas alianças políticas teriam de estar condicionadas à “metassoberania” do bloco220.

Porém, não se deve esquecer que este novo desenho institucional inerente às relações internacionais na ordem global deve ficar sob o guarda-chuva protetor da legitimidade democrática. Assim, essa tarefa se desdobra em dois compromissos, conforme assevera Duarte:

Difícil tarefa que requer um duplo compromisso: a) o desenvolvimento de uma estrutura institucional supraestatal dotada de mecanismos adequados de representação em condições de paridade; b) a abertura do cenário supranacional a novos atores transnacionais, cuja participação nos processos de tomada de decisão pode refletir as demandas, iniciativas e inquietudes de uma sociedade civil transnacional em status nascendi221.

Por outro lado, visão positiva acerca da criação de uma

instituição global é trazida por Rousseau, um dos principais teóricos da “governança global”. Ele pensa que

[...] o positivo do novo sistema internacional é a presença de múltiplas esferas de poder e de controles que constituem um freio à acumulação e ao abuso de poder e que já estão operando. Por um lado, essas novas esferas de poder contribuem a neutralizar o poder tradicional dos Estados e sua pluralidade (pluriverso político) evitando a potencial concentração em mãos de um centro de poder mundial (o que se vislumbra como uma ameaça).222

220 BAUMANN, Zygmunt. Individualized society. Cambridge: Polity Press, 2001. 221 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 156. 222 Ibidem, p. 114-115.

Tendências do constitucionalismo... 83

Entretanto, Zolo223 afirma que para que houvesse um “Leviatã Constitucional”, três providências se fariam necessárias: 1) uma deslegitimação das entidades políticas existentes, essencialmente dos Estados e a consequente legitimação das atuais instituições internacionais em uma genuína expressão que correspondesse à “sociedade civil global”; 2) uma tendência à homogeneização cultural do planeta; e 3) uma atenuação dos conflitos e desigualdades.

Quanto à primeira premissa indicada por Zolo – a de deslegitimação do Estado, entende-se neste estudo que seria praticamente impossível, porque tudo o que se conhece e se tem atualmente tem como centro a figura do Estado. Portanto, seria impossível criar um Estado mundial, tendo como início a desconstituição dos Estados existentes, tendo em vista que, a primeiro, seria um retrocesso ao que se foi conquistado há anos, e a segundo, duvida-se que algum Estado vá concordar com esta ideia e com as consequências advindas dela.

Quanto ao ponto dois – a tendência de homogeinização cultural do planeta, tem-se que, atualmente, esta premissa seria de difícil realização. Isso porque, tendo-se como exemplo a Europa, que tem raízes históricas comuns, percebem-se diversas culturas, mais fortemente evidenciada pela separação entre leste e oeste europeu. Ao se comparar a cultura de países como Portugal e Espanha, por exemplo, com a cultura da Rússia ou Ucrânia, quase nada se tem em comum. O que pretende esclarecer com o referido exemplo é que, mesmo entre Estados que se encontram na mesma região, a cultura é significantemente distinta, quão difícil será homogeneizar a cultura do planeta?

Por fim, a terceira premissa estabelecida por Zolo – a atenuação de conflitos e das desigualdades, tem-se que, a própria globalização é geradora de conflitos, assim como a divisão que gera o binômio “países desenvolvidos” versus “países subdesenvolvidos”. O que se poderia fazer é fazer é diminuir esses conflitos, mas, isto só seria possível com muito tempo e planejamento. Nesse contexto, salienta-se um ponto negativo:

223 ZOLO, Danilo. Cosmopólis – Perspectiva y riesgos de um gobierno mundial. Barcelona: Paidós, 2000, p. 181.

84 Sistema interamericano de direitos humanos...

A paulatina instauração de uma ordem global, desigual e injusta que está minando as propostas de justiça social, está levando a teoria jurídica internacionalista mais progressista a uma “releitura constituinte” que baseia o direito internacional, mais que no individualismo e no etnocentrismo, na planetarização das necessidades e exigências de indivíduos e grupos, na busca material de justiça e de solidariedade e na instauração de uma relação circular entre o Estado e a comunidade internacional224.

Canotilho aponta qual a principal crítica ao pensamento

de se formar uma sociedade global, ao afirmar que esse tipo de legislação não leva em consideração as diferenças estruturais entre uma sociedade/comunidade estatal e uma sociedade/comunidade internacional e, sobretudo, a nível da organização coletiva, a sua ambiguidade quanto às tomadas de decisão, à organização de interesses e à formação democrática da vontade são questões problemáticas relevantes a se tomar nota225.

Continua a explicar o constitucionalista português que, a ideia de Constituição está geralmente associada à ideia de Estado. Dessa forma, em não existindo um “Estado Mundial”, parece ser uma proposta mais aceitável aquela que alguns autores criaram salientando as potencialidades do conceito de constituição global sem Estado mundial226.

No entanto, ao se falar em constituição sem Estado, tem-se que alguém deverá substituir o Estado no papel que ele desempenha. Mas, a questão que se levanta é quem substituiria o Estado. Alguns dizem que os vários agentes internacionais fariam as vezes; outros afirmam que seriam as organizações internacionais, as uniões internacionais de trabalhadores ou até mesmo as organizações não governamentais; ainda, aduzem que o indivíduo ganharia status de sujeito internacional, aparecendo como titular de direitos fundamentais e humanos da constituição mundial.

224 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 183. 225 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 287. 226 Ibidem, p. 288.

Tendências do constitucionalismo... 85

Nesse contexto entra a global governance227, que, teoricamente, estaria mais focada em se preocupar com a eficácia e não com a legitimação deste governo. Além disso, nessa forma de governança, os agentes de governo global não seriam democraticamente legitimados228.

O que se pergunta é novamente o questionamento de Ferrajoli, no que se refere à democracia neste contexto de estrutura institucional supraestatal, se existe, como fica o constitucionalismo? Estas são indagações que não se podem responder ainda de forma precisa e certeira.

Conclui Duarte, embasado no pensamento de Julios Campuzano que

[...] a sobrevivência do constitucionalismo, enquanto compromisso axiológico substantivo diante das investidas no capitalismo global, reclama empenhos supranacionais. A via do cosmopolitismo constitucional não pode manifestar-se apenas na redução da pluralidade em uma homogeneidade artificial e forçada. Não se trata, portanto, de suprimir os complexos ordenamentos jurídicos estatais, mas sim de articular mecanismos válidos de interpretação e interdependência. Diante da velha e ultrapassada imagem da Constituição como ápice de um ordenamento jurídico autárquico e autossuficiente, reivindica-se a Constituição como elemento articulador de complexas redes de normas interdependentes, capaz de evitar que as exigências fáticas dos mutantes fluxos normativos transnacionais vulnerem as exigências normativas dos valores constitucionais. Um modelo de Constituição baseado na interdependência, e não sobre a autarquia do sistema jurídico, e que recupere os espaços públicos para a cidadania mediante reformas institucionais que façam efetiva a vigência do princípio democrático229. [Grifo nosso]

Estes autores concluem que, o mais sensato seria

articular mecanismos válidos de interpretação e

227 Tradução livre do termo: governança global. 228 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 293. 229 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 157.

86 Sistema interamericano de direitos humanos...

interdependência, em contrapartida à criação de um constitucionalismo global, o que parece inviável no momento. O que resolveria o problema, na opinião deles seria utilizar das constituições como mecanismos articuladores de redes complexas de normas interdependentes.

Certamente, existem diversas opiniões acerca do tema de governança global, entretanto, o que se percebe é que, no âmbito dos sistemas sociais globais, se vislumbra o incrementalismo de normas constitucionais. Ou seja, o mais comum é que se utilize o ordenamento interno em conjunto com as normas internacionais para se vislumbrar a solução para o caso concreto.

Nesse ponto, chegamos ao segundo – e principal – tema tratado nesta pesquisa: a interconstitucionalidade de Canotilho. 2.3 INTERCONSTITUCIONALIDADE E TRANSCONSTITU-CIONALISMO

Destarte, precisa-se compreender do que se trata o

fenômeno da interconstitucionalidade proposto por Canotilho, para que se possa, posteriormente, verificar sua ocorrência.

A proposta trazida por Canotilho refere-se a um processo de construção do constitucionalismo europeu que deve ser estudado a partir de uma teoria de interconstitucionalidade. Esta teoria, a princípio, estuda as relações interconstitucionais de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político.230

O constitucionalista português explica que o fenômeno da interconstitucionalidade já teve precedentes tanto na ordem jurídica medieval quanto na articulação da Constituição Federal em consonância com as constituições estatais.231

Na época medieval podia-se observar a convivência de diversas ordens jurídicas ao mesmo tempo em um só território ou região. Da mesma maneira, quando se observa a inter-relação entre as constituições estatais – de um Estado federativo

230 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, pp. 265-266. 231 Ibidem, p. 266.

Tendências do constitucionalismo... 87

– em detrimento da Constituição Federal, há um entrelaçamento, bem como uma justaposição entre ordens jurídicas – neste caso, de ordem constitucional sobre ordem infraconstitucional.

Nestes Estados compostos, como é o caso do Brasil, está sempre presente a articulação dos seguintes princípios: o princípio da sobreposição de ordens jurídicas, o princípio da autonomia das unidades integrantes e o princípio da participação no poder central.232

A sobreposição de ordens jurídicas diz respeito à sobreposição da ordem constitucional sobre a ordem infra-constitucional. A autonomia das unidades integrantes é vislumbrada uma vez que os Estados podem elaborar suas constituições estatais. E o princípio da participação do poder central se traduz em duas premissas: a primeira delas diz respeito à delegação de poder do poder central para os periféricos – no caso os Estados. E, a segunda é a de que as constituições estatais devem obedecer ao princípio da supremacia da constituição – ou seja, não se pode ter norma na constituição estatal que contradiga a constituição federal.

Nesse contexto, pode-se afirmar inicialmente, que o interconstitucionalidade não é um fenômeno que surgiu no Século XXI. Pelo contrário, teve suas origens nos ordenamentos medievais. No entanto, o interconstitucionalidade que se trata neste estudo é aquele que se percebe nos moldes atuais de concorrência, convergência e conflitos entre diversos poderes constituintes convivendo no mesmo espaço político.

A teoria da interconstitucionalidade enfrenta, dentre outros problemas, o da articulação entre constituições e da afirmação de poderes constituintes com fontes e legitimidades diversas233.

Para melhor entender este fenômeno, tem-se que estudar seus elementos básicos. O primeiro deles é a autodescrição, que significa dizer que “autodescritivamente, os textos constitucionais nacionais conservam a memória e a identidade política e, quando inseridos numa rede interconstitucional, assumem-se sempre como auto-referência”234.

232 Ibidem, pp. 266-267. 233 Ibidem, pp. 267-268. 234 Ibidem, p. 269.

88 Sistema interamericano de direitos humanos...

Em outras palavras, as constituições dos Estados não desaparecerão, mas, sofrerão mudanças ao serem inseridas no contexto da rede interconstitucional. Isso porque, o Estado deve “obedecer” às normativas internacionais, porém, sem perder sua memória e identidade política.

Este caráter autodescritivo faz com que haja a manutenção do valor e da função das constituições estaduais. Canotilho explica esse processo através de uma metáfora, vez que afirma que as constituições dos Estados desceram do “castelo” para a “rede”, mas não perderam as funções identificadoras pelo fato de, agora, estarem interligadas umas com as outras235.

Outra característica da interconstitucionalidade é o texto interorganizativo, o que implica na necessidade autodescritiva da organização superior, no caso europeu, da organização da União Europeia236.

Em contrapartida ao interconstitucionalidade, Marcelo Neves, no contexto da América Latina, teoriza o transconstitucionalismo, que é caracterizado como uma relação transversal permanente entre ordens jurídicas em torno de problemas constitucionais comuns, como é o caso das questões que envolvem os direitos fundamentais e direitos humanos, por exemplo237.

Para isso, o autor traz a ideia de transconstitucionalismo, que não se trata de constitucionalismo internacional, transnacional, supranacional, estatal ou local. O conceito aponta exatamente para o desenvolvimento de problemas jurídicos que perpassam os diversos tipos de ordens jurídicas.

Paulo Rangel, explica que a adoção do conceito “transconstitucionalismo” – e não transconstitucionalidade – por Marcelo Neves é intencional, pois evoca o “constitucionalismo” enquanto movimento político e ideológico chamado “movimento constitucional” do século XVIII. Trata-se, pois, de uma remissão para um conceito “material” de constituição, de uma constituição com um conteúdo certo e determinado, que reproduz, com uma linguagem pós-moderna, os direitos fundamentais e a limitação

235 Ibidem, p. 269. 236 Ibidem, p. 270. 237 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. XXI.

Tendências do constitucionalismo... 89

do poder previsto no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.238

Rangel sugere o termo “transconstitucionalidade”, pois afirma ser paradoxal “restringir o conceito de constituição no quadro de uma teoria que justamente procura “tratar” e “enquadrar” o fenômeno do pluralismo constitucional, da “articulação das constituições” no espaço global”239. Ademais, afirma que a ideia de transconstitucionalidade remete a “narrativa de enquadramento” dos novos problemas que se oferecem ao direito constitucional e à teoria da constituição.

Apesar de se concordar com Rangel de que o termo “transconstitucionalidade” transmite uma neutralidade narrativa, prestigiar-se-á o constitucionalista brasileiro e autor da teoria, resguardando, neste trabalho, o termo “transconstitucionalismo”.

O viés transconstitucionalista de Neves importa na relação de complementaridade entre as inúmeras ordens jurídicas existentes por meio da relação entre identidade e alteridade, no momento em que procuram reconstruir sua identidade por meio do entrelaçamento transconstitucional e rearticular a partir da alteridade.

Assim, Neves divide sua teoria de transconstitucionalismo em duas partes: a primeira refere-se ao transconstitucionalismo entre ordens jurídicas, e a segunda trata do transconstitucionalismo em um sistema jurídico mundial de níveis múltiplos.

O transconstitucionalismo entre ordens jurídicas consiste em delinear os tipos e formas de relações entre ordens jurídicas diversas. Explica Neves que, “dentro de um mesmo sistema funcional da sociedade mundial moderna, o direito, proliferam ordens jurídicas diferenciadas, subornadas ao mesmo código binário, isto é, “lícito/ilícito”240”.

Neves explica que “essa multiplicidade de ordens diferenciadas no interior do sistema jurídico não implica isolamento recíproco. As relações input/output e de

238 RANGEL, Paulo. Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade. In: COSTA, Rui Moura Ramos Carlos et al. 35.º Aniversário da Constituição de 1976. Vol. I. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2012, p. 152. 239 Ibidem, p. 153. 240 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 115.

90 Sistema interamericano de direitos humanos...

interpenetração entre elas não são algo novo”241. Para ilustrar, cita o caso do Tratado de Westfália, em que houve, de forma inédita, a incorporação de leis internacionais no direito interno dos países.

Nesse sentido, Neves fala em “conversação” ou “diálogo” entre Cortes, que podem ser vislumbrados em vários níveis, como por exemplo, o diálogo entre o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (supranacional) e os Tribunais dos Estados-membros.

Neves aponta que a peculiaridade do transconstitucionalismo é o fato do autor não abordar somente o entrelaçamento jurídico, mas também o fato de haver um entrelaçamento no plano reflexivo de suas estruturas normativas, não havendo que se falar em hierarquia entre elas. Além disso, afirma que o fenômeno faz emergir uma “fertilização constitucional cruzada”, isto é, as Cortes passam a citar-se, não como precedentes, mas como autoridade persuasiva, promovendo um diálogo constitucional de aprendizagem recíproco242.

Portanto, o que caracteriza o transconstitucionalismo entre ordens jurídicas defendido por Neves, é “[...] ser um constitucionalismo relativo a (soluções) e problemas jurídico-constitucionais que se apresentam simultaneamente a diversas ordens”243.

Então, quando se tratar de questões que envolvem direitos fundamentais ou de limitação e controle de um poder ou ainda de direitos humanos que se entrecruzam entre ordens jurídicas diversas, impõe-se a construção das chamadas pontes de transição entre as estruturas reflexivas das respectivas ordens244.

Já o transconstitucionalismo multiangular diz respeito a entrelaçamentos transconstitucionais que podem apresentar-se simultaneamente entre ordens estatais, supranacionais, internacionais, transnacionais e locais, sempre que um problema constitucional jurídico for relevante em algum caso245.

241 Ibidem, p. 116. 242 Ibidem, p. 118-119. 243 Ibidem, p. 129. 244 Ibidem, p. 129. 245 Ibidem, p. 238.

Tendências do constitucionalismo... 91

Neste contexto, Neves cita como exemplo o caso da proibição, por parte da União Europeia, da importação de carnes com tratamento hormonal nos Estados Unidos. Neste caso, a validade da proibição foi alegada válida pela União Europeia, mormente por causa de normas supranacionais de proteção do direito fundamental à saúde, ditadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC). No entanto, os EUA recorreram junto à OMC e tiveram êxito parcial e a UE foi condenada a reparar parte dos danos causados. No caso em comento, Neves afirma que

Uma afirmação da irracionalidade da decisão poderia ser apontada a partir de um modelo orientado de forma mais radical no direito à saúde. Mas essa simples afirmação não é suficiente. Fundamental é o envolvimento na rede argumentativa multiangular entre ordens jurídicas, na qual o risco e a incerteza da desilusão são inerentes à complexidade do sistema mundial de níveis múltiplos246.

O que se percebe ao interpretar o exemplo de Neves é

que o transconstitucionalismo estudado e teorizado por ele se refere ao entrelaçamento de ordenamentos e normativas de órgãos internacionais, órgãos transnacionais, versus tribunais internos dos Estados, dentre outros. Não se vislumbra hierarquia e uma ordem não deve prevalecer sobre a outra. O que se espera é um diálogo, através das chamadas pontes de transição, entre as ordens constitucionais conflitantes, para que ambas troquem conhecimentos e citem-se umas às outras como forma de precedentes.

Assim, tendo comparado as principais características da interconstitucionalidade, bem como do transconstitucionalismo, parece correto afirmar que, o fenômeno da interconstitucionalidade se mostra como uma alternativa mais adequada, em um cenário em que “[...] as decisões dos Estados têm cada vez mais efeitos extraterritoriais, em virtude das interdependências globais. Consequentemente, acabam por vincular, de forma crescente, pessoas diferentes daquelas que participaram na recolha dos titulares da decisão”247.

246 Ibidem, pp. 239-240. 247 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 291.

92 Sistema interamericano de direitos humanos...

A interconstitucionalidade não envolve nem induz a necessidade de transcender a constituição, ao contrário do que ocorre no transconstitucionalismo, que sugere a ideia de uma superação.

A interconstitucionalidade – ao contrário do transconstitucionalismo de vezo luhmanniano – não sai soa cânones da teoria da constituição e, por isso, não tem de abandonar a centralidade de conceito de constituição para, em alternativa. Se concentrar numa dinâmica da “vida constitucional” planetária. Uma teoria da interconstitucionalidade tem, isso sim, de forçar uma renovação do conceito de constituição, de o desligar da referência exclusiva ao modo político estadual e de o abrir ao “mundo-da-vida” pós-vestefaliano. Mas isso será difícil, muito difícil, se nos mantivermos, de corpo e alma, com um conceito liberal ou pós-liberal de constituição.248

A interconstitucionalidade se mostra como uma

alternativa mais adequada, isso porque, a ideia central deste estudo não é de criação de um estado supranacional global, mormente por acreditar que não há elementos que constatem a possibilidade dessa hipótese se fazer real no momento. Entretanto, o que se apresenta viável é a apreciação da interconstitucionalidade, fenômeno visível nos ordenamentos jurídicos, em razão do entrelaçamento de ordenamentos por causa da globalização e do fortalecimento do direito internacional.

Segundo Paulo Rangel, percebe-se que a constituição tem hoje, como referência a comunidade política e não, como parece pressupor a corrente transconstitucionalista, o Estado. “E, por isso, a constituição já não está presa ao monolitismo territorial e populacional próprio do Estado moderno; pelo contrário, está genericamente aberta ao pulsar da sociedade”.249

Corroborando com este pensamento, preceitua Canotilho que

248 RANGEL, Paulo. Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade. In: COSTA, Rui Moura Ramos Carlos et al. 35.º Aniversário da Constituição de 1976. Vol. I. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2012, p. 156. 249 Ibidem, p. 158.

Tendências do constitucionalismo... 93

[...] claramente se compreendeu que uma sociedade funcionalmente diferenciada é também uma sociedade de organização e das organizações. Ora, as organizações atuam como actores corporativos. [...] Neste contexto, mantêm-se as pretensões de direção do Estado. Mas, com uma grande diferença: em vez do velho “estado heroico”, hierarquicamente intervencionista, deve erguer-se o “Estado pós-heróico” – o Estado supervisor – que, através de uma direção contextualizada (ou seja, através de uma autovinculação), proporciona, mas não determina, as convenções-quadro para a prossecução do bem comum250.

O que o autor português quis dizer é que o Estado deve

mudar de figura nessa sociedade internacional, se levantando simplesmente como o supervisor e determinando mormente as normas padrões para sua sociedade.

No entanto, ao se tratar da teoria da interconstitucionalidade, tem-se que a mesma não se resume a um problema de interorganizatividade entre os Estados. Ela é também uma teoria de interculturalidade constitucional251.

Sabe-se que a questão da diversidade cultural começou a ser tema de interesse dos cientistas sociais a partir do processo de descolonização ocorrido na África, América Latina e Ásia. No relevo atual, passa a ser tema interessante também para os estudiosos do direito constitucional, vez que, a partir de uma interculturalidade é possível a convivência de diversas culturas constitucionais no mesmo espaço.

O próprio artigo 98 da Constituição boliviana de 2009 define interculturalidade, ao afirmar que a diversidade cultural constitui a base essencial do Estado Plurinacional Comunitário e que a

interculturalidade é o instrumento para a coesão e a convivência harmônica e equilibrada entre todos os povos e nações. Assim, a interculturalidade terá lugar com respeito às diferenças e na igualdade de condições.252

250 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 147-148. 251 Ibidem, p. 271. 252 “Artículo 98. I. La diversidad cultural constituye la base esencial del Estado Plurinacional Comunitario. La interculturalidad es el instrumento para la cohesión y la convivencia armónica y equilibrada entre todos los pueblos y naciones. La

94 Sistema interamericano de direitos humanos...

A interculturalidade jurídica pode ser, assim, conceituada como a convivência democrática de diversas ordens constitucionais, desde que permaneçam suas características básicas e sua essência.

Neste ponto, é necessário saber a qual cultura estar-se-á referindo neste estudo. Ao se falar em cultura transportadora de dimensões interculturais, o melhor conceito de cultura é o defendido por Peter Häberle que vê a cultura em três premissas principais:

(1) cultura como mediação daquilo que “foi” num determinado momento (aspecto tradicional); (2) como desenvolvimento do que foi em determinado momento, promovendo a transformação social (aspecto ou dimensão inovadora); (3) cultura como “superconceito” de várias manifestações culturais de um determinado grupo humano (dimensão pluralista)253.

Canclini também conceitua cultura, e a define como “o

conjunto de processos através dos quais grupos expressam imaginariamente o social e estruturam as relações com outros grupos, marcando suas diferenças254”.

É nesse sentido que se referirá à cultura neste estudo, ou seja, cultura como aquilo que foi em um determinado momento – dogmas tradicionalmente criados – ainda relacionado ao aspecto social, que culmina em um superconceito de cultura, que são as várias manifestações da cultura nos diferentes grupos humanos.

Nesse contexto, o fenômeno da globalização tem como efeito de evidenciar a diversidade cultural do mundo, e consequentemente, apontar para a necessidade de diálogo entre estas diferentes civilizações, o que nos leva ao tema

interculturalidad tendrá lugar con respeto a las diferencias y en igualdad de condiciones. II. El Estado asumirá como fortaleza la existencia de culturas indígena originario campesinas, depositarias de saberes, conocimientos, valores, espiritualidades y cosmovisiones. III. Será responsabilidad fundamental del Estado preservar, desarrollar, proteger y difundir las culturas existentes en el país.” In: BOLIVIA. Constitución de 2009. Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/constitutions/bolivia/bolivia09.html>. Acesso em: 20.jun2014. 253 HÄBERLE, Peter. Verfassungslehre als Kulturwissenschaft. 2ª ed. 1996, p. 1106. 254 CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguales y desconectados: mapas de la interculturalidade. Barcelona: Gedisa, 2004.

Tendências do constitucionalismo... 95

principal deste estudo – o interconstitucionalidade, que nada mais é do que o diálogo e a convivência entre ordens jurídicas constitucionais concomitantes.

Na concepção de Peter Haberle, a teoria da constituição como cultura é também um modo teorético de combater posições como o formalismo, estatismo, decisionismo e o positivismo255.

Dentro do aspecto da cultura, ao se interligar com a teoria da interconstitucionalidade, surge a interculturalidade comunitária, que nada mais é do que essa convivência de culturas em uma comunidade ou região. No entanto, nas palavras de Canotilho, é possível observar uma dificuldade: “este comunitarismo, mesmo quando considerado moderno, democrático, constitucional, carece de “abertura” para outras culturas constitucionais”256.

Canotilho afirma que a interconstitucionalidade pressupõe uma interculturalidade constitucional, que, por sua vez, significa a existência de “redes comunitárias” em que, online, se observam e cruzam em forma de comunitarismo conservador – com os indivíduos, a sua forma de vida, os seus comportamentos, a sua moral, as suas compreensões do bem comum, as suas formas de integração com o indivíduo fortemente enraizado na comunidade – e formas de comunitarismo liberal aberto a formas de vida plurais. Porém, essa rede de interconstitucionalidade enfrenta um problema deveras complexo, que se traduz na articulação de paradigmas de diversos de poderes constituintes257.

A interconstitucionalidade sugere ainda intersemioticidade258, no sentido de que este fenômeno se preocupa também com a investigação e descoberta de um conjunto de regras respeitantes à produção e interpretação dos textos constitucionais dos Estados e dos respectivos discursos e práticas sociais com elas relacionados. Assim, se pode afirmar,

255 HÄBERLE, Peter. Verfassungslehre als Kulturwissenschaft. 2ª ed. 1996. 256 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 273. 257 Ibidem, pp. 274-275. 258 A “semiótica” é a ciência que tem por objeto o exame de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e de sentido.

96 Sistema interamericano de direitos humanos...

que as Constituições nacionais são dimensões relevantes de uma hermenêutica jurídica europeia259.

O que se percebe com esta observação de Canotilho é que a interconstitucionalidade permite a manutenção da identidade dos Estados, e que, suas constituições não agirão mais de forma isolada, mas sim, farão parte de um sistema de hermenêutica jurídica europeia.

Carlos Maximiliano explica que hermenêutica nada mais é do que interpretação. Nesse sentido, preocupa-se a Hermenêutica, sobretudo, com o resultado provável de cada interpretação260. Assim, falar que as “Constituições nacionais são dimensões relevantes de uma hermenêutica jurídica europeia” significa que estas constituições servirão como base de interpretação nesse sistema jurídico europeu.

Nesse contexto, assevera Canotilho, que a interconstitucionalidade e a interculturalidade abrem espaço para o pluralismo de intérpretes, aberto e racionalmente crítico261.

Portanto, diante das duas hipóteses tratadas neste estudo, conclui-se que qualquer juízo de valor sobre o futuro corre o risco de se tratar mormente de uma profecia. O que se buscou neste estudo foi a abordagem cientifica do novo espírito do constitucionalismo. Assim, o interconstitucionalidade pareceu uma alternativa mais viável do que o constitucionalismo global e homogêneo na perspectiva atual. 2.3.1 A ideia da Europa unida

Antes de tratar da dinâmica da interconstitucionalidade

que se percebe na Europa, deve-se, preliminarmente, traçar algumas considerações acerca do surgimento da União Europeia e entender como este bloco de união econômica, política e jurídica funciona.

259 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 277. 260 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 261 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 279.

Tendências do constitucionalismo... 97

A vontade de dotar o continente europeu de estruturas de cooperação capazes de garantir a seguridade coletiva e a prosperidade econômica é anterior às propostas das organizações fundadas após 1945. A ideia da Europa é muita mais antiga e pode-se encontrar muitos de seus traços nos séculos precedentes262.

Diversos projetos foram desenvolvidos a fim de estabelecer uma paz perpétua na Europa foram desenvolvidos, como por exemplo, o movimento União Pan-Europeia, liderado pelo Conde Condenhove-Kalergi263, que o propôs em setembro de 1929, com o intuito de criar um laço federal entre os Estados europeus, entretanto, sem êxito264.

Nesse sentido, somente em 1946 a ideia da União Europeia foi relançada, desta vez por Wiston Churchill265, que propunha a criação de uma estrutura regional denominada “Estados Unidos da Europa”. No entanto, somente em 1947, no Congresso da União Europeia dos Federalistas, se vislumbrou a possibilidade de se laçar uma organização europeia supranacional aberta a todos os povos266.

Sob a organização do comitê de coordenação internacional dos movimentos para a unificação da Europa, reúne-se em Haia, em maio de 1948, o Congresso Europeu. Presidido por Winston Churchill e na presença de 800 delegados os participantes recomendam a criação de uma Assembleia deliberativa europeia e de um Conselho Europeu especial

262 RIBEIRO, Daniela Menengoti Gonçalves. Formação da Comunidade Europeia: cristianismo e democracia na Declaração de Robert Schuman. In:Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 3074. 263 Richard Nikolaus Coudenhove-Kalergi é considerado um dos precursores e idealizadores da moderna União Europeia. Sua pessoa é glorificada em inúmeras homenagens aos mais diferentes líderes europeus. Todavia, seus escritos nos remetem a um calabouço racial. 264 RIBEIRO, Daniela Menengoti Gonçalves. Formação da Comunidade Europeia: cristianismo e democracia na Declaração de Robert Schuman. In:Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 3074. 265 Winston Churchill (1874-1965) foi um estadista britânico. Foi Ministro da Guerra, Ministro da Aeronáutica e Primeiro-Ministro da Inglaterra. 266 RIBEIRO, Daniela Menengoti Gonçalves. Formação da Comunidade Europeia: cristianismo e democracia na Declaração de Robert Schuman. In:Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 3074.

98 Sistema interamericano de direitos humanos...

encarregado de preparar a integração econômica e política dos países europeus. Preconizaram igualmente a adoção de uma Carta dos Direitos do Homem e a criação de um Tribunal de Justiça com vista a assegurar a sua aplicação267.

Depois da Segunda Guerra Mundial, finalmente estavam

presentes as condições para se realizar as ideias de unidade. Assim, a União Europeia foi criada em meio a este sentimento de paz e cooperação e objetivava pôr fim às guerras entre países vizinhos, mormente porque, vários dirigentes europeus se convenceram de que a única forma de garantir uma paz duradoura entre os seus países era efetivar essa união, simultaneamente a nível econômico e político.

O início efetivo dessa união se deu em 1950, quando o Plano Schuman objetivou e implementou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Essa comunidade começou então, a unir econômica e politicamente os países europeus, com o objetivo de assegurar uma paz duradoura. Os seis países fundadores à época eram a Alemanha, a Bélgica, a França, a Itália, o Luxemburgo e os Países Baixos.

Nesse contexto,

[...] o poder decisional sobre as indústrias do carvão e do aço nestes países foi colocado sob uma autoridade comum, um órgão independente e supranacional denominado “Alta Autoridade”, presidido, na oportunidade, por Jean Monnet.268

A partir desse acontecimento, a Europa foi se

consolidando, sofrendo grandes influências com a queda do Muro de Berlim em 1989, que culminou na unificação das duas Alemanhas, em 1990, bem como a implosão do império soviétivo, em 1991, que dividiu a antiga União soviética em diversos Estados distintos.

As últimas décadas evidenciaram que a União Europeia passou de uma cooperação intergovernamental a um sistema comunitário integrado e foi adotando, vagarosamente, um processo de adesões que ampliou a comunidade como ingresso de novos Estados Membros269.

267 Ibidem, pp. 3074-3075. 268 Ibidem, p. 3076. 269 Ibidem, pp. 3076-3077.

Tendências do constitucionalismo... 99

Atualmente, a União Europeia é uma parceria econômica e política com características únicas, constituída por 28 países europeus270, que, em conjunto, abarcam grande parte do continente europeu. 2.3.2 A Interconstitucionalidade da Europa

A União Europeia é uma Organização internacional sui

generis. Isso porque, não se trata de uma federação como os Estados Unidos da América ou o Brasil, porque os seus Estados-Membros continuam sendo nações soberanas e independentes. Não se trata também de uma mera organização intergovernamental como a Organização das Nações Unidas – ONU, já que os Estados-Membros congregam efetivamente as suas soberanias em algumas áreas. Consequentemente, isto faz com que estes Estados adquiram muito mais força e influência em conjunto do que poderiam obter isoladamente. Eles congregam as suas soberanias tomando decisões comuns através de instituições comuns como o Parlamento Europeu, que é eleito pelos cidadãos da União Europeia, e o Conselho Europeu e o Conselho, que representam ambos os governos nacionais. As decisões se dão por meio de propostas da Comissão Europeia, que, por sua vez, representam os interesses da União no seu conjunto.

Nesse mesmo contexto, a UE possui uma moeda única – o euro, uma união econômica e monetária e pode ser considerada a maior união multinacional e multilinguística do mundo271.

270 Estados membros da UE e ano de adesão: Alemanha (1958); Áustria (1995); Bélgica (1958); Bulgária (2007); Chipre (2004); Croácia (2013); Dinamarca (1973); Eslováquia (2004); Eslovénia (2004); Espanha (1986); Estónia (2004); Finlândia (1995); França (1958); Grécia (1981); Hungria (2004); Irlanda (1973); Itália (1958); Letónia (2004); Lituânia (2004); Luxemburgo (1958); Malta (2004); Países Baixos (1958); Polónia (2004); Portugal (1986); Reino Unido (1973); República Checa (2004); Roménia (2007); Suécia (1995). Países candidatos: Albânia; Antiga República jugoslava da Macedónia; Montenegro; Sérvia; Turquia. Potenciais países candidatos: Bósnia e Herzegovina; Kosovo. In: UNIÃO EUROPEIA. Países. Disponível em: <http://europa.eu/about-eu/countries/index_pt.htm>. Acesso em: 09.jun.2015. 271 RIBEIRO, Daniela Menengoti Gonçalves. Formação da Comunidade Europeia: cristianismo e democracia na Declaração de Robert Schuman. In:Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 3077.

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Um dos objetivos principais da UE é promover os direitos humanos, tanto no âmbito da União Europeia quanto no resto do mundo. Dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de direito e respeito pelos direitos humanos são alguns dos valores fundamentais da UE. Insta salientar ainda que, desde a assinatura do Tratado de Lisboa, em 2009, todos esses direitos foram consagrados em um único documento, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia272. Nesse contexto, as instituições europeias passaram a ter a obrigação legal de os respeitar, assim como os Estados-Membros, quando aplicam a legislação europeia273.

Para o fim de implantar este objetivo bem como os demais, e padronizar o sistema jurídico da União Europeia, foi

272 A Carta dos Direitos Fundamentais compreende um preâmbulo e 54 artigos repartidos em sete capítulos: Capítulo I: da dignidade (dignidade do ser humano, direito à vida, direito à integridade do ser humano, proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes, proibição da escravidão e do trabalho forçado); Capítulo II: liberdades (direito à liberdade e à segurança, respeito pela vida privada e familiar, proteção de dados pessoais, direito de contrair casamento e de constituir família, liberdade de pensamento, de consciência e de religião, liberdade de expressão e de informação, liberdade de reunião e de associação, liberdade das artes e das ciências, direito à educação, liberdade profissional e direito de trabalhar, liberdade de empresa, direito de propriedade, direito de asilo, proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição); Capítulo III: igualdade (igualdade perante a lei, não discriminação, diversidade cultural, religiosa e linguística, igualdade entre homens e mulheres, direitos das crianças, direitos das pessoas idosas, integração das pessoas com deficiência); Capítulo IV: solidariedade (direito à informação e à consulta dos trabalhadores na empresa, direito de negociação e de ação coletiva, direito de acesso aos serviços de emprego, proteção em caso de despedimento sem justa causa, condições de trabalho justas e equitativas, proibição do trabalho infantil e proteção dos jovens no trabalho, vida familiar e vida profissional, segurança social e assistência social, proteção da saúde, acesso a serviços de interesse económico geral, proteção do ambiente, defesa dos consumidores); Capítulo V: cidadania (direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu e nas eleições municipais, direito a uma boa administração, direito de acesso aos documentos, Provedor de Justiça Europeu, direito de petição, liberdade de circulação e de permanência, proteção diplomática e consular); Capítulo VI: justiça (direito à ação e a um tribunal imparcial, presunção de inocência e direitos de defesa, princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas, direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito); Capítulo VII. In: PARLAMENTO EUROPEU. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf>. Acesso dia: 21.jun.2015. 273 UNIÃO EUROPEIA. Informações de base sobre a União Europeia. Disponível em: <http://europa.eu/about-eu/index_pt.htm>. Acesso em: 09.jun.2015.

Tendências do constitucionalismo... 101

criado, no ano de 1952, o Tribunal de Justiça da União Europeia, que tinha como missão principal garantir o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados nos ordenamentos de todos os Estados-membros274.

No cumprimento desta missão, o Tribunal de Justiça da União Europeia desempenha algumas funções específicas, dentre elas fiscalizar a legalidade dos atos das instituições da União Europeia; assegurar o respeito, por parte dos Estados-Membros, das obrigações decorrentes dos Tratados; e, interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais275.

O Tribunal de Justiça da União Europeia, com sede no Luxemburgo, é composto por três jurisdições: o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral (criado em 1988) e o Tribunal da Função Pública (criado em 2004). Desde que foram criadas, as três jurisdições proferiram cerca de 28.000 acórdãos276.

Importante salientar esta última função – interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais, por ser uma das funções mais relevantes do TJUE. Isso porque, segundo Alessandra Silveira, os Estados-membros devem aplicar seus ordenamentos jurídicos constitucionais de forma congruente e em consonância com a legislação e os Tratados da União Europeia277, em especial com o disposto na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Nesse sentido, sustenta Gilberto Bercovici que, [...] a consolidação dos tribunais constitucionais da Europa e a tendência crescente à ‘normatização’ da Constituição favorecem, ainda uma ‘mudança de paradigmas’ na Teoria da Constituição, que passou a enfatizar muito mais a hermenêutica constitucional e o papel dos princípios constitucionais278.

274 UNIÃO EUROPEIA. Apresentação geral. Disponível em: <http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/>. Acesso em: 09.jun.2015. 275 Ibidem. 276 Ibidem. 277 SILVEIRA, Alessandra. Da interconstitucionalidade na União Europeia (ou do esbatimento de fronteiras entre ordens jurídicas)”, In: Scientia Iuridica, tomo LVI, n.º 326, maio-agosto 2011. 278 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 112.

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É evidente que, a partir da análise das premissas abordadas por Silveira e Bercovici que, os tribunais dos Estados-membros da UE estão interligados e formam uma rede de hermenêutica constitucional, que deve estar em conformidade com a legislação da União.

A Europa criou um sistema no qual os próprios órgãos dos Estados funcionam para aplicar o direito da União. Nesse sentido, Canotilho explica como funciona este sistema único e inovador, denominado por ele como interconstitucionalidade:

A especificidade relativa da associação europeia de estados soberanos reconduz-se aos seguintes tópicos: (i) existência de uma rede de constituições de estados soberanos; (ii) turbulência produzida na organização constitucional dos

estados soberanos pelas organizações políticas supranacionais; (iii) recombinação das dimensões constitucionais clássicas através de sistemas organizativos de natureza superior; (iv) articulação da coerência constitucional estatal com a diversidade de constituições inseridas na rede interconstitucional; (v) criação de esquemas jurídico-políticos caracterizados por um grau suficiente de confiança condicionada entre as várias constituições imbricadas na rede

e entre essas constituições e a constituição revelada pela organização política de grandeza superior279.

Ao analisar as proposições elencadas por Canotilho,

chega-se a algum grau de esclarecimento sobre o que é o interconstitucionalidade.

A primeira premissa é a de existência de uma rede de constituições de Estados soberanos. Isso significa que, cada Estado-membro ainda continuará a possuir a sua própria constituição, até porque, apesar das semelhanças entre eles, é sabido que há também diversas discrepâncias. Isso ocorre para que, seja preservada a cultura individual de cada Estado-membro, e ainda, para que não haja modificação brusca e repentina na legislação dos Estados. Assim, preservam-se as constituições, no entanto, as normas que forem contrárias às determinações da União, deixam de ser aplicadas.

279 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 267.

Tendências do constitucionalismo... 103

Nesse sentido, afirma Canotilho que “a teoria da interconstitucionalidade enfrenta, [...] problema da articulação entre constituições e da afirmação de poderes constituintes com fontes e legitimidades diversas”280.

A segunda premissa diz respeito à turbulência produzida na organização constitucional dos estados soberanos pelas organizações políticas supranacionais. Inegável que, ao repassar parte de sua soberania à União Europeia, turbulências são geradas nos Estados-membros. No entanto, como afirmou-se acima, uma vez unidos, o bloco possui muito mais força e eficácia do que um só Estado-membro. Sendo assim, percebe-se ser mais vantajoso para o Estado suportar certa turbulência, em razão de ganho de força adicional em razão do grupo.

A terceira proposição aduz que o interconstitucionalidade implica uma recombinação necessária das dimensões constitucionais clássicas através de sistemas organizativos de natureza superior. Isso quer dizer que, as dimensões constitucionais clássicas passaram por mutações em razão de não servirem mais – da forma pela qual forma criadas – a atender as necessidades atuais. Assim, o que ocorre é uma recombinação dessas formas clássicas em um sistema organizativo de natureza superior à dos Estados-membros, que é o sistema da UE.

A articulação da coerência constitucional estatal com a diversidade de constituições inseridas na rede interconstitucional diz respeito ao problema de como atribuir uniformidade nas decisões se há, dentro desta rede interconstitucional, uma miríade de constituições convivendo simultaneamente, com diferentes características e culturas.

A quinta e última premissa se refere à criação de esquemas jurídico-políticos caracterizados por um grau suficiente de confiança condicionada entre as várias constituições imbricadas na rede e entre essas constituições e a constituição revelada pela organização política de grandeza superior. Isso significa que, são criados esquemas jurídicos-políticos graças à confiança que os Estado-membros revelam à constituição política de maior grandeza, qual seja, a União Europeia.

280 Ibidem, p. 267-268.

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Ao explicar o funcionamento desse sistema inédito no mundo, Silveira assevera que, a UE agiu de forma certeira e perspicaz, uma vez que, utilizou-se das estruturas dos próprios Estados-membros para aplicar o direito da União. A pesquisadora explica esta sistemática ao afirmar que as Cortes dos Estados são agora Cortes da UE também. Assim, é função dessas Cortes aplicar a lei europeia, exercendo o difícil papel de interpretar e conciliar a lei nacional com a europeia281.

Isso porque, ao invés de criar estruturas próprias – tribunais e demais órgãos jurídicos – com o fim específico de aplicar e fiscalizar o direito e os tratados da UE, esta Organização Internacional preferiu utilizar-se dos próprios tribunais e de todo o aparato jurídico já existente nos Estados-membros para realizar o que pode ser equiparado a um “controle de convencionalidade”282 entre o ordenamento constitucional interno e o ordenamento da UE283.

Este controle de convencionalidade se traduz na função do TJUE de interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais. Importante salientar que, via de regra, o que se aplica no sistema jurídico europeu são as normas constantes na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. No entanto, em caso de ausência de proteção específica de direitos fundamentais, o TJUE tem admitido, subsidiariamente, que se aplique as normas da Convenção Europeia de Direitos Humanos284.

281 CEDU, Centre of Studies in European Union Law. Protection of Fundamental Rights post-Lisbon: The Interaction between the UE Charter of Fundamental Rights, the European Convention on Human Rights (ECHR) and National Constitutions. In: XXV Congresso da Federação Internacional de Direito Europeu (FIDE), Tallinn, Estónia, 2012. Disponível em: <http://www.cedu.direito.uminho.pt/uploads/FIDE%202012_final.pdf>. Acesso em: 17.jul.2015, p. 6. 282 O controle de convencionalidade é a análise e compatibilização vertical das leis (ou dos atos normativos do Poder Público) com os tratados internacionais ratificados pelo governo e em vigor no país. No Brasil, o tema é tratado por Mazzuoli. Ver a respeito em: MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 46, n. 181, jan./mar. 2009, p. 113-139. 283 SILVEIRA, Alessandra. Direitos fundamentais, integração e crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais. Aula de Excelência ministrada ao Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar, 10.mai.2014. 284 CEDU, Centre of Studies in European Union Law. Protection of Fundamental Rights post-Lisbon: The Interaction between the UE Charter of Fundamental

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Em suma, o Sistema de Proteção aos Direitos Fundamentais da União Europeia, é baseado em duas premissas: 1) no reconhecimento dos princípios da UE; 2) na presença de normas fundamentais de diversas fontes: as normas europeias, normas nacionais e as normas internacionais de proteção aos direitos humanos285.

O que ocorre é que, os tribunais constitucionais dos Estados-membros, por vezes, se deparam com situações nas quais não têm certeza se a lei constitucional interna contradiz ou está de acordo com a lei da UE. Assim, diante destas situações, estes tribunais devem enviar o processo para análise junto ao TJUE. O TJUE, por sua vez, analisará e emitirá parecer vinculativo ao tribunal local, o que significa dizer que este deverá seguir a determinação daquele, e consequentemente solucionar a lide da forma pela qual foi apontada no parecer286.

Importante salientar nesse contexto, que o Tribunal de Justiça da União Europeia difere-se da Corte Europeia de Direitos Humanos, uma vez que a função desta última é basicamente proteger e zelar pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, assinada inicialmente em 1950 e hoje agregando 47 países (os 27 membros da União Europeia além de outros 20, como a Rússia, Ucrânia, Noruega, Mônaco e Azerbaijão). Em outras palavras, a Corte Europeia de Direitos Humanos pertence a um sistema de proteção dos direitos humanos não relacionado com o TJUE.

Assim, se percebe que, o Tribunal de Justiça constitui a autoridade judiciária da União Europeia e vela, em colaboração com os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros, pela aplicação e a interpretação uniformes do direito da União287, gerando uma realidade interconstitucional.

Rights, the European Convention on Human Rights (ECHR) and National Constitutions. In: XXV Congresso da Federação Internacional de Direito Europeu (FIDE), Tallinn, Estónia, 2012. Disponível em: <http://www.cedu.direito.uminho.pt/uploads/FIDE%202012_final.pdf>. Acesso em: 17.jul.2015, pp. 14-15. 285 Ibidem, p. 09. 286 SILVEIRA, Alessandra. Direitos fundamentais, integração e crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais. Aula de Excelência ministrada ao Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar, 10.mai.2014. 287 UNIÃO EUROPEIA. Apresentação geral. Disponível em: <http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/>. Acesso em: 09.jun.2015.

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Neste contexto de interconstitucionalidade, por vezes, ocorrem casos em que o TJUE utiliza-se do ordenamento constitucional de outro Estado-membro para resolver o conflito288. Para compreender melhor esta situação, articula-se um exemplo: imagine-se que, determinado tribunal da França envie um processo que trata da tutela do direito fundamental à saúde para análise ao TJUE por não saber ao certo se sua lei constitucional está em consonância com os tratados da União. Nesse sentido, o TJUE conclui que a legislação francesa não está de acordo com os preceitos da União. Ao mesmo tempo, o TJUE percebe que a legislação constitucional austríaca é a legislação mais protetiva relacionada ao direito fundamental à saúde dentre as legislações dos Estados-membros. Ademais, a legislação austríaca está em consonância com os preceitos da UE. Assim, pode o TJUE emitir parecer vinculativo com a finalidade de indicar que se aplique a legislação constitucional austríaca ao caso francês.

Além disso, afirma Silveira que, outra manifestação da interconstitucionalidade pode ser verificada na União Europeia. Seria o caso de os próprios advogados dos Estados-membros terem a possibilidade de invocar diretamente, em seus processos, legislação constitucional de outro Estado-membro, quando se tratar de direitos fundamentais, e quando, a legislação de seu país se mostrar menos protetiva289. Assim, tem-se o seguinte exemplo: imagine-se que, um advogado português necessita ingressar com determinada ação judicial para proteger questão relacionada ao direito fundamental à vida de seu cliente, e, verifica que a legislação constitucional alemã oferece maior proteção do que a legislação portuguesa. Neste caso, o advogado português poderia invocar o direito alemão – desde que em conformidade com a legislação da União Europeia – para tutelar mais eficazmente os direitos fundamentais de seu cliente.

A previsão legal para que isso ocorre está no artigo 53 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que dispõe:

288 SILVEIRA, Alessandra. Direitos fundamentais, integração e crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais. Aula de Excelência ministrada ao Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar, 10.mai.2014. 289 Ibidem.

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Artigo 53o Nível de protecção Nenhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelo direito da União, o direito internacional e as convenções internacionais em que são partes a União, a Comunidade ou todos os Estados-Membros, nomeadamente a Convenção europeia para a protecção dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, bem como pelas Constituições dos Estados-Membros290.

Nesse sentido, Mariana Canotilho aduz que este artigo

traduz o Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção dos Direitos Fundamentais no Quadro da UE. Este princípio seria a “expressão do compromisso europeu em relação aos direitos fundamentais e garantia de uma tutela efectiva destes direitos no espaço da UE”291.

No que se refere a essa norma, o Centro de Estudos em Direito da União Europeia da Universidade do Minho – Portugal, afirma que, se, para a resolução de um caso concreto, existem diversos ordenamentos jurídicos envolvidos que dizem respeito aos mesmos direitos fundamentais (protegido simultaneamente pela Constituição nacional, pela Convenção Europeia de Direitos Humanos e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia), deve ser analisado e aplicado o regime legal que oferece maior proteção ao sujeito do direito em discussão292.

Portanto, os dois exemplos abordados supra traduzem a essência do que se pretende demonstrar neste estudo. Em outras palavras, o interconstitucionalidade que se pretende

290 PARLAMENTO EUROPEU. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf>. Acesso em: 21.jun.2015. 291 CANOTILHO, Mariana Rodrigues. O princípio do nível mais elevado de protecção em matéria de direitos fundamentais. Dissertação de mestrado em ciências jurídico-políticas, sob orientação do Professor Doutor José Carlos Vieira de Andrade. Coimbra, agosto de 2008, p. 169. 292 CEDU, Centre of Studies in European Union Law. Protection of Fundamental Rights post-Lisbon: The Interaction between the UE Charter of Fundamental Rights, the European Convention on Human Rights (ECHR) and National Constitutions. In: XXV Congresso da Federação Internacional de Direito Europeu (FIDE), Tallinn, Estónia, 2012. Disponível em: <http://www.cedu.direito.uminho.pt/uploads/FIDE%202012_final.pdf>. Acesso em: 17.jul.2015, p. 10.

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evidenciar com esta pesquisa diz respeito à essa rede de ordenamentos jurídicos constitucionais que inevitavelmente se entrelaçam. Este fenômeno culmina na possibilidade de utilizar-se de outras jurisdições constitucionais dentro de uma mesma rede, para efetivar a tutela e proteção dos direitos fundamentais – em especial, os direitos da personalidade. 2.4 A INTERCONSTITUCIONALIDADE NA AMÉRICA LATINA

A partir deste momento do estudo, passa-se a analisar

a ocorrência do fenômeno da interconstitucionalidade no âmbito da América Latina. Primeiramente, em razão da identidade cultural e da existência de pontos de convergência dentre os ordenamentos constitucionais dos Estados.

Para tanto, destarte, andes de estudar o fenômeno propriamente dito, se faz necessário estudar a Organização dos Estados Americanos e seu funcionamento, para posteriormente adentras no viés interconstitucional. 2.4.1 A Organização dos Estados Americanos – OEA

De forma similar à Europa, a América também possui

uma Organização Internacional que surgiu com os seguintes objetivos: promover o desenvolvimento integral e a prosperidade dos Estados-membros; promover a democracia, defender os direitos humanos; garantir uma abordagem multidimensional para a segurança; e apoiar a cooperação jurídica interamericana. Essa organização à qual refere-se é a Organização dos Estados Americanos – OEA.

Portanto, percebe-se na América um sistema interamericano de proteção aos direitos elencados supra. Assim, é necessário que se estude a OEA para o fim de diagnosticar se há ou não a presença da interconstitucionalidade na América, mais especificamente na América Latina.

A Organização dos Estados Americanos é o mais antigo organismo regional do mundo. Os primeiros indícios da Organização dos Estados Americanos se deu em 1826, quando da realização do Congresso do Panamá, convocado por Simón Bolívar.293

293 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Nossa história. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_historia.asp>. Acesso em: 16.jun.2015.

Tendências do constitucionalismo... 109

No entanto, somente em 1889, os Estados americanos decidiram se reunir periodicamente para o fim de criar um sistema compartilhado de normas e instituições. E desde então vem sendo feitas conferências e reuniões para gerar esse sistema. Entretanto, o processo somente teve início com o convite dos Estados Unidos para a realização da Primeira Conferência Internacional Americana, que foi realizada em Washington D.C., de outubro de 1889 a abril de 1890. Essa conferência tinha como objetivos instituir mecanismos de resolução de conflitos entre os membros, melhorar o intercâmbio comercial e dos meios de comunicação, incentivar relações comerciais recíprocas e assegurar mercados mais amplos294.

Esta reunião realizada nos EUA resultou na criação da União Internacional das Repúblicas Americanas, que começou a tecer uma rede de disposições e instituições, dando início ao que ficaria conhecido, mais tarde, como “Sistema Interamericano”, o mais antigo sistema institucional internacional295.

Nesse contexto, a OEA e consequentemente, o SIDH, foram fundados efetivamente em 1948 com a assinatura da Carta da OEA na cidade de em Bogotá, na Colômbia, que entrou em vigor em dezembro de 1951. Posteriormente, a Carta foi emendada pelo Protocolo de Buenos Aires (1967); pelo Protocolo de Cartagena das Índias (1985); pelo Protocolo de Manágua (1993); e pelo Protocolo de Washington (1992)296.

A Organização foi criada para promover nos Estados membros, como estipula o Artigo 1º da Carta, “uma ordem de paz e de justiça, para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania, sua integridade territorial e sua independência”297.

294 Ibidem. 295 Ibidem. 296 Ibidem. 297 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_ ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso dia: 16.jun.2015.

110 Sistema interamericano de direitos humanos...

Hoje, fazem parte da OEA os 35 Estados298 independentes das Américas e esta organização internacional constitui o principal fórum governamental político, jurídico e social do Hemisfério. Além disso, a Organização concedeu o estatuto de observador permanente299 a 69 Estados e à União Europeia300.

Para atingir seus objetivos primordiais, a OEA baseia-se em seus principais pilares que são a democracia, os direitos humanos, a segurança e o desenvolvimento.

No que se refere à estrutura da OEA, tem-se os seguintes órgãos: A OEA realiza os seus fins por intermédio dos seguintes órgãos: Assembleia Geral; Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores; Conselhos (Conselho Permanente e Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral); Comissão Jurídica Interamericana; Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Secretaria Geral; Conferências Especializadas; Organismos Especializados e outras entidades estabelecidas pela Assembleia Geral301.

A Assembleia Geral302 é órgão comum a todas as organizações internacionais e tem como função realizar

298 21 países se reuniram em Bogotá, em 1948, para a assinatura da Carta da OEA, eram eles: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba1, Equador, El Salvador, Estados Unidos da América, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. Países que se tornaram Membros posteriormente: Barbados, Trinidad e Tobago (1967), Jamaica (1969), Grenada (1975), Suriname (1977), Dominica, Santa Lúcia (1979), Antígua e Barbuda, São Vicente e Granadinas (1981), Bahamas (1982), St. Kitts e Nevis (1984), Canadá (1990), Belize, Guiana (1991). Todos os 35 países independentes das Américas ratificaram a Carta da OEA e pertencem à Organização. 299 O status de observador permanente na Organização dos Estados Americanos foi estabelecida pela Assembleia Geral na sua primeira sessão regular, realizada em San José, na Costa Rica, em 1971. Os observadores permanentes participam das atividades da organização e contribuem para os seus programas. A OEA possui hoje 70 observadores permanentes. 300 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Quem somos. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/quem_somos.asp>. Acesso em: 16.jun.2015. 301 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Nossa estrutura. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_estrutura.asp>. Acesso em: 16.jun.2015. 302 Ver artigos 54 a 60 da Carta da OEA. In: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-

Tendências do constitucionalismo... 111

períodos ordinários de sessões uma vez por ano para decidir todos os tipos de questões. Em circunstâncias especiais, este órgão pode reunir-se em períodos extraordinários.

A Reunião de Consulta303, por sua vez, é órgão específico da OEA. Este órgão é convocado a fim de considerar problemas de natureza urgente e de interesse comum e para servir de Órgão de Consulta na aplicação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), o principal instrumento de ação solidária em caso de agressão304.

O Conselho Permanente305 é o órgão executor das decisões. Isso porque, este órgão toma conhecimento dos assuntos de que o encarreguem a Assembleia Geral ou a Reunião de Consulta e executa as decisões de ambas, quando seu cumprimento não haja sido confiado a nenhuma outra entidade. Além disso, vela pela manutenção das relações de amizade entre os Estados membros, bem como pela observância das normas que regulam o funcionamento da Secretaria Geral. Ademais, o Conselho Permanente atua provisoriamente como Órgão de Consulta306.

A Comissão Jurídica Interamericana, por sua vez, serve de corpo consultivo da Organização em assuntos jurídicos; promove o desenvolvimento progressivo e a codificação do Direito Internacional; e analisa os problemas jurídicos referentes à integração dos países com vistas ao desenvolvimento do Hemisfério. A Comissão Jurídica Interamericana realizará ainda, estudos e trabalhos preparatórios solicitados pela Assembleia

41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso dia: 16.jun.2015. 303 Ver artigos 61 a 69 da Carta da OEA. In: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso dia: 16.jun.2015. 304 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Nossa estrutura. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_estrutura.asp>. Acesso em: 16.jun.2015. 305 Ver artigos 80 a 92 da Carta da OEA. In: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso dia: 16.jun.2015. 306 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Nossa estrutura. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_estrutura.asp>. Acesso em: 16.jun.2015.

112 Sistema interamericano de direitos humanos...

Geral, pela Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores e pelos Conselhos da Organização. Pode, além disso, levar a efeito, por sua própria iniciativa, os que julgar convenientes, bem como sugerir a realização de conferências jurídicas e especializadas307.

A Secretaria Geral308 é o órgão central e permanente da OEA. É o órgão administrativo da organização. A sede, tanto do Conselho Permanente como da Secretaria Geral, é na cidade de Washington, D.C.

As Conferências Especializadas309 são reuniões intergovernamentais destinadas a tratar de assuntos técnicos especiais ou a desenvolver aspectos específicos da cooperação interamericana e os Organismos Especializados310, por sua vez, são organismos intergovernamentais estabelecidos por acordos multilaterais, que tenham determinadas funções em matérias técnicas de interesse comum para os Estados americanos.

Por fim, no que se refere à estrutura desta organização internacional, a Carta da OEA prevê ainda a criação de órgãos subsidiários e outras entidades, organismos e dependências autônomas, conforme a necessidade. Estes organismos intergovernamentais são estabelecidos por acordos multilaterais e têm funções específicas.

307 Ver artigos 99 a 105 da Carta da OEA. In: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso dia: 16.jun.2015. 308 Ver artigos 107 a 121 da Carta da OEA. In: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso dia: 16.jun.2015. 309 Ver artigos 122 e 123 da Carta da OEA. In: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso dia: 16.jun.2015. 310 Ver artigos 124 a 130 da Carta da OEA. In: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso dia: 16.jun.2015.

Tendências do constitucionalismo... 113

2.4.2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos O Sistema Interamericano, que é parte da OEA, teve seu

início com a aprovação da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem em 1948, que foi tido como o primeiro documento acerca de direitos humanos, no marco da Carta da Organização dos Estados Americanos311.

O SIDH foi constituído a partir do momento em que os Estados das Américas, em

exercício de sua soberania e no âmbito da Organização dos Estados Americanos adotaram uma série de instrumentos internacionais que se converteram na base de um sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos.

Para cumprir os objetivos do sistema, dois órgãos

destinados tem a função de velar pela observância de referidos direitos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Dentre estes órgãos subsidiários e outras entidades, organismos e dependências autônomas criados posteriormente pela OEA, os mais importantes deles para esta pesquisa são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)312 é um órgão autônomo da OEA e foi criado pela OEA no ano de 1959, entretanto, foi formalmente instalada em 1960, quando o Conselho da Organização aprovou seu Estatuto313.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos serve como órgão consultivo da Organização dos Estados Americanos em matéria de direitos humanos e tem como objetivo principal promover a observância e a defesa dos direitos humanos. Este

311 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Denuncias y consultas ante el Sistema Interamericano. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/denuncias_consultas.cfm>. Acesso em: 22.jun.2014. 312 Ver artigo 106 da Carta da OEA. In: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso dia: 16.jun.2015. 313 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. O que é a CIDH? Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/mandato/que.asp>. Acesso em: 16.jun.2015.

114 Sistema interamericano de direitos humanos...

órgão, em um primeiro momento, tem competências com dimensões políticas, entre as quais se destacam a realização de visitas in loco e a preparação de relatórios sobre a situação dos direitos humanos nos Estados membros. Em um segundo momento, este órgão realiza funções com uma dimensão quase judicial, promovendo conciliações e ingressando com ações contra os Estados-membros.

Em 1961, a CIDH começou a realizar visitas in loco aos Estados membros para verificar a situação no que se referia aos direitos humanos, bem como emitia informes especiais sobre o que se passava. E, a partir de 1965, a CIDH foi autorizada a receber petições e processar denúncias sobre casos de violações de direitos humanos314.

No ano de 1969, foi celebrado em San José da Costa Rica, a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, onde foi redigida a Convenção Americana de Direitos Humanos315, ou também conhecida como Pacto San José da Costa Rica. Esta normativa internacional entrou em vigor no ano de 1978, quando o décimo primeiro documento de ratificação foi depositado por um membro316.

Essa Convenção foi criada em um contexto pós Segunda Guerra Mundial, com o intuito de salvaguardar os direitos essenciais do homem no continente americano. Assim, o Pacto San José da Costa Rica, além de prever a garantia e tutela desses direitos, instrumentalizou dois órgãos competentes para conhecer das violações aos direitos humanos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos317.

Nesse sentido, a Convenção Americana, além de definir os direitos humanos que os Estados ratificantes se comprometem internacionalmente a respeitar e a dar garantias

314 Ibidem. 315 Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_ CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Convencion Americana sobre Derechos Humanos. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos.htm>. Acesso em: 17.jun2015. 316 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Historia de la Corte IDH. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/acerca-de/historia-de-la-corteidh>. Acesso em: 16.jun.2015. 317 Ibidem.

Tendências do constitucionalismo... 115

para que sejam respeitados, também cria, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, e define atribuições e procedimentos tanto da Corte como da CIDH. A CIDH mantém, além disso, atribuições adicionais e anteriores à Convenção e que não derivam diretamente dela.

Assim, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, juntamente com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, instalada posteriormente em 1979, fazem parte do Sistema Interamericano de proteção dos direitos humanos (SIDH)318.

A Comissão é constituída por sete membros de alta autoridade moral e reconhecido saber em direitos humanos, eleitos por meio de Assembleia Geral, que exercem suas funções em caráter individual por um mandato de quatro anos, podendo ser reeleitos uma só vez.

A ideia de estabelecer também uma Corte para proteger os direitos humanos nas Américas surgiu há muitos anos, ainda em 1948 em Bogotá, na Colômbia, quando foi adotada a Resolução XXXI, denominada Corte Interamericana para Proteger los Derechos del Hombre319.

No entanto, a Corte IDH somente fora criada somente em 1969, por meio da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e iniciou suas funções em 1979, com exercendo dois papéis: a) contencioso – julgando casos de violações dos direitos estipulados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos pelos Estados-membros; e b) consultiva – emitindo pareceres para qualquer membro da OEA para interpretar a Convenção ou outro tratado sobre direitos humanos320.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sede em São José da Costa Rica e possui como função precípua aplicar e interpretar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros tratados concernentes a mesma temática.

318 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. O que é a CIDH? Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/mandato/que.asp>. Acesso em: 16.jun.2015. 319 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Historia. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/historia.cfm>. Acesso em: 22.jun.2014. 320 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Denuncias y consultas ante el Sistema Interamericano. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/denuncias_consultas.cfm>. Acesso em: 22.jun.2014.

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A Corte IDH é um dos três Tribunais regionais de proteção dos Direitos Humanos, juntamente com a Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Este órgão é constituído por sete juízes eleitos pela Assembleia Geral321.

Sobre a Corte Interamericana, Piovesan complementa:

Em linhas gerais, pode-se dizer que a Corte é o órgão jurisdicional do sistema regional, possui competência consultiva e contenciosa, e é composta por sete juízes nacionais dos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), eleitos a título pessoal pelos Estados-partes da Convenção322.

Importante salientar que, o artigo 28 do Estatuto da

Corte IDH323 dispõe sobre a relação entre a Corte e a Comissão. Nesse sentido, esta norma preceitua que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos deverá aparecer como parte na Corte, em todos os casos relativos à função jurisdicional desta, conforme dispõe o artigo 2.1 do Estatuto.

Este artigo – 2.1 do Estatuto324 – por sua vez, é a base legal que preceitua que a Corte exerce função jurisdicional (regida pelos artigos 61 a 63325 da Convenção Americana e

321 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Outras Entidades, Organismos e Dependências Autônomas e Descentralizadas. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/outras_entidades.asp#IACHR>. Acesso em: 16.jun.2015. 322 PIOVESAN, Flávia; GOMES, Luiz Flávio. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pp. 234-235. 323 “Artículo 28 La Comisión Interamericana de Derechos Humanos comparecerá y será tenida como parte ante la Corte, en todos los casos relativos a la función jurisdiccional de ésta, conforme al artículo 2.1 del presente Estatuto.” In: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Estatuto de la Corte IDH. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/acerca-de/estatuto>. Acesso em: 17.jun2015. 324 “Artículo 2 La Corte ejerce función jurisdiccional y consultiva: 1. Su función jurisdiccional se rige por las disposiciones de los artículos 61, 62 y 63 de la Convención. 2. Su función consultiva se rige por las disposiciones del artículo 64 de la Convención.” In: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Estatuto de la Corte IDH. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/acerca-de/estatuto>. Acesso em: 17.jun2015. 325 “Artículo 611. Sólo los Estados Partes y la Comisión tienen derecho a someter un caso a la decisión de la Corte. 2. Para que la Corte pueda conocer de

Tendências do constitucionalismo... 117

atribuída à Corte) e consultiva (regida pelo artigo 64326 da Convenção Americana e atribuída à Comissão).

Nesse sentido, sabe-se que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos é instância protetiva subsidiária, invocada quando da ineficácia do aparato estatal interno de administração da justiça. Corroborando com o exposto, Blanco afirma que

cualquier caso, es necesario que sean agotados los procedimientos previstos en los artículos 48 a 50. Artículo 62 1. Todo Estado parte puede, en el momento del depósito de su instrumento de ratificación o adhesión de esta Convención, o en cualquier momento posterior, declarar que reconoce como obligatoria de pleno derecho y sin convención especial, la competencia de la Corte sobre todos los casos relativos a la interpretación o aplicación de esta Convención. 2. La declaración puede ser hecha incondicionalmente, o bajo condición de reciprocidad, por un plazo determinado o para casos específicos. Deberá ser presentada al Secretario General de la Organización, quien transmitirá copias de la misma a los otros Estados miembros de la Organización y al Secretario de la Corte. 3. La Corte tiene competencia para conocer de cualquier caso relativo a la interpretación y aplicación de las disposiciones de esta Convención que le sea sometido, siempre que los Estados Partes en el caso hayan reconocido o reconozcan dicha competencia, ora por declaración especial, como se indica en los incisos anteriores, ora por convención especial. Artículo 63 1. Cuando decida que hubo violación de un derecho o libertad protegidos en esta Convención, la Corte dispondrá que se garantice al lesionado en el goce de su derecho o libertad conculcados. Dispondrá asimismo, si ello fuera procedente, que se reparen las consecuencias de la medida o situación que ha configurado la vulneración de esos derechos y el pago de una justa indemnización a la parte lesionada. 2. En casos de extrema gravedad y urgencia, y cuando se haga necesario evitar daños irreparables a las personas, la Corte, en los asuntos que esté conociendo, podrá tomar las medidas provisionales que considere pertinentes. Si se tratare de asuntos que aún no estén sometidos a su conocimiento, podrá actuar a solicitud de la Comisión.” In: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Convencion Americana sobre Derechos Humanos. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos.htm>. Acesso em: 17.jun2015. 326 “Artículo 64 1. Los Estados miembros de la Organización podrán consultar a la Corte acerca de la interpretación de esta Convención o de otros tratados concernientes a la protección de los derechos humanos en los Estados americanos. Asimismo, podrán consultarla, en lo que les compete, los órganos enumerados en el capítulo X de la Carta de la Organización de los Estados Americanos, reformada por el Protocolo de Buenos Aires. 2. La Corte, a solicitud de un Estado miembro de la Organización, podrá darle opiniones acerca de la compatibilidad entre cualquiera de sus leyes internas y los mencionados instrumentos internacionales.” In: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Convencion Americana sobre Derechos Humanos. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos.htm>. Acesso em: 17.jun2015.

118 Sistema interamericano de direitos humanos...

“muito comum nos julgados da Corte uma análise reflexa da proteção judicial, cuja afronta primária decorreu de outros artigos da Convenção (vida, liberdade e integridade pessoal, etc.)”327.

Assim, deve-se exaurir os meios domésticos para que se possa levar um caso a julgamento pela Corte Interamericana, ou então, não ser atendido pelos meios internos e continuar a sofrer violações, como foi o caso Maria da Penha328.

Além do mais, somente a Comissão e os Estados membros podem submeter um caso para apreciação na Corte, conforme artigo 61.1 da Convenção, e na maioria das vezes, se já tiverem sido esgotados os procedimentos previstos nos artigos 48 a 50, que dizem respeito à admissibilidade da petição e à tentativa de conciliação.

Insta salientar aqui uma ressalva, que diz respeito ao fato de que, qualquer indivíduo pode interpor denúncia – por meio eletrônico, de forma bem simplificada – à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Este órgão, por sua vez, faz uma forma de triagem das denúncias, e, quando julga relevante, submete o caso à análise junto à Corte IDH.

Portanto, o que se percebe é que tanto a Corte como a CIDH fazem parte do SIDH e ambos têm a função de tutelar e proteger, conjuntamente, os direitos humanos no âmbito dos Estados membros da OEA.

327 BLANCO, Carolina Souza Torres. O direito de acesso à justiça nas jurisprudências interamericana e brasileira, uma análise comparativa. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/o_direito_de_acesso_a_justica_nas_jurisprudencias_interamericana_e_brasileira_uma_analise_comparativa.pdf>. Acesso em: 05/11/2014, p. 116. 328 Caso 12.051. No Caso Maria da Penha, não foram exauridos todos as instâncias internas para que o mesmo chegasse ao SIDH. Isso porque, a Sra. Maria constantemente fazia denúncias contra seu cônjuge, porém, a justiça brasileira nada fazia para que as violações cessassem. Dessa forma, a Sra. Maria resolveu efetivar denuncia diretamente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que levou o caso ao SIDH, resultando na edição de lei mais rígida com relação a casos de violência doméstica. Ver mais em: <https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm>. Acesso em: 21.jun.2015.

Tendências do constitucionalismo... 119

2.4.3 A Interconstitucionalidade e suas razões de existir na América Latina

A América Latina como um todo construiu sua história

com identidades culturais, uma vez que os Estados foram colonizados por espanhóis ou portugueses. Além disso, todos os Estados são historicamente recentes, em comparação com a Europa, e muitos tiveram regimes ditatoriais que perduraram até meados dos anos 60 ou mais.

Acerca do que significa identidade cultural, Renato Seixar preceitua:

A identidade cultural é formada com diferentes elementos culturais que podem ter distintos significados intertextuais para cada indivíduo ou grupo social. São elementos culturais os valores sociais e os modos de pensar, os costumes e o estilo de vida, as instituições, a história comum, os grupos étnicos, o meio ambiente natural e cultural, os pressupostos filosóficos subjacentes às relações sociais e outros elementos a que certa sociedade atribui significados culturais intertextuais específicos. Com base em elementos como esses, o indivíduo e o grupo social formam a convicção de que compartilham uma cultura329.

Maria Luisa Ortiz Alvarez afirma que, falar acerca de

identidade latino-americana implica em

[...] remontar à época colonial e traçar uma trajetória que se estende até os dias atuais, observando como os diferentes períodos históricos operaram a re-significação do termo, a partir da conservação de determinados traços e da negociação, exclusão e inclusão de outros. O encontro entre europeus e índios, povos portadores de culturas díspares, até antagônicas em certos aspectos, é tido como o momento inicial das transformações que conduziram à ideia de um “modo latino-americano de ser”330.

329 SEIXAS, Renato. Identidade Cultural da América Latina: conflitos culturais globais e mediação simbólica. Cadernos PROLAM/USP, ano 8 - vol. 1 - 2008, p. 98. 330 ALVAREZ, Maria Luisa Ortiz. (Des) construção da identidade latino-americana: heranças do passado e desafios futuros. Disponível em: <http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/pessoa/temp/anexo/1/231/427.pdf>. Acesso em: 16.jul.2015, p. 02.

120 Sistema interamericano de direitos humanos...

O que se percebe é que, à época da colonização, os povos colonizados absorveram quase que totalmente a cultura europeia colonizadora, diferenciando-se a América Central, que absorveu mais a cultura americana da América do Sul, que integralizou a cultura ocidental, advinda dos europeus.

Nesse contexto, é necessário trazer a importância da figura de Simón Bolívar, que se mostrou um dos principais articuladores dos processos de independência e de pós-independência. Ademais, foi notória sua contribuição para construir uma identidade entre os Estados latino-americanos.

Entretanto, conforme expõe Alvarez, este ideário pretendia ir mais além, à medida que Bolívar manifestava seu sonho de ver a América unida em uma só nação, que teria um só governo que confederaria todos os diferentes Estados da região331.

Apesar de suas ideias revolucionárias não terem encontrado efetivação na América Latina, Bolívar influenciou o “modo latino-americano de ser”, inclusive, tendo seu nome incluído em diversas constituições dos Estados latino-americanos, ditas constituições Bolivarianas, como a da Venezuela e do Equador.

Quanto ao contexto histórico da região, Flávia Piovesan destaca a existência dos regimes ditatoriais e da transição política de tais regimes à democracia. O primeiro período foi marcado por inúmeras violações de direitos e liberdades, e, o segundo período, caracterizou-se pela tentativa de consolidar o efetivo respeito aos direitos humanos332.

Como consequência disto, após a caída dos regimes ditatoriais, as constituições passaram a se abrirem para incorporaram o novo comunitarismo internacional, admitindo a celebração de tratados de integração entre Estados para conformar organizações supraestatais e interestatais.

Com o advento da Convenção Americana de Direitos Humanos em 1978, dos 11 Estados que ratificaram a Convenção na época, menos da metade possuíam governos eleitos de forma democrática. Assim, havia dificuldade para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos em lidar com tal paradoxo:

331 Ibidem, p. 02. 332 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 123-124.

Tendências do constitucionalismo... 121

como proteger os direitos humanos em um espaço onde não havia inicialmente abertura para a tríade Democracia - Estado de Direito - Direitos Humanos333.

No entanto, Seixas afirma que, atualmente, em razão da globalização, este cenário está se modificando uma vez que a América Latina caminha rumo à construção de uma identidade nova e original:

A América Latina está sob o impacto da fase atual da globalização e apresenta profunda miscigenação cultural, étnica, linguística, religiosa. A globalização contemporânea exige o reconhecimento de novos elementos de identificação cultural para revelar, em variados graus de generalização, como a identidade cultural da América Latina tem se reorganizado334.

Nesse sentido, são notórias as semelhanças entre os

Estados da América Latina, inclusive, porque refletem uma integração quase que natural. Em outras palavras, ao se comparar a integração latino-americana com a integração europeia, percebe-se que há muito mais pontos de convergência no primeiro em detrimento do segundo. Isso porque, os cidadãos latino-americanos se reconhecem uns nos outros, em sua cultura, em seu modo de viver, na variedade de nações dentro de um mesmo Estado. Assim, pode-se afirmar que, no que se refere à identidade e integração entre os Estados, a América Latina mostra-se bastante integrada.

Corroborando com tal entendimento acerca da cultura latino-americana, Seixas assevera que, “[...] adotado certo grau de generalização, pode-se falar numa cultura característica da América Latina, porém isto não significa que os diferentes povos latino-americanos adotem sempre elementos uniformes de identificação cultural”335.

Assim, o que se nota é um contexto intercultural, com diversos pontos de convergência entre os Estados latino-americanos, o que reflete na legislação constitucional destes,

333 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, n. 19, jan-jun, 2012, pp. 67-93. 334 SEIXAS, Renato. Identidade Cultural da América Latina: conflitos culturais globais e mediação simbólica. Cadernos PROLAM/USP, ano 8 - vol. 1 - 2008, p. 97. 335 Ibidem, p. 96.

122 Sistema interamericano de direitos humanos...

que também foi modificada em razão da “nova” cultura latino-americana.

Conforme já analisado anteriormente, Häberle acredita que a Constituição deve ser concebida como algo cultural, pois não deve representar somente um ordenamento jurídico voltado aos juristas, mas sim traduzir uma situação cultural e servir como instrumento de autorrepresentação de seu povo336.

Assim, o que se percebe é que, hoje, as constituições dos Estados da América Latina, além de serem a expressão da cultura local e perfazerem-se como instrumento de autorrepresentação de seu povo, elas também estão em consonância. Em outras palavras, as constituições latino-americanas possuem diversos pontos de convergência.

O desafio baseia-se em encontrar “pontos hermenêuticos de convergência e complementaridade com o “sistema-mundo”, sem perder sua identidade autóctone e mestiça”. Para Wolkmer, faz-se necessário buscar estes pontos nos horizontes da solidariedade e da complexidade para que se possa não somente preservar bens comuns, mas para que se consiga resolver problemas comuns da humanidade no futuro337.

Nesse sentido, a teoria de Häberle volta-se para “aceitar o outro” dentro da realidade da sociedade mundial hodierna. Esta teoria encaixa-se perfeitamente no cenário atual da América Latina, que, recentemente, percebeu a heterogeneidade de seu povo, e decidiu protege-la através do novo formato de Estado Constitucional Plurinacional.

A teoria de Häberle transcendeu o continente europeu e chegou à América Latina com o intuito de ajudar o processo não somente de integração política, mas também cultural, buscando desenvolver a concepção de um “direito constitucional comum”.

É nesse sentido que as semelhanças culturais fazem com que a vertente constitucionalista nos Estados da América Latina seja parecidas. Isso porque, mesmo que cada Estado possua suas especificidades, sua identidade única, a origem de todas as colonizações foi comum.

336 HÄBERLE, Peter; HABERMAS; Jürgen; FERRAJOLI, Luigi. VITALE, Ermanno. La constitucionalización de Europa. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2004, p. 25. 337 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO Milena Petters. Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporáneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 39.

Tendências do constitucionalismo... 123

Os Estados, em sua maioria foram explorados e tiveram suas riquezas levadas à Coroa Europeia. Seus povos indígenas foram massacrados, domados ou escravizados. Assim, percebe-se que há uma preocupação especial desses Estados em proteger os direitos inerentes aos seres humanos.

É nesse cenário então que o interconstitucionalidade ganha forma e razão de existir. Isso porque, segundo Canotilho, esta teoria estuda as relações interconstitucionais de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político338.

Em primeiro lugar, cumpre destacar que, a interconstitucionalidade que se observa e se propõe com este estudo, no âmbito da América Latina, é diferente daquela que ocorre na Europa. Isso porque, a Europa está inserida na União Europeia, que é uma organização internacional sui generis, sendo diferenciada de qualquer outra OI. Assim, o que se observa na UE é um sistema jurídico único – supranacional, de alta integração e imposto para todos os Estados membros.

Por outro lado, na América Latina, o que se tem é a Organização dos Estados Americanos – uma organização internacional mais regular, ou seja, com características mais comuns às demais OI’s. Em outras palavras, a OEA não possui um sistema jurídico próprio imposto a todos os membros. O que se tem é a Convenção Americana de Direitos Humanos, e dois órgãos que são responsáveis por fiscalizar, aplicar e fazer cumprir as suas determinações, quais sejam, a Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Sendo assim, a dinâmica da América Latina funciona da seguinte forma: os Estados membros da OEA, e que ratificaram a Convenção Americana, estão sujeitos às normas nela contidas. Dessa forma, estão também submetidos à jurisdição da Corte e da Comissão.

Nesse sentido, os Estados membros, bem como a CIDH podem submeter casos para serem julgados pela Corte IDH, desde que cumpridos os requisitos determinados pela legislação da OEA. Dentre os requisitos, pode-se mencionar o fato de terem se exaurido as vias internas do Estado, ou seja, o referido

338 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, pp. 265-266.

124 Sistema interamericano de direitos humanos...

caso transitou em julgado e não há mais possibilidade de recorrer à quaisquer órgão superior do Estado membro – artigo 61.2 da Convenção339. Ademais, o caso deve versar sobre matéria objeto de proteção da Convenção, isto é, inerente a direitos humanos, pois esta é a competência da Corte IDH – conforme artigo 34 da Convenção340.

Nesse diapasão, a Corte IDH cumpre papel parecido com o do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Isso porque, quando um caso é submetido à análise e julgamento na Corte IDH, esta faz um controle de convencionalidade entre as leis do Estado membro que foram aplicadas no caso concreto e as normas contidas na Convenção, conforme preceitua o artigo 62.3 da Convenção341. Esse artigo dita que a Corte tem competência para conhecer qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos que lhe seja submetido, sempre que os Estados partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam dita competência, seja por declaração especial, seja por convenção especial.

Dessa forma, quando um Estado ou a CIDH submete algum caso para ser julgado pela Corte IDH, o

339 “Artículo 61 1. Sólo los Estados Partes y la Comisión tienen derecho a someter un caso a la decisión de la Corte. 2. Para que la Corte pueda conocer de cualquier caso, es necesario que sean agotados los procedimientos previstos en los artículos 48 a 50.” In: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Convencion Americana sobre Derechos Humanos. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos.htm>. Acesso em: 17.jun2015. 340 “Artículo 34 La Comisión Interamericana de Derechos Humanos se compondrá de siete miembros, que deberán ser personas de alta autoridad moral y reconocida versación en materia de derechos humanos.” In: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Convencion Americana sobre Derechos Humanos. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos.htm>. Acesso em: 17.jun2015. 341 “Artículo 62 3. La Corte tiene competencia para conocer de cualquier caso relativo a la interpretación y aplicación de las disposiciones de esta Convención que le sea sometido, siempre que los Estados Partes en el caso hayan reconocido o reconozcan dicha competencia, ora por declaración especial, como se indica en los incisos anteriores, ora por convención especial.” In: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Convencion Americana sobre Derechos Humanos. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos.htm>. Acesso em: 17.jun2015.

Tendências do constitucionalismo... 125

interconstitucionalidade está de fato ocorrendo, o que se verifica por meio de três premissas.

Para que se possa compreender tais premissas, é necessária uma retrospectiva acerca do fenômeno da interconstitucionalidade. Conforme já explanado, a teoria da interconstitucionalidade, segundo Canotilho, estuda as relações interconstitucionais de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político342.

As relações de concorrência se dão no sentido de concomitância, convivência, simultaneidade, coexistência de ordens jurídicas. Por exemplo, na OEA tem-se diversos Estados, e cada um possui a sua ordem jurídica constitucional própria. Ademais, o próprio Sistema Interamericano de Direitos Humanos possui a sua ordem jurídica internacional própria. Sendo assim, elas coexistem e se inter-relacionam.

No que se refere à convergência, tem-se no sentido de afinidade, identidade, concordância, coincidência, consonância, harmonia. Isso porque, as constituições dos Estados da América Latina possuem diversos pontos de convergência, em razão da colonização e história semelhantes. Além disso, essas constituições devem estar em consonância e harmonia com a Convenção Americana dentro do SIDH.

As relações de justaposição traduzem-se no fato de que o SIDH, muitas vezes, sobrepõe a sua ordem jurídica aos ordenamentos constitucionais dos Estados membros. A legitimidade desta ação se dá mormente porque os Estados membros assim o quiseram, quando aceitaram a jurisdição do SIDH.

No que se refere a relações de conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes, tem-se que, cada Estado membro tem sua Constituição, e, mesmo que hajam pontos de convergência, cada um possui suas especificidades, direitos que tutelam mais ferozmente, e outros que se tutela de forma mais branda.

Explicadas tais relações, chega-se às três premissas que demonstram a presença da interconstitucionalidade na América Latina. A primeira delas diz respeito à relação de

342 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, pp. 265-266.

126 Sistema interamericano de direitos humanos...

justaposição de ordens jurídicas, que ocorre justamente pelo fato do aceite por parte dos Estados membros da jurisdição do SIDH. Em outras palavras, no momento em que o Estado membro aceita fazer parte do SIDH, ele se submete às suas normas. Sendo assim, o ordenamento constitucional interno do Estado passa a não ser mais a última instância, mas sim o ordenamento internacional. Importante frisar que, não se trata de mais uma instância recursal, mas de uma justaposição entre ordens jurídicas, na qual a ordem internacional se sobreporá à ordem interna. Também não se trata somente da imposição das decisões da Corte aos tribunais nacionais com competências constitucionais, mas também de revisão da jurisprudência dos Estados membros à luz das decisões da Corte.

A segunda premissa pela qual percebe-se a presença da interconstitucionalidade vai mais além do que uma “simples” justaposição. Esta premissa refere-se à aplicação de norma constitucional de Estado diverso daquele que é parte no processo ao caso concreto, semelhante ao que ocorre no sistema europeu. Para que se possa compreender tal situação, imagina-se que um caso ocorrido do Equador, envolvendo desrespeito aos direitos humanos dos indígenas foi submetido a julgamento na Corte IDH. No decorrer do julgamento, os juízes da Corte IDH reparam que a legislação constitucional boliviana é mais protetiva com relação aos direitos dos indígenas. Sendo assim, a Corte IDH aplica o direito constitucional boliviano ao caso equatoriano, mesmo que a Bolívia não seja parte desta lide.

Por fim, a terceira premissa diz respeito à utilização, por parte da Corte IDH, de jurisprudências de Cortes de Direitos Humanos que não fazem parte do sistema interamericano, como por exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos, para fundamentar suas decisões.

Estes casos vêm sendo percebidos ultimamente quando da análise da jurisprudência da Corte IDH, e traduzem claramente a presença da interconstitucionalidade no SIDH. Tratar-se-á destes casos no último capítulo deste estudo.

Dessa forma, fazendo uma comparação sumária entre os sistemas europeus e latino-americanos tem-se algumas semelhanças e algumas diferenças. É notório que o interconstitucionalidade ocorre em ambos os sistemas. Entretanto, dentre as diferenças, pode-se afirmar que o sistema europeu possui um sistema jurídico único enquanto que o

Tendências do constitucionalismo... 127

sistema latino-americano não possui tamanha coesão e unificação – somente possui a justaposição da ordem internacional do SIDH. Ademais, no sistema europeu, ao ingressar com uma ação, o próprio advogado europeu pode, de início, invocar a legislação mais protetiva a seu cliente, mesmo que essa faça parte do outro ordenamento jurídico constitucional de outro Estado membro, desde que referente a direitos fundamentais. Por outro lado, esse tipo de aplicação de legislação constitucional de Estado diverso, na América Latina, somente se verifica no âmbito do julgamento da Corte IDH.

Portanto, o que se percebe é que, o sistema latino-americano está caminhando para o fortalecimento da interconstitucionalidade visando maior proteção aos direitos humanos, mesmo que o faça de forma distinta ao observado no sistema europeu.

3

CASOS DE INTERCONSTITUCIONALIDADE ENVOLVENDO DIREITOS DA PERSONALIDADE NA AMÉRICA LATINA

Primeiramente, para que as principais Constituições da

América Latina possam ser estudadas, devem-se traças contornos sobre a teoria dos direitos da personalidade, considerando que é uma contribuição recente da doutrina e, diante disto, busca-se superar divergências e dificuldades na sua caracterização, tendo em vista que seu grau de generalidade e sua extensão tem prejudicado a positivação.343

Apesar de ser um instituto novo no universo jurídico, há registros de que a tutela da personalidade humana já existia na Grécia Antiga, através da hybris, representada por uma cláusula geral de proteção à personalidade concebido a partir de um preconceito tripartido, que assegurava a proteção contra injustiças, atos descomunais de uma pessoa contra a outra, e atos de insolência em face da pessoa; e no Império Romano, por meio da actio injuriarum, que consistia num interdito para defesa do sujeito contra a vida, integridade física, bem como a tutela da honra e da liberdade.344

Na tradição grega, cabe mencionar o estoicismo, que na época helenística, com o fim da democracia e das cidades-estados, atribuiu ao indivíduo que tinha perdido a qualidade de cidadão, uma nova dignidade, resultando no significado filosófico conferido ao universalismo de Alexandre o Grande, em que o “mundo é uma única cidade – cosmo-polis – da qual todos participam como amigos e iguais” (LAFER, 2009, p. 119).

Ao contrário dos filósofos gregos, os primeiros pensadores cristãos e os escolásticos345 da Idade Média e do

343 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 18. 344 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p 23-24. 345 Na obra History of economic analysis, Joseph Schumpeter mostra a relação entre a lei natural dos escolásticos e os direitos do homem. Segundo o autor, as características especulativas dos direitos do homem derivam do direito natural. In: SCHUMPETER, Joseph Alois. History of economic analysis. London: Routledge, 1994, p. 70 e ss.

Casos de interconstitucionalidade... 129

Renascimento asseguraram o valor infinito do ser humano. Foi no Cristianismo que o homem passou a ter mais atenção, uma vez que era tido pela Igreja Católica como a imagem e semelhança do Deus, merecedor de uma distinta tutela. 346

O desapego por parte de alguns pensadores em relação ao Cristianismo fez florescer a doutrina da lei natural. Neste horizonte localizam-se as ideias de propriedade propostas por Tomás de Aquino347 (1235 – 1274) – segundo o qual os homens têm direito natural ao produto da terra, um direito que na verdade pertence à comunidade humana. Também em Hugo Grotius (1583 – 1645) encontra-se a laicização do direito natural348 e o consequente apelo à razão como fundamento do direito aceitável por todos porque comum aos homens independente de suas crenças religiosas – o que também somou à tradição dos direitos humanos.

São Tomás de Aquino reformulou o conceito de pessoa, definindo-a como “substância individual de natureza racional”. Essa definição influenciou, posteriormente, a noção de dignidade da pessoa humana, uma vez que deve ser livre por natureza, e que existe em função da sua própria vontade. 349

Neste sentido, é recorrente a afirmação entre os doutrinadores de que a tutela dos direitos individuais e a noção de dignidade da pessoa humana originária do direito natural nos

346 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da Personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 33). 347 Em Tomás de Aquino, a ideia de dignidade humana consolida-se em razão da natureza divina. A dignidade própria dos seres humanos reflete a Deus. 348 Segundo Heiner Bielefeldt, “[n]o conceito de Direito natural, de um lado, exprime-se a transcedente demanda por validade da posição suprapositiva e humana do Direito, a que Sófocles alude na Antígona, com a expressão agraphoi nomoi e à qual também Kant se refere, quando designa o Direito como “o olho de Deus”, a ser defendido contra a manipulação da soberania política. Por outro lado, o Direito natural – na diferença entre ordem natural e ordem da graça divina – ta,bem pode servir de defesa da relativa independência de Direito e Moral em relação a fundamentações exclusivamente teonômicas”. In: BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos: fundamentos de um ethos de liverdade universal. Tradução de Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2000, p. 146. 349 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8ª edição. Livraria do advogado. Porto Alegre, 2007. p. 33-34.

130 Sistema interamericano de direitos humanos...

séculos XVII e XVIII, culminaram na moderna doutrina do direito de personalidade. 350

Na visão jusnaturalista351, que inspirou o constitucionalismo atual, os direitos do homem eram vistos como direitos inatos e uma verdade evidente.

A proclamação dos direitos do homem surge como medida deste tipo, quando a fonte da lei passa a ser o homem e não mais o comando de Deus ou os costumes. De fato, para o homem emancipado e isolado em sociedades crescentemente secularizadas, as Declarações de Direitos representavam um anseio muito compreensível de proteção, pois os indivíduos não se sentiam mais seguros de sua igualdade diante de Deus, no plano espiritual, e no plano temporal no âmbito dos estamentos ou ordens das quais se originavam.352

Na concepção jusnaturalista, os direitos da

personalidade já existiam antes de sua positivação pelo Estado. A pessoa humana é anterior e superior à sociedade, e, portanto, impõe-se ao Direito. Esta posição está diretamente ligada à gênese dos direitos humanos reconhecidos nas Declarações que decorreram das Revoluções Americana e Francesa e que conferiram aos direitos da personalidade uma dimensão permanente e segura.

Os ideais pregados pela corrente de pensamento iluminista353 geraram consequências para o sistema político, a monarquia e o sistema social vigentes, culminando com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembleia Nacional Francesa em 26 de agosto de 1789, que definiu os direitos inerentes à pessoa humana, hoje inscritos

350 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 39. 351 “O jusnaturalismo vem a desembocar no mais agudo positivismo jurídico, e o Código, mesmo se portador de valores universais, é reduzido à voz do soberano nacional, à lei positiva desse ou daquele Estado.” In: GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Tradução de Arno dal Ri Júnior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 114. 352 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 123. 353 Tal cenário abrigava grandes pensadores, como Montesquieu (1689 – 1755), d’Alembert (1717 – 1783), Voltaire (1694 – 1778) e Rousseau (1712 – 1778).

Casos de interconstitucionalidade... 131

em todas as Constituições democráticas contemporâneas ocidentais.354

A filosofia política do liberalismo, preconizada por John Locke (1632 – 1704) e Montesquieu, cuidou de salvar a liberdade decompondo a soberania na pluralidade dos poderes. A teoria tripartida dos poderes, como princípio de organização do Estado constitucional, é a principal contribuição desses pensadores.

Para Georg Jellinek (1851 – 1911), que pretendia romper o vínculo que identificava os direitos naturais com os direitos humanos, as Declarações de direitos do século XVIII introduziram na ordem constitucional um novo tipo de direito relativo à pessoa humana e que não encontrava justificativa no corpo da teoria dos direitos subjetivos. Consolidou-se no direito positivo a noção, até então conhecida apenas no direito natural, dos direitos subjetivos do membro do Estado frente ao Estado como um todo.355

Esses direitos proclamados face ao Estado haviam sido teoricamente sistematizados nos direitos públicos subjetivos, que se fundamentam no entendimento de que, uma vez que a prestação jurídica assume natureza pública, o mesmo aplica-se ao direito do indivíduo.356

Segundo Celso Lafer, na interação entre governantes e governados que antecede a Revolução Americana e a Revolução Francesa, os direitos do homem surgem e afirmam-se como direitos individuais face ao poder do soberano no Estado absolutista.

Representavam, na doutrina liberal, através do reconhecimento da liberdade religiosa e de opinião dos indivíduos, a emancipação do poder político das tradicionais

354 “Simplismo e otimismo parecem ser os traços que mais caracterizaram o jurista moderno, fortalecido no seu coração pelas certezas iluministas. Mas são muitos os problemas evitados, as interrogações que não se quis pôr, assim como é muito fácil sentir-se satisfeito ao contemplar um mundo povoado por figuras abstratas, projetadas por uma lanterna mágica muito bem manobrada.” In: GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Tradução de Arno dal Ri Júnior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 15. 355 JELLINEK, Georg. La Declaracion de los Derechos del hombre y del Ciudadano. Tradução de Adolfo Posada. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000, p. 143 e ss. 356 BARRETO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 245.

132 Sistema interamericano de direitos humanos...

peias do poder religioso e através da liberdade de iniciativa econômica a emancipação do poder econômico dos indivíduos do jugo e do arbítrio do poder político.357

Na mesma época, na Ásia, o Japão desenvolve-se de

maneira particular. Antes, porém, a Constituição Japonesa do ano 604, com 17 artigos, proclamada pelo imperador Shotobu Taishi e inspirada nos princípios de Confúcio (551-479 a.C.)358, declarou a igualdade de todos os cidadãos diante do imperador e a proibição da exploração humana.

O pós-Segunda Guerra inaugura o movimento de reflexão internacional comprometido com a defesa da dignidade humana e de consolidação da internacionalização dos direitos humanos.

A partir de tal transformação, as Constituições ocidentais possuem mais do que fundamento de validade superior ao do ordenamento, passando a consubstanciar a própria atividade político-estatal, a partir do estabelecimento dos direitos fundamentais e dos mecanismos de sua concretização. Essas condições favorecem uma forma de convivência que garante a democracia, mas, acima de tudo, os direitos humanos.

Pontes de Miranda enfatiza a importância de tais direitos, uma vez que sustenta que “com a teoria dos direitos de personalidade, começou para o mundo, nova manhã do direito”359. E, historicamente, Diogo Costa Gonçalves preceitua que os direitos de personalidade tiveram o berço da positivação na legislação portuguesa:

A noção de direitos de personalidade ou tutela da personalidade era desconhecida ao tempo do Código de SEABRA. Não obstante, a referência e consagração da figura dos direitos originários no Código Civil Português de 1865 consubstanciou uma clara inovação, face aos códigos civis da primeira geração, e tomou possível a existência de um arrimo

357 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 126. 358 Os ideais difundidos pelo budismo na Índia, por Zaratustra na Pérsia, e por Lao-Tsé e Confúcio na China, buscavam a ascensão espiritual do indivíduo e contribuíram para a evolução dos princípios hoje adotados nos Direitos Humanos. In: COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 8 e ss. 359 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2000, p. 30.

Casos de interconstitucionalidade... 133

juspositivo suficientemente sólido para que a doutrina pudesse acolher, quanto esta viesse a lume, a figura dos direitos de personalidade, ainda em vigência do mesmo código360.

Assim, o que se percebe é que o Código Português foi o

pioneiro em definir e tutelar os direitos da personalidade, que, a priori, eram denominados de direitos originários. A consagração dos Direitos de Personalidade, tal qual se apresentam atualmente, se deu no Código Civil de 1966.

Portanto, Gonçalves sustenta que, os direitos da personalidade no direito português foram resultado da evolução doutrinária em razão de todo o contexto histórico-jurídico no qual a Europa estava inserida. Inclusive, há quem diga que o Código Civil português vigente é a obra mais avançada a respeito desta temática361.

Nesse diapasão, surgiram alguns autores que tentaram conceituar tais direitos. Fernanda Borghetti Cantali, por exemplo, conceitua os direitos da personalidade como aqueles direitos:

[...] atinentes à tutela da pessoa humana, os quais são considerados essenciais diante da necessária proteção da dignidade da pessoa humana e da sua integridade psicofísica. Essa categoria de direitos é construção teórica relativamente recente, cujas raízes são provenientes principalmente das elaborações doutrinárias germânica e francesa da segunda metade do século XIX362.

Roxana Cardoso Brasileiro Borges acrescenta que

os direitos de personalidade [...] são próprios apenas dos seres humanos, não sendo cabíveis para os sujeitos de direito que se constituem em abstrações, idealizações, criações técnicas ou ficções, ou seja, para as pessoas jurídicas.363

360 GONÇALVES, Diogo Costa. Pessoa e direitos da personalidade: fundamentação ontológica da tutela. Almedina, 2008, p. 70. 361 Ibidem, p. 84. 362 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 28. 363 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 18.

134 Sistema interamericano de direitos humanos...

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Adriano de Cupis faz uma observação importante, uma vez que sustenta que os direitos da personalidade são

aqueles direitos sem os quais todos outros direitos subjetivos perderiam todo o interesse para o indivíduo - o que equivale a dizer que, se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal.364

Diante dos conceitos trazidos e da afirmação de De

Cupis, percebe-se a importância dos direitos da personalidade e sua proteção pelo ordenamento jurídico tanto nacional quanto internacional. Isso porque, estes direitos decorrem diretamente da qualidade de ser pessoa e da dignidade inerente a cada ser humano. Por esta razão, os direitos da personalidade devem ser tutelados de forma sólida nos ordenamentos jurídicos.

Nesse contexto, passa-se a analisar o texto constitucional das Constituições dos principais Estados da América Latina no que concerne à tutela dos direitos de personalidade, estabelecendo assim, possíveis pontos de convergência interculturais para uma futura análise casuística interconstitucional. 3.1 DO DIREITO DA PERSONALIDADE NAS PRINCIPAIS CONSTITUIÇÕES DA AMÉRICA LATINA

Primeiramente, ao se falar da tutela dos direitos da

personalidade na Constituição do Brasil, deve-se ter em mente, primeiramente, que não há propriamente uma teoria geral de tutela dos direitos da personalidade. No entanto, a proteção é bastante ampla. Isso porque na Constituição Federal, principalmente em seu artigo 5º, existe um rol de direitos de personalidade garantidos365. Ademais, esta proteção se estende de forma taxativa no Código Civil brasileiro, que possui um

364 DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Moraes, 1961, p. 24. 365 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 04.ago.2014.

Casos de interconstitucionalidade... 135

capítulo dedicado a estes direitos – Capítulo II – Direitos da Personalidade366.

Na Argentina, a tutela dos direitos de personalidade está espalhada em diversas legislações esparsas na Argentina, como na Lei 11.723 que protege o direito à imagem; a Lei 18248 que estabelece a regulação do direito ao nome; a Lei 21.173 que incorpora ao texto do Código Civil o artigo 1071 bis, que tutela o direito à intimidade; a Lei 23.592 que tutela o direito à igualdade, dentre outros exemplos367. Além da proteção fornecida pela legislação infraconstitucional, e apesar de não conter um artigo em especial que confere e cita diretamente a proteção dos direitos de personalidade, a Constituição da Argentina, após a reforma de 1994, importou uma ratificação explícita destes direitos. Isso porque, com a incorporação dos Tratados, Pactos e Convenções prevista pelo artigo 75, inciso 22 – inclusive com hierarquia superior à das leis – e a incorporação dos artigos 37, 39, 41, 42 e 43368, se estabeleceu no ordenamento jurídico argentino um sistema íntegro de proteção aos direitos personalíssimos369.

Plovanich explica que, no direito constitucional argentino, a categoria dos direitos de personalidade forma um círculo concêntrico dentro do mais geral dos direitos fundamentais, que se caracteriza por um específico mecanismo de tutela que se sobrepõe ao sistema de proteção estabelecido na Constituição370. Em outras palavras, os direitos da

366 BRASIL. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 04.ago.2014. 367 ESPANÉS, Luis Moisset de; FERNÁNDEZ, María del Pilar Hiruela de. Derechos de la personalidad. In: Revista Eletronica Mensual de Derechos Existenciales. n. 45, octubre del 2005. Disponível em: <http://www.revistapersona.com.ar/Persona46/46Moisset.htm>. Acesso em: 12.jun.2014. 368 ARGENTINA. Constitución Nacional de la Argentina. Disponível em: <http://www.constitution.org/cons/argentin.htm>. Acesso em: 05.jun.2014. 369 ESPANÉS, Luis Moisset de; FERNÁNDEZ, María del Pilar Hiruela de. Derechos de la personalidad. In: Revista Eletronica Mensual de Derechos Existenciales. n. 45, octubre del 2005. Disponível em: <http://www.revistapersona.com.ar/Persona46/46Moisset.htm>. Acesso em: 12.jun.2014. 370 PLOVANICH, María Cristina. Enfoque constitucional de los derechos de la personalidad. Disponível em: <http://www.acaderc.org.ar/doctrina/articulos/enfoque-constitucional-de-los-derechos-de-la>. Acesso em: 12.jun.2014, p. 03.

136 Sistema interamericano de direitos humanos...

personalidade seriam como um círculo de direitos inseridos no âmbito geral dos direitos fundamentais. Círculo este no qual alguns direitos estariam explícitos, e outros se poderiam extrair ou entender de modo implícito dentro dos artigos 31 e 33 da Constituição Nacional Argentina.

O inciso I do artigo 14 da Constituição da Bolívia, que está dento do capítulo de direitos e garantias fundamentais, dispõe que todo ser humano tem personalidade e capacidade jurídica com a proteção das leis e goza dos direitos reconhecidos naquela constituição371. De acordo com o Estado e com a Constituição boliviana, em seu Artigo 306, inciso V, tem-se como valor máximo o ser humano.

Pode-se observar ainda que esta proteção aos direitos personalíssimos se intensifica à medida que o artigo 13 do mesmo diploma dispõe que os tratados e convenções internacionais que reconhecem os direitos humanos que forem ratificados pela Assembleia Legislativa Plurinacional prevalecem no direito interno. E o artigo 257 da CF boliviana, por sua vez, reconhece que os tratados internacionais ratificados formam parte do ordenamento jurídico interno, conferindo proteção a estes direitos tanto no âmbito do direito interno quanto no direito internacional.

A Constituição Chilena tampouco traz expresso em seu texto a proteção aos direitos de personalidade. O capítulo “Dos direitos e deveres constitucionais”, por outro lado, em seu artigo 19 positiva a proteção do direito à vida, integridade física e psíquica, igualdade, respeito à vida privada, inviolabilidade de comunicação, dentre outros direitos. O texto constitucional chileno limita-se a dizer que o Estado está a serviço da pessoa humana e sua finalidade é promover o bem comum, e ainda afirma que é dever dos órgãos do Estado respeitar e promover os direitos essenciais à natureza humana, assim como os tratados internacionais ratificados pelo país372.

Yáñez complementa que, apesar de não ter esta proteção expressa na constituição chilena, uma pessoa pode ser

371 BOLIVIA. Constitución de 2009. Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/constitutions/bolivia/bolivia09.html>. Acesso em: 20.jun.2014. 372 CHILE. Constitución Política de la República de Chile. Disponível em: <http://www.camara.cl/camara/media/docs/constitucion_politica.pdf>. Acesso em: 20.jun.2014.

Casos de interconstitucionalidade... 137

resguardada de seus direitos de personalidade de forma geral na Constituição e nos Tratados Internacionais em vigência, além de encontrar albergue no ordenamento civil e penal373.

O artigo 14 da Constituição Colombiana dispõe que toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade. O artigo 15, por sua vez, declara a proteção ao direito à intimidade, bom nome e respeito por parte do Estado. Por fim, o artigo 16 positiva que todas as pessoas têm direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade sem mais limitações do que aquelas que impõem o direito dos demais e da ordem jurídica374. Ademais, a Constituição colombiana não exclui os direitos advindos de tratados e convenções internacionais, declarando que estes documentos, uma vez ratificados pelo Congresso, e em se tratando de direitos humanos prevalecem sobre a ordem interna.

Apesar de não trazer expresso em seu texto constitucional a proteção e tutela dos direitos da personalidade, a Constituição do Equador dispõe, em seu artigo 48 que o Estado reconhecerá e garantirá às pessoas os chamados por eles de “Direitos de liberdade”, como o direito à inviolabilidade da vida, direito à saúde, integridade física, psíquica e moral e sexual, além do direito à igualdade e do livre desenvolvimento da personalidade375.

Quanto ao âmbito de proteção, este Estado não exclui a proteção que possa a vir de tratados internacionais, que poderão ser ratificados pelo Equador nos termos dos artigos 417 e 424376.

O preâmbulo da Constituição do Paraguai dispõe que o povo paraguaio reconhece a dignidade humana com o fim de assegurar a liberdade, a igualdade e a justiça. Em seu artigo 25, intitulado de “De la expresion de la personalidad”, tem-se que

373 YÁÑEZ, Gonzalo Figueroa. Los derechos de la personalidad em general: concepción tradicional. In: Revista de Derecho de la Universidad Católica de Valparaíso XIX. Chile, 1998. Disponível em: <http://www.rdpucv.cl/index.php/rderecho/article/viewFile/397/370>. Acesso em: 19.jun.2014, p. 22. 374 COLOMBIA. Constitución Política de la República de Colombia. Disponível em: <http://www.alcaldiabogota.gov.co/sisjur/normas/Norma1.jsp?i=4125>. Acesso em: 20.jun.2014. 375 EQUADOR. Constitución Ecuador. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/PDFs/mesicic4_ecu_const.pdf>. Acesso em: 20.jun.2014. 376 Ibidem.

138 Sistema interamericano de direitos humanos...

toda pessoa tem o direito da livre expressão de sua personalidade, da criatividade e da formação de sua própria identidade e imagem. Apesar de não garantir expressamente a proteção aos direitos personalíssimos, o texto constitucional paraguaio dispõe em seu artigo 45, intitulado de “De los derechos y garantias no enunciados”, que a falta de disposição expressa de direitos e garantias não deve ser entendida como negação destes direitos que, sendo inerentes à personalidade humana, devem ser protegidos. Ademais, este artigo aduz que a falta de lei não pode ser alegada como desculpa para deixar de conceder um desses direitos377.

Por fim, ao interpretar extensivamente, pode-se observar que no preâmbulo desta constituição, juntamente com o artigo 137 tratam acerca da integração do Paraguai à comunidade internacional. Assim, os tratados internacionais que por ventura tratem dos direitos de personalidade e que sejam aprovados, poderão oferecer proteção a tais direitos378.

A Constituição Peruana, por sua vez, afirma em seu artigo 1º que a defesa da pessoa humana e o respeito à sua dignidade são os fins supremos da sociedade e do Estado. No artigo 2º dispõe que toda pessoa tem direito à vida, à integridade física, moral e psíquica, ao seu livre desenvolvimento e bem-estar. Ademais, todas as pessoas têm direito à igualdade perante a lei, seja por questões referentes à origem, raça, sexo, idioma, religião, opinião ou condições econômicas, ou qualquer outro gênero (inciso 2), liberdade de consciência e religião, informação, opinião e comunicação (incisos 3 e 4), à honra, intimidade pessoal e à imagem (inciso 7), dentre outros379.

A Constituição Peruana traz ainda a possibilidade de proteção aos direitos de personalidade através dos tratados celebrados pelo Estado, que formam parte do direito nacional - artigo 55380.

377 PARAGUAI. Constitución de la República de Paraguay. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/spanish/par_res3.htm>. Acesso em: 20.jun.2014. 378 Ibidem. 379 PERU. Constitución Política del Perú. Disponível em: <http://www.pcm.gob.pe/wp-content/uploads/2013/09/Constitucion-Pol%C3%ADtica-del-Peru-1993.pdf>. Acesso em: 20.jun.2015. 380 PERU. Constitución Política del Perú. Disponível em: <http://www.pcm.gob.pe/wp-content/uploads/2013/09/Constitucion-Pol%C3%ADtica-del-Peru-1993.pdf>. Acesso em: 20.jun.2015.

Casos de interconstitucionalidade... 139

Em sentença proferida pelo Tribunal Constitucional do Peru, tem-se ainda que, o ordenamento constitucional peruano assegura também alguns direitos constitucionais não enumerados na Constituição, e dentre eles o direito ao livre desenvolvimento da personalidade humana381.

A Constituição do Uruguai traz um capítulo acerca dos direitos e garantias fundamentais, que começa no artigo 7º e acaba no artigo 39. Dentre os direitos garantidos neste capítulo estão: o direito à vida, à honra, à liberdade, à igualdade, etc. Ademais, no artigo 72, esta constituição dispõe que a enumeração dos direitos, deveres e garantias naquele texto feitas não excluem outros direitos inerentes à personalidade humana ou que derivem da forma republicana de governo382.

O artigo 20 da Constituição da Venezuela dispõe que toda pessoa tem direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, sem mais limitações do que as derivadas de lei ou da ordem pública e social. O artigo 60 do mesmo diploma garante a proteção à honra, vida privada, intimidade, própria imagem, confidencialidade e reputação383.

Guillén esclarece que a Constituição venezuelana de 1999 trouxe diversas inovações no que diz respeito aos direitos de personalidade384. A autora explica que na Constituição anterior, promulgada em 1961, em seu artigo 50, consagrava uma cláusula aberta segundo a qual a enunciação dos direitos contidos na mesma não deveria ser entendida como negação dos demais direitos inerentes à pessoa humana. E acrescentava que a falta de lei não poderia impedir o exercício de tais direitos. Esta norma foi repetida na atual Constituição, promulgada em

381 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, PERU. EXP. n.º 01575-2007-PHC/TC. Disponível em: <http://www.tc.gob.pe/jurisprudencia/2009/01575-2007-HC.html . Acesso em: 19.jun.2014. 382 URUGUAY. Constitución de la República. Disponível em: <http://www.parlamento.gub.uy/constituciones/const004.htm>. Acesso em: 20.jun.2014. 383 VENEZUELA. Constitución Venezuelana. Disponível em: <http://www.tsj.gov.ve/legislacion/constitucion1999.htm>. Acesso em: 20.jun.2014. 384 GUILLÉN, María Candelaria Domínguez. Innovaciones de la constitución de 1999 em matéria de derechos de la personalidad. Revista de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Políticas de la Universidad Central de Venezuela. Caracas, Venezuela, 119 (2000). Disponível em: <http://www.ulpiano.org.ve/revistas/bases/artic/texto/RDUCV/119/rucv_2000_119_17-44.pdf>. Acesso em: 20.jun.2014, p. 19.

140 Sistema interamericano de direitos humanos...

1999, em seu artigo 22, com a finalidade de manter seu caráter enunciativo. Todavia, trouxe uma inovação, qual seja, a inclusão dos instrumentos internacionais, de maneira que se pode continuar sustentando a existência de outros muitos direitos da pessoa e da personalidade, mesmo que não apareçam expressamente indicados no texto constitucional385.

A Guiana e o Suriname são os dois Estados mais novos e menos povoados da América do Sul e estão entre os de menor dimensão territorial. Além disso, ambos se caracterizam por uma composição etno-cultural extremamente complexa e diversa, por idiomas distintos dos demais países sul-americanos e por uma inserção voltada para o Caribe. Juntamente com a Guiana francesa, que é parte integrante da França e consequentemente, da União Europeia, a Guiana (ex-inglesa) e o Suriname (ex-Guiana holandesa) formam uma região geopolítica própria, as Guianas.386

Dito isto, passa-se à análise de suas respectivas constituições. A Constituição da Guiana traz em seu Capítulo II, artigo 15, a proteção ao desenvolvimento dinâmico e estável da personalidade, criatividade e habilidades empreendedoras em uma sociedade plural. Ademais, seu Capítulo III versa sobre os direitos fundamentais e liberdades do indivíduo, trazendo proteção a uma vida feliz, criativa e produtiva, livre de fome, doença e ignorância. Além disso, o artigo 40 protege a vida, liberdade, segurança, liberdade de expressão, privacidade e a propriedade387.

A Guiana Francesa é ainda parte integrante da França, e por isso não possui Constituição própria. Dessa forma, é um território francês, administrado pela matriz, regido pela Constituição Francesa e também possui a mesma moeda da França, o Euro. Por esta razão, não se fará a análise de sua constituição.

385 Ibidem, p. 20. 386 VISENTINI, Paulo Fagundes. Guiana e Suriname: uma outra América do Sul. In: Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional - II CNPEPI: O Brasil no Mundo que vem aí - América do Sul. Brasília: FUNAG/MRE, 2008. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/nerint/folder/artigos/artigo2.pdf>. Acesso em: 21.jun.2015, p.1. 387 GUIANA. Constitution of the Co-operative Republic of Guyana Act. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/spanish/mesicic2_guy_constitution.pdf>. Acesso em: 20.jun.2014.

Casos de interconstitucionalidade... 141

Por fim, a Constituição de Suriname, ex-Guiana holandesa, traz em sua seção onze intitulada “Juventude”, o artigo 37 que dispõe em seu inciso segundo que o objetivo primordial da política governamental da juventude deverá ser o desenvolvimento da personalidade dos jovens e do conceito de serviço à comunidade. Além disso, em seu Capítulo quinto, intitulado “Direitos básicos, direitos individuais e liberdades” observa-se a proteção à pessoa e à propriedade, e à não-discriminação (artigo 8); proteção à integridade física, mental e moral (artigo 9); à liberdade (artigo 10); proteção à vida (artigo 14); tutela da privacidade, família, casa, honra e nome (artigo 17); dentre outros388.

A Constituição do México de 1917, que tem como nome oficial: Constitución Politica de los Estados Unidos Mexicanos é a atual lei suprema da federação mexicana. Este ordenamento traz, em seu Capítulo I, artigo 1º, a proteção aos direitos humanos, ao dispor que todas as pessoas gozarão dos direitos humanos reconhecidos na constituição mexicana ou nos tratados internacionais em que o México seja parte. Essa normativa garante ainda o livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, em seu artigo 19. Por fim, o artigo 29 decreta que às pessoas são reconhecidos os direitos à não discriminação, ao reconhecimento de sua personalidade, ao nome, à família, à nacionalidade, direitos políticos, liberdade de pensamento e religiosa, dentre outros389.

A Constituição de El Salvador, aprovada em 1983, reconhece, em seu artigo 1º a pessoa humana como origem e fim da atividade do Estado, que tem como objetivos a consecução da justiça, da segurança jurídica e o bem comum. E, em seu artigo 2º traz os direitos individuais e a proteção à vida, integridade física e moral, liberdade, segurança, trabalho, honra, intimidade, imagem, igualdade, dentre outros. Garante ainda no artigo 53 o direito à educação e cultura inerente à pessoa humana, entretanto, não garante expressamente os direitos da personalidade, a não ser mencionar o fato de que a

388 SURINAME. Constitution of Suriname. Disponível em: <http://www.constitution.org/cons/suriname.htm>. Acesso em: 20.jun.2014. 389 MÉXICO. Constitución política de los estados unidos mexicanos. Disponível em: <http://www.ordenjuridico.gob.mx/Constitucion/cn16.pdf>. Acesso em: 21.jun.2015.

142 Sistema interamericano de direitos humanos...

educação será garantida e tem como fim lograr o desenvolvimento integral da personalidade, no artigo 55390.

A Constituição da Costa Rica, de 1999, aduz que a vida humana é inviolável (artigo 21), e oferece proteção à intimidade, liberdade (artigo 24), bem como crença religiosa (artigo 30) e igualdade e dignidade humana (artigo 33). Nada menciona expressamente acerca dos direitos da personalidade. No entanto, dita no artigo 7 que, os tratados internacionais devidamente aprovados pela Assembleia Legislativa terão autoridade superior à das leis391.

Já a Constituição de Cuba, datada de 1976, prevê em seu preâmbulo, a cooperação e a solidariedade com os povos do mundo, especialmente os da América Latina e do Caribe. Ademais, dispõe que o Estado deve garantir a liberdade, a dignidade plena do homem, o disfrute de seus direitos, assim como o desenvolvimento integral de sua personalidade (artigo 9º)392.

Por fim, ao analisar a Constituição da República Dominicana, proclamada em 2010, observa-se a proteção aos recursos naturais (artigos 14 a 17), bem como garante, no Título II, os direitos à vida (artigo 37), à dignidade humana (artigo 38), à igualdade (artigo 39), liberdade (artigo 40), integridade física (artigo 42), livre desenvolvimento de sua personalidade (artigo 43), intimidade e honra (artigo 44). Ademais, em seu artigo 26 declara que o Estado é membro da comunidade internacional e está aberto à cooperação com relação às normas de direito internacional, favorecendo a cooperação entre as nações da América, a fim de fortalecer uma comunidade de nações que defenda os interesses da região393.

Após este estudo comparado, o que se percebe é que, mesmo existindo diferenças culturais, as Constituições dos países da América Latina têm também pontos de convergência,

390 EL SALVADOR. Constitucion de la republica de el salvador. Disponível em: <http://www.constitution.org/cons/elsalvad.htm>. Acesso em: 21.jun.2015. 391 COSTA RICA. Constitucion politica de la republica de costa rica. 1999. Disponível em: <http://www.costaricaweb.com/general/constitucion.htm>. Acesso em: 21.jun.2015. 392 CUBA. Constitución de la republica de cuba. Disponível em: <http://www.cuba.cu/gobierno/cuba.htm>. Acesso em: 21.jun.2015. 393 REPÚBLICA DOMINICANA. Constitución de la República Dominicana, proclamada el 26 de enero de 2010. Disponível em: <https://www.ifrc.org/docs/idrl/751ES.pdf>. Acesso em: 21.jun.2015.

Casos de interconstitucionalidade... 143

o que possibilitaria um diálogo constitucional em âmbito latino-americano, visando sempre possibilitar uma maior proteção aos direitos da personalidade dos indivíduos.

Dessa forma, apesar de muitas constituições não trazerem expressamente a proteção aos direitos da personalidade, o fazem dentro de capítulos próprios como por exemplo, capítulos que tratam dos direitos e garantias fundamentais. E, quando, não o fazem desta forma, permitem que a legislação internacional ofereça tal proteção.

3.2 DA ANÁLISE DOS CASOS DE EFETIVAÇÃO DA INTERCONSTITUCIONALIDADE ENVOLVENDO DIREITOS DA PERSONALIDADE NA AMÉRICA LATINA

Neste estudo, optou-se por analisar casos em que haja

a presença da interconstitucionalidade na América Latina. Entretanto, destarte, deve-se frisar que houve uma delimitação. Isso porque, apesar de a competência da Corte IDH ser no sentido de analisar casos relativos aos direitos humanos, aqui serão analisados casos de interconstitucionalidade que versem sobre direitos da personalidade. Isso se explica porque, dentre os direitos humanos, encontram-se alguns direitos da personalidade, que são aqueles inerentes apenas dos seres humanos.

Sendo assim, passa-se à análise de casos em que há a presença da interconstitucionalidade no âmbito da América Latina, que envolvem direitos da personalidade. Importante frisar que, para este estudo, foi considerada a teoria geral dos direitos da personalidade, na qual, estes não são vistos como um rol taxativo, ou seja, somente os direitos expressamente previstos nos textos legais são considerados direitos da personalidade. Pelo contrário, a teoria que se utilizou foi aquela que dita que são direitos da personalidade aqueles direitos inerentes à condição humana. 3.2.1 O caso 11.552 – Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) Vs. Brasil

O primeiro caso estudado foi o caso n° 11.552 – GOMES

LUND E OUTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”). O “Caso Araguaia”, como ficou conhecido, foi a mais recente condenação

144 Sistema interamericano de direitos humanos...

do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O caso versava sobre o reconhecimento, pelo referido Tribunal Internacional, de que o Brasil foi omisso ao não apurar alguns desaparecimentos forçados durante a “Guerrilha do Araguaia”.

Esta demanda versava sobre a responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, dentre elas membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região, pelo Exército, com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia durante o período da ditadura militar.

Portanto, a Comissão solicitou ao Tribunal que declarasse que o Estado era responsável pela violação dos direitos estabelecidos nos artigos 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais), 13 (liberdade de pensamento e expressão) e 25 (proteção judicial), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conexão com as obrigações previstas nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da mesma Convenção.

Sendo assim, é notório que este caso tratou acerca de diversos direitos da personalidade, dentre eles, o direito ao reconhecimento da personalidade, direito à vida, direito à integridade física. Por esta razão, este caso estará sub oculis.

Assim, tem-se que a Guerrilha do Araguaia foi um movimento ocorrido na região amazônica brasileira, ao longo do rio Araguaia, entre meados da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970. Este movimento foi apoiado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e tinha por objeto fomentar uma revolução socialista394.

Nesse contexto, a petição original pedindo providências somente foi apresentada à Comissão em 7 de agosto de 1995. Porém, somente em 26 de março de 2009, a Comissão

394 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha Do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>. Acesso em: 05.mai.2014.

Casos de interconstitucionalidade... 145

Interamericana de Direitos Humanos submeteu à Corte IDH demanda contra a República Federativa do Brasil.

Em 24 de novembro de 2010 sobreveio sentença que reconheceu o desaparecimento forçado e os direitos da personalidade violados das 62 pessoas desaparecidas. Dessa forma, a Corte IDH condenou o Brasil a indenizar os familiares das vítimas, considerados desaparecidos políticos, além de localizar e identificar as vítimas ou seus restos mortais, realizar persecução criminal dos autores dos crimes cometidos no Araguaia, permitir o acesso aos arquivos históricos e a divulgação de suas informações e fornecer tratamento psicológico e psiquiátrico às vítimas, dentre outras condenações.

A Corte IDH ainda classificou tal ato como crime de lesa-humanidade395, e se pronunciou acerca da impunidade no Brasil: “É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil”396.

O principal dilema encontrado no processo diz respeito à Lei de Anistia criada pelo Estado brasileiro em 1979, a qual impedia que fossem processados e sancionados penalmente os responsáveis pelas violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar.

Nesse sentido, apesar de a CIDH já ter se pronunciado diversas vezes acerca da incompatibilidade das leis de anistia com as obrigações internacionais, o Brasil não cumpriu permaneceu omisso e não adequou o direito interno com as normas internacionais, qual seja, com o artigo 2 da Convenção Americana.

395 A noção do crime de lesa-humanidade produziu-se já nos primórdios do século passado, estando consubstanciado no preâmbulo da Convenção de Haia sobre as Leis e Costumes de Guerra (1907), segundo o qual os Estados pactuantes submetem-se às garantias e ao regime dos princípios do Direito Internacional preconizados pelos costumes estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública. Explicação extraída da Sentença no caso nº 11.552, 2010, p. 122. 396 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha Do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>. Acesso em: 05.mai.2014.

146 Sistema interamericano de direitos humanos...

Isso porque, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153 que confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, não considerou as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil. Assim, a CIDH entendeu que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades judiciárias do Estado brasileiro397.

A Corte então decidiu que o Brasil havia violado direitos da personalidade das pessoas, pois “a implantação e a manutenção de centros clandestinos de detenção configuram per se uma falta à obrigação de garantia, por atentar diretamente contra os direitos à liberdade pessoal, à integridade pessoal, à vida e à personalidade jurídica”398. Grifo nosso

Como consequência desta condenação, a jurisdição internacional prevaleceu sob a jurisdição interna do Brasil. Sendo assim, percebe-se que houve a presença da interconstitucionalidade, uma vez que, julgado o caso Araguaia pela Corte IDH, houve uma relação de justaposição entre ordens jurídicas. Isso porque, mesmo tendo o Supremo Tribunal Federal confirmado a validade da Lei de Anistia, a Corte entendeu que esta norma não era condizente com as normativas da Convenção Americana, bem como era incompatível com a proteção que se deve dar aos direitos da personalidade dos indivíduos.

Assim, por determinação da Corte, a Lei de Anistia brasileira passou a não ter mais validade em razão de não estar em consonância com a normativa internacional e interamericana de proteção aos direitos humanos.

Portanto, o que se verifica deste caso é que houve o interconstitucionalidade nos moldes da primeira premissa encontrada nesta pesquisa, qual seja, quando há justaposição de ordens jurídicas, que ocorre por meio do aceite por parte dos Estados membros da jurisdição do SIDH. Sendo assim, no caso sub oculis, o ordenamento constitucional interno do Brasil foi sobreposto pelo ordenamento internacional, em nome da defesa dos direitos da personalidade.

Percebe-se, através deste caso, a importância dos tratados internacionais e do diálogo entre ordens jurídicas. Isso porque, a intervenção da Corte possibilitou maior proteção aos direitos da personalidade, ao julgar de forma controversa à

397 Ibidem. 398 Ibidem, p. 40.

Casos de interconstitucionalidade... 147

norma brasileira, confirmando a eficácia da interconstitucionalidade.

3.2.2 O caso 12.465 – Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador

O segundo caso analisado foi caso nº 12.465 – PUEBLO

INDÍGENA KICHWA DE SARAYAKU VS. ECUADOR. De acordo com o relatório da CIDH, este caso refere-se principalmente à concessão de uma permissão por parte do Estado equatoriano dada a certa empresa petrolífera privada para realizar atividades de exploração petroleira no território do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku, na década de 90, sem que se houvesse consultado previamente tal povo, e sem qualquer consentimento por parte da comunidade indígena. Assim, iniciaram-se as explorações e seus efeitos foram de tamanha monta que repercutiram em todo o mundo.

Dentre os efeitos desse ato, tem-se o risco de morte da população indígena, que ficou um período sem poder buscar meios de subsistência, além de ter seus direitos de circulação e de expressar sua cultura violados. Ademais, o dano ambiental causado pela empresa CGC resta inestimável, uma vez que se utilizaram de explosivos de alto poder em vários pontos do território indígena, construíram portos, destruíram cavernas e fontes d´água nativas, rios subterrâneos utilizados pela comunidade para consumo próprio, além de derrubar incontáveis árvores e plantas de grande valor ambiental e de subsistência para os Kichwa399.

Nesse sentido, a CIDH apontou as possíveis violações por parte do Estado equatoriano, quais sejam, direito de consulta e propriedade indígena, direito de livre circulação, de expressão de sua cultura, direito ao meio ambiente, direito à vida e integridade física, direito à liberdade, direito à garantia e proteção judicial, dentre outros.

Dentre os direitos supracitados que foram violados, é claro que se encontram diversos direitos da personalidade. Os

399 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Ecuador. Sentença de 27 de junho de 2012. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_245_esp.pdf>. Acesso em: 22.jun.2015.

148 Sistema interamericano de direitos humanos...

principais deles são o direito à vida e à integridade física, que, neste caso, a Corte entendeu como violados porque o Estado violou seu dever de garantir o respeito ao direito de propriedade, e consequentemente, permitiu o uso de explosivos no território indígena, o que ocasionou uma situação permanente de perigo à vida e à sobrevivência desse povo. Ademais, colocou em risco o direito deste povo de preservar e transmitir seu legado cultural400.

Ao final, a Corte IDH concluiu que é obrigação do Estado garantir o direito à consulta prévia do povo indígena antes de conceder permissões para adentrar e explorar seu território. Como fundamentação dessa decisão, a Corte utilizou-se de jurisprudências de diversos países da América Latina, dentre eles Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, México, Nicarágua, Paraguai, Peru, Venezuela, Belize e Brasil.

Citou a Constituição Nacional da República Argentina, de 1994, que, em seu artigo 75.17 reconhece a preexistência étnica e cultural dos povos indígenas argentinos e das pessoas jurídicas de duas comunidades401.

Aduziu também que, na Bolívia, a Constituição Política do Estado, de 2009. Reconhece o direito dos povos indígenas a serem consultados mediante procedimentos apropriados toda vez que houver medidas legislativas ou administrativas que os afetem, conforme disposição do artigo 30, II, 15. Ademais, o Tribunal Constitucional da Bolívia se pronunciou em diversas oportunidades acerca do direito à consulta prévia. No Chile, de forma semelhante, há lei própria para tutelar tais direitos – Lei 19.253 (Lei Indígena)402.

A Constituição Política da Colômbia, por sua vez, estabelece no parágrafo do artigo 330 que a exploração dos recursos naturais em territórios indígenas não pode ser feita de modo a desrespeitar a integridade cultural, social e econômica das comunidades. Ademais, a Corte valeu-se da interpretação da sentença T-129/11, parágrafo 5.1 proferida pela Corte Constitucional da Colômbia ao aduzir que é dever do Estado

400 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Ecuador. Sentença de 27 de junho de 2012. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_245_esp.pdf>. Acesso em: 22.jun.2015, p. 72-73. 401 Ibidem, p. 45. 402 Ibidem.

Casos de interconstitucionalidade... 149

garantir e aplicar real e efetivamente o direito fundamental de consulta prévia das comunidades étnicas, pois diante disto, poderá se chegar a um ponto intermediário de diálogo intercultural no qual os povos possam exercer seu direito de autonomia frente aos modelos econômicos baseados na economia de mercado403.

A Constituição Mexicana igualmente dispõe que o Estado deve promover a igualdade de oportunidades dos indígenas e eliminar qualquer prática discriminatória404.

De forma semelhante, a Constituição da Nicarágua positiva, no Título IV, artigo 89, que as comunidades indígenas têm direito a preservar e desenvolver sua identidade cultural na unidade nacional. Ademais, o Estado reconhece o gozo, uso e disfrute das águas e bosques pelas comunidades indígenas405.

A Constituição do Paraguai de 1992, estabelece em seu artigo 64, que os povos indígenas têm direito à propriedade comunitária da terra, em extensão e qualidade suficientes para a conservação e desenvolvimento de suas formas peculiares de vida406.

A Constituição Bolivariana da Venezuela, de 1999, também dispõe, em seu artigo 120, que o aproveitamento dos recursos naturais nos habitats indígenas por parte do Estado não pode lesionar a integridade cultural, social e econômica dos mesmos407.

A Corte Suprema de Belize assinalou o reconhecimento ao direito à terra dos povos indígenas bem como a reflexão dos princípios internacionais relativos aos mesmos408. E, no Brasil, o julgado federal da Seção Judiciária do Maranhão afirmou que o Estado não pode desconhecer a proteção constitucionalmente garantida como um dos objetivos fundamentais da República

403 Ibidem, pp. 47, 56 e 58. 404 Ibidem, p. 45. 405 Ibidem, p. 46. 406 Ibidem. 407 Ibidem. 408 Corte Suprema de Belice, Aurelio Cal por derecho propio y en nombre de la Comunidad Maya de Santa Cruz y otros Vs. Procurador General de Belice y otros, casos 171 y 172 de 2007. Sentencia de 18 de octubre de 2007. Ver mais em: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Ecuador. Sentença de 27 de junho de 2012. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_245_esp.pdf>. Acesso em: 22.jun.2015, p. 47.

150 Sistema interamericano de direitos humanos...

Federativa do Brasil, que é promover o bem de todos, sem preconceitos de qualquer origem, conforme disposto no artigo 3º, IV da Constituição Federal.

Além disso, a Corte utilizou também como fundamento o Convênio 169 da OIT, que prevê a consulta prévia aos povos indígenas antes de efetuar qualquer procedimento em suas terras, e a Convenção de Viena da Organização das Nações Unidas – ONU.

O que se nota é neste caso há um interconstitucionalidade inerente à segunda premissa encontrada nesta pesquisa, qual seja, referente à aplicação, por parte da Corte IDH, de norma constitucional de Estado diverso daquele que é parte no processo ao caso concreto. Isso porque, o caso em comento versava sobre determinada comunidade indígena do Equador, e como fundamentação para a sentença, a Corte utilizou-se de diversas normas constitucionais e jurisprudências de Supremas Cortes dos Estados da América Latina para solucionar a lide. Tudo isto para encontrar a legislação mais protetiva com relação aos direitos da personalidade e aplica-la ao caso concreto, propiciando assim maior efetividade aos direitos dos indivíduos. 3.2.3 O caso 12.051 – Maria da Penha Maia Fernandes Vs. Brasil

O caso nº 12.051 – MARIA DA PENHA MAIA

FERNANDES, que foi denunciado à Comissão Interamericana em 20 de agosto de 1998, e tratou da situação de abuso sofrida pela Senhora Maria da Penha Maia Fernandes passa a ser o foco da pesquisa neste momento. A denúncia feita à CIHD tratava da tolerância do Brasil para com a violência cometida por Marco Antônio Heredia Viveiros em seu domicílio na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, contra a sua então esposa Maria da Penha durante os anos de convivência matrimonial, que acabou em tentativa de homicídio e novas agressões em maio e junho de 1983. Maria da Penha, em decorrência dessas agressões, quedou-se com paraplegia irreversível. Denuncia-se a tolerância do Estado, por não haver efetivamente tomado as medidas necessárias para coibir tal conduta e punir o agressor por mais de 15 anos, apesar das denúncias efetuadas.

Casos de interconstitucionalidade... 151

Este caso foi excepcional porque não houve o exaurimento da via doméstica. Isso porque, segundo o artigo 46(1)(a) da Convenção Interamericana, é necessário o esgotamento dos recursos da jurisdição interna para que uma petição seja admissível perante a Comissão. No entanto, a Convenção também prevê no mesmo artigo que, quando houver atraso injustificado na decisão dos recursos internos, a disposição não se aplicará. Desse modo, a própria pessoa física da Sra. Maria da Penha denunciou seu caso à Comissão Interamericana ante a ineficácia do Estado brasileiro em combater a violência doméstica por ela sofrida. Enviada petição ao Estado brasileiro, o mesmo permaneceu inerte, e por esta razão, a Comissão considerou que o silêncio do Estado implicou em uma renúncia tácita a invocar esse requisito409.

Assim, a CIDH entendeu pela pertinência do caso e denunciou o Estado brasileiro pela violação dos artigos 1(1) (Obrigação de respeitar os direitos); 8 (Garantias judiciais); 24 (Igualdade perante a lei) e 25 (Proteção judicial) da Convenção Americana, em relação aos artigos II e XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (doravante denominada “a Declaração”), dentre outras cominações legais.

Ademais, a Comissão entendeu que o fato inconteste de que a justiça brasileira demorou mais de 15 anos sem proferir sentença definitiva neste caso justifica a intervenção do referido órgão.

O caso Maria da Penha foi solucionado de forma amigável, e finalmente, em 13 de março de 2001, a Comissão enviou relatório ao Estado brasileiro com as seguintes recomendações: a) completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia; b) proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados; c) adotar medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação simbólica e material pelas violações aqui estabelecidas, particularmente por sua falha em oferecer um

409 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório n° 54/01, Caso 12.051. Maria da Penha Maia Fernandes, 4 de abril de 2001. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm>. Acesso em: 22.jun.2015.

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recurso rápido e efetivo; por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos; e por impedir com esse atraso a possibilidade oportuna de ação de reparação e indenização civil; d) prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil 410.

Apesar de não ter sido efetivamente julgado pela Corte IDH, mormente pelo fato de ter havido composição amigável com aceite das recomendações pelo Brasil, o referido caso trouxe repercussões significativas para o direito penal e processual penal brasileiro. Isso porque, após as determinações da Comissão, foi aprovada a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006411 – mais conhecida como “Lei Maria da Penha” com o intuito de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Esta lei criou ainda os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e alterou o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal para o fim de agilizar o processo de investigação e punição dos agressores.

Portanto, incontestável o fato de haver interconstitucionalidade entre a ordem jurídica brasileira e a ordem internacional do SIDH neste caso, pois, tamanha foi a inter-relação entre as ordens jurídicas que resultou na edição de uma lei de proteção mais severa no que se refere à violência contra a mulher. Evidente ainda que, se trata de caso envolvendo os direitos da personalidade, como o direito à integridade física, à vida, à proibição da tortura, dentre outros. 3.2.4 O caso 12.051 – Karen Atala e filhas Vs. Chile

Por fim, estudar-se-á um caso em que a Corte

Interamericana não realizou diálogos somente com a ordem constitucional dos Estados membros da OEA e que ratificaram o

410 Ibidem. 411 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, “Lei Maria da Penha”. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm>. Acesso em: 22.jun.2015.

Casos de interconstitucionalidade... 153

Pacto de San José da Costa Rica, mas também com a Corte Europeia de Direitos Humanos. O referido caso é o de nº 12.502 – KAREN ATALA Y HIJAS VERSUS CHILE, que versa acerca do direito à livre orientação sexual, bem como direito à vida privada sem interferência, também tidos como direitos da personalidade.

Referido caso foi julgado pela Corte IDH em 2012, e tratava de possível caso de responsabilização internacional do Estado por tratamento discriminatório e interferência na vida privada e familiar da senhora Atala, devido à sua orientação sexual em processo judicial que culminou na perda da guarda de suas filhas, mormente porque após a separação de seu marido, passou a viver com uma companheira do mesmo sexo. A Corte decidiu que o Chile violou o direito de Karen Atala de viver livre de discriminação, consagrando o disposto no artigo 24412 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 do mesmo instrumento. O Estado ainda descumpriu os direitos

412 “Artigo 24 - Igualdade perante a lei: Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei.” In: BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 15.set.2014.

154 Sistema interamericano de direitos humanos...

previstos nos artigos 11(2)413, 17(1)414, 17(4)415, 19416, 8(1)417 e 25418 do mesmo diploma. O Chile ainda foi condenado a

413 “Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade: 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.” In: BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 15.set.2014. 414 “Artigo 17 - Proteção da família: 1. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado.” In: BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 15.set.2014. 415 “Artigo 17 [...] 4. Os Estados-partes devem adotar as medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o mesmo e por ocasião de sua dissolução. Em caso de dissolução, serão adotadas as disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e conveniência dos mesmos.” In: BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 15.set.2014. 416 “Artigo 19 - Direitos da criança: Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado” In: BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 15.set.2014. 417 “Artigo 8º - Garantias judiciais: 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.” In: BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 15.set.2014. 418 “Artigo 25 - Proteção judicial: 1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.” In: BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos

Casos de interconstitucionalidade... 155

indenizar financeiramente a Sra. Atala, bem como a adotar legislações e políticas públicas para coibir e erradicar a discriminação com relação na orientação sexual419. Neste caso, a Corte utilizou como fundamento diversos precedentes do Tribunal Europeu de Direitos Humanos420.

Este caso traduza a terceira premissa abordada no tópico “Interconstitucionalidade na América Latina”, qual seja, referente à utilização, por parte da Corte IDH, de jurisprudências de Cortes de Direitos Humanos que não fazem parte do sistema interamericano, como por exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos, para fundamentar suas decisões.

A partir da análise jurisprudencial da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é possível afirmar que existe interconstitucionalidade e que este diálogo entre ordens jurídicas se demonstra como algo positivo, pois visa a

Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 15.set.2014. 419 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Atala Riffo y niñas vs. Chile. Sentencia de 24 de febrero de 2012. Disponível em: <http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_esp.pdf>. Acesso em: 22.jun.2015, p. 04. 420 “The Court of Appeal, ruling solely on the basis of the written proceedings, weighed the facts differently from the lower court and awarded parental responsibility to the mother. It considered, among other things, that “custody of young children should as a general rule be awarded to the mother unless there are overriding reasons militating against this (see paragraph 14 above). The Court of Appeal further considered that there were insufficient reasons for taking away from the mother the parental responsibility awarded her by agreement between the parties.” In: EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case of Salgueiro da Silva Mouta v. Portugal by the Prosecutor General's Office (GDDC). 21 December 1999. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-58404>. Acesso em: 22.jun.2015, § 34. Como fundamentação, a CorteIDH cita ainda outros casos julgados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos: Caso Fretté Vs. Francia, (No. 36515/97), Sentença de 26 de fevereiro de 2002. Final, 26 de mayo de 2002, § 32; T.E.D.H., Caso Kozak Vs. Polonia, (No. 13102/02), Sentença de 2 de março de 2010. Final, 2 de junhoo de 2010, § 92; Caso J.M. Vs. Reino Unido, (No. 37060/06), Sentença de 28 de seiembro de 2010. Final, 28 de dezembro de 2010, § 55; e Caso Alekseyev Vs. Russia, (No. 4916/07, 25924/08 e 14599/09), Sentença de 21 de outubro de 2010. Final, 11 de abril de 2011, §. 108 (“The Court reiterates that sexual orientation is a concept covered by Article 14”). In: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Atala Riffo y niñas vs. Chile. Sentencia de 24 de febrero de 2012. Disponível em: <http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_esp.pdf>. Acesso em: 22.jun.2015, p. 31.

156 Sistema interamericano de direitos humanos...

aplicação da legislação e/ou jurisprudência mais protetiva com relação aos direitos da personalidade.

Esta dinâmica ocasiona, no pensamento de Piovesan, um fortalecimento mútuo entre os sistemas e é de extrema importância. Isso porque, a abordagem interconstitucional proporciona a identificação das potencialidades e debilidades de cada sistema. Assim, é possível se pensar em estratégias de aprimoramento constitucional dos Estados e regional do Sistema Interamericano421.

Portanto, o que se conclui é que, de forma similar ao que ocorre na Europa, o interconstitucionalidade vem ocorrendo também na América Latina. No entanto, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a abordagem interconstitucional começa a dar seus primeiros passos, o que se verificou através de três premissas: 1) a primeira diz respeito à relação de justaposição de ordens jurídicas, que ocorre quando a ordem internacional se sobreporá à ordem interna; 2) a segunda refere-se à aplicação de norma constitucional de Estado diverso daquele que é parte no processo ao caso concreto, semelhante ao que ocorre no sistema europeu; 3) a terceira diz respeito à utilização, por parte da Corte IDH, de jurisprudências de Cortes de Direitos Humanos que não fazem parte do sistema interamericano.

Importante frisar ainda que, as referidas premissas foram devidamente comprovadas pelos exemplos trazidos. Ademais, verificou-se, após o estudo casuístico que, o interconstitucionalidade mostra-se como um meio eficaz para aprimoração e efetivação dos direitos da personalidade. Isso porque, através do diálogo entre ordens jurídicas, é possível não somente observar os erros e acertos de cada sistema, mas também aprimorar e verificar quais normas e/ou jurisprudências são mais protetivas aos direitos da personalidade e aplica-las ao caso concreto. A grande questão é que, a abordagem interconstitucional permite que os julgadores não quedem restritos à aplicação da legislação do SIDH apenas. Pelo contrário, os julgadores possuem certa liberdade para procurar em outras legislações constitucionais, a norma mais protetiva ao

421 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, n. 19, p. 67-93, jan-jun, 2012, pp. 67-93.

Casos de interconstitucionalidade... 157

caso concreto e aplica-las às lides, permitindo assim uma maior proteção e efetividade à tutela dos direitos da personalidade.

158 Sistema interamericano de direitos humanos...

CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa objetivou estudar o fenômeno da

interconstitucionalidade, surgido no âmbito europeu para, posteriormente, analisar sua ocorrência na latino-americana. Sendo assim, o problema principal consistia em descobrir se existiriam perspectivas e albergue para o desenvolvimento de uma interconstitucionalidade latino-americano no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como se mostraria eficaz na tutela dos direitos da personalidade.

Ao estudar o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, percebe-se que, apesar deste não ser tão aprimorado quanto o Sistema europeu, há ocorrência da interconstitucionalidade. Isso porque, uma vez que os Estados ratificam a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ficam subordinados a tais normas internacionais. Dessa forma, é evidente que haverá inter-relação entre ordens jurídicas, na medida em que, quando um caso é levado ao Sistema Interamericano, coexistirão e interagirão normas nacionais e internacionais.

A partir da análise histórica, constitucional e legal, percebe-se que a grande maioria dos países da América Latina possuem disposições que tutelam os direitos de personalidade – alguns de modo mais genérico, outros de modo mais específico, como é o caso do Brasil e da Bolívia. Verificou-se, assim, a existência de pontos de convergência entre os ordenamentos jurídicos constitucionais latino-americanos, devido às suas origens históricas, políticas, culturais e sociais semelhantes.

Posteriormente, ao se constatar a presença desta inter-relação de ordens jurídicas e da presença de uma identidade cultural latino-americana comum, pretendeu-se investigar se a abordagem interconstitucional promoveria a tutela dos direitos da personalidade dos indivíduos latino-americanos.

Para tanto, buscou-se, através de uma análise jurisprudencial da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no que se refere a casos de direitos da personalidade, comprovar a ocorrência da interconstitucionalidade no Sistema Interamericano de Direitos

160 Sistema interamericano de direitos humanos...

Humanos, bem como verificar se a hipótese desta pesquisa era efetivamente verdadeira.

Verificou-se que tanto a Comissão quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos utilizam-se da interconstitucionalidade dentro do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. Isso porque, em suas recomendações e decisões é realizado, por esses órgãos, um minucioso estudo de direito comparado nos ordenamentos jurídicos, que incluiem as Cortes Supremas, as Constituições nacionais e convenções internacionais, com o intuito de buscar o fundamento mais apropriado e protetivo aos direitos da personalidade, aplicando-o ao caso concreto.

Dentre os episódios analisados, o fenômeno da interconstitucionalidade é nitidamente observado no Caso 12.465, acerca do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador. Neste empasse, a Corte citou em sua fundamentação, a Constituição Nacional da República Argentina, a Constituição Mexicana, a Constituição do Paraguai, a Constituição Bolivariana da Venezuela, a Corte Suprema de Belize, dentre outras. Por fim, valeu-se da interpretação da Sentença T-129/11 (parágrafo 5.1), proferida pela Corte Constitucional da Colômbia, no que se refere ao direito ao consentimento prévio do povo indígena, para fundamentar sua sentença.

É possível identificar o diálogo interconstitucional no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, isso porque, os órgãos desse sistema valeram-se de diversos ordenamentos e jurisprudências para solucionar os casos, no intuito de oferecer a proteção mais ampla aos indivíduos. Houve ainda situações em que a Corte Interamericana valeu-se de jurisprudências de outros Sistemas de Proteção aos Direitos Humanos, como o da Corte Europeia.

A grande bossa nova da utilização desta prática é que, a interconstitucionalidade permite que os juristas ampliam seus horizontes para a pluralidade de ordenamentos, lançando seus olhares nas para além das normas e jurisprudências locais, permitindo maior proteção e efetividade na tutela dos direitos da personalidade.

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ANEXOS CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS

(Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969)

PREÂMBULO

Os Estados americanos signatários da presente Convenção, Reafirmando seu propósito de consolidar neste Continente,

dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem;

Reconhecendo que os direitos essenciais do homem não

derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos;

Considerando que esses princípios foram consagrados na

Carta da Organização dos Estados Americanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que foram reafirmados e desenvolvidos em outros instrumentos internacionais, tanto de âmbito mundial como regional;

Reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos

Direitos do Homem, só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos; e

Considerando que a Terceira Conferência Interamericana

Extraordinária (Buenos Aires, 1967) aprovou a incorporação à própria Carta da Organização de normas mais amplas sobre direitos econômicos, sociais e educacionais e resolveu que uma convenção interamericana sobre direitos humanos determinasse a estrutura, competência e processo dos órgãos encarregados dessa matéria,

Convieram no seguinte:

174 Sistema interamericano de direitos humanos...

PARTE I - DEVERES DOS ESTADOS E DIREITOS PROTEGIDOS Capítulo I - ENUMERAÇÃO DOS DEVERES Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos

1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

2. Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano. Artigo 2º - Dever de adotar disposições de direito interno

Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades. Capítulo II - DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS Artigo 3º - Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica

Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica. Artigo 4º - Direito à vida

1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

2. Nos países que não houverem abolido a pena de morte, esta só poderá ser imposta pelos delitos mais graves, em cumprimento de sentença final de tribunal competente e em conformidade com a lei que estabeleça tal pena, promulgada antes de haver o delito sido cometido. Tampouco se estenderá sua aplicação a delitos aos quais não se aplique atualmente.

3. Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido.

4. Em nenhum caso pode a pena de morte ser aplicada a delitos políticos, nem a delitos comuns conexos com delitos políticos.

5. Não se deve impor a pena de morte a pessoa que, no momento da perpetração do delito, for menor de dezoito anos, ou maior de setenta, nem aplicá-la a mulher em estado de gravidez.

6. Toda pessoa condenada à morte tem direito a solicitar anistia, indulto ou comutação da pena, os quais podem ser concedidos em todos os casos. Não se pode executar a pena de morte enquanto o pedido estiver pendente de decisão ante a autoridade competente. Artigo 5º - Direito à integridade pessoal

1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

Anexo 175

2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.

3. A pena não pode passar da pessoa do delinquente. 4. Os processados devem ficar separados dos condenados,

salvo em circunstâncias excepcionais, e devem ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas.

5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento.

6. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados. Artigo 6º - Proibição da escravidão e da servidão

1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.

2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso.

3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo:

a) os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os executarem não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado;

b) serviço militar e, nos países em que se admite a isenção por motivo de consciência, qualquer serviço nacional que a lei estabelecer em lugar daquele;

c) o serviço exigido em casos de perigo ou de calamidade que ameacem a existência ou o bem-estar da comunidade;

d) o trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais. Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal

1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. 2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo

pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.

176 Sistema interamericano de direitos humanos...

3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.

4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, da acusação ou das acusações formuladas contra ela.

5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.

7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Artigo 8º - Garantias judiciais

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal;

b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;

d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;

e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação

Anexo 177

interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e

h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de

nenhuma natureza. 4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado

não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos. 5. O processo penal deve ser público, salvo no que for

necessário para preservar os interesses da justiça. Artigo 9º - Princípio da legalidade e da retroatividade

Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o deliquente deverá dela beneficiar-se. Artigo 10 - Direito à indenização

Toda pessoa tem direito de ser indenizada conforme a lei, no caso de haver sido condenada em sentença transitada em julgado, por erro judiciário. Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade

1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. Artigo 12 - Liberdade de consciência e de religião

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.

3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

178 Sistema interamericano de direitos humanos...

4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:

a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da

saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e

meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência. Artigo 14 - Direito de retificação ou resposta

1. Toda pessoa, atingida por informações inexatas ou ofensivas emitidas em seu prejuízo por meios de difusão legalmente regulamentados e que se dirijam ao público em geral, tem direito a fazer, pelo mesmo órgão de difusão, sua retificação ou resposta, nas condições que estabeleça a lei.

2. Em nenhum caso a retificação ou a resposta eximirão das outras responsabilidades legais em que se houver incorrido.

3. Para a efetiva proteção da honra e da reputação, toda publicação ou empresa jornalística, cinematográfica, de rádio ou televisão, deve ter uma pessoa responsável, que não seja protegida por imunidades, nem goze de foro especial. Artigo 15 - Direito de reunião

É reconhecido o direito de reunião pacífica e sem armas. O exercício desse direito só pode estar sujeito às restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança ou ordem públicas, ou

Anexo 179

para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. Artigo 16 - Liberdade de associação

1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza.

2. O exercício desse direito só pode estar sujeito às restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança e da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

3. O presente artigo não impede a imposição de restrições legais, e mesmo a privação do exercício do direito de associação, aos membros das forças armadas e da polícia. Artigo 17 - Proteção da família

1. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado.

2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de constituírem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção.

3. O casamento não pode ser celebrado sem o consentimento livre e pleno dos contraentes.

4. Os Estados-partes devem adotar as medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o mesmo e por ocasião de sua dissolução. Em caso de dissolução, serão adotadas as disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e conveniência dos mesmos.

5. A lei deve reconhecer iguais direitos tanto aos filhos nascidos fora do casamento, como aos nascidos dentro do casamento. Artigo 18 - Direito ao nome

Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário. Artigo 19 - Direitos da criança

Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado. Artigo 20 - Direito à nacionalidade

1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 2. Toda pessoa tem direito à nacionalidade do Estado em cujo

território houver nascido, se não tiver direito a outra. 3. A ninguém se deve privar arbitrariamente de sua

nacionalidade, nem do direito de mudá-la.

180 Sistema interamericano de direitos humanos...

Artigo 21 - Direito à propriedade privada

1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.

2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.

3. Tanto a usura, como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem, devem ser reprimidas pela lei. Artigo 22 - Direito de circulação e de residência

1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado tem o direito de nele livremente circular e de nele residir, em conformidade com as disposições legais.

2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país.

3. O exercício dos direitos supracitados não pode ser restringido, senão em virtude de lei, na medida indispensável, em uma sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

4. O exercício dos direitos reconhecidos no inciso 1 pode também ser restringido pela lei, em zonas determinadas, por motivo de interesse público.

5. Ninguém pode ser expulso do território do Estado do qual for nacional e nem ser privado do direito de nele entrar.

6. O estrangeiro que se encontre legalmente no território de um Estado-parte na presente Convenção só poderá dele ser expulso em decorrência de decisão adotada em conformidade com a lei.

7. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de perseguição por delitos políticos ou comuns conexos com delitos políticos, de acordo com a legislação de cada Estado e com as Convenções internacionais.

8. Em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a outro país, seja ou não de origem, onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação em virtude de sua raça, nacionalidade, religião, condição social ou de suas opiniões políticas.

9. É proibida a expulsão coletiva de estrangeiros. Artigo 23 - Direitos políticos

1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:

a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos;

b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores; e

Anexo 181

c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.

2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades, a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal. Artigo 24 - Igualdade perante a lei

Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei. Artigo 25 - Proteção judicial

1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

2. Os Estados-partes comprometem-se: a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo

sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes,

de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso. Capítulo III - DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo

Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. Capítulo IV - SUSPENSÃO DE GARANTIAS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO Artigo 27 - Suspensão de garantias

1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado-parte, este poderá adotar as disposições que, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social.

182 Sistema interamericano de direitos humanos...

2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados nos seguintes artigos: 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 6 (proibição da escravidão e da servidão), 9 (princípio da legalidade e da retroatividade), 12 (liberdade de consciência e religião), 17 (proteção da família), 18 (direito ao nome), 19 (direitos da criança), 20 (direito à nacionalidade) e 23 (direitos políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos.

3. Todo Estado-parte no presente Pacto que fizer uso do direito de suspensão deverá comunicar imediatamente aos outros Estados-partes na presente Convenção, por intermédio do Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos, as disposições cuja aplicação haja suspendido, os motivos determinantes da suspensão e a data em que haja dado por terminada tal suspensão. Artigo 28 - Cláusula federal

1. Quando se tratar de um Estado-parte constituído como Estado federal, o governo nacional do aludido Estado-parte cumprirá todas as disposições da presente Convenção, relacionadas com as matérias sobre as quais exerce competência legislativa e judicial.

2. No tocante às disposições relativas às matérias que correspondem à competência das entidades componentes da federação, o governo nacional deve tomar imediatamente as medidas pertinentes, em conformidade com sua Constituição e com suas leis, a fim de que as autoridades competentes das referidas entidades possam adotar as disposições cabíveis para o cumprimento desta Convenção.

3. Quando dois ou mais Estados-partes decidirem constituir entre eles uma federação ou outro tipo de associação, diligenciarão no sentido de que o pacto comunitário respectivo contenha as disposições necessárias para que continuem sendo efetivas no novo Estado, assim organizado, as normas da presente Convenção. Artigo 29 - Normas de interpretação

Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:

a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista;

b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados;

c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo;

Anexo 183

d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza. Artigo 30 - Alcance das restrições

As restrições permitidas, de acordo com esta Convenção, ao gozo e exercício dos direitos e liberdades nela reconhecidos, não podem ser aplicadas senão de acordo com leis que forem promulgadas por motivo de interesse geral e com o propósito para o qual houverem sido estabelecidas. Artigo 31 - Reconhecimento de outros direitos

Poderão ser incluídos, no regime de proteção desta Convenção, outros direitos e liberdades que forem reconhecidos de acordo com os processos estabelecidos nos artigos 69 e 70. Capítulo V - DEVERES DAS PESSOAS Artigo 32 - Correlação entre deveres e direitos

1. Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade.

2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática. PARTE II - MEIOS DE PROTEÇÃO Capítulo VI - ÓRGÃOS COMPETENTES

Artigo 33 - São competentes para conhecer de assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados-partes nesta Convenção:

a) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Comissão; e

b) a Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Corte. Capítulo VII - COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Seção 1 - Organização

Artigo 34 - A Comissão Interamericana de Direitos Humanos compor-se-á de sete membros, que deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos.

Artigo 35 - A Comissão representa todos os Membros da Organização dos Estados Americanos.

Artigo 36 - 1. Os membros da Comissão serão eleitos a título pessoal, pela Assembléia Geral da Organização, a partir de uma lista de candidatos propostos pelos governos dos Estados-membros.

2. Cada um dos referidos governos pode propor até três candidatos, nacionais do Estado que os propuser ou de qualquer outro Estado-membro da Organização dos Estados Americanos. Quando for proposta uma lista de três candidatos, pelo menos um deles deverá ser nacional de Estado diferente do proponente.

184 Sistema interamericano de direitos humanos...

Artigo 37 - 1. Os membros da Comissão serão eleitos por quatro anos e só poderão ser reeleitos uma vez, porém o mandato de três dos membros designados na primeira eleição expirará ao cabo de dois anos. Logo depois da referida eleição, serão determinados por sorteio, na Assembléia Geral, os nomes desses três membros.

2. Não pode fazer parte da Comissão mais de um nacional de um mesmo país.

Artigo 38 - As vagas que ocorrerem na Comissão, que não se devam à expiração normal do mandato, serão preenchidas pelo Conselho Permanente da Organização, de acordo com o que dispuser o Estatuto da Comissão.

Artigo 39 - A Comissão elaborará seu estatuto e submetê-lo-á à aprovação da Assembléia Geral e expedirá seu próprio Regulamento.

Artigo 40 - Os serviços da Secretaria da Comissão devem ser desempenhados pela unidade funcional especializada que faz parte da Secretaria Geral da Organização e deve dispor dos recursos necessários para cumprir as tarefas que lhe forem confiadas pela Comissão. Seção 2 - Funções

Artigo 41 - A Comissão tem a função principal de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e, no exercício de seu mandato, tem as seguintes funções e atribuições:

a) estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América;

b) formular recomendações aos governos dos Estados-membros, quando considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos;

c) preparar estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções;

d) solicitar aos governos dos Estados-membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos;

e) atender às consultas que, por meio da Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos, lhe formularem os Estados-membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que lhes solicitarem;

f) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto nos artigos 44 a 51 desta Convenção; e

g) apresentar um relatório anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

Artigo 42 - Os Estados-partes devem submeter à Comissão cópia dos relatórios e estudos que, em seus respectivos campos,

Anexo 185

submetem anualmente às Comissões Executivas do Conselho Interamericano Econômico e Social e do Conselho Interamericano de Educação, Ciência e Cultura, a fim de que aquela zele para que se promovam os direitos decorrentes das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires.

Artigo 43 - Os Estados-partes obrigam-se a proporcionar à Comissão as informações que esta lhes solicitar sobre a maneira pela qual seu direito interno assegura a aplicação efetiva de quaisquer disposições desta Convenção. Seção 3 - Competência

Artigo 44 - Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado-parte.

Artigo 45 - 1. Todo Estado-parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção, ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece a competência da Comissão para receber e examinar as comunicações em que um Estado-parte alegue haver outro Estado-parte incorrido em violações dos direitos humanos estabelecidos nesta Convenção.

2. As comunicações feitas em virtude deste artigo só podem ser admitidas e examinadas se forem apresentadas por um Estado-parte que haja feito uma declaração pela qual reconheça a referida competência da Comissão. A Comissão não admitirá nenhuma comunicação contra um Estado-parte que não haja feito tal declaração.

3. As declarações sobre reconhecimento de competência podem ser feitas para que esta vigore por tempo indefinido, por período determinado ou para casos específicos.

4. As declarações serão depositadas na Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos, a qual encaminhará cópia das mesmas aos Estados-membros da referida Organização.

Artigo 46 - Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será necessário:

a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos;

b) que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva;

c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e

186 Sistema interamericano de direitos humanos...

d) que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição.

2. As disposições das alíneas "a" e "b" do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando:

a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

Artigo 47 - A Comissão declarará inadmissível toda petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 quando:

a) não preencher algum dos requisitos estabelecidos no artigo 46;

b) não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos por esta Convenção;

c) pela exposição do próprio peticionário ou do Estado, for manifestamente infundada a petição ou comunicação ou for evidente sua total improcedência; ou

d) for substancialmente reprodução de petição ou comunicação anterior, já examinada pela Comissão ou por outro organismo internacional. Seção 4 - Processo

Artigo 48 - 1. A Comissão, ao receber uma petição ou comunicação na qual se alegue a violação de qualquer dos direitos consagrados nesta Convenção, procederá da seguinte maneira:

a) se reconhecer a admissibilidade da petição ou comunicação, solicitará informações ao Governo do Estado ao qual pertença a autoridade apontada como responsável pela violação alegada e transcreverá as partes pertinentes da petição ou comunicação. As referidas informações devem ser enviadas dentro de um prazo razoável, fixado pela Comissão ao considerar as circunstâncias de cada caso;

b) recebidas as informações, ou transcorrido o prazo fixado sem que sejam elas recebidas, verificará se existem ou subsistem os motivos da petição ou comunicação. No caso de não existirem ou não subsistirem, mandará arquivar o expediente;

c) poderá também declarar a inadmissibilidade ou a improcedência da petição ou comunicação, com base em informação ou prova supervenientes;

d) se o expediente não houver sido arquivado, e com o fim de comprovar os fatos, a Comissão procederá, com conhecimento das partes, a um exame do assunto exposto na petição ou comunicação. Se

Anexo 187

for necessário e conveniente, a Comissão procederá a uma investigação para cuja eficaz realização solicitará, e os Estados interessados lhe proporcionarão, todas as facilidades necessárias;

e) poderá pedir aos Estados interessados qualquer informação pertinente e receberá, se isso for solicitado, as exposições verbais ou escritas que apresentarem os interessados; e

f) pôr-se-á à disposição das partes interessadas, a fim de chegar a uma solução amistosa do assunto, fundada no respeito aos direitos reconhecidos nesta Convenção.

2. Entretanto, em casos graves e urgentes, pode ser realizada uma investigação, mediante prévio consentimento do Estado em cujo território se alegue houver sido cometida a violação, tão somente com a apresentação de uma petição ou comunicação que reúna todos os requisitos formais de admissibilidade.

Artigo 49 - Se se houver chegado a uma solução amistosa de acordo com as disposições do inciso 1, "f", do artigo 48, a Comissão redigirá um relatório que será encaminhado ao peticionário e aos Estados-partes nesta Convenção e posteriormente transmitido, para sua publicação, ao Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos. O referido relatório conterá uma breve exposição dos fatos e da solução alcançada. Se qualquer das partes no caso o solicitar, ser-lhe-á proporcionada a mais ampla informação possível.

Artigo 50 - 1. Se não se chegar a uma solução, e dentro do prazo que for fixado pelo Estatuto da Comissão, esta redigirá um relatório no qual exporá os fatos e suas conclusões. Se o relatório não representar, no todo ou em parte, o acordo unânime dos membros da Comissão, qualquer deles poderá agregar ao referido relatório seu voto em separado. Também se agregarão ao relatório as exposições verbais ou escritas que houverem sido feitas pelos interessados em virtude do inciso 1, "e", do artigo 48.

2. O relatório será encaminhado aos Estados interessados, aos quais não será facultado publicá-lo.

3. Ao encaminhar o relatório, a Comissão pode formular as proposições e recomendações que julgar adequadas.

Artigo 51 - 1. Se no prazo de três meses, a partir da remessa aos Estados interessados do relatório da Comissão, o assunto não houver sido solucionado ou submetido à decisão da Corte pela Comissão ou pelo Estado interessado, aceitando sua competência, a Comissão poderá emitir, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, sua opinião e conclusões sobre a questão submetida à sua consideração.

2. A Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará um prazo dentro do qual o Estado deve tomar as medidas que lhe competir para remediar a situação examinada.

188 Sistema interamericano de direitos humanos...

3. Transcorrido o prazo fixado, a Comissão decidirá, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, se o Estado tomou ou não as medidas adequadas e se publica ou não seu relatório. Capítulo VIII - CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Seção 1 - Organização

Artigo 52 - 1. A Corte compor-se-á de sete juízes, nacionais dos Estados-membros da Organização, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as condições requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do Estado do qual sejam nacionais, ou do Estado que os propuser como candidatos.

2. Não deve haver dois juízes da mesma nacionalidade. Artigo 53 - 1. Os juízes da Corte serão eleitos, em votação

secreta e pelo voto da maioria absoluta dos Estados-partes na Convenção, na Assembléia Geral da Organização, a partir de uma lista de candidatos propostos pelos mesmos Estados.

2. Cada um dos Estados-partes pode propor até três candidatos, nacionais do Estado que os propuser ou de qualquer outro Estado-membro da Organização dos Estados Americanos. Quando se propuser um lista de três candidatos, pelo menos um deles deverá ser nacional do Estado diferente do proponente.

Artigo 54 - 1. Os juízes da Corte serão eleitos por um período de seis anos e só poderão ser reeleitos uma vez. O mandato de três dos juízes designados na primeira eleição expirará ao cabo de três anos. Imediatamente depois da referida eleição, determinar-se-ão por sorteio, na Assembléia Geral, os nomes desse três juízes.

2. O juiz eleito para substituir outro, cujo mandato não haja expirado, completará o período deste.

3. Os juízes permanecerão em suas funções até o término dos seus mandatos. Entretanto, continuarão funcionando nos casos de que já houverem tomado conhecimento e que se encontrem em fase de sentença e, para tais efeitos, não serão substituídos pelos novos juízes eleitos.

Artigo 55 - 1. O juiz, que for nacional de algum dos Estados-partes em caso submetido à Corte, conservará o seu direito de conhecer do mesmo.

2. Se um dos juízes chamados a conhecer do caso for de nacionalidade de um dos Estados-partes, outro Estado-parte no caso poderá designar uma pessoa de sua escolha para integrar a Corte, na qualidade de juiz ad hoc.

3. Se, dentre os juízes chamados a conhecer do caso, nenhum for da nacionalidade dos Estados-partes, cada um destes poderá designar um juiz ad hoc.

4. O juiz ad hoc deve reunir os requisitos indicados no artigo 52.

Anexo 189

5. Se vários Estados-partes na Convenção tiverem o mesmo interesse no caso, serão considerados como uma só parte, para os fins das disposições anteriores. Em caso de dúvida, a Corte decidirá.

Artigo 56 - O quorum para as deliberações da Corte é constituído por cinco juízes.

Artigo 57 - A Comissão comparecerá em todos os casos perante a Corte.

Artigo 58 - 1. A Corte terá sua sede no lugar que for determinado, na Assembléia Geral da Organização, pelos Estados-partes na Convenção, mas poderá realizar reuniões no território de qualquer Estado-membro da Organização dos Estados Americanos em que considerar conveniente, pela maioria dos seus membros e mediante prévia aquiescência do Estado respectivo. Os Estados-partes na Convenção podem, na Assembléia Geral, por dois terços dos seus votos, mudar a sede da Corte.

2. A Corte designará seu Secretário. 3. O Secretário residirá na sede da Corte e deverá assistir às

reuniões que ela realizar fora da mesma. Artigo 59 - A Secretaria da Corte será por esta estabelecida e

funcionará sob a direção do Secretário Geral da Organização em tudo o que não for incompatível com a independência da Corte. Seus funcionários serão nomeados pelo Secretário Geral da Organização, em consulta com o Secretário da Corte.

Artigo 60 - A Corte elaborará seu Estatuto e submetê-lo-á à aprovação da Assembléia Geral e expedirá seu Regimento. Seção 2 - Competência e funções

Artigo 61 - 1. Somente os Estados-partes e a Comissão têm direito de submeter um caso à decisão da Corte.

2. Para que a Corte possa conhecer de qualquer caso, é necessário que sejam esgotados os processos previstos nos artigos 48 a 50.

Artigo 62 - 1. Todo Estado-parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção.

2. A declaração pode ser feita incondicionalmente, ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos. Deverá ser apresentada ao Secretário Geral da Organização, que encaminhará cópias da mesma a outros Estados-membros da Organização e ao Secretário da Corte.

3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso, relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção, que lhe seja submetido, desde que os Estados-partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por

190 Sistema interamericano de direitos humanos...

declaração especial, como prevêem os incisos anteriores, seja por convenção especial.

Artigo 63 - 1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as consequências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.

2. Em casos de extrema gravidade e urgência, e quando se fizer necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que estiver conhecendo, poderá tomar as medidas provisórias que considerar pertinentes. Se se tratar de assuntos que ainda não estiverem submetidos ao seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Comissão.

Artigo 64 - 1. Os Estados-membros da Organização poderão consultar a Corte sobre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. Também poderão consultá-la, no que lhes compete, os órgãos enumerados no capítulo X da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires.

2. A Corte, a pedido de um Estado-membro da Organização, poderá emitir pareceres sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os mencionados instrumentos internacionais.

Artigo 65 - A Corte submeterá à consideração da Assembléia Geral da Organização, em cada período ordinário de sessões, um relatório sobre as suas atividades no ano anterior. De maneira especial, e com as recomendações pertinentes, indicará os casos em que um Estado não tenha dado cumprimento a suas sentenças. Seção 3 - Processo

Artigo 66 - 1. A sentença da Corte deve ser fundamentada. 2. Se a sentença não expressar no todo ou em parte a opinião

unânime dos juízes, qualquer deles terá direito a que se agregue à sentença o seu voto dissidente ou individual.

Artigo 67 - A sentença da Corte será definitiva e inapelável. Em caso de divergência sobre o sentido ou alcance da sentença, a Corte interpretá-la-á, a pedido de qualquer das partes, desde que o pedido seja apresentado dentro de noventa dias a partir da data da notificação da sentença.

Artigo 68 - 1. Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes.

2. A parte da sentença que determinar indenização compensatória poderá ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado.

Artigo 69 - A sentença da Corte deve ser notificada às partes no caso e transmitida aos Estados-partes na Convenção.

Anexo 191

Capítulo IX - DISPOSIÇÕES COMUNS

Artigo 70 - 1. Os juízes da Corte e os membros da Comissão gozam, desde o momento da eleição e enquanto durar o seu mandato, das imunidades reconhecidas aos agentes diplomáticos pelo Direito Internacional. Durante o exercício dos seus cargos gozam, além disso, dos privilégios diplomáticos necessários para o desempenho de suas funções.

2. Não se poderá exigir responsabilidade em tempo algum dos juízes da Corte, nem dos membros da Comissão, por votos e opiniões emitidos no exercício de suas funções.

Artigo 71 - Os cargos de juiz da Corte ou de membro da Comissão são incompatíveis com outras atividades que possam afetar sua independência ou imparcialidade, conforme o que for determinado nos respectivos Estatutos.

Artigo 72 - Os juízes da Corte e os membros da Comissão perceberão honorários e despesas de viagem na forma e nas condições que determinarem os seus Estatutos, levando em conta a importância e independência de suas funções. Tais honorários e despesas de viagem serão fixados no orçamento-programa da Organização dos Estados Americanos, no qual devem ser incluídas, além disso, as despesas da Corte e da sua Secretaria. Para tais efeitos, a Corte elaborará o seu próprio projeto de orçamento e submetê-lo-á à aprovação da Assembléia Geral, por intermédio da Secretaria Geral. Esta última não poderá nele introduzir modificações.

Artigo 73 - Somente por solicitação da Comissão ou da Corte, conforme o caso, cabe à Assembléia Geral da Organização resolver sobre as sanções aplicáveis aos membros da Comissão ou aos juízes da Corte que incorrerem nos casos previstos nos respectivos Estatutos. Para expedir uma resolução, será necessária maioria de dois terços dos votos dos Estados-membros da Organização, no caso dos membros da Comissão; e, além disso, de dois terços dos votos dos Estados-partes na Convenção, se se tratar dos juízes da Corte. PARTE III - DISPOSIÇÕES GERAIS E TRANSITÓRIAS Capítulo X - ASSINATURA, RATIFICAÇÃO, RESERVA, EMENDA, PROTOCOLO E DENÚNCIA

Artigo 74 - 1. Esta Convenção está aberta à assinatura e à ratificação de todos os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos.

2. A ratificação desta Convenção ou a adesão a ela efetuar-se-á mediante depósito de um instrumento de ratificação ou adesão na Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos. Esta Convenção entrará em vigor logo que onze Estados houverem depositado os seus respectivos instrumentos de ratificação ou de adesão. Com referência a qualquer outro Estado que a ratificar ou que a ela aderir ulteriormente, a Convenção entrará em vigor na data do depósito do seu instrumento de ratificação ou adesão.

192 Sistema interamericano de direitos humanos...

3. O Secretário Geral comunicará todos os Estados-membros da Organização sobre a entrada em vigor da Convenção.

Artigo 75 - Esta Convenção só pode ser objeto de reservas em conformidade com as disposições da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada em 23 de maio de 1969.

Artigo 76 - 1. Qualquer Estado-parte, diretamente, e a Comissão e a Corte, por intermédio do Secretário Geral, podem submeter à Assembléia Geral, para o que julgarem conveniente, proposta de emendas a esta Convenção.

2. Tais emendas entrarão em vigor para os Estados que as ratificarem, na data em que houver sido depositado o respectivo instrumento de ratificação, por dois terços dos Estados-partes nesta Convenção. Quanto aos outros Estados-partes, entrarão em vigor na data em que eles depositarem os seus respectivos instrumentos de ratificação.

Artigo 77 - 1. De acordo com a faculdade estabelecida no artigo 31, qualquer Estado-parte e a Comissão podem submeter à consideração dos Estados-partes reunidos por ocasião da Assembléia Geral projetos de Protocolos adicionais a esta Convenção, com a finalidade de incluir progressivamente, no regime de proteção da mesma, outros direitos e liberdades.

2. Cada Protocolo deve estabelecer as modalidades de sua entrada em vigor e será aplicado somente entre os Estados-partes no mesmo.

Artigo 78 - 1. Os Estados-partes poderão denunciar esta Convenção depois de expirado o prazo de cinco anos, a partir da data em vigor da mesma e mediante aviso prévio de um ano, notificando o Secretário Geral da Organização, o qual deve informar as outras partes.

2. Tal denúncia não terá o efeito de desligar o Estado-parte interessado das obrigações contidas nesta Convenção, no que diz respeito a qualquer ato que, podendo constituir violação dessas obrigações, houver sido cometido por ele anteriormente à data na qual a denúncia produzir efeito. Capítulo XI - DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS Seção 1 - Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Artigo 79 - Ao entrar em vigor esta Convenção, o Secretário Geral pedirá por escrito a cada Estado-membro da Organização que apresente, dentro de um prazo de noventa dias, seus candidatos a membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Secretário Geral preparará uma lista por ordem alfabética dos candidatos apresentados e a encaminhará aos Estados-membros da Organização, pelo menos trinta dias antes da Assembléia Geral seguinte.

Artigo 80 - A eleição dos membros da Comissão far-se-á dentre os candidatos que figurem na lista a que se refere o artigo 79, por votação secreta da Assembléia Geral, e serão declarados eleitos os

Anexo 193

candidatos que obtiverem maior número de votos e a maioria absoluta dos votos dos representantes dos Estados-membros. Se, para eleger todos os membros da Comissão, for necessário realizar várias votações, serão eliminados sucessivamente, na forma que for determinada pela Assembléia Geral, os candidatos que receberem maior número de votos. Seção 2 - Corte Interamericana de Direitos Humanos

Artigo 81 - Ao entrar em vigor esta Convenção, o Secretário Geral pedirá a cada Estado-parte que apresente, dentro de um prazo de noventa dias, seus candidatos a juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Secretário Geral preparará uma lista por ordem alfabética dos candidatos apresentados e a encaminhará aos Estados-partes pelo menos trinta dias antes da Assembléia Geral seguinte.

Artigo 82 - A eleição dos juízes da Corte far-se-á dentre os candidatos que figurem na lista a que se refere o artigo 81, por votação secreta dos Estados-partes, na Assembléia Geral, e serão declarados eleitos os candidatos que obtiverem o maior número de votos e a maioria absoluta dos votos dos representantes dos Estados-partes. Se, para eleger todos os juízes da Corte, for necessário realizar várias votações, serão eliminados sucessivamente, na forma que for determinada pelos Estados-partes, os candidatos que receberem menor número de votos.

194 Sistema interamericano de direitos humanos...

CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS

PRIMEIRA PARTE Capítulo I NATUREZA E PROPÓSITOS

Artigo 1 Os Estados americanos consagram nesta Carta a organização

internacional que vêm desenvolvendo para conseguir uma ordem de paz e de justiça, para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania, sua integridade territorial e sua independência. Dentro das Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos constitui um organismo regional.

A Organização dos Estados Americanos não tem mais faculdades que aquelas expressamente conferidas por esta Carta, nenhuma de cujas disposições a autoriza a intervir em assuntos da jurisdição interna dos Estados membros.

Artigo 2 Para realizar os princípios em que se baseia e para cumprir

com suas obrigações regionais, de acordo com a Carta das Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos estabelece como propósitos essenciais os seguintes:

a) Garantir a paz e a segurança continentais; b) Promover e consolidar a democracia representativa,

respeitado o princípio da não-intervenção; c) Prevenir as possíveis causas de dificuldades e assegurar a

solução pacífica das controvérsias que surjam entre seus membros; d) Organizar a ação solidária destes em caso de agressão; e) Procurar a solução dos problemas políticos, jurídicos e

econômicos que surgirem entre os Estados membros; f) Promover, por meio da ação cooperativa, seu

desenvolvimento econômico, social e cultural; g) Erradicar a pobreza crítica, que constitui um obstáculo ao

pleno desenvolvimento democrático dos povos do Hemisfério; e h) Alcançar uma efetiva limitação de armamentos

convencionais que permita dedicar a maior soma de recursos ao desenvolvimento econômico-social dos Estados membros. Capítulo II - PRINCÍPIOS

Artigo 3 Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios: a) O direito internacional é a norma de conduta dos Estados

em suas relações recíprocas; b) A ordem internacional é constituída essencialmente pelo

respeito à personalidade, soberania e independência dos Estados e pelo cumprimento fiel das obrigações emanadas dos tratados e de outras fontes do direito internacional;

c) A boa-fé deve reger as relações dos Estados entre si;

Anexo 195

d) A solidariedade dos Estados americanos e os altos fins a que ela visa requerem a organização política dos mesmos, com base no exercício efetivo da democracia representativa;

e) Todo Estado tem o direito de escolher, sem ingerências externas, seu sistema político, econômico e social, bem como de organizar-se da maneira que mais lhe convenha, e tem o dever de não intervir nos assuntos de outro Estado. Sujeitos ao acima disposto, os Estados americanos cooperarão amplamente entre si, independentemente da natureza de seus sistemas políticos, econômicos e sociais;

f) A eliminação da pobreza crítica é parte essencial da promoção e consolidação da democracia representativa e constitui responsabilidade comum e compartilhada dos Estados americanos;

g) Os Estados americanos condenam a guerra de agressão: a vitória não dá direitos;

h) A agressão a um Estado americano constitui uma agressão a todos os demais Estados americanos;

i) As controvérsias de caráter internacional, que surgirem entre dois ou mais Estados americanos, deverão ser resolvidas por meio de processos pacíficos;

j) A justiça e a segurança sociais são bases de uma paz duradoura;

k) A cooperação econômica é essencial para o bem-estar e para a prosperidade comuns dos povos do Continente;

l) Os Estados americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo;

m) A unidade espiritual do Continente baseia-se no respeito à personalidade cultural dos países americanos e exige a sua estreita colaboração para as altas finalidades da cultura humana;

n) A educação dos povos deve orientar-se para a justiça, a liberdade e a paz. Capítulo III - MEMBROS

Artigo 4 São membros da Organização todos os Estados americanos

que ratificarem a presente Carta. Artigo 5 Na Organização será admitida toda nova entidade política que

nasça da união de seus Estados membros e que, como tal, ratifique esta Carta. O ingresso da nova entidade política na Organização redundará para cada um dos Estados que a constituam em perda da qualidade de membro da Organização.

Artigo 6 Qualquer outro Estado americano independente que queira ser

membro da Organização deverá manifestá-lo mediante nota dirigida ao Secretário-Geral, na qual seja consignado que está disposto a assinar

196 Sistema interamericano de direitos humanos...

e ratificar a Carta da Organização, bem como a aceitar todas as obrigações inerentes à condição de membro, em especial as referentes à segurança coletiva, mencionadas expressamente nos artigos 28 e 29.

Artigo 7 A Assembléia Geral, após recomendação do Conselho

Permanente da Organização, determinará se é procedente autorizar o Secretário-Geral a permitir que o Estado solicitante assine a Carta e a aceitar o depósito do respectivo instrumento de ratificação. Tanto a recomendação do Conselho Permanente como a decisão da Assembléia Geral requererão o voto afirmativo de dois terços dos Estados membros.

Artigo 8 A condição de membro da Organização estará restringida aos

Estados independentes do Continente que, em 10 de dezembro de 1985, forem membros das Nações Unidas e aos territórios não-autônomos mencionados no documento OEA/Ser.P, AG/doc.1939/85, de 5 de novembro de 1985, quando alcançarem a sua independência.

Artigo 9 Um membro da Organização, cujo governo democraticamente

constituído seja deposto pela força, poderá ser suspenso do exercício do direito de participação nas sessões da Assembléia Geral, da Reunião de Consulta, dos Conselhos da Organização e das Conferências Especializadas, bem como das comissões, grupos de trabalho e demais órgãos que tenham sido criados.

a) A faculdade de suspensão somente será exercida quando tenham sido infrutíferas as gestões diplomáticas que a Organização houver empreendido a fim de propiciar o restabelecimento da democracia representativa no Estado membro afetado;

b) A decisão sobre a suspensão deverá ser adotada em um período extraordinário de sessões da Assembléia Geral, pelo voto afirmativo de dois terços dos Estados membros;

c) A suspensão entrará em vigor imediatamente após sua aprovação pela Assembléia Geral;

d) Não obstante a medida de suspensão, a Organização procurará empreender novas gestões diplomáticas destinadas a coadjuvar o restabelecimento da democracia representativa no Estado membro afetado;

e) O membro que tiver sido objeto de suspensão deverá continuar observando o cumprimento de suas obrigações com a Organização;

f) A Assembléia Geral poderá levantar a suspensão mediante decisão adotada com a aprovação de dois terços dos Estados membros; e

g) As atribuições a que se refere este artigo se exercerão de conformidade com a presente Carta.

Anexo 197

Capítulo IV - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS DOS ESTADOS

Artigo 10 Os Estados são juridicamente iguais, desfrutam de iguais

direitos e de igual capacidade para exercê-los, e têm deveres iguais. Os direitos de cada um não dependem do poder de que dispõem para assegurar o seu exercício, mas sim do simples fato da sua existência como personalidade jurídica internacional.

Artigo 11 Todo Estado americano tem o dever de respeitar os direitos

dos demais Estados de acordo com o direito internacional. Artigo 12 Os direitos fundamentais dos Estados não podem ser

restringidos de maneira alguma. Artigo 13 A existência política do Estado é independente do seu

reconhecimento pelos outros Estados. Mesmo antes de ser reconhecido, o Estado tem o direito de defender a sua integridade e independência, de promover a sua conservação e prosperidade, e, por conseguinte, de se organizar como melhor entender, de legislar sobre os seus interesses, de administrar os seus serviços e de determinar a jurisdição e a competência dos seus tribunais. O exercício desses direitos não tem outros limites senão o do exercício dos direitos de outros Estados, conforme o direito internacional.

Artigo 14 O reconhecimento significa que o Estado que o outorga aceita

a personalidade do novo Estado com todos os direitos e deveres que, para um e outro, determina o direito internacional.

Artigo 15 O direito que tem o Estado de proteger e desenvolver a sua

existência não o autoriza a praticar atos injustos contra outro Estado. Artigo 16 A jurisdição dos Estados nos limites do território nacional

exerce-se igualmente sobre todos os habitantes, quer sejam nacionais ou estrangeiros.

Artigo 17 Cada Estado tem o direito de desenvolver, livre e

espontaneamente, a sua vida cultural, política e econômica. No seu livre desenvolvimento, o Estado respeitará os direitos da pessoa humana e os princípios da moral universal.

Artigo 18 O respeito e a observância fiel dos tratados constituem norma

para o desenvolvimento das relações pacíficas entre os Estados. Os tratados e acordos internacionais devem ser públicos.

Artigo 19

198 Sistema interamericano de direitos humanos...

Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir, direta ou indiretamente, seja qual for o motivo, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro. Este princípio exclui não somente a força armada, mas também qualquer outra forma de interferência ou de tendência atentatória à personalidade do Estado e dos elementos políticos, econômicos e culturais que o constituem.

Artigo 20 Nenhum Estado poderá aplicar ou estimular medidas

coercivas de caráter econômico e político, para forçar a vontade soberana de outro Estado e obter deste vantagens de qualquer natureza.

Artigo 21 O território de um Estado é inviolável; não pode ser objeto de

ocupação militar, nem de outras medidas de força tomadas por outro Estado, direta ou indiretamente, qualquer que seja o motivo, embora de maneira temporária. Não se reconhecerão as aquisições territoriais ou as vantagens especiais obtidas pela força ou por qualquer outro meio de coação.

Artigo 22 Os Estados americanos se comprometem, em suas relações

internacionais, a não recorrer ao uso da força, salvo em caso de legítima defesa, em conformidade com os tratados vigentes, ou em cumprimento dos mesmos tratados.

Artigo 23 As medidas adotadas para a manutenção da paz e da

segurança, de acordo com os tratados vigentes, não constituem violação aos princípios enunciados nos artigos 19 e 21. Capítulo V - SOLUÇÃO PACÍFICA DE CONTROVÉRSIAS

Artigo 24 As controvérsias internacionais entre os Estados membros

devem ser submetidas aos processos de solução pacífica indicados nesta Carta.

Esta disposição não será interpretada no sentido de prejudicar os direitos e obrigações dos Estados membros, de acordo com os artigos 34 e 35 da Carta das Nações Unidas.

Artigo 25 São processos pacíficos: a negociação direta, os bons ofícios,

a mediação, a investigação e conciliação, o processo judicial, a arbitragem e os que sejam especialmente combinados, em qualquer momento, pelas partes.

Artigo 26 Quando entre dois ou mais Estados americanos surgir uma

controvérsia que, na opinião de um deles, não possa ser resolvida pelos meios diplomáticos comuns, as partes deverão convir em qualquer outro processo pacífico que lhes permita chegar a uma solução.

Anexo 199

Artigo 27 Um tratado especial estabelecerá os meios adequados para

solução das controvérsias e determinará os processos pertinentes a cada um dos meios pacíficos, de forma a não permitir que controvérsia alguma entre os Estados americanos possa ficar sem solução definitiva, dentro de um prazo razoável. Capítulo VI - SEGURANÇA COLETIVA

Artigo 28 Toda agressão de um Estado contra a integridade ou a

inviolabilidade do território, ou contra a soberania, ou a independência política de um Estado americano, será considerada como um ato de agressão contra todos os demais Estados americanos.

Artigo 29 Se a inviolabilidade, ou a integridade do território, ou a

soberania, ou a independência política de qualquer Estado americano forem atingidas por um ataque armado, ou por uma agressão que não seja ataque armado, ou por um conflito extracontinental, ou por um conflito entre dois ou mais Estados americanos, ou por qualquer outro fato ou situação que possa pôr em perigo a paz da América, os Estados americanos, em obediência aos princípios de solidariedade continental, ou de legítima defesa coletiva, aplicarão as medidas e processos estabelecidos nos tratados especiais existentes sobre a matéria. Capítulo VII - DESENVOLVIMENTO INTEGRAL

Artigo 30 Os Estados membros, inspirados nos princípios de

solidariedade e cooperação interamericanas, comprometem-se a unir seus esforços no sentido de que impere a justiça social internacional em suas relações e de que seus povos alcancem um desenvolvimento integral, condições indispensáveis para a paz e a segurança. O desenvolvimento integral abrange os campos econômico, social, educacional, cultural, científico e tecnológico, nos quais devem ser atingidas as metas que cada país definir para alcançá-lo.

Artigo 31 A cooperação interamericana para o desenvolvimento integral

é responsabilidade comum e solidária dos Estados membros, no contexto dos princípios democráticos e das instituições do Sistema Interamericano. Ela deve compreender os campos econômico, social, educacional, cultural, científico e tecnológico, apoiar a consecução dos objetivos nacionais dos Estados membros e respeitar as prioridades que cada país fixar em seus planos de desenvolvimento, sem vinculações nem condições de caráter político.

Artigo 32 A cooperação interamericana para o desenvolvimento integral

deve ser contínua e encaminhar-se, de preferência, por meio de organismos multilaterais, sem prejuízo da cooperação bilateral acordada entre os Estados membros.

200 Sistema interamericano de direitos humanos...

Os Estados membros contribuirão para a cooperação interamericana para o desenvolvimento integral, de acordo com seus recursos e possibilidades e em conformidade com suas leis.

Artigo 33 O desenvolvimento é responsabilidade primordial de cada país

e deve constituir um processo integral e continuado para a criação de uma ordem econômica e social justa que permita a plena realização da pessoa humana e para isso contribua.

Artigo 34 Os Estados membros convêm em que a igualdade de

oportunidades, a eliminação da pobreza crítica e a distribuição eqüitativa da riqueza e da renda, bem como a plena participação de seus povos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento, são, entre outros, objetivos básicos do desenvolvimento integral. Para alcançá-los convêm, da mesma forma, em dedicar seus maiores esforços à consecução das seguintes metas básicas:

a) Aumento substancial e auto-sustentado do produto nacional per capita;

b) Distribuição eqüitativa da renda nacional; c) Sistemas tributários adequados e eqüitativos; d) Modernização da vida rural e reformas que conduzam a

regimes eqüitativos e eficazes de posse da terra, maior produtividade agrícola, expansão do uso da terra, diversificação da produção e melhores sistemas para a industrialização e comercialização de produtos agrícolas, e fortalecimento e ampliação dos meios para alcançar esses fins;

e) Industrialização acelerada e diversificada, especialmente de bens de capital e intermediários;

f) Estabilidade do nível dos preços internos, em harmonia com o desenvolvimento econômico sustentado e com a consecução da justiça social;

g) Salários justos, oportunidades de emprego e condições de trabalho aceitáveis para todos;

h) Rápida erradicação do analfabetismo e ampliação, para todos, das oportunidades no campo da educação;

i) Defesa do potencial humano mediante extensão e aplicação dos modernos conhecimentos da ciência médica;

j) Alimentação adequada, especialmente por meio da aceleração dos esforços nacionais no sentido de aumentar a produção e disponibilidade de alimentos;

k) Habitação adequada para todos os setores da população; l) Condições urbanas que proporcionem oportunidades de vida

sadia, produtiva e digna; m) Promoção da iniciativa e dos investimentos privados em

harmonia com a ação do setor público; e n) Expansão e diversificação das exportações.

Anexo 201

Artigo 35 Os Estados membros devem abster-se de exercer políticas e

praticar ações ou tomar medidas que tenham sérios efeitos adversos sobre o desenvolvimento de outros Estados membros.

Artigo 36 As empresas transnacionais e o investimento privado

estrangeiro estão sujeitos à legislação e à jurisdição dos tribunais nacionais competentes dos países receptores, bem como aos tratados e convênios internacionais dos quais estes sejam parte, e devem ajustar-se à política de desenvolvimento dos países receptores.

Artigo 37 Os Estados membros convêm em buscar, coletivamente,

solução para os problemas urgentes ou graves que possam apresentar-se quando o desenvolvimento ou estabilidade econômicos de qualquer Estado membro se virem seriamente afetados por situações que não puderem ser solucionadas pelo esforço desse Estado.

Artigo 38 Os Estados membros difundirão entre si os benefícios da

ciência e da tecnologia, promovendo, de acordo com os tratados vigentes e as leis nacionais, o intercâmbio e o aproveitamento dos conhecimentos científicos e técnicos.

Artigo 39 Os Estados membros, reconhecendo a estrita

interdependência que há entre o comércio exterior e o desenvolvimento econômico e social, devem envidar esforços, individuais e coletivos, a fim de conseguir:

a) Condições favoráveis de acesso aos mercados mundiais para os produtos dos países em desenvolvimento da região, especialmente por meio da redução ou abolição, por parte dos países importadores, das barreiras alfandegárias e não alfandegárias que afetam as exportações dos Estados membros da Organização, salvo quando tais barreiras se aplicarem a fim de diversificar a estrutura econômica, acelerar o desenvolvimento dos Estados membros menos desenvolvidos e intensificar seu processo de integração econômica, ou quando se relacionarem com a segurança nacional ou com as necessidades do equilíbrio econômico;

b) Continuidade do seu desenvolvimento econômico e social, mediante:

i. Melhores condições para o comércio de produtos básicos por meio de convênios internacionais, quando forem adequados; de processos ordenados de comercialização que evitem a perturbação dos mercados; e de outras medidas destinadas a promover a expansão de mercados e a obter receitas seguras para os produtores, fornecimentos adequados e seguros para os consumidores, e preços estáveis que

202 Sistema interamericano de direitos humanos...

sejam ao mesmo tempo recompensadores para os produtores e eqüitativos para os consumidores;

ii. Melhor cooperação internacional no setor financeiro e adoção de outros meios para atenuar os efeitos adversos das acentuadas flutuações das receitas de exportação que experimentem os países exportadores de produtos básicos;

iii. Diversificação das exportações e ampliação das oportunidades de exportação dos produtos manufaturados e semimanufaturados de países em desenvolvimento; e

iv. Condições favoráveis ao aumento das receitas reais provenientes das exportações dos Estados membros, especialmente dos países em desenvolvimento da região, e ao aumento de sua participação no comércio internacional.

Artigo 40 Os Estados membros reafirmam o princípio de que os países

de maior desenvolvimento econômico, que em acordos internacionais de comércio façam concessões em benefício dos países de menor desenvolvimento econômico no tocante à redução e abolição de tarifas ou outras barreiras ao comércio exterior, não devem solicitar a estes países concessões recíprocas que sejam incompatíveis com seu desenvolvimento econômico e com suas necessidades financeiras e comerciais.

Artigo 41 Os Estados membros, com o objetivo de acelerar o

desenvolvimento econômico, a integração regional, a expansão e a melhoria das condições do seu comércio, promoverão a modernização e a coordenação dos transportes e comunicações nos países em desenvolvimento e entre os Estados membros.

Artigo 42 Os Estados membros reconhecem que a integração dos

países em desenvolvimento do Continente constitui um dos objetivos do Sistema Interamericano e, portanto, orientarão seus esforços e tomarão as medidas necessárias no sentido de acelerar o processo de integração com vistas à consecução, no mais breve prazo, de um mercado comum latino-americano.

Artigo 43 Com o objetivo de fortalecer e acelerar a integração em todos

os seus aspectos, os Estados membros comprometem-se a dar adequada prioridade à elaboração e execução de projetos multinacionais e a seu financiamento, bem como a estimular as instituições econômicas e financeiras do Sistema Interamericano a que continuem dando seu mais amplo apoio às instituições e aos programas de integração regional.

Artigo 44 Os Estados membros convêm em que a cooperação técnica e

financeira, tendente a estimular os processos de integração econômica

Anexo 203

regional, deve basear-se no princípio do desenvolvimento harmônico, equilibrado e eficiente, dispensando especial atenção aos países de menor desenvolvimento relativo, de modo que constitua um fator decisivo que os habilite a promover, com seus próprios esforços, o melhor desenvolvimento de seus programas de infra-estrutura, novas linhas de produção e a diversificação de suas exportações.

Artigo 45 Os Estados membros, convencidos de que o Homem somente

pode alcançar a plena realização de suas aspirações dentro de uma ordem social justa, acompanhada de desenvolvimento econômico e de verdadeira paz, convêm em envidar os seus maiores esforços na aplicação dos seguintes princípios e mecanismos:

a) Todos os seres humanos, sem distinção de raça, sexo, nacionalidade, credo ou condição social, têm direito ao bem-estar material e a seu desenvolvimento espiritual em condições de liberdade, dignidade, igualdade de oportunidades e segurança econômica;

b) O trabalho é um direito e um dever social; confere dignidade a quem o realiza e deve ser exercido em condições que, compreendendo um regime de salários justos, assegurem a vida, a saúde e um nível econômico digno ao trabalhador e sua família, tanto durante os anos de atividade como na velhice, ou quando qualquer circunstância o prive da possibilidade de trabalhar;

c) Os empregadores e os trabalhadores, tanto rurais como urbanos, têm o direito de se associarem livremente para a defesa e promoção de seus interesses, inclusive o direito de negociação coletiva e o de greve por parte dos trabalhadores, o reconhecimento da personalidade jurídica das associações e a proteção de sua liberdade e independência, tudo de acordo com a respectiva legislação;

d) Sistemas e processos justos e eficientes de consulta e colaboração entre os setores da produção, levada em conta a proteção dos interesses de toda a sociedade;

e) O funcionamento dos sistemas de administração pública, bancário e de crédito, de empresa, e de distribuição e vendas, de forma que, em harmonia com o setor privado, atendam às necessidades e interesses da comunidade;

f) A incorporação e crescente participação dos setores marginais da população, tanto das zonas rurais como dos centros urbanos, na vida econômica, social, cívica, cultural e política da nação, a fim de conseguir a plena integração da comunidade nacional, o aceleramento do processo de mobilidade social e a consolidação do regime democrático. O estímulo a todo esforço de promoção e cooperação populares que tenha por fim o desenvolvimento e o progresso da comunidade;

g) O reconhecimento da importância da contribuição das organizações tais como os sindicatos, as cooperativas e as associações

204 Sistema interamericano de direitos humanos...

culturais, profissionais, de negócios, vicinais e comunais para a vida da sociedade e para o processo de desenvolvimento;

h) Desenvolvimento de uma política eficiente de previdência social; e

i) Disposições adequadas a fim de que todas as pessoas tenham a devida assistência legal para fazer valer seus direitos.

Artigo 46 Os Estados membros reconhecem que, para facilitar o

processo de integração regional latino-americana, é necessário harmonizar a legislação social dos países em desenvolvimento, especialmente no setor trabalhista e no da previdência social, a fim de que os direitos dos trabalhadores sejam igualmente protegidos, e convêm em envidar os maiores esforços com o objetivo de alcançar essa finalidade.

Artigo 47 Os Estados membros darão primordial importância, dentro dos

seus planos de desenvolvimento, ao estímulo da educação, da ciência, da tecnologia e da cultura, orientadas no sentido do melhoramento integral da pessoa humana e como fundamento da democracia, da justiça social e do progresso.

Artigo 48 Os Estados membros cooperarão entre si, a fim de atender às

suas necessidades no tocante à educação, promover a pesquisa científica e impulsionar o progresso tecnológico para seu desenvolvimento integral. Considerar-se-ão individual e solidariamente comprometidos a preservar e enriquecer o patrimônio cultural dos povos americanos.

Artigo 49 Os Estados membros empreenderão os maiores esforços para

assegurar, de acordo com suas normas constitucionais, o exercício efetivo do direito à educação, observados os seguintes princípios:

a) O ensino primário, obrigatório para a população em idade escolar, será estendido também a todas as outras pessoas a quem possa aproveitar. Quando ministrado pelo Estado, será gratuito;

b) O ensino médio deverá ser estendido progressivamente, com critério de promoção social, à maior parte possível da população. Será diversificado de maneira que, sem prejuízo da formação geral dos educandos, atenda às necessidades do desenvolvimento de cada país; e

c) A educação de grau superior será acessível a todos, desde que, a fim de manter seu alto nível, se cumpram as normas regulamentares ou acadêmicas respectivas.

Artigo 50 Os Estados membros dispensarão especial atenção à

erradicação do analfabetismo, fortalecerão os sistemas de educação de adultos e de habilitação para o trabalho, assegurarão a toda a

Anexo 205

população o gozo dos bens da cultura e promoverão o emprego de todos os meios de divulgação para o cumprimento de tais propósitos.

Artigo 51 Os Estados membros promoverão a ciência e a tecnologia por

meio de atividades de ensino, pesquisa e desenvolvimento tecnológico e de programas de difusão e divulgação, estimularão as atividades no campo da tecnologia, com o propósito de adequá-la às necessidades do seu desenvolvimento integral; concertarão de maneira eficaz sua cooperação nessas matérias; e ampliarão substancialmente o intercâmbio de conhecimentos, de acordo com os objetivos e leis nacionais e os tratados vigentes.

Artigo 52 Os Estados membros, dentro do respeito devido à

personalidade de cada um deles, convêm em promover o intercâmbio cultural como meio eficaz para consolidar a compreensão interamericana e reconhecem que os programas de integração regional devem ser fortalecidos mediante estreita vinculação nos setores da educação, da ciência e da cultura. Segunda Parte Capítulo VIII - DOS ÓRGÃOS

Artigo 53 A Organização dos Estados Americanos realiza os seus fins

por intermédio: a) Da Assembléia Geral; b) Da Reunião de Consulta dos Ministros das Relações

Exteriores; c) Dos Conselhos; d) Da Comissão Jurídica Interamericana; e) Da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; f) Da Secretaria-Geral; g) Das Conferências Especializadas; e h) Dos Organismos Especializados. Poderão ser criados, além dos previstos na Carta e de acordo

com suas disposições, os órgãos subsidiários, organismos e outras entidades que forem julgados necessários.

Capítulo IX A ASSEMBLÉIA GERAL Artigo 54 A Assembléia Geral é o órgão supremo da Organização dos

Estados Americanos. Tem por principais atribuições, além das outras que lhe confere a Carta, as seguintes:

a) Decidir a ação e a política gerais da Organização, determinar a estrutura e funções de seus órgãos e considerar qualquer assunto relativo à convivência dos Estados americanos;

206 Sistema interamericano de direitos humanos...

b) Estabelecer normas para a coordenação das atividades dos órgãos, organismos e entidades da Organização entre si e de tais atividades com as das outras instituições do Sistema Interamericano;

c) Fortalecer e harmonizar a cooperação com as Nações Unidas e seus organismos especializados;

d) Promover a colaboração, especialmente nos setores econômico, social e cultural, com outras organizações internacionais cujos objetivos sejam análogos aos da Organização dos Estados Americanos;

e) Aprovar o orçamento-programa da Organização e fixar as quotas dos Estados membros;

f) Considerar os relatórios da Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores e as observações e recomendações que, a respeito dos relatórios que deverem ser apresentados pelos demais órgãos e entidades, lhe sejam submetidas pelo Conselho Permanente, conforme o disposto na alínea f, do artigo 91, bem como os relatórios de qualquer órgão que a própria Assembléia Geral requeira;

g) Adotar as normas gerais que devem reger o funcionamento da Secretaria-Geral; e

h) Aprovar seu regulamento e, pelo voto de dois terços, sua agenda.

A Assembléia Geral exercerá suas atribuições de acordo com o disposto na Carta e em outros tratados interamericanos.

Artigo 55 A Assembléia Geral estabelece as bases para a fixação da

quota com que deve cada um dos governos contribuir para a manutenção da Organização, levando em conta a capacidade de pagamento dos respectivos países e a determinação dos mesmos de contribuir de forma eqüitativa. Para que possam ser tomadas decisões sobre assuntos orçamentários, é necessária a aprovação de dois terços dos Estados membros.

Artigo 56 Todos os Estados membros têm direito a fazer-se representar

na Assembléia Geral. Cada Estado tem direito a um voto. Artigo 57 A Assembléia Geral reunir-se-á anualmente na época que

determinar o regulamento e em sede escolhida consoante o princípio do rodízio. Em cada período ordinário de sessões serão determinadas, de acordo com o regulamento, a data e a sede do período ordinário seguinte.

Se, por qualquer motivo, a Assembléia Geral não se puder reunir na sede escolhida, reunir-se-á na Secretaria-Geral, sem prejuízo de que, se algum dos Estados membros oferecer oportunamente sede em seu território, possa o Conselho Permanente da Organização acordar que a Assembléia Geral se reúna nessa sede.

Anexo 207

Artigo 58 Em circunstâncias especiais e com a aprovação de dois terços

dos Estados membros, o Conselho Permanente convocará um período extraordinário de sessões da Assembléia Geral.

Artigo 59 As decisões da Assembléia Geral serão adotadas pelo voto da

maioria absoluta dos Estados membros, salvo nos casos em que é exigido o voto de dois terços, de acordo com o disposto na Carta, ou naqueles que determinar a Assembléia Geral, pelos processos regulamentares.

Artigo 60 Haverá uma Comissão Preparatória da Assembléia Geral,

composta de representantes de todos os Estados membros, a qual desempenhará as seguintes funções:

a) Elaborar o projeto de agenda de cada período de sessões da Assembléia Geral;

b) Examinar o projeto de orçamento-programa e o de resolução sobre quotas e apresentar à Assembléia Geral um relatório sobre os mesmos, com as recomendações que julgar pertinentes; e

c) As outras que lhe forem atribuídas pela Assembléia Geral. O projeto de agenda e o relatório serão oportunamente

encaminhados aos governos dos Estados membros. Capítulo X - A REUNIÃO DE CONSULTA DOS MINISTROS DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Artigo 61 A Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores

deverá ser convocada a fim de considerar problemas de natureza urgente e de interesse comum para os Estados americanos, e para servir de Órgão de Consulta.

Artigo 62 Qualquer Estado membro pode solicitar a convocação de uma

Reunião de Consulta. A solicitação deve ser dirigida ao Conselho Permanente da Organização, o qual decidirá, por maioria absoluta de votos, se é oportuna a reunião.

Artigo 63 A agenda e o regulamento da Reunião de Consulta serão

preparados pelo Conselho Permanente da Organização e submetidos à consideração dos Estados membros.

Artigo 64 Se, em caso excepcional, o Ministro das Relações Exteriores

de qualquer país não puder assistir à reunião, far-se-á representar por um delegado especial.

Artigo 65 Em caso de ataque armado ao território de um Estado

americano ou dentro da zona de segurança demarcada pelo tratado em

208 Sistema interamericano de direitos humanos...

vigor, o Presidente do Conselho Permanente reunirá o Conselho, sem demora, a fim de determinar a convocação da Reunião de Consulta, sem prejuízo do disposto no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca no que diz respeito aos Estados Partes no referido instrumento.

Artigo 66 Fica estabelecida uma Comissão Consultiva de Defesa para

aconselhar o Órgão de Consulta a respeito dos problemas de colaboração militar, que possam surgir da aplicação dos tratados especiais existentes sobre matéria de segurança coletiva.

Artigo 67 A Comissão Consultiva de Defesa será integrada pelas mais

altas autoridades militares dos Estados americanos que participem da Reunião de Consulta. Excepcionalmente, os governos poderão designar substitutos. Cada Estado terá direito a um voto.

Artigo 68 A Comissão Consultiva de Defesa será convocada nos

mesmos termos que o Órgão de Consulta, quando este tenha que tratar de assuntos relacionados com a defesa contra agressão.

Artigo 69 Quando a Assembléia Geral ou a Reunião de Consulta ou os

governos lhe cometerem, por maioria de dois terços dos Estados membros, estudos técnicos ou relatórios sobre temas específicos, a Comissão também se reunirá para esse fim. Capítulo XI - OS CONSELHOS DA ORGANIZAÇÃO

Disposições comuns Artigo 70 O Conselho Permanente da Organização e o Conselho

Interamericano de Desenvolvimento Integral dependem diretamente da Assembléia Geral e têm a competência conferida a cada um deles pela Carta e por outros instrumentos interamericanos, bem como as funções que lhes forem confiadas pela Assembléia Geral e pela Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores.

Artigo 71 Todos os Estados membros têm direito a fazer-se representar

em cada um dos Conselhos. Cada Estado tem direito a um voto. Artigo 72 Dentro dos limites da Carta e dos demais instrumentos

interamericanos, os Conselhos poderão fazer recomendações no âmbito de suas atribuições.

Artigo 73 Os Conselhos, em assuntos de sua respectiva competência,

poderão apresentar estudos e propostas à Assembléia Geral e submeter-lhe projetos de instrumentos internacionais e proposições com referência à realização de conferências especializadas e à criação, modificação ou extinção de organismos especializados e outras

Anexo 209

entidades interamericanas, bem como sobre a coordenação de suas atividades. Os Conselhos poderão também apresentar estudos, propostas e projetos de instrumentos internacionais às Conferências Especializadas.

Artigo 74 Cada Conselho, em casos urgentes, poderá convocar, em

matéria de sua competência, Conferências Especializadas, mediante consulta prévia com os Estados membros e sem ter de recorrer ao processo previsto no artigo 122.

Artigo 75 Os Conselhos, na medida de suas possibilidades e com a

cooperação da Secretaria Geral, prestarão aos governos os serviços especializados que estes solicitarem.

Artigo 76 Cada Conselho tem faculdades para requerer do outro, bem

como dos órgãos subsidiários e dos organismos a eles subordinados, a prestação, nas suas respectivas esferas de competência, de informações e assessoramento. Poderá, também, cada um deles, solicitar os mesmos serviços às demais entidades do Sistema Interamericano.

Artigo 77 Com a prévia aprovação da Assembléia Geral, os Conselhos

poderão criar os órgãos subsidiários e os organismos que julgarem convenientes para o melhor exercício de suas funções. Se a Assembléia Geral não estiver reunida, os referidos órgãos e organismos poderão ser estabelecidos provisoriamente pelo Conselho respectivo. Na composição dessas entidades os Conselhos observarão, na medida do possível, os princípios do rodízio e da representação geográfica eqüitativa.

Artigo 78 Os Conselhos poderão realizar reuniões no território de

qualquer Estado membro, quando o julgarem conveniente e com aquiescência prévia do respectivo governo.

Artigo 79 Cada Conselho elaborará seu estatuto, submetê-lo-á à

aprovação da Assembléia Geral e aprovará seu regulamento e os de seus órgãos subsidiários, organismos e comissões. Capítulo XII - O CONSELHO PERMANENTE DA ORGANIZAÇÃO

Artigo 80 O Conselho Permanente da Organização compõe-se de um

representante de cada Estado membro, nomeado especialmente pelo respectivo governo, com a categoria de embaixador. Cada governo poderá acreditar um representante interino, bem como os suplentes e assessores que julgar conveniente.

Artigo 81

210 Sistema interamericano de direitos humanos...

A Presidência do Conselho Permanente será exercida sucessivamente pelos representantes, na ordem alfabética dos nomes em espanhol de seus respectivos países, e a Vice-Presidência, de modo idêntico, seguida a ordem alfabética inversa.

O Presidente e o Vice-Presidente exercerão suas funções por um período não superior a seis meses, que será determinado pelo estatuto.

Artigo 82 O Conselho Permanente tomará conhecimento, dentro dos

limites da Carta e dos tratados e acordos interamericanos, de qualquer assunto de que o encarreguem a Assembléia Geral ou a Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores.

Artigo 83 O Conselho Permanente agirá provisoriamente como Órgão

de Consulta, conforme o estabelecido no tratado especial sobre a matéria.

Artigo 84 O Conselho Permanente velará pela manutenção das relações

de amizade entre os Estados membros e, com tal objetivo, ajudá-los-á de maneira efetiva na solução pacífica de suas controvérsias, de acordo com as disposições que se seguem.

Artigo 85 De acordo com as disposições da Carta, qualquer parte numa

controvérsia, no tocante à qual não esteja em tramitação qualquer dos processos pacíficos previstos na Carta, poderá recorrer ao Conselho Permanente, para obter seus bons ofícios. O Conselho, de acordo com o disposto no artigo anterior, assistirá as partes e recomendará os processos que considerar adequados para a solução pacífica da controvérsia.

Artigo 86 O Conselho Permanente, no exercício de suas funções, com a

anuência das partes na controvérsia, poderá estabelecer comissoes ad hoc.

As comissões ad hoc terão a composição e o mandato que em cada caso decidir o Conselho Permanente, com o consentimento das partes na controvérsia.

Artigo 87 O Conselho Permanente poderá também, pelo meio que

considerar conveniente, investigar os fatos relacionados com a controvérsia, inclusive no território de qualquer das partes, após consentimento do respectivo governo.

Artigo 88 Se o processo de solução pacífica de controvérsias

recomendado pelo Conselho Permanente, ou sugerido pela respectiva comissoes ad hoc nos termos de seu mandato, não for aceito por uma das partes, ou qualquer destas declarar que o processo não resolveu a

Anexo 211

controvérsia, o Conselho Permanente informará a Assembléia Geral, sem prejuízo de que leve a cabo gestões para o entendimento entre as partes ou para o reatamento das relações entre elas.

Artigo 89 O Conselho Permanente, no exercício de tais funções, tomará

suas decisões pelo voto afirmativo de dois terços dos seus membros, excluídas as partes, salvo as decisões que o regulamento autorize a aprovar por maioria simples.

Artigo 90 No desempenho das funções relativas à solução pacífica de

controvérsias, o Conselho Permanente e a comissão ad hoc respectiva deverão observar as disposições da Carta e os princípios e normas do direito internacional, bem como levar em conta a existência dos tratados vigentes entre as partes.

Artigo 91 Compete também ao Conselho Permanente: a) Executar as decisões da Assembléia Geral ou da Reunião

de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, cujo cumprimento não haja sido confiado a nenhuma outra entidade;

b) Velar pela observância das normas que regulam o funcionamento da Secretaria-Geral e, quando a Assembléia Geral não estiver reunida, adotar as disposições de natureza regulamentar que habilitem a Secretaria-Geral para o cumprimento de suas funções administrativas;

c) Atuar como Comissão Preparatória da Assembléia Geral nas condições estabelecidas pelo artigo 60 da Carta, a não ser que a Assembléia Geral decida de maneira diferente;

d) Preparar, a pedido dos Estados membros e com a cooperação dos órgãos pertinentes da Organização, projetos de acordo destinados a promover e facilitar a colaboração entre a Organização dos Estados Americanos e as Nações Unidas, ou entre a Organização e outros organismos americanos de reconhecida autoridade internacional. Esses projetos serão submetidos à aprovação da Assembléia Geral;

e) Formular recomendações à Assembléia Geral sobre o funcionamento da Organização e sobre a coordenação dos seus órgãos subsidiários, organismos e comissões;

f) Considerar os relatórios do Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral, da Comissão Jurídica Interamericana, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Secretaria-Geral, dos organismos e conferências especializados e dos demais órgãos e entidades, e apresentar à Assembléia Geral as observações e recomendações que julgue pertinentes; e

g) Exercer as demais funções que lhe atribui a Carta. Artigo 92

212 Sistema interamericano de direitos humanos...

O Conselho Permanente e a Secretaria-Geral terão a mesma sede. Capítulo XIII - O CONSELHO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO INTEGRAL

Artigo 93 O Conselho Interamericano de Desenvolvento Integral

compõe-se de um representante titular, no nível ministerial ou seu eqüivalente, de cada Estado membro, nomeado especificamente pelo respectivo governo.

Conforme previsto na Carta, o Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral poderá criar os orgãos subsidiários e os organismos que julgar suficiente para o melhor exercício de suas funções.

Artigo 94 O Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral tem

como finalidade promover a cooperação entre os Estados americanos, com o propósito de obter seu desenvolvimento integral e, em particular, de contribuir para a eliminação da pobreza crítica, segundo as normas da Carta, principalmente as consignadas no Capítulo VII no que se refere aos campos econômico, social, educacional, cultural, e científico e tecnológico.

Artigo 95 Para realizar os diversos objetivos, particularmente na área

específica da cooperação técnica, o Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral deverá:

a) Formular e recomendar à Assembléia Geral o plano estratégico que articule as políticas, os programas e as medidas de ação em matéria de cooperação para o desenvolvimento integral, no marco da política geral e das prioridades definidas pela Assembléia Geral;

b) Formular diretrizes para a elaboração do orçamento programa de cooperação técnica, bem como para as demais atividades do Conselho;

c) Promover, coordenar e encomendar a execução de programas e projetos de desenvolvimento aos órgãos subsidiários e organismos correspondentes, com base nas prioridade determinadas pelos Estados membros, em áreas tais como:

1) Desenvolvimento econômico e social, inclusive o comércio, o turismo, a integração e o meio ambiente;

2) Melhoramento e extensão da educação a todos os níveis, e a promoção da pesquisa cietífica e tecnológica, por meio da cooperação técnica, bem como do apoio às atividades da área cultural; e

3) Fortalecimento da consciência cívica dos povos americanos, como um dos fundamentos da prática efetiva da democracia e a do respeito aos direitos e deveres da pessoa humana.

Anexo 213

Para este fim, contará com mecanismos de participação setorial e com apoio dos órgãos subsidiários e organismos previstos na Carta e outros dispositivos da Assembléia Geral;

d) Estabelecer relações de cooperação com os órgãos correspondentes das Nações Unidas e outras entidades nacionais e internacionais, especialmente no que diz repeito a coordenação dos programas interamericanos de assistência técnica;

e) Avaliar periodicamente as entidades de cooperação para o desenvolvimento integral, no que tange ao seu desmpenho na implementação das políticas, programas e projetos, em termos de seu impacto, eficácia, eficiência, aplicação de recursos e da qualidade, entre outros, dos serviços de cooperação técnica prestados e informar à Assembléia Geral.

Artigo 96 O Conselho Interamericano Interamericano de

Desenvovimento Integral realizará, no mínimo, uma reunião por ano, no nível ministerial ou seu equivalente, e poderá convocar a realização de reuniões no mesmo nível para os temas especializados ou setoriais que julgar pertinentes, em áreas de sua competência. Além disso, reunir-se-á, quando for convocado pela Assembléia Geral, pela Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, por iniciativa própria, ou para os casos previstos no artigo 37 da Carta.

Artigo 97 O Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral terá

as comissões especializadas não-pernanentes que decidir estabelecer e que forem necessárias para o melhor desempenho de suas funções. Estas Comissões funcionarão e serão constituídas segundo o disposto no Estatuto do mesmo Conselho.

Artigo 98 A execução e, conforme o caso, a coordenação dos projetos

aprovados será confiada à Secretaria Executiva de Desenvolvimento Integral, que informará o Conselho sobre o resultado da execução. Capítulo XIV - A COMISSÃO JURÍDICA INTERAMERICANA

Artigo 99 A Comissão Jurídica Interamericana tem por finalidade servir

de corpo consultivo da Organização em assuntos jurídicos; promover o desenvolvimento progressivo e a codificação do direito internacional; e estudar os problemas jurídicos referentes à integração dos países em desenvolvimento do Continente, bem como a possibilidade de uniformizar suas legislações no que parecer conveniente.

Artigo 100 A Comissão Jurídica Interamericana empreenderá os estudos

e trabalhos preparatórios de que for encarregada pela Assembléia Geral, pela Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores e pelos Conselhos da Organização. Pode, além disso, levar a efeito, por

214 Sistema interamericano de direitos humanos...

sua própria iniciativa, os que julgar convenientes, bem como sugerir a realização de conferências jurídicas e especializadas.

Artigo 101 A Comissão Jurídica Interamericana será composta de onze

juristas nacionais dos Estados membros, eleitos, de listas de três candidatos apresentadas pelos referidos Estados, para um período de quatro anos. A Assembléia Geral procederá à eleição, de acordo com um regime que leve em conta a renovação parcial e procure, na medida do possível, uma representação geográfica eqüitativa. Não poderá haver na Comissão mais de um membro da mesma nacionalidade.

As vagas que ocorrerem por razões diferentes da expiração normal dos mandatos dos membros da Comissão serão preenchidas pelo Conselho Permanente da Organização, de acordo com os mesmos critérios estabelecidos no parágrafo anterior.

Artigo 102 A Comissão Jurídica Interamericana representa o conjunto dos

Estados membros da Organização, e tem a mais ampla autonomia técnica.

Artigo 103 A Comissão Jurídica Interamericana estabelecerá relações de

cooperação com as universidades, institutos e outros centros de ensino e com as comissões e entidades nacionais e internacionais dedicadas ao estudo, pesquisa, ensino ou divulgação dos assuntos jurídicos de interesse internacional.

Artigo 104 A Comissão Jurídica Interamericana elaborará seu estatuto, o

qual será submetido à aprovação da Assembléia Geral. A Comissão adotará seu próprio regulamento. Artigo 105 A Comissão Jurídica Interamericana terá sua sede na cidade

do Rio de Janeiro, mas, em casos especiais, poderá realizar reuniões em qualquer outro lugar que seja oportunamente designado, após consulta ao Estado membro correspondente. Capítulo XV - A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Artigo 106 Haverá uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos

que terá por principal função promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria.

Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabelecerá a estrutura, a competência e as normas de funcionamento da referida Comissão, bem como as dos outros órgãos encarregados de tal matéria. Capítulo XVI - A SECRETARIA-GERAL

Artigo 107

Anexo 215

A Secretaria-Geral é o órgão central e permanente da Organização dos Estados Americanos. Exercerá as funções que lhe atribuam a Carta, outros tratados e acordos interamericanos e a Assembléia Geral, e cumprirá os encargos de que for incumbida pela Assembléia Geral, pela Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores e pelos Conselhos.

Artigo 108 O Secretário-Geral da Organização será eleito pela

Assembléia Geral para um período de cinco anos e não poderá ser reeleito mais de uma vez, nem poderá suceder-lhe pessoa da mesma nacionalidade. Vagando o cargo de Secretário-Geral, o Secretário-Geral Adjunto assumirá as funções daquele até que a Assembléia Geral proceda à eleição de novo titular para um período completo.

Artigo 109 O Secretário-Geral dirige a Secretaria-Geral, é o representante

legal da mesma e, sem prejuízo do estabelecido no artigo 91, alínea b, responde perante a Assembléia Geral pelo cumprimento adequado das atribuições e funções da Secretaria-Geral.

Artigo 110 O Secretário-Geral ou seu representante poderá participar,

com direito a palavra, mas sem voto, de todas as reuniões da Organização.

O Secretário-Geral poderá levar à atenção da Assembléia Geral ou do Conselho Permanente qualquer assunto que, na sua opinião, possa afetar a paz e a segurança do Continente e o desenvolvimento dos Estados membros.

As atribuições a que se refere o parágrafo anterior serão exercidas em conformidade com esta Carta.

Artigo 111 De acordo com a ação e a política decididas pela Assembléia

Geral e com as resoluções pertinentes dos Conselhos, a Secretaria-Geral promoverá relações econômicas, sociais, jurídicas, educacionais, científicas e culturais entre todos os Estados membros da Organização, com especial ênfase na cooperação da pobreza crítica.

Artigo 112 A Secretaria-Geral desempenha também as seguintes

funções: a) Encaminhar ex officio aos Estados membros a convocatória

da Assembléia Geral, da Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, do Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral e das Conferências Especializadas;

b) Assessorar os outros órgãos, quando cabível, na elaboração das agendas e regulamentos;

c) Preparar o projeto de orçamento-programa da Organização com base nos programas aprovados pelos Conselhos, organismos e entidades cujas despesas devam ser incluídas no orçamento-programa

216 Sistema interamericano de direitos humanos...

e, após consulta com esses Conselhos ou suas Comissões Permanentes, submetê-lo à Comissão Preparatória da Assembléia Geral e em seguida à própria Assembléia;

d) Proporcionar à Assembléia Geral e aos demais órgãos serviços de secretaria permanentes e adequados, bem como dar cumprimento a seus mandatos e encargos. Dentro de suas possibilidades, atender às outras reuniões da Organização;

e) Custodiar os documentos e arquivos das Conferências Interamericanas, da Assembléia Geral, das Reuniões de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, dos Conselhos e das Conferências Especializadas;

f) Servir de depositária dos tratados e acordos interamericanos, bem como dos instrumentos de ratificação dos mesmos;

g) Apresentar à Assembléia Geral, em cada período ordinário de sessões, um relatório anual sobre as atividades e a situação financeira da Organização; e

h) Estabelecer relações de cooperação, consoante o que for decidido pela Assembléia Geral ou pelos Conselhos, com os Organismos Especializados e com outros organismos nacionais e internacionais.

Artigo 113 Compete ao Secretário-Geral: a) Estabelecer as dependências da Secretaria-Geral que

sejam necessárias para a realização de seus fins; e b) Determinar o número de funcionários e empregados da

Secretaria-Geral, nomeá-los, regulamentar suas atribuições e deveres e fixar sua retribuição.

O Secretário-Geral exercerá essas atribuições de acordo com as normas gerais e as disposições orçamentárias que forem estabelecidas pela Assembléia Geral.

Artigo 114 O Secretário-Geral Adjunto será eleito pela Assembléia Geral

para um período de cinco anos e não poderá ser reeleito mais de uma vez, nem poderá suceder-lhe pessoa da mesma nacionalidade. Vagando o cargo de Secretário-Geral Adjunto, o Conselho Permanente elegerá um substituto, o qual exercerá o referido cargo até que a Assembléia Geral proceda à eleição de novo titular para um período completo.

Artigo 115 O Secretário-Geral Adjunto é o Secretário do Conselho

Permanente. Tem o caráter de funcionário consultivo do Secretário-Geral e atuará como delegado seu em tudo aquilo de que for por ele incumbido. Na ausência temporária ou no impedimento do Secretário-Geral, exercerá as funções deste.

Anexo 217

O Secretário-Geral e o Secretário-Geral Adjunto deverão ser de nacionalidades diferentes.

Artigo 116 A Assembléia Geral, com o voto de dois terços dos Estados

membros, pode destituir o Secretário-Geral ou o Secretário-Geral Adjunto, ou ambos, quando o exigir o bom funcionamento da Organização.

Artigo 117 O Secretário-Geral designará o Secretário Executivo de

Desenvolvimento Integral, com a aprovação do Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral.

Artigo 118 No cumprimento de seus deveres, o Secretário-Geral e o

pessoal da Secretaria não solicitarão nem receberão instruções de governo algum nem de autoridade alguma estranha à Organização, e abster-se-ão de agir de maneira incompatível com sua condição de funcionários internacionais, responsáveis unicamente perante a Organização.

Artigo 119 Os Estados membros comprometem-se a respeitar o caráter

exclusivamente internacional das responsabilidades do Secretário-Geral e do pessoal da Secretaria-Geral e a não tentar influir sobre eles no desempenho de suas funções.

Artigo 120 Na seleção do pessoal da Secretaria-Geral levar-se-ão em

conta, em primeiro lugar, a eficiência, a competência e a probidade; mas, ao mesmo tempo, dever-se-á dar importância à necessidade de ser o pessoal escolhido, em todas as hierarquias, de acordo com um critério de representação geográfica tão amplo quanto possível.

Artigo 121 A sede da Secretaria-Geral é a cidade de Washington, D.C.

Capítulo XVII - AS CONFERÊNCIAS ESPECIALIZADAS

Artigo 122 As Conferências Especializadas são reuniões

intergovernamentais destinadas a tratar de assuntos técnicos especiais ou a desenvolver aspectos específicos da cooperação interamericana e são realizadas quando o determine a Assembléia Geral ou a Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, por iniciativa própria ou a pedido de algum dos Conselhos ou Organismos Especializados.

Artigo 123 A agenda e o regulamento das Conferências Especializadas

serão elaborados pelos Conselhos competentes, ou pelos Organismos Especializados interessados, e submetidos à consideração dos governos dos Estados membros. Capítulo XVIII - ORGANISMOS ESPECIALIZADOS

218 Sistema interamericano de direitos humanos...

Artigo 124 Consideram-se como Organismos Especializados

Interamericanos, para os efeitos desta Carta, os organismos intergovernamentais estabelecidos por acordos multilaterais, que tenham determinadas funções em matérias técnicas de interesse comum para os Estados americanos.

Artigo 125 A Secretaria-Geral manterá um registro dos organismos que

satisfaçam as condições estabelecidas no artigo anterior, de acordo com as determinações da Assembléia Geral e à vista de relatório do Conselho correspondente.

Artigo 126 Os Organismos Especializados gozam da mais ampla

autonomia técnica, mas deverão levar em conta as recomendações da Assembléia Geral e dos Conselhos, de acordo com as disposições da Carta.

Artigo 127 Os Organismos Especializados apresentarão à Assembléia

Geral relatórios anuais sobre o desenvolvimento de suas atividades, bem como sobre seus orçamentos e contas anuais.

Artigo 128 As relações que devem existir entre os Organismos

Especializados e a Organização serão definidas mediante acordos celebrados entre cada organismo e o Secretário-Geral, com a autorização da Assembléia Geral.

Artigo 129 Os Organismos Especializados devem estabelecer relações

de cooperação com os organismos mundiais do mesmo caráter, a fim de coordenar suas atividades. Ao entrarem em acordo com os organismos internacionais de caráter mundial, os Organismos Especializados Interamericanos devem manter a sua identidade e posição como parte integrante da Organização dos Estados Americanos, mesmo quando desempenhem funções regionais dos organismos internacionais.

Artigo 130 Na localização dos Organismos Especializados, levar-se-ão

em conta os interesses de todos os Estados membros e a conveniência de que as sedes dos mesmos sejam escolhidas mediante critério de distribuição geográfica tão eqüitativa quanto possível. Terceira Parte Capítulo XIX - NAÇÕES UNIDAS

Artigo 131 Nenhuma das estipulações desta Carta se interpretará no

sentido de prejudicar os direitos e obrigações dos Estados membros, de acordo com a Carta das Nações Unidas.

Anexo 219

Capítulo XX - DISPOSIÇÕES DIVERSAS

Artigo 132 A assistência às reuniões dos órgãos permanentes da

Organização dos Estados Americanos ou às conferências e reuniões previstas na Carta, ou realizadas sob os auspícios da Organização, obedece ao caráter multilateral dos referidos órgãos, conferências e reuniões e não depende das relações bilaterais entre o governo de qualquer Estado membro e o governo do país sede.

Artigo 133 A Organização dos Estados Americanos gozará no território de

cada um de seus membros da capacidade jurídica, dos privilégios e das imunidades que forem necessários para o exercício das suas funções e a realização dos seus propósitos.

Artigo 134 Os representantes dos Estados membros nos órgãos da

Organização, o pessoal das suas representações, o Secretário-Geral e o Secretário-Geral Adjunto gozarão dos privilégios e imunidades correspondentes a seus cargos e necessários para desempenhar com independência suas funções.

Artigo 135 A situação jurídica dos Organismos Especializados e os

privilégios e imunidades que devem ser concedidos aos mesmos e ao seu pessoal, bem como aos funcionários da Secretaria-Geral, serão determinados em acordo multilateral. O disposto neste artigo não impede que se celebrem acordos bilaterais, quando julgados necessários.

Artigo 136 A correspondência da Organização dos Estados Americanos,

inclusive impressos e pacotes, sempre que for marcada com o seu selo de franquia, circulará isenta de porte pelos correios dos Estados membros.

Artigo 137 A Organização dos Estados Americanos não admite restrição

alguma, por motivo de raça, credo ou sexo, à capacidade para exercer cargos na Organização e participar de suas atividades.

Artigo 138 Os órgãos competentes buscarão, de acordo com as

disposições desta Carta, maior colaboração dos países não membros da Organização em matéria de cooperação para o desenvolvimento. Capítulo XXI - RATIFICAÇÃO E VIGÊNCIA

Artigo 139 A presente Carta fica aberta à assinatura dos Estados

americanos e será ratificada conforme seus respectivos processos constitucionais. O instrumento original, cujos textos em português, espanhol, inglês e francês são igualmente autênticos, será depositado na Secretaria-Geral, a qual enviará cópias autenticadas aos governos,

220 Sistema interamericano de direitos humanos...

para fins de ratificação. Os instrumentos de ratificação serão depositados na Secretaria-Geral e esta notificará os governos signatários do dito depósito.

Artigo 140 A presente Carta entrará em vigor entre os Estados que a

ratificarem, quando dois terços dos Estados signatários tiverem depositado suas ratificações. Quanto aos Estados restantes, entrará em vigor na ordem em que eles depositarem as suas ratificações.

Artigo 141 A presente Carta será registrada na Secretaria das Nações

Unidas por intermédio da Secretaria-Geral. Artigo 142 As reformas da presente Carta só poderão ser adotadas pela

Assembléia Geral, convocada para tal fim. As reformas entrarão em vigor nos mesmos termos e segundo o processo estabelecido no artigo 140.

Artigo 143 Esta Carta vigorará indefinidamente, mas poderá ser

denunciada por qualquer dos Estados membros, mediante uma notificação escrita à Secretaria-Geral, a qual comunicará em cada caso a todos os outros Estados as notificações de denúncia que receber. Transcorridos dois anos a partir da data em que a Secretaria-Geral receber uma notificação de denúncia, a presente Carta cessará seus efeitos em relação ao dito Estado denunciante e este ficará desligado da Organização, depois de ter cumprido as obrigações oriundas da presente Carta. Capítulo XXII - DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS

Artigo 144 O Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso atuará

como comissão executiva permanente do Conselho Interamericano Econômico e Social enquanto estiver em vigor a Aliança para o Progresso.

Artigo 145 Enquanto não entrar em vigor a convenção interamericana

sobre direitos humanos a que se refere o Capítulo XV, a atual Comissão Interamericana de Direitos Humanos velará pela observância de tais direitos.

Artigo 146 O Conselho Permanente não formulará nenhuma

recomendação, nem a Assembléia Geral tomará decisão alguma sobre pedido de admissão apresentado por entidade política cujo território esteja sujeito, total ou parcialmente e em época anterior à data de 18 de dezembro de 1964, fixada pela Primeira Conferência Interamericana Extraordinária, a litígio ou reclamação entre país extracontinental e um ou mais Estados membros da Organização, enquanto não se houver

Anexo 221

posto fim à controvérsia mediante processo pacífico. Este artigo permanecerá em vigor até 10 de dezembro de 1990.

222 Sistema interamericano de direitos humanos...

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Anexo 223

224 Sistema interamericano de direitos humanos...