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R E T A L H O S Colagem de textos de diversos autores Texto de: JULIO CARRARA Escrita em 2002

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Colagem de textos de diversos autores

Texto de:

JULIO CARRARA

Escrita em 2002

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PERSONAGENS:

AMIGA 1

AMIGA 2

ATOR

GAROTO

HAMLET

CAMILA

KLEBER

MÃE

PAI

MAÍRA

BRUNO

BETÃO

AMIGO 1

AMIGO 2

SENHORA

MENINO

GARÇOM

MENDIGO 1

MENDIGO 2

MENINA

DENTISTA

SECRETÁRIA

PACIENTE

JOVEM

MENINOS E MENINAS

CENÁRIO: Palco nu. Apenas alguns elementos de cenografia como cadeiras e

mesas com rodinhas e que deverão entrar e sair conforme indicação do texto.

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PRÓLOGO

(Os atores entram em cena e sentam-se nas cadeiras. Olham para frente. No áudio

ouvimos o bater de bola de um jogo de tênis ou pingue-pongue. Coreograficamente,

olham para os movimentos da bola: direita, esquerda, direita, esquerda. Os gestos são

mecânicos, precisos e a expressão facial neutra. Pausa. Novo ruído de sonoplastia,

desta vez um filme de terror. Os atores, agora como plateia de cinema, pegam

saquinhos de pipocas. Fazem expressões de espanto, pânico, etc. Pausa. Filme

dramático. Atores puxam um lenço da camisa e choram. Pausa. Muda o filme e desta

vez é uma comédia maluca. Atores riem histericamente até perderem o fôlego. Luz vai

descendo em resistência. A cena fica na penumbra. Os atores saem de cena, levando

cada um a sua cadeira para a coxia. Enquanto monta-se a cena seguinte, ouve-se no

áudio, um “Aforismo” de Oscar Wilde.)

GRAVAÇÃO

Que sorte tem os atores! Cabe a eles escolher se querem participar de

uma tragédia ou uma comédia, se querem sofrer ou regozijar-se, rir ou

derramar lágrimas; isso não acontece na vida real. Quase todos os homens e

mulheres são forçados a desempenhar papeis pelos quais não se tem a menor

propensão. O mundo é um palco, mas os papeis foram mal distribuídos. Oscar

Wilde.

CENA 1

(Concepção de Julio Carrara.)

(Duas amigas conversam.)

AMIGA 1

Sou tão sem graça que não consigo um namorado.

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AMIGA 2

Por que você não vai a um bom salão de beleza e manda que lhe façam

um penteado diferente?

AMIGA 1

Sim, mas isso custa muito dinheiro.

AMIGA 2

Bem, então que tal a ideia de comprar uma revista que tenha sugestões

para diferentes penteados que possam ser feitos por você mesma?

AMIGA 1

Sim, mas eu já tentei isso – e meu cabelo é fino demais. Não para

penteado. Fazendo um coque, ele pelo menos parece normal.

AMIGA 2

Que tal então mudar a maquiagem para melhor realçar as suas feições?

AMIGA 1

Sim, mas a minha pele é alérgica. Tentei uma vez e não deu certo.

AMIGA 2

Bem, já existem muitos produtos não alérgicos. De qualquer forma, por

que você não vai a um dermatologista?

AMIGA 1

Sim, mas eu sei o que ele dirá. Vai dizer que não como direito. Sei que

como muita coisa que não presta e que minhas refeições não são equilibradas.

É o que acontece quando se mora sozinha. E... bem, a beleza está na saúde

interna.

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AMIGA 2

Bem, isso é verdade. Talvez ajudasse se você entrasse em algum curso

de educação de adultos. Conhecer um pouco de arte, ou saber o que se passa

pelo mundo ajuda a pessoa a conversar bem.

AMIGA 1

Sim, mas esses cursos são todos à noite. E depois do trabalho eu me

sinto completamente exausta.

AMIGA 2

Bem, faça então um curso por correspondência.

AMIGA 1

Sim, mas não tenho tempo nem de escrever para os meus pais. Como é

que poderia encontrar tempo para fazer um curso por correspondência?

AMIGA 2

Você acharia tempo, se achasse que era algo importante.

AMIGA 1

Sim, mas pra você, isso é fácil dizer, por que tem tanta energia. Eu não.

Vivo morta de cansada.

AMIGA 2

Por que você não dorme de noite? Não é de se admirar que viva

cansada, assistindo todas as noites ao último filme da TV.

AMIGA 1

Sim, mas eu tenho que me divertir. E só resta uma coisa dessas, quando

a pessoa é tão sem graça como eu!

(Saem.)

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CENA 2

(Poema “Solidão”, de Federico García Lorca.)

(Entra um ator e declama a poesia.)

ATOR

Solidão pensativa

Sobre pedra e roseira, morte e desvelo

Onde livre e cativa

Fixa em seu branco vôo,

Canta a luz ferida pelo gelo

Solidão com estilo

De silêncio sem fim e arquitetura,

Onde a planta suspensa

Da ave na espessura

Não consegue cravar-te a carne escura

Em ti deixo esquecida

A frenética chuva de minhas veias

Minha cintura coalhada

E rompendo cadeias,

Rosa débil serei pelas areias

Rosa de minha nudez

Sobre panos de cal e surdo fogo,

Quando já roto o nó,

Limpo de lua e cego

Cruze tuas finas ondas de sossego.

Na curva do rio

O duplo cisne sua brancura canta

Úmida voz sem frio

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Flui de sua garganta,

E pelos juncos roda e se levanta.

Com sua rosa de farinha

Menino despido mede a ribeira,

Enquanto o bosque afina

Sua música primeira

Em rumor de cristais e madeira.

Coros de sempre-vivas,

Giram loucos pedindo eternidades.

Seus sinais expressivos

Ferem as duas metades

Do mapa que ressuma solidões

A harpa e seu lamento

Preso em nervos de metal dourado,

Tão doce instrumento

Ressonante ou delgado

Busca, ó solidão, teu reino gelado.

No entanto, tu, inacessível

À verde lepra do som,

Não há altura possível

Nem lábio conhecido

Por onde chegue a ti nosso gemido.

Federico García Lorca.

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CENA 3

(Extraído da cena “Meu time só perde...”, do livro “Teatro Vivo na Escola”, de Ana

Lúcia Cavalieri.)

(Garoto sentado à escrivaninha. À sua volta, livros, cadernos, material escolar. Ele

abre um livro, tira uma fotografia e conversa com ela.)

GAROTO

Isso é que é viver? Estar aqui, sentado numa cadeira, lendo, escrevendo,

estudando, me preparando pras provas, provas, provas e provas?!

Conhecendo coisas do mundo, da vida, mas vendo tudo acontecer longe de

mim... Minha vida continua a mesma chatice. Estou cansado de fazer sempre

as mesmas coisas, conversar com as mesmas pessoas... Fico deprimido quando

paro e penso que a vida tá passando e nunca me aconteceu nada de muito

importante ou alguma coisa que me marcasse... Que adianta gostar de você,

Marília? Você nem olha pra mim, nunca fala comigo, nem sabe que eu existo!

Há três anos caímos na mesma classe e, quando fazemos parte da mesma

equipe, penso em me aproximar de você e até me declarar. Mas como? Se sou

tímido... feio e atrapalhado?! Só sei que você nunca vai me querer. Meu time

só perde; não jogo futebol, não sei dançar, não consigo “ficar”... Lá na classe

eles ficam rindo de mim. Tô sempre por fora... Às vezes penso que sou apenas

um ponto de tangência, entre uma reta qualquer e o planeta.

(Guarda a foto no livro e sai de cena.)

CENA 4

(Extraído de “Hamlet”, de William Shakespeare. Ato III,

Cena I.)

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HAMLET

Ser ou não ser, eis a questão! O que será mais justo para a consciência:

sofrer os golpes e as pontadas de um destino injusto, ou enfrentar de armas

nas mãos esse mar de desgraças, e lutando acabar com elas? Morrer. Dormir,

nada mais. E dizer que esse sono põe termo a todas as angústias do coração, e

às mil ofensas naturais que a carne traz em si própria! Eis um final que todos

deveríamos desejar intensamente: morrer... dormir... Sonhar, talvez... Sim, essa

é a dúvida! Que sonho vamos ter nesse sono de morte, depois de cortado o fio

da existência? Eis um pensamento que nos faz parar; eis a causa da nossa

paciência diante de anos e anos tão amargos. Se assim não fosse, quem

suportaria os insultos e as burlas dos tempos, os crimes das ditaduras, a

empáfia dos poderosos, a tristeza de amar sem ser correspondido, a lentidão

da justiça, os arbítrios da autoridade, o escárnio dos indignos à modéstia dos

sábios?... Quem suportaria isso, sabendo que pode encontrar o descanso na

ponta de uma faca? Quem carregaria esse fardo, gemendo e suando sob o peso

da vida, se não fosse o receio de alguma coisa depois da morte que confunde a

nossa vontade, e que nos faz preferir os males presentes aos futuros e

desconhecidos? De cada um de nós a consciência faz um covarde. A cor viva

do instinto empalidece à luz do pensamento. E, desta forma,

empreendimentos de grande energia e importância mudam de rumo e se

tornam indignos até do nome de ação. “Hamlet” – William Shakespeare.

(Sai.)

CENA 5

(Concepção de Julio Carrara.)

(UMA RUA. NO CENTRO DO PALCO ESTÁ UM CARRINHO DE

BRINQUEDO. ENTRA UM GAROTO. SE APROXIMA DO CENTRO COM O

OBJETIVO DE “RAPTAR” O BRINQUEDO. QUANDO VAI PEGÁ-LO,

APARECE UMA MULHER EMPURRANDO UM CARRINHO DE BEBÊ. ELE

DISFARÇA. A MULHER SAI DE CENA. O GAROTO TENTA NOVAMENTE,

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MAS DISFARÇA, POIS VÊ UM MENINO PASSEANDO COM O

CACHORRINHO. CADA VEZ QUE O GAROTO SE APROXIMA DO

BRINQUEDO, APARECE ALGUÉM SUSPEITO. FICA A CARGO DA

DIREÇÃO OS PERSONAGENS QUE APARECERÃO EM CENA. QUANDO O

GAROTO PERCEBE QUE ESTÁ SÓ, FINGE NÃO ESTAR SE IMPORTANDO

COM O BRINQUEDO E VIRA DE COSTAS PARA ELE. NESSE MEIO TEMPO,

APARECE UM 2º GAROTO, QUE PEGA O BRINQUEDO E SAI CORRENDO.

O GAROTO VIRA-SE DE COSTAS PARA PEGAR O CARRINHO E QUANDO

VÊ QUE O BRINQUEDO NÃO ESTÁ MAIS LÁ, FICA COM CARA DE TACHO

E SAI DE CENA, FRUSTRADO)

CENA 6

(Extraído da cena “Nenhum filho meu é viciado em drogas!”, do livro “Drogas e

Prevenção – A Cena e a Reflexão”

de Ana Lúcia Cavalieri e Antonio Carlos Egypto.)

(Mãe entra, puxando pelo braço Bruno, o caçula de seus quatro filhos. Desabafa,

dirigindo-se a Maíra, outra filha.)

MÃE

Será possível? Meus filhos, um bando de alienados? O Marco não sai da

internet e ainda deu pra contar mentiras! Hoje, se fez passar por um

empresário de 40 anos; ontem foi uma perua, uma loura oxigenada! E você,

Bruno, segue o mesmo caminho. (Solta o braço do filho.) Não desgruda um

minuto do videogame, aliás, desgruda sim, só pra tomar refrigerante.

BRUNO

Refri, não, mãe! Coca ou Pepsi-Cola! Por mim eu colocava litros dentro

do filtro e não tomava mais água.

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MÃE

Não fale isso, menino! Tá ficando louco? Ninguém vive sem água.

MAÍRA

O Bruno quer provar o contrário. O negócio dele é a cola! Imagine,

refrigerante no filtro... Viva a celulite! Meu Deus, quantas calorias! Milhares, o

dia inteiro.

BRUNO

Você é louca! Só vê calorias, calorias, calorias!

MAÍRA

Olha aqui, pirralho, eu cuido da minha estética, não quero ficar “balofa”

como alguns...

MÃE

Maíra, olha o respeito com o seu irmão.

BRUNO

Há, há, há... estética! Estética da fome, como disse o tio Pedro. Você tá

parecendo um bicho magro, esfomeado!

MAÍRA

Gordo!

BRUNO

Tribufu! Não tem mais nada pra emagrecer, parece um esqueleto

ambulante!

MAÍRA

Mãe, eu vou arrebentar esse menino!

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BRUNO

(Provocando.) Com que força?

MÃE

(Nervosa.) Chega! Parem já com essa discussão! Dois irmãos brigando

desse jeito! Não existe mais respeito entre vocês? Hein?!

BRUNO

Foi ela que começou a provocar. Implica comigo agora, mas antes era

louca por chocolate, comia sem parar, não ficava um dia sem comer!

MAÍRA

Isso é passado. Minha vida agora é outra!

MÃE

Eu não sei, não! Deixou o chocolate, mas agora não vive sem os

comprimidos para emagrecer! A sua bolsa parece uma farmácia, anda

obcecada com a idéia de ficar magra. Isso faz mal, minha filha... Não é desse

jeito que você vai manter a forma. É preciso ter uma alimentação balanceada,

saudável, comer verduras...

MAÍRA

Não, mãe! Já vai começar? Você deveria ficar feliz com o meu regime

pra emagrecer. Lá no colégio tem uma menina que emagreceu todos os quilos

que queria, fazendo uma dieta diferente: cheirando cocaína!

MÃE

O quê? Que absurdo! A direção da escola sabe disso? Não, Maíra, não é

possível uma loucura dessas. Deve ser história de adolescente.

MAÍRA

Cai na real, mãe!

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MÃE

Olhem aqui, meus filhos, vocês podem fazer muitas coisas com as quais

eu não concordo, mas graças a Deus nenhum filho meu é viciado em drogas!

Deus nos livre de uma desgraça dessas!

(Entra Betão, o filho mais velho, frequentador de academias, musculoso, quase um

halterofilista.)

BETÃO

Oi, mãe! (Olha para os irmãos.) Os dois já estão brigando de novo? É falta

do que fazer!

MAÍRA

Olha quem fala!

BRUNO

O rascunho do Rambo!

BETÃO

O galinho de briga já está com o peito estufado!

BRUNO

Estufado tá você, e inteiro! Parece um boneco de plástico! (rindo) O Betão

vai estufar até explodir e ficar parecendo um balão murcho, empapuçado!

(Bruno e Maíra se olham, segurando o riso.)

MÃE

(À parte.) Segundo tempo! Vai começar tudo de novo...

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BETÃO

Ô bundão, eu tenho saúde, cuido do meu corpo, malho o dia inteiro

numa academia! Não pareço um pão de queijo, nem um palito de dentes! (Ri.)

MAÍRA

(Irônica.) O Rambo plastificado tem saúde! Vive a poder de energéticos e

anabolizantes! Não é só o seu coração que vai pifar, não, mas tem mais alguma

coisa...

MÃE

Vamos parar! Pelo amor de Deus! É melhor cada um ir para o seu

quarto! Meu Deus, o que eu fiz pra merecer isto? Onde foi que eu errei? (Os

filhos vão saindo; a mãe fica só.) É por isso que não durmo! Esses filhos não me

dão sossego! A minha insônia é eterna... (Lembra-se.) Nossa! Meus

comprimidos acabaram! Tomei o último a noite passada... É preciso comprar

outros, urgente!

(Entra em cena o pai.)

PAI

A luta terminou? Nossa, que cara é essa?

MÃE

Amor, meu remédio pra dormir, acabou! Por favor, você precisa sair pra

comprar...

PAI

O quê? Agora? É tarde! Por que não viu isso antes? Querida, você

precisa parar com essa mania... (Procura alguma coisa nos bolsos da calça e da

camisa. Fica nervoso.) Onde estão meus cigarros? Como? Já acabaram? Será que

tem mais gente fumando nesta casa?! Não posso ficar sem cigarros! Vou ter

que sair pra comprar...

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MÃE

Então aproveite para comprar meu remédio. Aqui está a receita.

(Entrega a receita para o pai. Ambos saem de cena.)

CENA 7

(Concepção de Julio Carrara.)

(Consultório de dentista. O dentista está de costas para o público mexendo nos seus

apetrechos. Na sala de estar, está a secretária. Entra em cena um paciente. Está com

uma faixa enrolada no maxilar e resmunga de dor. Secretária confere na agenda o

horário do paciente e o faz entrar. O paciente senta-se na cadeira do dentista e aguarda

ansioso. O dentista vira-se de frente e põe-se a examinar a boca do paciente. Vai até o

fundo e vem com uma enorme chave de fenda. Coloca a chave na boca do paciente, que

berra de dor. Quando o doutor percebe que não aconteceu nada, pega uma furadeira e

coloca-a na boca do cliente, que urra. O cliente está desesperado. O doutor, sem atingir

êxito, pega uma banana de dinamite e enfia na boca do paciente. Este geme, mexe os

braços. O doutor acende a dinamite e, tapa os ouvidos para não ouvir a explosão. A

dinamite explode – o cliente cospe a banana, mas continua com dor de dente. Tempo.

O doutor não sabe mais o que fazer. O paciente, sente alguma coisa estranha na boca.

Põe os dedos em um dos dentes e arranca-o com a maior naturalidade. Levanta-se da

cadeira meio grogue e entrega um dente podre gigante para o dentista e sai de cena.)

CENA 8

(Cena escrita por Julio Carrara.)

(Entra em cena Camila com uma pilha de livros nas mãos. Senta-se no chão e começa e

estudar. Entra Kleber, todo animado.)

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KLEBER

Ô Camila, tenho uma proposta pra te fazer...

CAMILA

(Sem olhar pra ele.) Fala.

KLEBER

Vamos descer pra praia? A turma toda tá esperando a gente lá no

Jabaquara...

CAMILA

Ah, Kleber. Não tô a fim.

KLEBER

Mas, por quê? Vai toda a galera da classe...

CAMILA

Semana que vem é o vestibular, Kleber. Cada minuto que passa agora é

sagrado. Não posso perder tempo com coisas supérfluas, que eu posso fazer

depois... Se eu não passar no vestibular, meus pais me matam!

KLEBER

Eu também vou prestar o vestibular e nem por isso tô nessa obsessão

toda.

CAMILA

Por que seus pais não pegam no seu pé. E você também não tá

interessado em fazer uma faculdade!

KLEBER

Como, não? Claro que quero fazer faculdade. Mas pra tudo tem o seu

tempo... Ainda tem uma semana pra primeira fase... E só vamos ficar dois dias

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na praia... Nesse tempo a gente pode relaxar, dar uns mergulhos no mar, rolar

na areia, tomar muita água de coco...

CAMILA

Vai sozinho, Kleber. Não conte comigo...

KLEBER

Você é ou não é a minha namorada?! Não tem como eu ir sozinho,

Camila.

CAMILA

(Folheando os livros.) “O quadrado da hipotenusa é igual a soma dos

quadrados dos catetos”. “A mentira é uma verdade que se esqueceu de

acontecer. Mário Quintana”. “Ilha é uma porção de terra cercada de água por

todos os lados”... “Eduquem as crianças para não castigar os homens.

Pitágoras”... Como é mesmo o teorema de Pitágoras?

KLEBER

Quer prestar atenção em mim, Camila?!

CAMILA

Não enche!

KLEBER

(Explodindo.) Tá bem. Eu vou sozinho pra praia... E pode esquecer que

eu existo. Sua fanática (Vai saindo.)

CAMILA

(Larga os livros e corre até Kleber.) Peraí... Desculpa, é que eu tô nervosa. É

muita pressão em cima da gente. Dos pais, da escola... Aos 17 anos você é

obrigada a escolher por uma profissão que você vai trabalhar o resto da vida!!!

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E se eu não gostar do curso que escolhi? E se eu não passar? Não vejo a hora

de tudo isso terminar... Não aguento mais tanta pressão... (Berra.) Droga!!!

KLEBER

Calma... O que você precisa é de um tempo pra descansar a cabeça. Há

quase seis meses você fica enfiada neste quarto, rodeada por livros e cadernos.

Não come, não dorme, não sai... O que você precisa agora é esfriar a cabeça

pra poder enfrentar a prova com tranquilidade...

CAMILA

Você tem razão. Tô precisando cuidar um pouco de mim... O que eu

tinha que estudar, já estudei. (Começa a colocar roupas numa mala.) Ok. Você

venceu. Vamos pra praia curtir o fim de semana.

KLEBER

E sem pensar na prova...

CAMILA

Ainda bem que eu tenho alguém do meu lado que me compreenda... Eu

te amo!

KLEBER

Eu também...

(Beijam-se e saem felizes.)

CENA 9

(Carta de adeus de um jovem de 19 anos, cujo nome

foi omitido. O caso é verídico e aconteceu num hospital de São Paulo.)

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(Enfermeiros trazem uma cama de hospital até o centro do palco. Saem. Um jovem está

deitado no leito, em estado terminal. Fala para a plateia como fosse o seu pai. Ouvimos

no áudio o som de um cardiógrafo.)

JOVEM

Acho que neste mundo ninguém procurou descrever o seu próprio

cemitério. Não sei como você, pai vai receber este relato, mas preciso de todas

as forças enquanto é tempo. Sinto muito, acho que essa conversa é a última

que tenho com o senhor. Sinto muito, mesmo... Está em tempo de o senhor

saber a verdade, verdade esta que nunca desconfiou. Vou ser breve e claro,

bastante objetivo... O tóxico me matou. Travei conhecimento com meu

assassino aos 15 anos de idade. Sabe como conheci essa desgraça? Por meio de

um cidadão elegantemente vestido, bem-elegante mesmo e bem falante, que

me apresentou o meu futuro assassino: a droga. Eu tentei recusar, tentei

mesmo, mas o cidadão mexeu com os meus brios, dizendo que eu não era

homem... Não é preciso dizer mais nada, né? Ingressei no mundo do vício. No

começo, foi o devaneio; depois as torturas, a escuridão. Não fazia nada sem

que o tóxico tivesse presente. Em seguida, veio a falta de ar, o medo, as

alucinações. E logo após a euforia do pico novamente, eu me sentia mais gente

que outras pessoas, e o tóxico, meu amigo inseparável, sorria... sorria... sorria...

Quando a gente começa, acha tudo ridículo e engraçado. Eu só estou com 19

anos e sei que não tenho a menor chance de viver. É muito tarde pra mim. Mas

ao senhor, tenho um último pedido a fazer: mostre isso a todos os jovens que o

senhor conhece. Diga-lhes que em cada porta da escola, em cada cursinho de

Faculdade, em qualquer lugar, há sempre um homem elegantemente vestido e

bem falante que irá mostrar o futuro assassino e destruidor de vidas, que os

levarão à loucura e à morte, como aconteceu comigo. Por favor, atenda ao meu

último pedido, antes que seja tarde demais para eles... Perdão, pai. Já sofri

demais. Perdoe-me também, por fazê-lo padecer pelas minhas loucuras.

Adeus!!!

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(O jovem morre. Ouve-se no áudio o ruído intermitente de um cardiógrafo. Entram

enfermeiros e retiram a maca com o paciente.)

CENA 10

(Adaptação da crônica “O Troco”, de Tatiana Belinky.)

(Tatiana está sentada numa mesa tomando um café. Aparece um menino, por volta dos

doze anos com uma roupa maltrapilha. Aproxima-se lentamente da senhora e pede

baixinho.)

MENINO

A senhora podia me comprar um sanduíche?

TATIANA

Sinto muito, aqui não vendem sanduíches, menino.

MENINO

Eu sei. Mas tem uma lanchonete ali na frente, do outro lado da rua!

(Indica a lanchonete.)

TATIANA

Espere um momento! (Procura o dinheiro na bolsa, mas acha apenas uma

nota alta, muito mais do que necessário para comprar apenas um sanduíche. Entrega

ao garoto, que sai correndo.) Bem, ele bem que precisa, isso lhe dará para muitos

sanduíches. Bom proveito!

(Tatiana toma o café tranquilamente. de repente volta o garoto com um sanduíche

numa mão e com o dinheiro na outra.)

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MENINO

(Sério.) O seu troco, dona! (Tatiana fica parada, sem reagir. O garoto coloca o

troco na mão dela, resoluto e depois sorri.) Muito obrigado!

(Sai correndo.)

TATIANA

Fique com o troco. (Mas o garoto já estava longe. Para a plateia.) Eu poderia

ter ido atrás dele, ou deveria chamá-lo, mas algo me disse, lá no meu íntimo,

que eu não devia fazer isso. Deveria mais aceitar a dignidade com que essa

criança pobre não abusou do meu gesto, que, evidentemente, não entendeu

não como uma esmola, mas como uma prova de confiança na sua correção.

(Termina de tomar café e sai.)

CENA 11

(Baseado em “A Última Crônica”, de Fernando Sabino)

(Um garçom arruma as mesas e cadeiras, como se fosse fechar o local. Nesse momento,

aparece um casal de mendigos com uma menina pequena. O homem traz um saco de

estopa nas costas e a mulher segura na mão da menina. O garçom caminha até ele com

um gesto de mandá-los embora. O homem educadamente pede para usar uma das

mesas. O garçom, a contragosto, autoriza. Os três sentam-se à mesa. A menina no

centro e os pais nas laterais. O homem tira do saco um único pedaço de bolo, enrolado

num papel-toalha. Coloca o bolo no centro da mesa. A mãe pega uma velinha de 5 anos

que estava guardada no bolso e põe no bolo. O pai pega uma caixa de fósforos, risca

um palito e acende a velinha. Os dois se levantam e começam a cantar “parabéns pra

você”, batendo palmas, mas sem nenhum ruído. A menina sente-se a criatura mais

feliz do mundo, enquanto o garçom, que observava atentamente a cena, engole em

seco. A menina assopra a velinha, tira a velinha do bolo, lambe o glacê da base e

começa a comer o pedaço do bolo. Olha para o garçom e oferece um pedaço para ele,

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que recusa. A menina come o bolo com imenso prazer. Quando termina, o pai limpa

as migalhas da mesa, colocando-as no saco, mas esquecem a vela ali. o pai chega para

o garçom, limpa a mão na calça e ergue a mão em sinal de agradecimento. O garçom

aperta a mão do mendigo e fica olhando para a saída deles. Antes de sair, a menina

acena a mão para ele, se despedindo. Saem. O garçom, sozinho, olha para a mesa, vê a

velinha, pega-a e fica olhando para ela, profundamente emocionado.)

CENA 12

(Extraído da crônica “Papos” de Luís Fernando Veríssimo.)

(Dois amigos se encontram.)

AMIGO 1

Me disseram...

AMIGO 2

Disseram-me.

AMIGO 1

Hein?

AMIGO 2

O correto é “disseram-me”. Não, “me disseram”.

AMIGO 1

Eu falo como quero. E te digo mais... Ou é “digo-te”?

AMIGO 2

O quê?

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AMIGO 1

Digo-te que você...

AMIGO 2

O “te” e o “você” não combinam

AMIGO 1

Lhe digo?

AMIGO 2

Também não. O que você ia me dizer?

AMIGO 1

Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou lhe partir

a sua cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?

AMIGO 2

Partir-te a cara.

AMIGO 1

Pois é. Parti-la-ei-de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me?

AMIGO 2

É para o seu bem.

AMIGO 1

Dispenso as suas correções. Vê se esquece-me. Falo como bem entender.

Mais uma correção e eu...

AMIGO 2

O quê?

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AMIGO 1

O mato.

AMIGO 2

Que mato?

AMIGO 1

Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-lhe-ei-te. Ouviu bem?

AMIGO 2

Eu só estava querendo...

AMIGO 1

Pois esqueça-o e pára-te. Pronome no lugar certo é elitismo.

AMIGO 2

Se você prefere falar errado.

AMIGO 1

Falo como todo mundo fala. O importante é que me entenderem. Ou

entenderem-me?

AMIGO 2

No caso... não sei.

AMIGO 1

Ah, não sabe? Não o sabes? Sabe-lo não?

AMIGO 2

Esquece.

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AMIGO 1

Não. Como “esquece”? Você prefere falar errado? E o certo é “esquece”

ou “esqueça”? Ilumine-me. Me diga. Ensines-lo-me, vamos.

AMIGO 2

Depende.

AMIGO 1

Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas

não sabe-os.

AMIGO 2

Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser.

AMIGO 1

Agradeço-lhe a permissão para falar errado que mas dás. Mas não posso

mais dize-lo-te o que dizer-te-ia.

AMIGO 2

Por quê?

AMIGO 1

Porque, com todo este papo, esqueci-lo.

(Saem.)

CENA 13

(Cena de Julio Carrara)

(Entra em cena um rapaz maltrapilho. Traz nas mãos dezenas de folhetinhos.)

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RAPAZ

E aí, rapaziada? Tamos aí. Tô aqui fazendo meus biscates. A vida é dura,

né? A gente tem que ganhar dinheiro, não importa como, não é mesmo? Olha

só... tá vendo isso aqui... esse monte de papel na mão? É o meu sustento. Vou

lá, entro no ônibus, pulo a catraca e entrego esse papel pros trouxas, me

fingindo de deficiente e desempregado. Querem ver só?

(Outros atores entram e ficam como se estivessem dentro de um ônibus em movimento.

Entra o rapaz, fingindo ter um problema físico. Com toda a dificuldade do mundo, pula

a catraca e começa a entregar os papeis. Alguns não aceitam, outros pegam a

contragosto, etc. Quando termina de entregar, faz seu discurso decorado.)

RAPAZ

Atenção senhores passageiros, eu tô desempregado, passando por

necessidade e com oito filhos pra criar. Eu peço pra vocês qualquer tipo de

ajuda: pode ser qualquer trocado, vale transporte, ticket refeição. O importante

é que seja de coração. Eu sou deficiente físico e neste estado não arrumo

emprego e não posso comprar leite para os meus oito filhos. Por favor, me

ajude. Que Deus dê tudo isso em dobro pra vocês; que Deus abençoe a quem

me ajudar e a quem não ajudar também... Obrigado.

(Vai passando e pegando o papel de volta. Alguns dão passe de metrô ou ônibus para

ele. De repente, um conhecido deste rapaz, olha pra ele, reconhecendo-o.)

HOMEM

Januário! Salafrário. Você não é deficiente coisíssima nenhuma. E nem

tem filho. Não tem vergonha, não? (Pausa. Todos olham furiosos para ele.) Ficar

roubando gente honesta e trabalhadora? (Grita.) Pau nele!!!

(A multidão corre atrás do rapaz, que imediatamente esquece sua deficiência física e

foge desesperadamente sob os gritos de protestos.)

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CENA 14

(Montar uma cena utilizando as palavras abaixo. pode ser um rap, com diversos

andamentos, tonalidades, volume e intensidade.)

– Meu time só perde.

– Me sinto só.

– Preciso passar no Vestibular!

– Amizade.

– Generosidade.

– Como vai minha gramática?

– Oi . Tudo bem?

– Nenhum filho meu é viciado em drogas!

– Tô com dor de dente.

– Parabéns pra você.

– Ser ou não ser, eis a questão.

– O mundo é um palco

– Sabotagem

(A cena a seguir começa a ter outro ritmo e andamento. As frases são desconexas, sem,

aparentemente, nenhum sentido. Por exemplo:)

- Os ratos tem pulgas, as pulgas não tem ratos

- O céu está em cima, o chão está embaixo

- Quais os dias da semana?

- Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado, Domingo, Segunda...

- Posso descer lá em cima?

(Inventar outras frases. De repente, não se entende mais nada. Uma verdadeira

poluição sonora. Os atores se comportam como robôs enlouquecidos, agindo como se

estivessem contaminados por um vírus de computador até desaparecerem de cena.)

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EPÍLOGO

(Enquanto a cena anterior está sendo executada, os atores pegam as cadeiras e colocam

na mesma marcação do prólogo. Sentam-se nas cadeiras e ficam olhando para frente.

Ouve-se no áudio um texto de Plínio Marcos.)

GRAVAÇÃO

Por mais que as cruentas e inglórias batalhas do cotidiano tornem um

homem duro ou cínico o suficiente para ele permanecer indiferente às

desgraças ou alegrias coletivas, sempre haverá no seu coração, por minúsculo

que seja, um recanto suave onde ele guarda ecos dos sons de alguns

momentos de amor que viveu na sua vida. Bendito seja quem souber dirigir-se

a esse homem que se deixou endurecer, de forma a atingí-lo no pequeno

núcleo macio de sua sensibilidade e por aí despertá-lo, tirá-lo da apatia, essa

grotesca forma de autodestruição que por desencanto ou medo se sujeita, e

inquietá-lo, comovê-lo para as lutas comuns da libertação. Os atores tem esse

dom. Eles têm o talento de atingir as pessoas nos pontos onde não existe

defesa. Os atores, eles e mais ninguém, tem esse dom. O ator é o Cristo da

Humanidade e seu talento é muito mais uma condenação que uma dádiva. O

ator tem que saber que para ser ator de verdade vai ter que fazer mil e uma

renúncias, mil e um sacrifícios. É preciso que o ator tenha muita coragem,

muita humildade e sobretudo, um transbordamento de amor fraterno para

abdicar da própria personalidade em favor das personalidades de suas

personagens, com a única finalidade de fazer a sociedade entender que o ser

humano não tem instinto e sensibilidade padronizados como os hipócritas,

com seus códigos e ética, pretendem. Eu amo os atores nas suas alucinantes

variações de humor, nas suas crises de euforia ou depressão. Amo o ator no

desespero de sua insegurança quando ele, sem a bússola da fé ou da ideologia,

é obrigado a vagar por labirintos de sua mente, procurando no seu mais

secreto íntimo afinidades com as distorções de caráter que seu personagem

tem. Eu amo muito mais o ator quando, depois de tantos martírios surge no

palco com segurança, emprestando seu corpo, sua voz, sua alma, sua

sensibilidade para expor sem nenhuma reserva, toda a fragilidade do ser

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humano reprimido, violentado. Eu amo o ator que se empresta inteiro para

expor para a platéia os aleijões da alma humana, com a única finalidade de

que seu público entenda, se compreenda, se fortaleça e caminhe no rumo de

um mundo melhor. Amo os atores e por eles amo o teatro, e sei que é por eles

que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha

que se valer da técnica mecânica. Plínio Marcos.

(Repetição da cena inicial. O espetáculo deverá terminar num alto astral enorme, com

as gargalhadas histéricas dos atores tornando assistir à comédia maluca do início.

Black-out.)

FIM

Abril/2002