125
IV O MODERNISMO BRASILEIRO 1. A Emoção estética na arte moderna — Graça Aranha: conferência na Semana de Arte Moderna, 1922 2. Arte moderna — Menotti del Picchia: conferência na Semana de Arte Moderna, 1922 3. Editorial da revista Klaxon, 1922 4. A Poética de Mário de Andrade: síntese dos textos: a) Prefácio interessantíssimo, 1921 b) A Escrava que não é Isaura, 1924-5 c) O Movimento Modernista, 1942 5. O Espírito moderno Graça Aranha: conferência na Academia Brasileira de Letras, 1924 6. Manifesto pau-brasil — Oswald de Andrade, 1924 7. A Arte moderna — Joaquim Inojosa, 1924 8. Editorial de A Revista: a) Para os céticos, Carlos Drummond de Andrade, 1925 b) Para os espíritos criadores, Martins de Almeida, 1925 9. Editorial de Terra roxa e outras terras, 1926 10. Os textos do Manifesto regionalista de 1926 a ) Programa do Centro Regionalista, 1926 b) O Manifesto de 1926/1952 — Gilberto Freyre, 1952 11. Editorial da revista Festa vários, 1927 12. Manifesto do Grupo Verde — vários, 1927 13. Manifesto antropófago — Oswald de Andrade, 1928 14. Manifesto nhengaçu verde-amarelo — vários, 1929 15. Textos do Leite criôlo — vários, 1929 16. Procura da poesia — Carlos Drummond de Andrade, 1944

06. o Modernismo Brasileiro

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 06. o Modernismo Brasileiro

IV

O MODERNISMO BRASILEIRO

1. A Emoção estética na arte moderna — Graça Aranha: conferência na Semana de Arte Moderna, 1922 2. Arte moderna — Menotti del

Picchia: conferência na Semana de Arte Moderna, 19223. Editorial da revista Klaxon, 19224. A Poética de Mário de Andrade:

síntese dos textos: a) Prefácio interessantíssimo, 1921 b) A Escrava que não é Isaura, 1924-5 c) O Movimento

Modernista, 19425. O Espírito moderno — Graça Aranha: conferência na

Academia Brasileira de Letras, 19246. Manifesto pau-brasil — Oswald de Andrade, 19247. A Arte moderna — Joaquim Inojosa, 1924 8. Editorial de A Revista:

a) Para os céticos, Carlos Drummond de Andrade, 1925 b) Para os espíritos criadores, Martins de Almeida, 1925 9. Editorial de Terra

roxa e outras terras, 1926 10. Os textos do Manifesto regionalista de 1926 a ) Programa do Centro Regionalista, 1926 b) O Manifesto de

1926/1952 — Gilberto Freyre, 195211. Editorial da revista Festa — vários, 192712. Manifesto do Grupo Verde — vários, 1927

13. Manifesto antropófago — Oswald de Andrade, 192814. Manifesto nhengaçu verde-amarelo — vários, 1929

15. Textos do Leite criôlo — vários, 192916. Procura da poesia — Carlos Drummond de

Andrade, 194417. Manifesto para não ser lido (Joaquim), 1946

18. Editorial da revista Orfeu (Ledo Ivo), 194719. Poesia e composição — A Inspiração e o trabalho de Arte — João

Cabral de Melo Neto, 1952

Page 2: 06. o Modernismo Brasileiro
Page 3: 06. o Modernismo Brasileiro

O Modernismo Brasileiro

GRAÇA ARANHA (1868-1931), celebrado como romancista (Canaã 1902), membro da Academia Brasileira de Letras e diplomata, viveu na Europa de 1900 a 1921, conhecendo de perto a agitação intelectual da «belle époque» e assimilando (ou procurando assimilar) o sentido geral ide renovação literária que continuou através da grande guerra. É inegável a influência francesa nas suas concepções estéticas, principalmente na preocupação com «o espírito moderno», idéia popularizada pelo futurismo e desenvolvida por Apollinaire (L'Esprit nouveau et les poètes, 1918) e que, após a morte deste, motivou a fundação da revista L'Esprit nouveau (1920), que exerceu também indiscutível influência na teoria poética de Mário de Andrade. Graça Aranha chegou ao Brasil pregando justamente o «espírito moderno», título aliás de sua conferência na A.B.L., em 1924, e do livro onde ela aparece, em 1925. Foi em outubro de 1921 que Graça Aranha chegou ao Brasil, trazendo por certo a notícia do «Congrès de l'Esprit Moderne» que os dadaistas e puristas haviam programado para março de 1922. Como informa Mário da Silva Brito, um artigo de Cândido Mota Filho, elogiando a Estética da Vida, 1921, chamou a atenção dos novos sobre Graça Aranha que, em novembro, já estava programando, para o inicio do ano seguinte, centenário da independência do Brasil, a realização da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo. «Até esse momento — diz Mário da Silva Brito — os modernistas tinham lutado sozinhos, sem o patrocínio de nenhuma valiosa tutela. Graça Aranha,

3

Page 4: 06. o Modernismo Brasileiro

aderindo ao movimento, que, como se vê, já havia eclodido sem o seu concurso, trazia aos jovens a considerável vantagem de um nome de larga ressonância nacional*.

Realmente as preocupações modernistas se documentam desde 1920, quando os novos eram conhecidos por futuristas e viviam num centro, como São Paulo, de grande população italiana, onde as idéias de Marinetti deviam causar bastante repercussão. Mas parece que o nome de Semana de Arte Moderna foi mesmo escolhido por Graça Aranha, que devia saber da programação do Congresso do Espírito Moderno para março de 1922, tanto que a nossa Semana foi marcada antecipadamente para fevereiro. Quanto ao nome de modernismo, que se popularizou (ao contrário do que havia acontecido com a designação de José Veríssimo para a época realista), tudo indica que ele está também ligado ao título do frustrado congresso dos «mo-dernistas* franceses ou, se não, ao sentido de moderno contido no título da revista que Mário de Andrade tão bem conhecia, L'Esprit nouveau (diga-se, de passagem, que um dos fundadores dessa revista, Amedée Onzenfant, era um dos patrocinadores do congresso de Paris).

O certo ê que Graça Aranha se colocou no centro do movimento, cujo ponto principal foi a realização da Semana de Arte Moderna, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. A Semana foi aberta com a conferência de Graça Aranha («A emoção estética na arte moderna*), a que se seguiram números de música e declamações; na segunda parte, houve a conferência de Ronald de Carvalho («A pintura e a escultura moderna no Brasil*). Na segunda noite, dia 15, o ponto mais alto da Semana, Menotti del Picchia pronunciou a sua conferência («Arte moderna») que foi, no momento das declamações, perturbada pela vaia do público. No último dia houve a apresentação da música de Villa-Lobos. «Os fatos demonstrariam — é a sintética conclusão de Mário da Silva Brito — que a Semana de Arte Moderna finalmente introduzira o Brasil na problemática do século X X e levara o país a integrarse nas coordenadas culturais, políticas e sócio-econômicas da nova era: o mundo da técnica, o mundo mecânico e

276

Page 5: 06. o Modernismo Brasileiro

mecanizado — mundo que o modernismo cantaria, glorificaria e, depois, temendo-o, repudiaria, conseqüência dele que era».

A Semana de Arte Moderna foi um duplo vértice histórico; convergência de idéias estéticas do passado, apuradas e substituídas pelas novas teorias européias (futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo e espi-ritonovismo); e também ponto de partida para as con-quistas expressionais da literatura brasileira neste século. Há quem queira ver na Semana uma espécie de Gênese brasileiro, como se não houvesse nada de literário antes dela, idéia que a crítica vai lentamente desfazendo. Pode-se pensar num fiat, mas um tanto às avessas, porquanto se é verdade que chegou a existir uma comutação de idéias e valores, a ruptura com o passado, como já podemos hoje deduzir, foi mais ou .menos aparente, permanecendo a . mesma es-sência cultural, apenas, é claro, enriquecida e dinamizada. Toda a grande contribuição da revolução literária de 1922 pode-se, portanto, resumir-se nestes dois aspectos: abertura e dinamização dos elementos culturais, incentivando a pesquisa formal, vale dizer, a linguagem; ampliação do ângulo óptico para os macro-e microtemas da realidade nacional, embora essa ampliação se tenha dado mais exatamente na linguagem, etevando-se o nível coloquial da fala brasileira à categoria de valor literário, fato que não havia sido possível na poética parnasiano-simbolista, quer pela sua concepção formal, quer pela concepção lingüística da época, impregnada de exagerado vernaculismo.

Os textos que a seguir apresentamos dão bem a idéia da inquietação intelectual que agitou a literatura brasileira na década dos 20, quando apareceram inúmeras revistas e jornais literários, às vezes efêmeros, assinalando a repercussão do modernismo nos Estados, como as revistas Klaxon (1922) de São Paulo, Estética (1924) do Rio, Terra de sol (1924) do Rio, Era Nova(1924) da Paraíba (João Pessoa), Revista do Brasil(1925) de São Paulo, A Revista (1925) de Belo Horizonte, Terra roxa e outras terras (1926), de São Paulo, Revista novíssima (1926) de São Paulo, Festa (1927) do Rio, Revista de antropofagia (1928) de São Paulo, Movimento (1928) do Rio, Verde (1928) de Cataguazes (MG), Elétrica (1928) de Itanhandu (MG), Arco e flecha (1928) de Salvador, Leite criôlo (1919) de Belo

5

Page 6: 06. o Modernismo Brasileiro

Horizonte, Maracajá (1929) de Fortaleza, Madrugada (1929) de Porto Alegre, Lanterna verde (1934) do Rio, Oeste (1942) de Goiânia, Revista brasileira de poesia (1946) de São Paulo, Joaquim (1946) de Curitiba e Orfeu (1947) do Rio de Janeiro, além de outras que cumpriram as suas funções regionais, mantendq viva a preocupação com uma literatura moderna. Quanto aos textos aqui publicados, informamos que:

1. Os dois textos de Qraca Aranha ("A emoção estética na arte moderna", com que ele abriu a Semana de Arte Moderna em 1922; e "O espirito moderno", com que ele rompeu com a Academia Brasileira de Letras, em 1924) foram por ele mesmo publicados em Espirito moderno. São Paulo, Monteiro Lobato, 1925. O segundo tem, em apêndice, o texto do projeto (bastante interessante) que ele apresentou tentando a renovação da A.B.L. naquela época.

2. A conferência de Menottl dei Picchia ("Arte moderna") foi por ele publicada em O curupira e o carão. São Paulo, Hèlios (o próprio Menottl), 1927. Nesse livro aparecem também artigos de Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. A 'conferência de Menottl dei Plcctíia foi a da segunda noite (15 de fevereiro), embora na nota que precede o texto se leia que foi na noite de 17. Lembre-se que a conferência de Ronald de Carvalho que, segundo Mário da Silva Brito, se denominou "A pintura e a escultura moderna no Brasil", não foi ainda publicada. E Menottl dei Picchia, numa informação oral, nos diz que Ronald pronunciou uma palestra rápida e de improviso... O certo é que não conseguimos localizar esse texto, nem com o auxilio de Mário da Silva Brito, que diz desconhecê-lo também.

3. Sobre a poética de Mário de Andrade, contida no "Prefácio interessantíssimo" (Paulicéia desvairada), em "A Escrava que não é Isaura" (Obra imatura), em "O Movimento modernista" (Aspectos da poesia brasileira) e, também, na sua vasta correspon-dência, observamos que se trata dos textos teóricos mais importantes do modernismo brasileiro: o primeiro de dezembro de 1921; o segundo, reelaboração do primeiro, escrito entre 1922 e 1924 e publicado em 1925; o terceiro, conhecido como o "testamento estético" de Mário, é de 1942; quanto às suas cartas (publicadas), elas cobrem praticamente todo o período que se estende de 1922 a 1945.

4. Além dos vários editoriais de revistas como Klaxon (1922), A Revista (1925), este redigido por Carlos Drummond de Andrade, conforme Informação de Plínio Doyle na Revista do livro, m 37, de 1969, Terra roxa e outras terras (1926), Festa (1927), Verde, (1927), Leite criôlo (1927), Joaquim (1946), e Orfeu (1947), apareceram ós manifestos de Oswald de Andrade ("Pau-Brasil", de 1924, e "Antropófago", de 1928), Menottl dei Picchia, Plínio Salgado, Alfredo Élis, Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho ("Nhengaçu verdo-amarelo", de 1929), merecem rápidos comentários o poema "Procura da poesia", de Carlos Drummond de Andrade, publicado em janeiro de 1944 no Correio da Manhã, do Rio, antecipando de muito as especulações poéticas da chamada Geração de 45; e o "Manifesto regionalista de 1926" de Gilberto Freyre, mas que, segundo Joaquim Inojosa, só foi redigido em 1952, época em que foi peia primeira vez publicado. Aliás, sobre isso, é interessante' o confronto de alguns dados. Por exemplo: Gilberto Freyre diz que o seu "Manifesto de 1926" do Recife foi lido no Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo, realizado no Recife em 1926. Consultando os jornais da época, Joaquim

278

Page 7: 06. o Modernismo Brasileiro

Inojosa prova que o congresso se denominou Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste e se realizou de 7 a 11 de fevereiro de 1926, deixando claro, além disso, que o texto lido por Gilberto Freyre não é o mesmo que o ilustre sociólogo publicou em 1952 pela Editora Região e, em 1953, pelo Instituto Joaquim Nabuco, ambos de Recife. O Serviço de Documentação do MEC fez a terceira edição em 1955. Até ai o texto de Gilberto Freyre se denominava Manifesto Regionalista de 1926. Na quarta edição, feita pelo Instituto Joaquim Nabuco, em 1967 (depois das investigações de Joaquim Inojosa), foi suprimida a data do titulo, ficando apenas Manifesto regionalista. Além disso, há modificação na apresentação do manifesto, pois, apesar de estar ali que não houve "nenhuma alteração essencial no texto de 1926", nota-se a supressão dos vinte e um títulos de capítulos, justamente os que publicamos mais adiante.

E agora, em face das últimas declarações do próprio Gilberto Freyre (Cf. Jornal do comércio, Rio de janeiro, 15-12-80), em que ele confessa que a redação do manifesto foi feita em 1952 sobre pronunciamento de 1926, só nos resta repetir que o chamado "Manifesto regionalista de 1926" foi mesmo um falso manifesto ou, como quer Mário da Silva Brito, um Manifesto-Itararé, isto é, u.m manifesto-que-não-houve. Ou um manifesto a posteriori, depois que o modernismo, como renovação cultural, já era um fato incontestável.

7

Page 8: 06. o Modernismo Brasileiro

A EMOÇÃO ESTÉTICA NA ARTE MODERNA

Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje, é uma aglomeração de «horrores». Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros «horrores» vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo.

Nenhum preconceito é mais perturbador à concepção da arte que o da Beleza. Os que imaginam o belo abstrato são sugestionados por convenções forjadoras de entidades e conceitos estéticos sobre os quais não pode haver uma noção exata e definitiva. Cada um que se interrogue a si mesmo e responda que é a beleza? Onde repousa o critério infalível do belo? A arte é independente deste preconceito. É outra maravilha que não é a beleza. É a realização da nossa integração no Cosmos pelas emoções • derivadas dos nossos sentidos, vagos e indefiníveis sentimentos que nos vêm das formas, dos sons, das cores, dos tatos, dos sabores e nos levam à unidade suprema com o

1. Conferência com que Graça Aranha inaugurou a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, em 13 de fevereiro de 1922. Está publicada em Espirito moderno. São Paulo, Cia. Gráfica-Editora Monteiro Lobato, 1925.

280

Page 9: 06. o Modernismo Brasileiro

Todo Universal. Por ela sentimos o Universo, que a ciencia decompõe e nos faz somente conhecer pelos seus fenômenos. Por que uma forma, uma linha, um som, uma cor nos comovem, nos exaltam e transportam ao universal? Eis o mistério da arte, insolúvel em todos os tempos, porque a arte é eterna e o homem é por excelência o animal artista. O sentimento religioso pode ser trasmudado, mas o senso estético permanece inextinguível, como o Amor, seu irmão imortal. O Universo e os seus fragmentos são sempre designados por metáforas e analogias, que fazem imagens. Ora, esta função intrínseca do espírito humano mostra como a função estética, que é a de idear e imaginar, é essencial à nossa natureza.

A emoção geradora da arte ou a que esta nos transmite é tanto mais funda, mais universal quanto mais artista for o homem, seu criador, seu intérprete ou espectador. Cada arte nos deve comover pelos seus meios diretos de expressão e por eles nos arrebatar ao Infinito.

A pintura nos exaltará, não pela anedota, que por acaso ela procure representar, mas principalmente pelos sentimentos vagos e inefáveis que nos vêm da forma e da cor.

Que importa que o homem amarelo ou a paisagem louca, ou o Gênio angustiado não sejam o que se chama convencionalmente reais? O que nos interessa é a emoção que nos vem daquelas cores intensas e surpreendentes, daquelas formas estranhas, inspiradoras de imagens e que nos traduzem o sentimento patético ou satírico do artista. Que nos importa que a música transcendente que vamos ouvir não seja realizada segundo as fórmulas consagradas? O que nos interessa é a transfiguração de nós mesmos pela magia do som, que exprimirá a arte do músico divino. É na essência da arte que está a Arte. É no sentimento vago do Infinito que está a soberana emoção artística derivada do som, da forma e da cor. Para o artista a natureza é uma «fuga» perene no Tempo imaginário. Enquanto para os outros a natureza é fixa e eterna, para ele tudo passa e a Arte é a representação dessa transformação incessante. Transmitir por ela as vagas emoções absolutas vindas dos sentidos e realizar nesta emoção estética a unidade com o Todo é a suprema alegria do espírito.

9

Page 10: 06. o Modernismo Brasileiro

Se a Arte é inseparável do homem, se cada um de nós é um artista mesmo rudimentar, porque é um criador de imagens e formas subjetivas, a Arte nas suas manifestações recebe a influencia da cultura do espirito humano.

Toda a manifestação estética é sempre precedida de um movimento de idéias gerais, de um impulso filosófico, e a Filosofia se" faz Arte para se tornar Vida. Na antiguidade clássica o surto da arquitetura e da escultura se deve não somente ao meio, ao tempo e à raça, mas principalmente à cultura matemática, que era exclusiva e determinou a ascendência dessas artes da linha e do volume. A própria pintura dessas épocas é um acentuado reflexo da escultura. No renascimento, em seguida à perquirição analítica da alma humana, que foi a atividade predominante da idade média, o humanismo inspirou a magnífica floração da pintura, que na figura humana procurou exprimir o mistério das almas. Foi depois da filosofia natural do século XVII que o movimento panteístico se estendeu à Arte e à Literatura e deu à Natureza a personificação que raia na poesia e na pintura da paisagem. Rodin não teria sido o inovador, que foi na escultura, se não tivesse havido a precedência da biologia de Lamarck e Darwin. O homem de Rodin é o antropóide aperfeiçoado.

E eis chegado o grande enigma que é o de precisar as origens da sensibilidade na arte moderna. Este supremo movimento artístico se caracteriza pelo mais livre e fecundo subjetivismo. É uma resultante do extremado individualismo que vem vindo na vaga do tempo há quase dois séculos até se espraiar em nossa época, de que é feição avassaladora.

Desde Rousseau o indivíduo é a base da estrutura social. A sociedade é um ato da livre vontade humana. E por este conceito se marca a ascendência filosófica de Condillac e da sua escola. O individualismo freme na revolução francesa e mais tarde no roman-tismo e na revolução social de 1848, mas a sua libertação não é definitiva. Esta só veio quando o darwinismo triunfante desencadeou o espírito humano das suas pretendidas origens divinas e revelou o fundo da natureza e as suas tramas inexoráveis. O espírito do homem mergulhou neste insondável abismo e procurou a essência das coisas. O subjetivismo mais livre

282

Page 11: 06. o Modernismo Brasileiro

e desencantado germinou em tudo. Cada homem é um pensamento independente, cada artista exprimirá livremente, sem compromisos, a sua interpretação da vida, a emoção estética que lhe vem dos seus contatos com a natureza. É toda a magia interior do espírito que se traduz na poesia, na música e nas artes plásticas. Cada um se julga livre de revelar a natureza segundo o próprio sentimento libertado. Cada um é livre de criar e manifestar o seu sonho, a sua fantasia íntima desencadeada de toda a regra, de toda a sanção. O cânon e a lei são substituídos pela liberdade absoluta que nos revela, por entre mil extravagâncias, maravilhas que só a liberdade sabe gerar. Ninguém pode dizer com segurança onde o erro ou a loucura na arte, que é a expressão do estranho mundo subjetivo do homem. O nosso julgamento está' subordinado aos nossos variáveis preconceitos. O gênio se manifestará livremente, e esta independência é uma magnífica fatalidade e contra ela não prevalecerão as academias, as escolas, as arbitrárias regras do nefando bom gosto, e do infecundo bom-senso. Temos que aceitar como uma força inexorável a arte libertada. A nossa atividade espiritual se limitará a sentir na arte moderna a essência da arte, aquelas emoções vagas transmitidas pelos sentidos e que levam o nosso espírito a se fundir no Todo infinito.

Este subjetivismo é tão livre que pela vontade independente do artista se torna no mais desinteressado objetivismo, em que desaparece a determinação psicológica. Seria a pintura de Cézanne, a música de Strawinsky reagindo contra o lirismo psicológico de Debussy procurando, como já se observou, manifestar a própria vida do objeto no mais rico dinamismo, que se passa nas coisas e na emoção do artista.

Esta talvez seja a acentuação da moda, porque nesta arte moderna também há a vaga da moda, que até certo ponto é uma privação da liberdade. A tirania da moda declara Debussy envelhecido e sorri do seu subjetivismo transcendente, a tirania da moda reclama a sensação forte e violenta da interpretação construtiva da natureza pondo-se em íntima correlação com a vida moderna na sua expressão mais real e desabusada. O intelectualismo é substituído pelo objetivismo direto, que, levado ao excesso, transbordará do cubismo no dadaísmo. Há uma espécie de jogo divertido e perigoso, e por isso sedutor, da arte que zomba

11

Page 12: 06. o Modernismo Brasileiro

da própria arte. Desta zombaria está impregnada a música moderna que na França se manifesta no sarcasmo de Eric Satie e que o grupo dos «seis» organiza em atitude. Nem sempre a fatura desse grupo é homogênea, porque cada um dos artistas obedece fatalmente aos impulsos misteriosos do seu próprio temperamento, e assim mais uma vez se confirma a característica da arte moderna que é a do mais livre subjetivismo.

É prodigioso como as qualidades fundamentais da raça persistem nos poetas e nos outros artistas. No Brasil, no fundo de toda a poesia, mesmo liberta, jaz aquela porção de tristeza, aquela nostalgia irre-mediável, que é o substrato do nosso lirismo. É verdade que há um esforço de libertação dessa melancolia racial, e a poesia se desforra na amargura do humorismo, que é uma expressão de desencantamento, um permanente sarcasmo contra o que é e não devia ser, quase uma arte de vencidos. Reclamemos contra essa arte imitativa e voluntária que dá ao nosso «modernismo» uma feição artificial. Louvemos aqueles poetas que se libertam pelos seus próprios meios e cuja força de ascensão lhes é intrínseca. Muitos deles se deixaram vencer pela morbidez nostálgica ou pela amargura da farsa, mas num certo instante o toque da revelação lhes chegou e ei-los livres, alegres, senhores da matéria universal que tornam em matéria poética.

Destes, libertados da tristeza, do lirismo e do formalismo, temos aqui uma plêiade. Basta que um deles cante, será uma poesia estranha, nova, alada e que se faz música para ser mais poesia. De dois deles, nesta promissora noite, ouvireis as derradeiras «imaginações». Um é Guilherme de Almeida, o poeta de «Messidor», cujo lirismo se destila sutil e fresco de uma longínqua e vaga nostalgia de amor, de sonho e de esperança, e que, sorrindo, se evola da longa e doce tristeza para nos dar nas Canções Gregas a magia de uma poesia mais livre do que a Arte. O outro é o meu Ronald de Carvalho, o poeta da epopéia da «Luz Gloriosa» em que todo o dinamismo brasileiro se manifesta em uma fantasia de cores, de sons e de formas vivas e ardentes, maravilhoso jogo de sol que se torna poesia! A sua arte mais aérea agora, nos novos epigramas, não definha no frívolo virtuosismo que é o folguedo do artista. Ela vem da nossa alma,

284

Page 13: 06. o Modernismo Brasileiro

perdida no assombro do mundo, e é a vitória da cultura sobre o terror, e nos leva pela emoção de um verso, de uma imagem, de uma palavra, de um som à fusão do nosso ser no Todo infinito.

A remodelação estética do Brasil iniciada na música de Villa-Lobos, na escultura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Zina Aita, e na jovem e ousada poesia, será a libertação da arte dos perigos que a ameaçam do inoportuno arcadismo, do academismo e do provincialismo.

O regionalismo pode ser um material literário, mas não o fim de urna literatura nacional aspirando ao universal. O estilo clássico obedece a urna disciplina que paira sobre as coisas e não as possui.

Ora, tudo aquilo em que o Universo se fragmenta é nosso, são os mil aspectos do Todo, que a arte tem que recompor para lhes dar a unidade absoluta. Urna vibração íntima e intensa anima o artista neste mundo paradoxal que é o Universo brasileiro, e ela não se pode desenvolver nas formas rijas do arcadismo, que é o sarcófago do passado. Também o academismo é a morte pelo frio da arte e da literatura.

Ignoro como justificar a função social da Academia. O que se pode afirmar para condená-la é que ela suscita o estilo acadêmico, constrange a livre inspiração, refreia o jovem e árdego talento que deixa de ser independente para se vazar no molde da Academia. É um grande mal na renovação estética do Brasil e nenhum benefício trará à língua esse espírito acadêmico, que mata ao nascer a originalidade pro-funda e tumultuaria da nossa floresta de vocábulos, frases e idéias. Ah! se os novos escritores não pensassem na Academia, se eles por sua vez a matassem em suas almas, que descortino imenso para o magnífico surto do gênio, enfim liberto de mais esse terror. Esse «academismo» não é só dominante na literatura. Também se estende às artes plásticas e à música. Por ele tudo o que a nossa vida oferece de enorme, de esplêndido, de imortal, se torna medíocre e triste.

Onde a nossa grande pintura, a nossa escultura e a nossa música, que não devia esperar a magia da arte de Villa-Lobos para ser a mais sincera expressão do nosso espirito divagando no nosso fabuloso mundo tropical? E, no entanto, eis a paisagem brasileira. É

13

Page 14: 06. o Modernismo Brasileiro

construída como uma arquitetura, são planos, volumes, massas. A própria cor da terra é uma profundidade, os vastos horizontes absorvem o céu e dão a perspectiva do infinito. Como ela provoca a transposição pela arte, que lhe dê no máximo realismo a mais alta idealidade! Eis as nossas gentes. Saem das florestas ou do mar. São os filhos da terra, móveis, ágeis como os animais cheios de pavor, sempre em desafio do perigo, e, no impulso do sonho, alucinados pela imaginação, caminhando pela terra na ânsia de conhecer e possuir. Onde - a arte que transfigurou genialmente essa perpétua mobilidade, essa progressão infinita da alma brasileira?

Da libertação do nosso espírito sairá a arte vitoriosa. E os primeiros anúncios da nossa esperança são os que oferecemos aqui à vossa curiosidade. São estas pinturas extravagantes, estas esculturas absurdas, esta música alucinada, esta poesia aérea e desarticulada. Maravilhosa aurora! Deve-se acentuar que, exceto na poesia, o que se fez antes disto na pintura e na música é inexistente. São pequenas e tímidas manifestações de um temperamento artístico apavorado pela dominação da natureza, ou são transplantações para o nosso mundo dinâmico de melodias mofinas e lânguidas, marcadas pelo metro acadêmico de outras gentes.

O que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o próprio comovente nascimento da arte no Brasil, e, como não temos felizmente a pérfida sombra do passado para matar a germinação, tudo promete uma admirável «florada» artística. E, libertos de todas as restrições, realizaremos na arte o Universo. A vida será, enfim, vivida na sua profunda realidade estética. O próprio Amor é uma função da arte, porque realiza a unidade integral do Todo infinito pela magia das formas do ser amado. No universalismo da arte estão a sua força e a sua eternidade. Para sermos universais, façamos de todas as nossas sensações expressões estéticas, que nos levem à ansiada unidade cósmica. Que a arte seja fiel a si mesma, renuncie ao particular e faça cessar por instantes a dolorosa tragédia do espírito humano desvairado no grande exílio da separação do Todo, e nos transporte pelos sentimentos vagos das formas, das cores, dos sons, dos tatos e dos sabores à nossa gloriosa fusão no Universo.

(ARANHA GRAÇA, Espirito Moderno. São Paulo, Monteiro Lobato, 1925.)

286

Page 15: 06. o Modernismo Brasileiro

ARTE MODERNA

«Pela estrada de rodagem da via-láctea, os automóveis dos planetas correm vertiginosamente. Bela, o Cordeiro do Zodíaco, perseguido pela Ursa Maior, toda dentada de astros. As estrelas tocam o 'jazz band' de luz, ritmando a dança harmônica das esferas. O céu parece um imenso cartaz elétrico, que Deus arrumou no alto, para fazer o eterno reclamo da sua onipotência e da sua gloria».

Este é o estilo que de nós esperam os passadistas, para enforcar-nos, um a um, nos finos baraços dos assobios das suas vaias. Para eles nós somos um bando de bolchevistas da estética, correndo a 80 H.P. rumo da paranóia. Somos o escândalo com duas pernas, o cabotinismo organizado em escola. Julgam-nos uns cangaceiros da prosa, do verso, da escultura, da pintura, da coreografia, da música, amotinados na jagunçada do Canudos literário da Paulicéia Desvairada...

Que engano! Nada mais ordeiro e pacífico que este bando de vanguarda, liberto do totemismo tradicionalista, atualizado na vida policiada, violenta e americana de hoje. Ninguém respeita mais o «casse-tête» do guarda-cívico da esquina que esse pugilo de facínoras aparentes, ainda com as mãos fumegantes do sangue de Homero, Virgílio, Dante, Camões, Victor Hugo, sobretudo Zola e os neogregos, com Heredia à frente. . .

1. Conferência de Menottl dei Picchia, em 15-2-22, na segunda noite da Semana de Arte Moderna. Está publicada em O Curupira e o cario. São Paulo, Editorial Helios Limitada, 1927.

15

Page 16: 06. o Modernismo Brasileiro

É que, se assassinamos, sem pena, papões inatuais, lhes beijamos, com reverência, os túmulos, amando-os com a alma localizada na data dos epitáfios das suas carneiras.

Aos nossos olhos riscados pela velocidade dos bondes elétricos e dos aviões, choca a visão das múmias eternizadas pela arte dos embalsamadores. Cultivar o helenismo como força dinâmica de uma poética do século é colocar o corpo seco, enrolado em bendas (sic), de um Ramsés ou de um Annésis, a governar uma república democrática, onde há fraudes eleitorais e greves anarquistas.

Aos discóbulos de Sparta, opomos Friedenreich e Car-pentier. À derrocada de Illion, a resistência de Verdun ou uma batalha de quemalistas. Às princesas de baladas dos castelos roqueiros, preferimos a datilografa garota. Não queremos fantasmas! Estamos num tempo de realidades e violências.

* * *

A nossa estética é de reação. Como tal, é guerreira. O termo futurista, com que erradamente a etiquetaram, aceitamo-lo porque era um cartel de desafio. Na geleira de mármore de Carrara do parnasianismo dominante, a ponta agressiva dessa proa verbal estilhaçava como um aríete. Não somos, nem nunca fomos «futuristas». Eu, pessoalmente, abomino o dogmatismo e a liturgia da escola de Marinetti. Seu chefe é, para nós, um precursor iluminado, que veneramos como um general da grande batalha da Reforma, que alarga seu «front» em todo o mundo. No Brasil não há, porém, razão lógica e social para o futurismo ortodoxo, porque o prestígio do seu passado não é de molde a tolher a liberdade da sua maneira de ser futura. Demais, ao nosso individualismo estético, repugna a jaula de uma escola. Procuramos, cada um, atuar de acordo com nosso temperamento, dentro da mais arrojada sinceridade.

O que nos agrega não é uma força centrípeta de identidade técnica ou artística. As diversidades das nossas maneiras as verificareis na complexidade das formas por nós praticadas. O que nos agrupa é a idéia geral de libertação contra o faquirismo estagnado e contemplativo, que anula a capacidade criadora

288

Page 17: 06. o Modernismo Brasileiro

dos que ainda esperam ver erguer-se o sol atrás do Partenon em ruinas.

Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos, motores, chaminé de fábricas, sangue, velocidade, sonho, na nossa Arte! E que o rufo de um automóvel, nos trilhos de dois ver-sos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou, anacrónicamente, a dormir e sonhar, na era do «jazz-band» e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcadia e os seios divinos de Helena!

* * *

No século das descobertas, que foi o passado, o gênio insone das reformas trabalhava na obra de Cézanne, Rodin, Rimbaud e Wagner. No século da construção e aproveitamento dessas descobertas, encartamo-nos no formidável movimento de fixação basilar de uma nova estética, no qual seremos, futuramente, os neoclássicos. O exotismo torturado dos obreiros da nossa diretriz artística não é mais que a poeira de ouro de urna grande nebulosa que dará à luz um novo mundo.

Não vos espante o dadaísmo, o tatilismo, o cubismo, o futurismo, o bolchevismo, o erostrastismo: são ingredientes mágicos e efêmeros da alquimia humana, preparando o novo molde mental sobre o qual se repetirão, secularmente, os futuros acadêmicos, os decadentes e os passadistas. Nós somos o Alfa do novo ciclo. Queremos esfarelar apenas os últimos destroços do ômega do ciclo morto, para desenvolvermos a autonomia vibrante da nossa maneira de ser no tempo e no espaço.

Que é a nossa arte?

Senhoras, chorai a morte da mulher «leitmotiv» das jeremiadas líricas.

Até ontem, poetas cabeludos, falsos como brilhantes pingo-dágua, só descantavam ELA. Ela era o que Marinetti chamava a mulher fatal. Para eles — idiotas! — não havia automóveis, corsos, sapateiros martelando solas, ministros vendendo pátrias a varejo no balcão internacional de conferências e tribunais de arbitragem. Ela era omnimônada. Fazia carnívoros pensantes des-

17

Page 18: 06. o Modernismo Brasileiro

pencarem do viaduto do Chá em «loopings» imprevistos. Cismavam debaixo dos salgueiros, em outonos preparados pelos jardineiros do Sr. Firmiano Pinto. Picavam o braço com injeções de cocaína, que as faziam granar uns olhões românticos e coruscantes como dois faróis de «voiturettes».

E choravam, choravam guedelhudos, inúteis, parvos, inatuais, necessitados de Institutos disciplinares a ablu-ções de água de colônia. . .

Quando o recheio das empadinhas poéticas, que são os sonetos, não era um rabo de saia, lá vinham, fatalmente, guizados com acepipes verbais parnasianos, os truculentos deuses de Homero. ELA OU Júpiter. A poesia cifrava-se nesse dilema: Elvira ou o Olimpo.

E — enquanto a engenharia moderna fazia cócegas nas estrelas com a unha de aço dos pára-raios dos arranha-céus, e na pauta dos fios telefônicos a sinfonia dos telégrafos orquestrava revoluções bolchevistas, trucidações de armênios, a descoberta de novos tipos de hélices, — eles, com os olhos cravados na Grécia caricatural do rei Constantino, cantavam as estroinices de Vénus, a saturnal sórdida dos deuses, precursores obscenos do Maxim's e do Apollo, onde até ontem zuniam roletas!

Júpiter poderá entrar na nossa Arte, mas não o admitiremos nu, inatual, cabeludo, como o aceitam os parnasianos. Não queremos saber de escândalos, nem de ter que ajustar contas com a polícia. O pai dos deuses, para transitar nas nossas ruas, é mister que vá, antes, ao barbeiro, vista uma sóbria sobrecasaca, deixe em casa o perigoso revólver olímpico, que era a caixinha dos raios, e, burguês e pacífico, tal qual o pintou André Gide, se anule na vida comum, na tragédia comum dos outros homens.

Basta de se exaltar artimanhas de Ulisses, num século em que o conto do vigário atingiu a perfeição da obra-prima. Basta de se descrever as correrias dos sátiros caprinos atrás das ninfas levípedes e esguias: a Babilônia paulista está cheia de faunos urbanos e as ninfas modernas dançam maxixe ao som do «jazz», sem temer mais egípãs da República...

Morra a Hélade! Organizaremos um zé-pereira canalha para dar uma vaia definitiva e formidável nos deuses do Parnaso!

290

Page 19: 06. o Modernismo Brasileiro

E a mulher? Fora a mulher-fetiche, a mulher-cocaina, a mulher-monomania, l'éternelle Madame!

Queremos uma Eva ativa, bela, prática, útil no lar e na rua, dançando o tango e datilografando uma conta corrente; aplaudindo uma noitada futurista e vaiando os tremelicantes e ridículos poetaços de frases inçadas de termos raros como o porco-espinho de cerdas.

Morra a mulher tuberculosa lírica! No acampamento da nossa civilização pragmatista, a mulher é colaboradora inteligente e solerte da batalha diuturna, e voa no aeroplano, que reafirma a vitória brasileira de Santos Dumont, e cria o mecânico de amanhã, que descobrirá o aparelho destinado à conquista dos astros!

* * *

Só isso? Não. Não nos limitamos somente a banir da gaiola das rimas o fetiche «femina», nem a rechaçar para a montanha a tropa olímpica dos deuses. Queremos libertar a poesia do presídio canoro das fórmulas acadêmicas, dar elasticidade e amplitude aos processos técnicos, para que a idéia se transubstancie, sintética e livre, na carne fresca do Verbo, sem deitá-la, antes, no leito de Procusto dos tratados de versificação. Queremos exprimir nossa mais livre espontaneidade dentro da mais espontânea liberdade. Ser, como somos, sinceros, sem artificialismos, sem contor-cionismos, sem escolas. Sonorizar no ritmo original e profundo tudo o que reboe nas nossas almas de sino, carrilhonando as aleluias das nossas íntimas páscoas, dobrando a angústia dos nossos lutos.

Dar à prosa e ao verso o que ainda lhes falta entre nós: ossos, músculos, nervos. Podar, com a coragem de um Jeca que desbasta à foice uma capoeira, a «selva áspera e forte» da adjetivação frondosa, far-falhuda, incompatível com um século de economia, onde o minuto é ouro. Matar Verlaine, esse desalentado Wilde, esse psicopata Zola, esse açogueiro Farrére, esse Ohnet de casaca, Geraldy, esse almofadinha...

Nada de postiço, meloso, artificial, arrevezado, precioso: queremos escrever com sangue — que é humanidade; com eletricidade — que é movimento, expressão dinâmica do século; violência — que é energia bandeirante.

19

Page 20: 06. o Modernismo Brasileiro

Assim nascerá uma arte genuinamente brasileira, filha do céu e da terra, do Homem e do mistério.

Neste palco, há meses, quem tinha uma casaca para se sentar num poltrona, ou 205000 para se encara-pitar nas torrinhas, assistiu a esta coisa inaudita: quarto ato de Mefistófeles de Boito. Fausto e Mefisto vão ao Olimpo à procura de D. Helena, uma senhora bonita e desonesta, que fugiu de Menelau, seu predestinado marido, e fez Cassandra dizer profecias, Ulisses inventar o Cavalo de Tróia, Enéias fugir com o velho Anquisses para o Lácio. — Aos requebros da batuta de Marinuzzi apareceram em cena os deuses da Grécia! Quem eram? Júpiter, Marte, Mercúrio, Vulcano, Plutão, Netuno... Claro que, no palco, eram comparsas, gigantes latagões italianos, de pernas felpudas, gestos de pantomima.

Na cabeça, por coroas reais, tinham pedaços de lata. O ouro de suas túnicas de ganga era feito com papel pintado. O espadagão de Marte era de estanho. Os raios de Zeus, de ferro b a t i d o . . .

Pois bem, essa ridícula comparsaria gaiata lembrou-me todo o parnasianismo, com seus heróis de papelão, com seus deuses de fancaria, com seus menestréis de gravura.

Hoje que, em Rio Preto, o «cow-boy» nacional reproduz, no seu cavalo chita, a epopéia eqüestre dos Ro-landos furibundos; que o industrial de visão aquilina amontoa milhões mais vistosos do que os de Creso; que Edu Chaves reproduz com audácia paulista o sonho de Ícaro, por que não atualizamos nossa arte, cantando essas Ilíadas brasileiras? Por que preferimos uma Atenas cujos destroços de Acrópole já estão pontilhados de balas de metralhadoras?

Não! Paremos diante da tragédia hodierna. A cidade tentacular radica seus gânglios numa área territorial que abriga 600.000 almas. Há na angústia e na glória da sua luta odisséias mais formidáveis que as que cantou o aedo cego: a do operário reivindicando seus direitos; a do burguês defendendo sua arca; a dos funcionários deslizando nos trilhos dos regulamentos; a do industrial combatendo o combate da concorrên-cia; a do aristocrata exibindo o seu fausto; a do político assegurando a sua escalada; a da mulher quebrando as algemas da sua escravidão secular nos gineceus eventrados pelas idéias libertárias post-bellum...

292

Page 21: 06. o Modernismo Brasileiro

Tudo isso — e o automóvel, os fios elétricos, as usinas, os aeroplanos, a arte — tudo isso forma os nossos elementos da estética moderna, fragmentos de pedra com que construiremos, dia a dia, a Babel do nosso Sonho, no nosso desespero de exilados de um céu que fulge lá em cima, para o qual galgamos na ânsia devoradora de tocar com as mãos as estrelas.

(In O curupira e o carão. São Paulo, Editorial Hélios Limitada, 1927.)

NOTAS

O artigo de Menotti, acima, vem precedido das seguintes observações: «Na famosa Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, por um grupo de 'novos', então denominados 'futuristas', na noite de 17 de fevereiro de 1922, Menotti dei Picchia, 'liderando' a segunda noitada, pronunciou a conferência abaixo.

As duas outras conferências 'Uders' do movimento ficaram a cargo de Graça Aranha e Ronald de Carvalho. Como esse trabalho inaugurou, por conter imanentes as idéias centrais, o movimento cujo espírito se encerra neste livro, essa conferência tem o valor documental de demonstrar a unidade e a continuidade da orientação 'verdamarela'».

21

Page 22: 06. o Modernismo Brasileiro

KLAXON1

Significação

A luta começou de verdade em princípios de 1921 pelas colunas do Jornal do Commércio e do Correio Paulistano. Primeiro Resultado: «Semana de Arte Moderna» — espécie de Conselho Internacional de Versalhes. Como este, a semana teve sua razão de ser. Como ele: nem desastre, nem triunfo. Como ele: deu frutos verdes. Houve erros proclamados em voz alta. Pregaram-se idéias inadmissíveis. É preciso refletir. É preciso esclarecer. É preciso construir. Daí, KLAXON.

E KLAXON não se queixará jamais de ser incompreendido pelo Brasil. O Brasil é que deverá se esforçar para compreender KLAXON.

Estética

KLAXON sabe que a vida existe. E, aconselhado por Pascal, visa o presente. KLAXON não se preocupará de ser novo, mas de ser atual. Essa é a grande lei da novidade.

KLAXON sabe que a humanidade existe. Por isso é internacionalista. O que não impede que, pela integridade da pátria, KLAXON morra e seus membros brasileiros morram.

t. Editorial da revista Klaxon, primeiro órgão do movimento modernista, em São Paulo, saido com a data de 15 de maio de 1922.

294

Page 23: 06. o Modernismo Brasileiro

KLAXON sabe que a natureza existe. Mas sabe que o moto lírico, produtor da obra de arte, é urna lente transformadora e mesmo deformadora da natureza.

KLAXON sabe que o progresso existe. Por isso, sem renegar o passado, caminha para diante, sempre, sempre. O campanile de São Marcos era uma obra-prima. Devia ser conservado. Caiu. Reconstruí-lo foi uma erronia sentimental e dispendiosa — o que berra diante das necessidades contemporâneas.

KLAXON sabe que o laboratório existe. Por isso quer das leis científicas à arte; leis sobretudo baseadas nos progressos da psicologia experimental. Abaixo os preconceitos artísticos! Liberdade! Mas liberdade embri-dade (sic) pela observação.

KLAXON sabe que o cinematógrafo existe. Pérola White é preferível a Sarah Bernhardt. Sarah é tragédia, romantismo sentimental e técnico. Pérola é raciocínio, instrução, esporte, rapidez, alegria, vida. Sarah Bernhardt = século 19. Pérola White = século 20. A cinematografia é a criação artística mais representativa da nossa época. É preciso observar-lhe a lição.

KLAXON não é exclusivista. Apesar disso jamais publicará inéditos maus de bons escritores já mortos. KLAXON não é futurista. KLAXON é klaxista.

Cartaz

KLAXON cogita principalmente de arte. Mas quer representar a época de 1920 em diante. Por isso é polimorfo, onipresente, inquieto, cômico, irritante, contraditório, invejado, insultado, feliz.

KLAXON procura: achará. Bate: a porta se abrirá. Klaxon não derruba campanile algum. Mas não reconstruirá o que ruir. Antes aproveitará o terreno para sólidos, higiênicos, altivos edifícios de cimento armado.

KLAXON tem uma alma coletiva que se caracteriza pelo ímpeto construtivo. Mas cada engenheiro se utilizará dos materiais que lhe convierem. Isto significa que os escritores de KLAXON responderão apenas pelas idéias que assinarem.

23

Page 24: 06. o Modernismo Brasileiro

Problema

Século 19 — Romantismo, Torre de Marfim, Simbolismo. Em seguida o fogo de artifício internacional de 1914. Há perto de 130 anos que a humanidade está fazendo manha. A revolta é justíssima. Queremos construir a alegria. A própria farsa, o burlesco não nos repugna, como não repugnou a Dante, a Shakespeare, a Cervantes. Molhad s, resfriados, reumatizados por uma tradição de lágrimas artísticas, decidimo-nos. Operação cirúrgica. Extirpação das glândulas lacrimáis. Era dos 8 Batutas, do Jazz-Band, de Chicharrão, de Carlito, de Mutt <& Jeff. Era do riso e da sinceridade. Era de construção. Era de KLAXON.

A REDAÇXO

N' 1, São Paulo, 15 de maio de 1922.

{Klaxon: n» 1, São Paulo, 15 de maio de 1922.)

296

Page 25: 06. o Modernismo Brasileiro

A Poética de Mário de Andrade

Partindo da noção geral de que a Retórica è a arte ou a ciencia da expressão, oral ou escrita, destinada a persuadir ou influenciar as pessoas, e da noção de que a Poética tem por objetivo definir os caracteres essenciais da criação literaria, pode-se chegar à conclusão de que, na historia verdadeiramente importante dessas duas disciplinas, a retórica tratou da prática e da eficacia do discurso e a poética tratou da dimensão de sua beleza. Uma é o complemento da outra, já que nenhum discurso pode ser apenas retórico ou apenas poético. Um texto só é poético se sua retórica for eficaz, dizem os estudiosos. Assim como o significante se relaciona com o significado por intermédio de uma redução simbólica, a retórica se relaciona com a poética por intermedio de uma operação análoga, que se realiza, ao mesmo tempo, no plano da fala e no plano da língua, podendo-se pen-sar numa «poética menor» — a concepção individual — e numa «poética maior» —■ as idéias gerais predominantes na época. Essa poética maior (ou metapoé-tica) é caracterizada pela sua ambigüidade, pois sustenta as concepções particulares de retórica e poética e é, por sua vez, sustentada ou renovada pelo valor literario dessas concepções. Os estudos mais recentes, que têm procurado reabilitar os velhos termos de Aristóteles, não modificam muito as suas funções e com-provam as observações acima. Por exemplo, na Rhé-torique genérale, de 1970 (]. Dubois et alii), se lê que «a retórica aparece hoje não somente como uma ciência do futuro, mas ainda como uma ciência da

25

Page 26: 06. o Modernismo Brasileiro

moda, nos confins do estruturalismo, da nova crítica e da semiologia». Aó distinguir poética e retórica, concede primazia à poética: «a retórica é o conhecimento dos procedimentos da linguagem característicos da literatura» e a poética «o conhecimento exaustivo dos princípios gerais da poesia, entendendo-se que a poesia, no sentido estrito, é o modelo da literatura». Chamam de trans-retórica ou meta-retórica o que nos pareceu melhor denominar poética maior, ou meta-poética.

Dentro dessas considerações, podemos sintetizar a poética de Mário de Andrade, no caso a poética maior, teorizadora do modernismo, nesses dois pólos da teoria literária, vendo como fontes de sua poética os seguintes textos: o «Prefácio interessantíssimo», a «A Escrava que não é Isaura» e «O movimento modernista», além da metalinguagem das «cartas» e dos livros de crítica (O Empalhador de passarinho, Aspectos da literatura brasileira e O Baile das quatro artes). Para a história do modernismo a importância maior reside nos dois primeiros que, afinal, se resumem em um só, sabido que a «A Escrava que não é Isaura» é uma ampliação do «Prefácio interessantíssimo». Mas não se pode desprezar «O Movimento modernista», de 1942, espécie de testamento estético de Mário de Andrade. Eis, portanto, a síntese dos três textos:

1. «PREFACIO INTERESSANTÍSSIMO»

É o prefácio que Mário de Andrade escreveu para a Paulicéia desvairada, o primeiro livro de poemas do modernismo brasileiro, publicado em 1922. Sabe-se, no entanto, que esse livro foi escrito de um jato em dezembro de 1920. Em 1921 foi lido a amigos no Rio de Janeiro. O prefácio não traz data, mas a «carta» que o antecede é de dezembro de 1921, o que nos leva a supor que ele é também dessa data. Depois de sua primeira experiência literária (Há uma gota de sangue em cada poema, 1917), Mário esteve sempre em contato com o que lhe chegava das vanguardas européias (futurismo, expressionismo, cubismo e dadaísmo). Esse conhecimento, puramente prático, lhe propiciou a redação da Paulicéia desvairada, mas só depois que teve conhecimento das teorias expostas na revista

298

Page 27: 06. o Modernismo Brasileiro

L'Esprit nouveau, fundada em 1920, foi que se animou a escrever o prefacio. Dai certa defasagem entre a teoria e a prática, entre o prefacio e os poemas, apesar de estarem ambos sob o signo da ambigüidade destruição/construção, ambigüidade que sempre caracterizou a obra de Mário de Andrade, dividido entre o passado, e a consciência do presente. É como se houvesse um duplo Mário nesse livro: um velho e um moço, um que escreve a «.Carta» (o Mário discípulo se dirigindo ao Mário mestre) e outro que escreve o «Prefácio interessantíssimo», onde, como se disse, aparece o nome dos principais teóricos da revista L'Esprit nouveau, o que dá bem o índice de sua honestidade intelectual.

Apesar da aparente desordem «desvairista», trata-se de um texto classicamente estruturado, com introdução, desenvolvimento e conclusão, como se pode ler na míni-antologia que se segue:

A) Introdução justificando o livro e o autor:

"Leitor:Está fundado o Desvairlsmo.Este prefácio, apesar de Interessante, inútil. ( . . . ) Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo. Aliás, muito dificil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se iibertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita se pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem. ( . . . )Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. ( . . . )Todo escritor acredita na valia do que escreve. Se mostra é por vaidade. Se não mostra é por vaidade também."

8) Desenvolvimento de uma teoria literária, onde se vêem elementos da Poética e da Retórica, que podem ser assim ordenados:

a. Poética

Lirismo: "Acredito que o lirismo, nascido nosubconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros,

27

Page 28: 06. o Modernismo Brasileiro

sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada. ( . . . ) A Inspiração é fugaz, violenta. Qualquer impecilho a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá poesia, 1 não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho."

Arte: "Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos."

Belo: "Já raciocinou sobre o chamado 'belo horrível'. É pena. O belo hoirrivel é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas. ( . . . ) Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório — questão de moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural — tem a eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir natureza, nem este é seu fim. ( . . . )Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa."

Percepção: "Nossos sentidos são frágeis. ( . . . )Só idealmente podemos conceber os objetos como os atos na sua inteireza bela ou feia. A arte ( . . . ) tem o poder de nos conduzir a essa idealização livre, musical."

b. Retórica

Métrica: "Não acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número convencional de sílabas. ( . . . ) Mas não desdenho baloiços dançarinos de redondilhas e decassílabos. Acontece a comoção caber neles. Entram pois às vezes no cabaré rítmico dos meus versos. Nesta questão de metros não sou aliado; sou como a Argentina: enriqueço-me."

Ordem: "O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria engraçadíssimo que a estase dissesse:'Alto lál Cada qual berre por sua vez; e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o fim!' A turba é confusão aparente. Quem souber afastar-se idealmente dela, verá o imponente desenvolver-se dessa alma coletiva, falando a retórica exata das reivindicações."

Liberdade ■ expressiva: "Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso."

1. Lirismo + Arte = Poesia. Fórmula de P. Dermée. (Nota do Autor).

300

Page 29: 06. o Modernismo Brasileiro

Rima: "Virgilio, Homero, não usaram rima. Virgilio, Homero, têm assonâncias admiráveis."

Lingua: "A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilissimo 'âo'."

Palavra em Uberdade: "Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade."

C) Demonstração através de uma teoria sobremúsica e poesia:

"Sei construir teorias engenhosas. Quer ver? A poética está muito mais atrasada que a música.

[Diz que a música passou da melodia à harmonia, enquanto a poética ficou essencialmente melódica].

Ora, se em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais: 'Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia Comparece ante a austera e rígida assembléia Do Areópago supremo...',fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem uma às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias. ( . . . ) Mas, se em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia poética."

[Seguem-se cinco observações a respeito dessa teoria, dentre as qauis, as que tratam do "encanto da dissonância", da "realização da harmonia poética" na inteligência, do simultaneismo e da perfeição artística, escrevendo]:

"O apogeu já é decadência, porque sendo estagnação não pode conter em si um progresso, uma evolução ascensional. Bilac representa uma fase destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa destruição. ( . . . ) O nosso primitivismo representa uma nova fase construtiva. A nós compete esquematizar, metodizar as lições do passado".

D) Conclusão: retoma os temas desenvolvidose confirma a proposição inicial:

Volta a falar do lirismo, da gramática, da língua «brasileira», dos temas modernos, do primitivismo, do passado, da política e da sua própria poesia:

"Canto da minha maneira. Que me importa se me não entendem? Não tenho forças bastantes para me universalizar? Paciência. ( . . . ) Nesse momento: novo Anfião moreno e caixa-d'óculos, farei que as próprias pedras se reúnam em

29

Page 30: 06. o Modernismo Brasileiro

muralhas à magia do meu cantar. E dentro dessas muralhas esconderemos nossa tribo. ( . . . )

E está acabada a escola poética 'Desvarismo'. Próximo livro fundarei outra. E não quero discípulos. Em ar*e: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só."

(ANDRADE, Mário. Prefácio interessantíssimo. Paulicéia desvairada. In Poesias completas. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1966.)

2. «A ESCRAVA QUE NAO É ISAURA»

O titulo desse famoso ensaio de Mário de Andrade é uma espécie de paródia do romance de Bernardo Guimarães, A escrava Isaura, de 1875. (Isaura, jovem escrava, é perseguida pela luxúria de seu senhor; foge, encontra um jovem sem preconceitos, e se casa com ele). Através de uma parábola, Mário apresenta a Poesia como uma mulher nua que os homens, com o passar dos tempos, foram cobrindo de roupas e jóias, até que um vagabundo genial (Rimbaud) deu um pontapé naquele monte de roupas e deixou outra vez a mulher nua — a poesia moderna. E a partir daí desenvolve os fundamentos de sua poética. São as mesmas teorias do «Prefácio interessantíssimo», somente que re-tocadas, ampliadas, submetidas a uma comprovação mais rigorosamente científica. O texto foi escrito entre 1922 e 1924 e só foi publicado no ano seguinte. E a sua estrutura corresponde também à poética e à retórica. Parece que Mário deu a seu novo estudo a mesma teoria que, segundo nos revela Maria Helena Grem-becki, ele extraiu de um artigo de Halina Izdebska, intitulado «Lettres étrangères — la poésie russe des journées bolscheviks», publicado no n' 11/12, de no-vembro de 1921, da revista L'Esprit nouveau. A margem desse artigo, Mário comentou em francês: «Eis nosso primitivismo: trata-se de desembaraçar o mecanismo da poesia e as leis exatas do lirismo para começar a nova e verdadeira poética» (grifamos). O estudo de Mário reflete exatamente essa polaridade.

<A Escrava que não é Isaura» é, portanto, uma POÉTICA MAIOR, que trata de uma poética menor — o fenômeno da criação — e de uma retórica — a inteligência do criador na expressão da poesia. Tal equilíbrio entre poética e retórica correspondia ao espírito clássico de Mário e encontrava apoio num artigo

302

Page 31: 06. o Modernismo Brasileiro

de Paul Dermée («Découverte du lyrisme»), no n' 1 da revista, onde se lê que a poesia resulta da relação entre a sensibilidade (o fluxo lírico) e a inteligência (a reelaboração). Daí a fórmula de Mário extraída de outro artigo de Paul Dermée, <Poêsie = lyrisme + art» no mesmo número da revista: POESIA = máximo de lirismo + máximo de crítica + máximo de expressão.

Eis também uma míni-antologia de «A Escrava que não é Isaura»:

A) Introdução (a «Parábola»):

"Começo por uma história. Quase parábola. ( . . . ) Vamos i história! / . . . e Adão viu lavé tirar-lhe da costela um ser que os homens se obstinam em proclamar a coisa mais perfeita da criação: Eva. Invejoso e macaco o primeiro homem resolveu criar também. E como não soubesse ainda cirurgia para uma operação tão interna quanto extraordinária tirou da língua um outro ser. Era também — primeiro plágiol — uma mulher. Humana, cósmica e bela. E para exemplo das gerações futuras Adão colocou essa mulher nua e eterna no cume do Ararat** [Depois do pecado, Adão pôs-lhe a folha de parra; Caim pOs-lbe um "velocino alvíssimo"; os gregos deram-lhe o coturno; os romanos, o peplo] "Os Indianos, pérolas; os persas, rosas; os chins, ventarolas". [Surge então o "vagabundo genial" e dá um "chute de 20 anos naquela heterogênea rouparia".] "Tutio desapareceu por encanto. E o menino descobriu a mulher nua, angustiada, ignara, falando ' por sons musicais, desconhecendo as novas línguas, selvagem, áspera, livre, ingênua, sincera. / A escrava do Ararat chamava-se Poesia. / O vagabundo genial era Arthur Rimbaud. / Essa mulher escandalosamente nua é que os poetas modernistas se puseram a adorar..."

B) Primeira Parte:

a. Poética (o fenômeno da criação)

Belas-artes: "Começo por conta de somar: / Necessidade de expressão + necessidade de comunicação + necessidade de ação + necessidade de prazer = Belas Artes". ( . . . )

Poesia: "Das artes assim nascidas a que se utiliza de vozes articuladas chama-se poesia". ( . . . )

Lirismo: "Adão... Aristóteles... Agora nós. / Paulo Permée resolve também a concepção modernista de poesia a uma conta de somar. Assim: Lirismo + Arte = Poesia. / Quem conhece os estudos de Dermée sabe que no fundo ele tem razão. Mas errou a fórmula. 1«): Lirismo, estado ativo proveniente da comoção,

roduz toda e qualquer arte ( . . . ) ; 2»): Dermée foi leviano, iz arte por critica e por leis estéticas provindas da observação ou mesmo apriorísticas.

3»): E esqueceu o meio utilizado para a expressão Lirismo + Arte (no sentido de critica, esteticismo, trabalho) soma belas-artes... Corrigida a receita, eis o marron-glacê: Lirismo puro + Crítica + Palavra = Poesia". ( . . . )

Ê

Máximo de lirismo: "Dei-vos uma receita... Não falei na proporção dos ingredientes. Será: máximo de lirismo e máximo

31

Page 32: 06. o Modernismo Brasileiro

de critica para adquirir o máximo de expressão. Daí ter escrito Dermée: 'O poeta é uma alma ardente, conduzida por uma cabeça fria'".

Beleza: "Mas a beleza é questão de moda na maioria das vezes. As leis do Belo eterno artístico ainda não se descobriram. E a meu ver a beleza não deve ser um fim. A BELEZA Ê UMA CONSEQÜÊNCIA. Nenhuma das grandes obras do passado teve realmente como fim a beleza". ( . . . ) "Até os princípios deste século principalmente entre os espectadores acreditou-se que o Belo da arte era o mesmo Belo da natureza. Creio que não é. O Belo artístico é uma criação humana, independente do Belo natural; e somente agora é que se liberta da germinação obrigatória a que o sujeitou a humana estulticie." ( . . . ) "Quem procurar o Belo da natureza numa obra de Picasso não o achará. Quem nele procurar o Belo artístico, originário de euritmias, de equilíbrios, da sensação de linhas e de cores, da exata compreensão dos meios pictóricos, encontrará o que procura".

Inspiração: "A impulsão lírica é livre, independe de nós, independe da nossa inteligência. Pode nascer de uma réstea de cebolas como de um amor perdido". ( . . . ) "A inspiração surge provocada por um crepúsculo como por uma chaminé matarazziana, pelo corpo divino de uma Nize, como pelo divino corpo de uma Cadillac. Todos os assuntos são vitais. Não há temas poéticos. Não há épocas poéticas." ( . . . ) "O que realmente existe é o subconsciente enviando à inteligência telegramas e mais telegramas — para me servir da comparação de Ribot ("A inspiração parece um telegrama cifrado que a atividade inconsciente envia à atividade consciente, que o traduz")".

Leitor: "6 o leitor que se deve elevar à sensibilidade do poeta, não é o poeta que se deve baixar à sensibilidade do leitor. Pois este que traduza o telegrama!".

Retórica: "Mas onde nos levou a contemplação do pletórico século 20? I Ao descobrimento da Eloqüência. / Teorias e exemplo de Mallarmé, o errado 'Prends l'éloquence et tords-lui son cou' de Verlaine, deliciosos poetas do não-vai-nem-vem não preocupam mais a sinceridade do poeta modernista." ( . . . ) / "— Abaixo a retórica! / — Com multo prazer. Mas que se conserve a eloqüência filha legitima da vida".

Passado: (a propósito do verso de Maiakovski: "Nada de marchar, futuristas, f um salto para o futurai"): "Eu por mim não estou de acordo com aquele salto para o futuro. Vejo Lineu a rir da linda ignorância do poeta. Também não me convenço de que se deva apagar o antigo. Não há necessidade disso para continuar para frente. Demais: o antigo é de grande utilidade. Os tolos caem em pasmaceira diante dele e a gente pode continuar seu caminho, livre de tão nojenta companhia. / Maiakovski exagerou".

Novo/velho: "É preciso justificar todos os poetas contemporâneos, poetas sinceros que, sem mentiras nem métricas, refletem a eloqüência vertiginosa da nossa vida". ( . . . ) "Como os verdadeiros poetas de todos os tempos ( . . . ) o que cantam é a época em que vivem. E é por seguirem os velhos poetas que os poetas modernistas são tão novos".

Conclusão da Primeira Parte: "Assim pois a modernlzante concepção de Poesia que, aliás, é a mesma de Adão e de Aristóteles e existiu em todos os tempos, mais ou menos aceita, levou-nos a dois resultados — um novo, originado dos progressos da psicologia experimental; outro antigo, originado da inevitável realidade: / 1»: respeito à liberdade do subconsciente. Como conseqüência: destruição do assunto poético. / 2«: o poeta reintegrado na vida do seu tempo. Por isso: renovação da sacra fúria".

304

Page 33: 06. o Modernismo Brasileiro

C) Segunda Parte:

b. Retórica (o agente da criação: o criador)

Criação pura: "Mas essa inovação ( . . . ) leva a conclusões e progressos. É por ela que o homem atingirá na futura perfeição de que somos apenas e modestamente os primitivos o ideal inegavelmente grandioso da 'criação pura' de que fala Huidobro".

Máximo de critica: "Mas isso ainda não é arte. / Falta o máximo de crítica de que falei e que Jorge Migot chama de 'vontade de análise*. / Agora vereis se essa vontade de análise existe, pela concordância dos princípios estéticos e técnicos que já determinamos com o principio psicológico de que partimos. Todas as leis proclamadas pela estética da nova poesia derivam corolariamente da observação do moto lírico. / Derivam não é bem exato. Fazem parte dele. Têm mais ou menos o papel das homeomerias de Anaxágoras, [partículas infinitesimais existentes no caos e organizadas por uma inteligência superior]: concorrem para a existência do lirismo — sempre vário, em constante mudança. / Tecnicamente sao: / verso livre, / Rima livre, / Vitória do dicionário. / Esteticamente são: / Substituição da Ordem Intelectual pela Ordem Subconsciente, / Rapidez e Síntese, I Polifonismo".

1. TECNICAMENTE

Ritmo: "O que interessa sob o ponto de vista formal na constituição das artes do tempo é o ritmo. / Ritmo não significa volta periódica dos mesmos valores de tempo. / Isto será quando muito euritmia. / Euritmia aldeã rudimentar e monótona. / Ritmo é toda combinação de valores de tempo e mais os acentos. Por isso convém que a oração (na prosa) tenha ritmo, mas não o metro, pois se tornaria então poesia (Aristóteles, Retórica, Livro III, Cap. VU)".

Verso: "Verso é o elemento da linguagem oral que imita, organiza e transmite a dinâmica do estado lírico". ( . . . ) "Depois pensei melhor: Verso é o elemento da linguagem que Imita e organiza a dinâmica do estado lírico. Ainda melhor: Verso é o elemento da linguagem, que imita e organiza o movimento do estado lírico".

Verso livre: "Continuar no verso medido é conservar-se na melodia quadrada e preferi-la à melodia infinita de que a música se utiliza sistematicamente desde a moda Wagner sem que ninguém a discuta mais". ( . . . ) "O verso continua a existir. Mas corresponde aos dinamismos Interiores sem preestabeleci-mento de métrica qualquer". ( . . . ) [Dai outras definições para o Verso]: "Verso é o elemento da Poesia que determina as pausas de movimento da linguagem lírica. Ou: da expressão oral lírica. Ou ainda: Verso é a entidade (quantidade) rítmica (ou dinâmica) determinada pelas pausas dominantes da lin-guagem lírica."

Rima: "E assim mesmo os poetas modernistas utilizam-se da rima. Mas na grande maioria das vezes da que chamei 'Rima livre', variada, imprevista, Irregular, muitas vezes ocorrendo no interior do verso." ( . . . ) "Mas a assonância principalmente, muito mais natural, multo mais rica, multo mais cósmica é utilizadíssima." ( . . . ) "O próprio trocadilho... Não o bem feitinho, preparado, inteligente, pretensioso dum Rostand, dum Martins Fontes. Deus nos livrei mas o trocadilho mal feito, bunesco, eficaz, divertidíssimo. O poeta brinca". ( . . . ) "Brincadeira sem importância mas que entre outros benefícios traz

33

Page 34: 06. o Modernismo Brasileiro

o de irritar até a explosão os passadistas. Ora a cólera dos passadistas é um dos prazeres mais sensuais que nós temos". ( . . . ) "É preciso notar todavia que Verso Livre e Rima Livre não significam abandono total de metro e rima já existentes".

Vitória do Dicionário: "A expressão do lirismo puro levou-nos a libertar a palavra da ronda sintática". ( . . . ) "A operação intelectual com que o poeta modernista expressa o lirismo é a seguinte: / A sensação simples ao se transformar em idéia consciente cristaliza-se num universal que a torna reconhecível. / Pois o poeta modernista escreve simplesmente esse universal". [Engenhosa comparação entre "sensações simples" e "sensações compostas e complexas" para explicar o uso de substantivos, adjetivos e verbos.] "O poeta sintetiza e escolhe os universais mais impressionantes. O poeta não fotografa: cria. Ainda mais: não reproduz: exagera, deforma, porém sintetizando. E da escolha dos valores faz nascer euritmias, relações que estavam esparsas na vida, na natureza e que a ele, poeta, competía descobrir e aproximar. Nisto consiste seu papel de artista". ( . . . ) "É pois para realizar de maneira mais aproximada do lirismo puro que o dicionário, filho feraz da humanidade, tornou-se independente da sintaxe e da retórica -— teorias militaristas nascidas no orgulho infecundo das torres de marfim".

Analogia: "Ura dos maiores perigos da poesia modernista é a analogia e sua irmã postiça a perifrase". ( . . . ) "Para evitar chavões do 'como' do 'tal' do 'assim também'... ( . . . ) Infalível nos sonetos de comparação, o poeta'substitui a coisa vista pela imagem evocada. / Sem preocupação de símbolo. / Ê a analogia, ou antes 'o demônio da analogia' em que sossobrou Mallarmé".

Perifrase: "Mas a irmã bastarda da analogia, a perifrase, parece-se muito com ela. / A diferença está em que a analogia é subconsciente e a perifrase uma intelectualização exagerada, forçada, pretensiosa. / ( . . . ) / "É preciso não repetir Gongora / Ê PRECISO EVITAR MÁRLAME! / "A imagem exagerada, truculenta mesmo, é natural, é expressiva. A perifrase, luxo inútil, paroquiano, pedante".

2. ESTETICAMENTE

Substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente: "Esse um dos pontos mais incompreendidos pelos passadistas". ( . . . ) "Na verdade: tal substituição duma ordem por outra tem perigos formidáveis. O mais importante é o hermetismo absolutamente cego em que caíram certos franceses na maioria de seus versos. / Erro gravíssimo. / E falta de lógica. / O poeta não fotografa o subconsciente. } A inspiração é que é subconsciente, não a criação. Em toda criação dá-se um esforço de vontade". ( . . . ) / "A reprodução exata do subconsciente quando muito daria, abstração feita de todas as imperfeições do maquinismo intelectual, uma totalidade de lirismo. Mas lirismo não è poesia. [ ( . . . ) "O poeta modernista usa mesmo o máximo de trabalho intelectual pois que atinge a abstração para notar os universais". ( . . . ) / "Não houve destruição da Ordem, com cabídula. Houve substituição de uma ordem por outra. / Assim, na poesia modernista, não se dá, na maioria das vezes, conca-tenação de idéias mas associação de imagens e principaimente: / SUPERPOSIÇÃO DE IDEIAS E DE IMAGENS. / Sem perspectiva nem lógica intelectual".

Rapidez e Síntese: "Querem alguns filiar a rapidez do poeta modernista à própria velocidade da vida hodierna...". ( . . . ) "A divulgação de certos gêneros poéticos orientais, benefício que nos veio do passado romantismo, os tankas, os hai-kals japoneses, o gazel, o rubai persas por exemplo creio piamente que influíram com as suas dimensões minúsculas na concepção

306

Page 35: 06. o Modernismo Brasileiro

poética dos modernistas". ( . . . ) / "Geralmente os poetas modernistas escrevem poemas curtos. Falta de inspiração? de força para 'Colombos' imanes? Não. O que existe é uma necessidade de rapidez sintética que abandona pormenores inúteis. / Nossa poesia é resumo, essência, substrato".

Polifonismo: "Obrigado por insistência de amigos e dum inimigo a escrever um prefácio para Paalicéia desvairada nele despargi algumas considerações sobre o Harmonismo ao qual melhormente denominei mais tarde Polifonismo. / Desconhecia nesse tempo a Simultaneidade de Epstein, o Simultaneismo de Divoire. Até hoje não consegui obter legítimos esclarecimentos sobre o Sincronismo de Marcelo Fabri. Creio porém ser mais um nome de batismo da mesma criança". ( . . . ) / "Quero dizer apenas que não tenho a pretensão de criar coisa nenhuma".

Polifonismo é a teorização de certos processos empregados quotidianamente por alguns poetas modernistas. / Polifonismo e simultaneidade são a mesma coisa. O nome de Polifonismo caracteristicamente artificial deriva de meus conhecimentos musicais que não qualifico de parcos, por humildade". ( . . . ) / "Cada arte no seu galho. / Os galhos é verdade entrelaçam-se às vezes. A árvore das artes como a das ciências não é fulcrada mas tem rama implexa. O tronco de que partem os galhos que depois se desenvolverão livremente é um só: a vida. / Vários galhos se entreiam no que geralmente se chama SIMULTANEIDADE. / A simultaneidade originar-se-ia tanto da vida atual como da observação do nosso ser interior. (Falo da simultaneidade comoprocesso artístico.) Por esses dois lados foi descoberta." / (__________________________)"A audição ou à leitura de um poema simultâneo o efeito de simultaneidade não se realiza em cada sensação insulada mas na SENSAÇÃO COMPLEXA TOTAL FINAL". / ( . . . ) / "Num soneto passadista dá-se a concatenação de idéias: melodia. / Num poema modernista dá-se superposição de idéias: polifonia". / ( . . . ) / "Estou convencido que a simultaneidade será uma das maiores senão a maior conquista da poesia modernizante. No seu largo sentido poder-se-á dizer que é empregada por todos os poetas modernistas que seguem a ordem subconsciente".

D) Conclusão:

"Encerro meu assunto. / Noções gerais. Mesmo muitas vezes abandonadas. / O impressionismo construtivo em que nos debatemos é naturalmente uma florada de contradições. / E mesmo os poetas que em Itália, França, Brasil, Alemanha, Rússia etc. caminham por esta mesma estrada de construção que levará a Poesia a um novo periodo clássico não seguem juntos. Uns mais adiante. Outros mais atrás. Outros perdem-se nas encruzilhadas. / E será preciso dizê-lo ainda? Marinetti que muitos imaginam o cruciferário da procissão vai atrasadote, preocupado em sustentar seu futurismo, retórico às vezes, sempre gritalhão. / Mas lá seguimos todos irmanados por um mesmo ideal de aventura e sinceridade, escoteiros da nova Poesia. Não mais irritados! Não mais destruidores! Não mais derribadores de Ídolos! Os passadistas não conseguem tirar de nós mais que o dorso da indiferença. O amor esclarecido ao passado e o estudo da lição histórica dão-nos a serenidade. A certeza duma ânsia legitima, dum Ideal cientiifico, dá-nos o entusiasmo. E é revestidos com a ação da indiferença, / os linhos da serenidade, / as pelúcias do amor, / os cetins barulhentos do entusiasmo, que partimos para o oriente, rumo do Ararat. / É desse lado que o Sol nasce". / / "Laus Deo".

35

Page 36: 06. o Modernismo Brasileiro

E) Apêndices: Série de dezessete notas a diversos as-suntos tratados no texto.

F) Posfácio:

"Confesso que das horas que escreveram esta 'Escrava' em abril e maio de 22 para estas últimas noites de 1924 algumas das minhas Idéias mudaram bastante. Duas ou três morreram até. Outras estão mirradinhas, coitadas! possível que morram também. Outras fracas desimportantes então, engordaram com as férias que lhes dava. Hoje robustas e coradas. E outras finalmente apareceram. Que aconteceu? Este livro, rapazes, já não representa a Minha Verdade inteira da cabeça aos pés". / ( . . . ) / "Mas eu não pretendo ficar um revoltado toda a vida, pinhões! A gente se revolta, diz muito desaforo, abre caminho e se liberta. Está livre. E agora? Ora essal retoma o caminho descendente da vida". ¡ ( . . . ) } "Hoje eu posso dizer isso que já nem sei se tenho mais fé. Estou cético e cínico. Cansei-me de idéias e ideais terrestres. Não me incomoda mais a existência dos tolos e cá muito em segredo, rapazes, acho que um poeta modernista e um parnasiano todos nos equivalemos e equiparamos". / ( . . . ) / "Nas evoluções sem covardia ninguém volta para trás. O que a muitos significa voltar é na realidade um passo a mais que se dá para a frente porque das pesquisas e tentativas passadas muita riqueza ficou". / ( . . . ) / "Eu mesmo poderia objetar o que dentro deste livro já disse mais ou menos: que afinal todo este lirismo subconsciente é ainda filho da inteligência ao menos como teoria. Nestes dias de 1924 eu já respondo que mesmo sendo isso verdade a inteligência procedeu negativamente apagando-se ante os outros domínios do ser". / ( . . . ) / "Nos discursos atuais, rapazes, já é de novo a inteligência que pronuncia o tenho-dito".

M. DE A.Novembro de 1924.

(ANDRADE, Mário de. A Escrava que não è Isaura. In Obra imatura. São Paulo, Livraria Editora Martins,

1960.)

3. «O MOVIMENTO MODERNISTA»

Atendendo a um pedido de Edgard Cavalheiro, que,no ano do vigésimo aniversário da S.A.M., ajuntava depoimentos para a história do modernismo, Mário de Andrade descreveu a sua participação no movimento, mas não deixou que esse texto fosse publicado. Alegava que o seu documento iria causar escândalos e mexericos pessoais e concluía que queria ficar em paz. Entretanto, como escreveu Edgard Cavalheiro, o silêncio de Mário foi impossível de ser mantido:

«Com as comemorações da S.A.M. ele foi tentado a repor as coisas nos seus devidos lugares. Escreveu três artigos para O Estado de São Paulo, nos quais historiava a 'famosa semana' e explicava sua posição artística e humana no movimento. Pouco depois, con-

308

Page 37: 06. o Modernismo Brasileiro

vidado pela Casa do Estudante, reviu esses artigos, transformando-os numa esplêndida conferência que foi lida no Itamaraty a 30 de abril de 1942. Quem quer que leia essas páginas admiráveis, de (ima coragem rara, verá que Mário de Andrade não fez outra coisa senão o seu testamento, isto é, que essa conferência serve perfeitamente a este inquérito, constitui a melhor resposta que poderíamos ambicionar».

Pode-se dizer que «O Movimento modernista» constitui realmente a primeira «história» do modernismo, vinte anos depois, numa perspectiva puramente pessoal. Esse documento forma, portanto, o vértice de um triângulo teórico (de uma Poética) cujas bases são o «Prefácio interessantíssimo» e «A Escrava que não é Isaura». Não possui, como estes, o caráter explicativo e didático que lhes dá a feição poético-retórica que lhes assinalamos. É, antes, um texto histórico, em que a memória, a experiência pessoal e a visão abrangente constituem os elementos primordiais. Dado o sentido panorâmico desse texto, nos limitamos a apresentar alguns tópicos que nos pareceram mais importantes para ilustrar o artigo «Introdução a uma poética' do modernismo», que publicamos na revista Littera fn' 5, 1972):

a ) Mário fala por duas vezes em «espirito novo» e diz que a «convicção de uma arte nova, de um espírito novo, desde pelo menos seis anos viera se definindo n o . . . sentimento de um grupinho de inte-lectuais paulistas».

b) Fala sobre a criação da Paulicéia desvairada: «Eu passara esse ano de 1920 sem fazer poesia mais. Tinha cadernos e cadernos de coisas parnasianas e algumas timidamente simbolistas, mas tudo acabara por me desagradar. N a minha leitura desarvorada, já conhe-cia até alguns futuristas de última hora, mas só então descobrira Verhaeren. E fora o deslumbramento. Levado em principal pelas Villes tentaculaíres, concebi imediatamente fazer um livro de poesias 'modernas', em verso-livre, sobre a minha cidade. Tentei, não veio nada que me interessasse. Tentei mais, e nada. Os meses passavam numa angústia, numa insuficiência feroz». ( . . . ) «Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo.

37

Page 38: 06. o Modernismo Brasileiro

Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara Paulicéia desvairada. O estouro chegara afinai, depois de quase ano de angústias interrogativas. Entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais de uma semana estava jogado no papel um canto bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num livro».

c ) Admite a influência das teorias futuristas: «Mas o espírito modernista e as suas modas foram diretamente importados da Europa».

d) Faz várias referências à dialética destruição / construção do modernismo: «o movimento modernista foi essencialmente destruidor. Até destruidor de nós mesmos, porque o pragmatismo das pesquisas sempre enfraqueceu a liberdade de criação». «O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: O direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional».

e ) Finalmente, Mário fala de sua atuação: «Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo que fundamentalmente não sou». ( . . . ) «Mas eis que chego a este paradoxo irrespirável: Tendo deformado a minha obra por um antiindividualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não è mais que um hiperindividualismo implacável! E é melancólico chegar assim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo. Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado». ( . . . ) «Eu creio que os modernistas da S.A.M. não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição».

(ANDRADE, Mário de. O Movimento modernista.in Aspectos da literatura brasileira.

São Paulo, Martins, s/d.)

3 1 0

Page 39: 06. o Modernismo Brasileiro

O ESPIRITO MODERNO *

Que é o espirito moderno? No ardente e perpetuo movimento da sensibilidade e da inteligência, como distinguir a expressão inequívoca do momento fugitivo, o propulsor espiritual, que nos separa do Passado e nos arrebata para o Futuro? Não será uma contradição pretender-se fixar o que só tem uma existência imaginária e só é abstração? Para o observador, que assiste à fuga do tempo, nada é atual; o Presente é uma ilusão. Como as águas de um rio, em cada instante que passa, o espírito do homem não é mais o mesmo. Que ânsia permanente em explicar o indefinível, em querer encerrar o tempo ilusório em fórmulas, que fazem do Universo uma projeção da nossa própria personalidade! Tudo é móvel, tudo se esvai, e tudo se transforma. O espírito moderno é uma abstração. No momento em que o definimos e o captamos, entrou no passado. Os efêmeros humanos sentem esta impossibilidade absoluta, mas persistem fatalmente em buscar na mobilidade a eternidade.

Sob o ângulo relativo da compreensão dos fenômenos transcendentes existe o Tempo, e, fracionando-o em épocas, podemos explicar o espírito moderno e delimitar no espaço a sua relevação e a sua oposição ao espírito do Passado. Antes da nossa atualidade, o instante mais próximo ao nosso momento caracterizava-se pelo subjetivismo, que transfigura o Universo, segundo o sentimento individual, ilusoriamente livre.

1. Conferência de Graça Aranha na Academia Brasileira de Letras, em 19 de junho de 1924. Está publicada em Espirito moderno. São Paulo, Monteiro Lobato, 1925.

39

Page 40: 06. o Modernismo Brasileiro

A Idade Média preparou este estado especial do espirito, que subordinou o Todo universal ao nosso eu, que não considerou as coisas na sua realidade objetiva, mas segundo a representação que delas faz o espírito humano. A Renascença continuou no humanismo esta acentuação e a Reforma saxônia é o surto definitivo do individualismo prático, cuja raiz remota se acha no direito germânico. Rousseau e toda a sua numerosa progenie sentimental exaltou o indivíduo, e o romantismo, aí germinado, foi o subjetivismo delirante. O homem opôs-se ao Universo, fugiu à realidade permanente, deformou a visão dos objetos, a política armou-se da clava de igualdade e a literatura exprimiu a dor da não conformidade com a vida. O subjetivismo transbordou na filosofia até a reação positiva e a interpretação científica e unitária do Universo. Na literatura e na arte manteve-se perturbador e anárquico.

A este subjetivismo passivo ou dinâmico o espírito moderno opõe o objetivismo dinâmico. Já se observou que para o subjetivismo a arte está em função do eu; para o objetivismo dinâmico a arte exprime o movimento das coisas, que agem pelas suas próprias forças independentes do eu. É um estado estético posterior ao expressionismo, em que toda a arte era subjetiva e emotiva. Pode-se dizer que ele caracteriza a arte moderna nas suas derradeiras aspirações. A libertação do subjetivismo dinâmico do romantismo, ou mesmo do subjetivismo contemplativo dos impressionistas, é a grande vitória do espírito moderno. O cubismo não chegou a realizar essa suprema desforra. Há no cubismo uma estatística, que prepara o dinamismo, mas que não realiza o perene e implacável movimento das coisas. A pintura, a escultura, ainda não atingiram esse modernismo estético, que a música ostenta nas últimas criações de Strawinsky. A poesia não se emancipou do sentimentalismo mesmo nos poemas de um Apollinaire e de seus epígonos, Cocteau, Cendrars, Ivan Goll e outros. Parece que há uma lei de constância lírica, que mantém o estado subjetivo nos artistas mais livres. É estranho como nesses poetas toda a arte está em função do eu, e eles exprimem o irremediável dualismo, e raro fundem o sujeito pensante no objeto pensado. A objeção fácil de que toda a visão, toda a sensação do mundo é subjetiva e de que a arte não pode ser independente

312

Page 41: 06. o Modernismo Brasileiro

do eu, do sujeito que a exprime, está prevista e repelida na síntese, que leva o espirito humano a sentir-se um com todas as coisas, a abolir o próprio eu para exprimir a vida, a ação dos objetos, movidos pelas suas próprias forças e nesse dinamismo realizar a emoção estética, que nos funde no Universo. E o espírito humano também se percebe como um objeto não sentimental, passivo ou contemplativo, mas dinâmico, uma força viva, atuada pelas suas próprias forças, um efêmero entre as coisas efêmeras, uma expressão dinâmica da natureza sem outra finalidade, que não seja a finalidade estética.

Não há movimento artístico que não seja precedido de um movimento filosófico. E a filosofia da unidade realiza-se no objetivismo dinâmico da arte moderna. A razão desse objetivismo está na concepção estética do universo, que domina o problema da arte. Todo o conhecimento do Universo é estético, desde que não se pode explicar cientificamente a substância. Dos contatos, que nos vêm pelos sentidos, resultam sentimentos vagos, que nos levam à indiscriminação no todo infinito. É a essência da arte. O artista é aquele que possui e transmite esses sentimentos vagos, transcendentes e realiza na obra de arte a fusão do seu ser no Universo. O espectador da obra de arte que sente, movido pela expressão artística, aquela emoção vaga, indefinível, atinge a estética do Universo. Essa fusão essencial é tanto mais perfeita quanto mais é realizada pelos elementos gerais da expressão artística, pelos meios mais puros e mais intensos. Se quebrarmos por um instante a unidade da arte, vemos que a pintura tem os seus elementos essenciais na forma e na cor, a escultura na forma, na luz, no movimento, a arquitetura na forma, na luz, na estabilidade das massas, que sugere movimento.

A obra de arte é tanto mais profunda e mais equilibrada quanto mais predominam os elementos gerais e universais. Se o artista despreza ou não possui a emoção profunda que lhe vem dos elementos essenciais da arte, e se preocupa com o assunto, a anedota, e dela faz o centro da obra de arte, esta é inexistente esteticamente. Se o artista exagera a sensação de um desses elementos, se por exemplo na pintura realiza a cor abolindo a forma, sem compreender que a cor é um volume e a luz é outro, exagero em que caíram

41

Page 42: 06. o Modernismo Brasileiro

os últimos impressionistas, a obra de arte é falsa. Se o artista se esmera no desenho a ponto de principalmente por este representar os objetos sem correspondência com o ambiente, a arte é fria e acadêmica. O impressionismo reagiu contra este academismo da forma e proclamou que tudo era vago, sem consistência, dependendo da luz e que esta faz a cor. O cubismo veio como uma reação contra o exagero im-pressionista. Ensaiou realizar na arte os volumes, as massas, e voltou à geometria, às linhas e às dimensões, e procurou nos objetos a sua expressão sintética e essencial. Para atingir a síntese, o cubismo libertou a arte da tirania dos sentidos e deu-lhe uma preeminência espiritual. Um dos teóricos da doutrina dogmatizou: «Les sens déforment, 1'esprit forme». A pintura sensorial é passageira e errônea, porque os artistas só vêem nos objetos os fatos simples, vulgares, ao passo que o artista cubista considera o objeto e o seu conjunto como fatos artísticos.

E num exemplo explicam os cubistas a tese fundamental da doutrina. Se o artista examina uma laranja com o auxílio exclusivo dos sentidos só percebe um fruto de contornos suaves, de aspecto saboroso, de pele enrugada e brilhante. É o «fato simples» da laranja; a certeza vulgar. Mas se considera o mesmo fruto na sua representação sintética e eterna só vê na laranja uma esfera de cor amarela, e a verificação deste conjunto de elementos constitui um «fato artístico» primordial.

Esta operação sintética da arte é a mesma na linguagem, que na palavra dá a essência, a vida geral dos objetos da mesma ordem, eliminando os seus caracteres particulares, os fatos simples e vulgares, para fixar a idéia sintética.

O grande erro do cubismo é o seu exclusivismo intelectual. A arte, afastando-se da injunção dos sentidos, torna-se puramente espiritual, na incessante e quimérica busca de uma verdade eterna, que está além da certeza sensorial. Consciente de que toda a arte é precedida de uma filosofia, o cubismo remonta as suas origens a Platão, que proclamou: «percebem os sen-tindos unicamente o que passa, o entendimento o que fica»; a Cícero, relembrando que Fídias, quando queria esculpir a estátua de um deus, não procurava modelo nos homens, mas no seu próprio espírito; a Kant,

314

Page 43: 06. o Modernismo Brasileiro

quando diz que os sentidos só nos dão a materia do conhecimento, ao passo que o entendimento nos dá a forma; a Bossuet, quando afirmou que os sentidos fazem conhecer as nossas próprias sensações; a Ma-lembranche: «a verdade não está em nossos sentidos, mas no espírito». A tese capital do cubismo, formulada pelos seus doutrinários, seria: «Conhecer um t>b-jeto é querer conhecê-lo na sua essência, representá-lo no seu espirito o mais puramente possível, reduzi-lo a um estado de signo, de totem por assim dizer, absolutamente livre de todos os pormenores inúteis, tais como os aspectos, acidentes múltiplos e vários. Os aspectos o situam no tempo e no espaço de um modo arbitrário e não podem sequer explorar a sua qualidade primeira. Assim como o artista fixará na tela ou no mármore não o que passa, mas o que fica, assim não situará os objetos em lugar determinado, mas no espaço, que é infinito». Poder-se-ia acrescentar como corolário à frase de Platão: «os sentidos só percebem o que é situado, o espírito o que está no espaço».

Nesta metafísica do cubismo que o leva ao idealismo transcendente há todo o excesso do subjetivismo, que deixou de ser dinâmico com os românticos e passou a ser estático com estes estranhos geómetras da arte. Neste jogo ardente da inteligência apóiam-se na palavra de Bossuet: «Les sens ne peuvent supporter les extremes, mais 1'entendement n'en est jamais blessé». Repelem a certeza dos sentidos e buscam a quimera da verdade eterna. Rafael já dissera: «io me sirvo de certa idea chi me vienne alia mente». Voltamos às categorias, às entidades e o cubismo torna-se uma arte do passado, para a qual os objetos só possuem a emoção, que nós lhes damos com o auxílio dos meios, que nos fornecem nossa sensibilidade e nossa inteligência, e são imagens, que só existem, quando lhes prestamos atenção estrita, ou quando lhes atribuímos valor artístico. É a mais intensa afirmação do subjetivismo, a oposição mais viva e mais profunda ao objetivismo dinâmico, que este sim é a expressão fecunda do espírito moderno.

Todo o subjetivismo importa em destruição individualista. Na ordem social contemporânea a dissolução que vem desde a revolução francesa atingiu o seu máximo na grande guerra e ainda se alastra. O signo

43

Page 44: 06. o Modernismo Brasileiro

da nossa atualidade é o formidável empenho de reconstrução. Neste caos, o objetivismo dinâmico nos revela o universo nas suas forças simples e eternas e recompõe com os seus fragmentos ativos a unidade intelectual e sentimental, criando uma ordem prática, simples, útil, enérgica. Libertador e construtor, o espírito moderno sabe que há uma unidade essencial e infrangível entre todos os seres, os organismos, que por sua vez são órgãos do Todo universal. Uma obra de arte é organismo distinto dos outros organismos, mas por sua vez ela é órgão do pensamento, da emoção, da vida total. Ligar estes organismos particulares ao organismo universal é o senso oculto da cultura. A obra de arte deve ter uma vida interior em relação com a vida exterior, de que faz parte integrante.

Nesse assombroso trabalho de reconstrução esteja sempre onipresente e ativo o sentimento da unidade universal. É para o universalismo que tende o espírito humano. Se pudéssemos fixar neste perpétuo movimento dos seres e das emoções algumas expressões mais características do espírito moderno, diríamos: l9 — Todos os seres estão em atividade e em contínua transformação, exterior ou secreta à nossa percepção. Por mais aparente que seja a imobilidade de um objeto há nele um indomável e incessante movimento de todas as suas moléculas. Esse movimento, por mais lento e imperceptível que seja, existe como uma fatalidade. O ser humano deve compreender, sentir, essa perene transformação, idêntica à sua e a arte tem de exprimir ininterruptamente essa sensação e esse sentimento. 2" —■ Os objetos destacam-se do ambiente, por sua vez formam ambiente pelos seus volumes e pesos. Não há objeto tangível que seja imponderável. A cor e a luz são volumes. A luz tem peso, atua sobre os objetos, geometricamente. Pela sua energia modifica os movimentos e exerce atração, pelo seu peso é um elemento da gravitação universal. 3' — O universo fragmenta-se em seres, mas todos estes se unem indefinidamente. A obra de arte deve exprimir necessariamente essa unidade infrangível e não ser jamais fragmentária, senão na aparência. Somos todos universais e todo o movimento, consciente ou inconsciente dos seres, sejam estes ou não conscientes, levam à unidade primordial. O Universo não é um es-petáculo, é uma integração.

316

Page 45: 06. o Modernismo Brasileiro

Por esse dinamismo a arte se liberta da natureza. A finalidade da arte não é a imitação da natureza. Ela tem o seu fim em si mesma. O espírito humano é tão criador como é a natureza e só se atinge a obra de arte, quando o espírito se liberta da natureza e age independentemente. As formas artísticas, que se limitam a reproduzir a natureza, são de qualidade inferior àquelas que o artista formula como criação individual e livre. Nem todos os povos primitivos se subordinaram à natureza, muitos foram verdadeiramente artistas, criando obras de arte sem imitação, como jogos da fantasia espiritual. Quanto mais uma civili-zação é artística, mais ela se afasta da natureza. A arte não é um canto da natureza, viste através de um temperamento, como a paisagem não é um estado da alma. Todas essas fórmulas subjetivas fizeram o seu tempo. São incompreensíveis hoje. A 'essência da arte está nas emoções provocadas pelos sentimentos vagos, que nds vêm dos contatos sensíveis com o Universo e que se exprimem nas cores, nas linhas, nos sons, nas palavras.

Que é a Natureza? Não é a matéria universal. Ela está na matéria, na energia, porque nada existe fora desta, e realiza-se perpetuamente na profunda inconsciência, independente do espírito humano. No sentido artístico a Natureza é tudo o que se apresenta aos nossos sentidos como exterior a nós. As artes plásticas são as que mais procuram reproduzir a Natureza. A música é mais independente. Depois da grande vassalagem à Natureza, a -arte libertou-se e cria livre de toda a submissão. É a suprema vitória do espírito humano. A imitação no princípio, a libertação no fim. Não há uma máquina, um aparelho, que não seja no seu início uma cópia de um fato natural. O primeiro vapor idealizado tinha patas de palmípedes; o avião, asas de pássaros. E quando as máquinas sucediam a outros aparelhos, guardavam a estrutura destes. O automóvel foi a princípio um coche sem cavalos. Depois estas máquinas se emancipam da imitação e tomam formas próprias, constituem organismos originais, distintos e característicos, fixando o tipo, a espécie. Hoje, o vapor, o avião, o automóvel têm a sua forma própria e modelar. Assim será a obra de arte, que a cultura liberta da imitação da natureza para dar-lhe forma artística, forma espiritual, peculiar, como um organismo novo, vindo da força criadora do homem.

45

Page 46: 06. o Modernismo Brasileiro

Esta independencia da natureza e da arte é urna das maiores conquistas do objetivismo dinâmico. O espirito brasileiro ainda não a sentiu e vive por isso no terror cósmico, de que a imitação da natureza e a subordinação a esta são significativas expressões. Somos os líricos da tristeza, porque ainda não vencemos a natureza, vivemos esmagados, saudosos, apavorados. O brasileiro está no período subjetivo, do qual o romantismo é manifestação constante e perturbadora. Pode-se afirmar que o Brasil é um dos últimos refúgios do romantismo. Do lirismo, que seria a expressão ingenua do entusiasmo natural e primitivo, do lirismo fecundo, ardente, que eleva o homem além de si mesmo e o transforma divinamente, vencedor da materia, caímos na deformação romântica, que mascara a realidade e nos entorpece no sentimentalismo. Há entre a realidade, a materia que se faz arte, e o espírito que a exprime, uma perniciosa zona literária, mantida pelo academismo, que estraga a visão do real e impede a construção de tornar-se robusta e sã. A infecção literária corrompe a política, a arte, a vida.

Em uma terra árdega, que vive o poema da aspiração, não pode haver maior paradoxo do que este espírito romântico da nossa cultura. . . Este espírito é dissolvente e vago. O espirito moderno é dinâmico e construtor. Por ele temos de criar a nossa expressão própria. Em vez de imitação, criação. Nem a imitação europeia, nem a imitação americana — a criação brasileira. Todos os povos criaram. O próprio americano do norte, ainda inculto, criou. Só o brasileiro se julga incapaz de criar e resignado se humilha na imitação. O nosso privilégio de não termos o passado de civilizações aborígines facilitará a liberdade criadora. Não precisamos, como o México e o Peru, remontar aos antepassados Maias, Astecas ou Incas, para buscar nos indígenas a espiritualidade nacional. O Brasil não recebeu nenhuma herança estética dos seus primitivos habitantes, míseros selvagens rudimentares.

Toda a cultura nos veio dos fundadores europeus. Mas a civilização aqui se caldeou para esboçar um tipo de civilização, que não é exclusivamente européia e sofreu as modificações do meio e da confluência das raças povoadoras do país. É um esboço apenas sem tipo definido. É um ponto de partida para a criação

318

Page 47: 06. o Modernismo Brasileiro

da verdadeira nacionalidade. A cultura européia deve servir não para prolongar a Europa, não para obra de imitação, sim como instrumento para criar coisa nova com os elementos, que vêm da terra, das gentes, da própria selvageria inicial e persistente.

O desejo de libertação é um sinal de que ela já está em nós. Até agora todo o nosso empenho andava em imitar. Desde que em nosso espírito rompemos com esta prática, começamos a fazer coisa nova e coisa nossa. Faremos coisa diferente dos Americanos, libertos material e moralmente da Inglaterra. Quebraremos a uniformidade continental, com que nos ameaçam. Faremos coisa nossa, saída do nosso fundo espiritual, que seja determinada pelo prodigioso ambiente, em que vivemos. Subjugaremos a natureza, para impor-lhe o nosso ritmo haurido nela própria. Não se trata somente de criação material, de um tipo de civilização exterior. Aspira-se à criação interior, espiritual e física, de que a civilização exterior das arquiteturas, dos maquinismos, das indústrias, dos trabalhos e de toda a vida prática seja o reflexo.

Para essa criação integral a Academia Brasileira é chamada. A fundação da Academia foi um equívoco e foi um erro. No sentido em que comumente se entende ser uma academia, é esta um corpo de ho-mens ilustres nas ciências, nas letras e nas artes, consagrados pelo talento e trabalhos, sumidades espirituais de uma cultura coletiva. As academias são destinadas a zelar tradições e supõem um povo culto, de que são os expoentes. Diante desse conceito, a Academia Brasileira foi um equívoco. Somos um povo inculto, sem tradições literárias ou artísticas, ou pelo menos de tradições medíocres, que seria melhor se apagassem. O fato de haver raros escritores ou artistas de primeira ordem não forma uma tradição. E é ridículo supor que as tradições são criadas pelas academias. A tradição não é um artifício. Vem do in-consciente coletivo e, se tem força para impor-se no curso do tempo, viverá a despeito das academias. O equívoco permaneceu, porque geralmente se imagina que um país de Academias literárias alimenta-se de um vasto manancial de produção, que é preciso reger e disciplinar. No Brasil não existe tal produção. A Academia está no vácuo. Não tem função possível a exercer, segundo a tradição acadêmica. E se tem

47

Page 48: 06. o Modernismo Brasileiro

a função de regulamentar a inteligência e criar c academismo, ela é funesta. Foi o seu erro inicial.

Para justificar-se a sua fundação evocou-se a necessidade de defender o Passado «que ameaça ruína, diante do Futuro que não tem forma». Como em toda a criação, no princípio era o terror... O passado é uma ficção. Nós o criamos, o interpretamos e o deformamos. Não tem realidade objetiva. A sua existência e a sua persistência são inteiramente subjetivas. Sob este ângulo relativo e realista, o Passado não existe livremente. É uma sugestão do terror. Como função social é a soma de deuses, de monstros, de fetiches, que se disfarçam em regras, métodos, gramáticas para nos governar e nos limitar. O Passado é o pavor, que perdura em cada um de nós. Se pudéssemos dominá-lo, vencê-lo em nosso espírito, contemplá-lo com alma de vencedor, situá-lo com justeza, saberíamos extrair das suas expressões o encanto e a lição. A nossa vida existe verdadeiramente no excedente da herança que recebemos. O que vivemos do passado não é nosso não somos nós. A nossa vida começa exatamente no ponto em que se inicia a nossa libertação, ou já no esforço que fazemos para nos libertar das nossas heranças espirituais. Só daí em diante começamos a viver a nossa personalidade. Aquele que não tem forças para essa libertação, para criar a sua vida e fazer dela uma força nova, esse na sua humilde submissão não é um homem vivo. É espectro do passado.

A Academia será uma reunião de espectro? Nas paredes desta sala, como no túmulo das múmias, a tradição gravou para deleite dos espíritos, além da morte, o que em vida eles amaram e fizeram as suas delícias intelectuais, os versos, os dísticos dos clássicos, as glosas dos árcades, as baladas românticas, as deformações do sentimentalismo, as rinhas gramaticais? Ou neste Brasil, que procuram converter em uma China literária para império de todas as velhices, a Academia será uma casta de imortais em um país de imemoriais?

Para que fomos criados, a que alta e vigorosa missão fomos chamados do nosso caos intelectual? Para defender a tradição. Tradição de quê? Do espírito nacional? Mas isto não é função de Academias. O espírito nacional defende-se por si mesmo ou morre. Tradição da nossa literatura? Ela felizmente é incerta, em infindável formação, e neste período aluci-

320

Page 49: 06. o Modernismo Brasileiro

nante de aspiração o mal acadêmico poderá matá-la. A nossa missão é manter a ordem nos espíritos, nas artes, nas letras? Seria uma finalidade inútil, porque a ordem é da essência da vida. Não há coexistência sem ordem. O que chamam desordem é uma abstração sem valor lógico. No sentido absoluto, a ordem é o ritmo do universo, a sua fatalidade. É como a energia, a matéria, a inteligência. A liberdade, essa não é da essência das coisas. É uma relatividade humana, que forçamos a existir para a nossa ilusão criadora.

O segundo erro da formação da Academia foi copiar a Academia Francesa. A imitação é uma prática brasileira. Em tudo renunciamos à energia de criar para fazermos comodamente a cópia, que mal se ajeita à nossa índole e ao nosso ambiente. Copiando a Academia Francesa, fizemos logo ao nascer ato de submissão e passamos a ser reflexo da invenção estrangeira, em vez de sermos dínamo propulsor e original da cultura brasileira Somos excessivamente quarenta imortais, consagração exagerada para tão pequena literatura. Justificou-se o quadro forjando-se impropriamente um «simile» com a adoção do metro, que também nos veio da França. Insistiu-se no vício da imi-tação, cuja única vantagem foi tornar maior o quociente dos mortos e o divertimento das eleições mais repetido. Pelo fato de sermos uma Academia não significa devermos reproduzir o figurino francês. A Inglaterra não adotou o sistema métrico, fundou afinal uma Academia, mas fez obra própria e não a cópia servil. A nossa Academia é brasileira. Por que brasileira? Para ser um instrumento enérgico da formação nacional, uma alavanca do espírito brasileiro. A sua aparição foi um erro, mas, já que existe, que viva e se transforme. Há uma vida espiritual intensa, que a Academia desconhece. Deixemos entrar aqui um sopro dessa vida para despertar-nos da sonolência, em que nos afundamos. O Brasil é móvel. Todo o Universo move-se, transforma-se perpetuamente. O espírito do homem corre como a matéria universal. «A energia é a vida única, disse o místico. É a eterna delícia». A ener -gia brasileira apossa-se da terra e fecunda-a. Secam-se os vales de lágrimas da tristeza romântica e o otimismo alegra a ressurreição. Tudo vive espiritualmente. Só a Academia traz a face da morte.

49

Page 50: 06. o Modernismo Brasileiro

Ao iniciar-se a criação acadêmica lamentou-se cautelosamente não ter a Academia força para instituir um estilo acadêmico, como toda a arte francesa, convencional, acabado, perfeito. É para esse estilo aca-dêmico que por uma fatalidade institucional caminhamos e o atingiríamos se uma rajada de espírito moderno não tivesse levantado contra ele as coisas desta terra informe, paradoxal, violenta, todas as forças ocultas do nosso caos. São elas que não permitem a língua estratificar-se e que nos afastam do falar português e dão à linguagem brasileira este maravilhoso encanto da aluvião, do esplendor solar, que a tornam a única expressão verdadeiramente viva e feliz da nossa espiritualidade coletiva. Em vez de tendermos para a unidade literária com Portugal, alarguemos a separação. Não é para perpetuar a vassalagem a Herculano, a Garrett e a Camilo, como foi proclamado no nascer a Academia, que nos reunimos. Não somos a câmara mortuária de Portugal.

Já é demais este peso da tradição portuguesa, com que se procura atrofiar, esmagar a nossa literatura. É tempo de sacudirmos todos os jugos e firmarmos definitivamente a nossa emancipação espiritual. A cópia servil dos motivos artísticos ou literários europeus, exóticos, nos desnacionaliza. O aspecto das nossas cidades modernas está perturbado por uma arquitetura literária, acadêmica; a música busca inspiração nos" temas estrangeiros, a pintura e a escultura são exercícios vãos e falsos, mesmo quando se aplicam ao ambiente e aos assuntos nacionais. A literatura vagueia entre o peregrinismo acadêmico e o regionalismo, falseando nesses extremos a sua força nativa e a sua aspiração universal.

Se escaparmos da cópia européia não devemos permanecer na incultura. Ser brasileiro não significa ser bárbaro. Os escritores que no Brasil procuram dar de nossa vida a impressão de selvageria, de embrutecimento, de paralisia espiritual, são pedantes literários. Tomaram atitude sarcástica com a presunção de superioridade intelectual, enquanto os verdadeiros primitivos são pobres de espírito, simples e bem-aventurados.

O primitivismo dos intelectuais é um ato de vontade, um artifício como o arcadismo dos acadêmicos. O homem culto de hoje não pode fazer tal retrocesso, como o que perdeu a inocência não pode adquiri-la.

322

Page 51: 06. o Modernismo Brasileiro

Seria um exercício de falsa literatura naqueles que pretendem suprimir a literatura. Ser brasileiro não é ser selvagem, ser humilde, escravo do terror, balbuciar uma linguagem imbecil, rebuscar os motivos da poesia e da literatura unicamente numa pretendida ingenuidade popular, turvada pelas influências e deformações da tradição européia. Ser brasileiro é ver tudo, sentir tudo como brasileiro, seja a nossa vida, seja a civilização estrangeira, seja o presente, seja o passado. É no espírito que está a manumissão nacional, o espírito que pela cultura vence a natureza, a nossa metafísica, a nossa inteligência e nos transfigura em uma força criadora, livre e construtora da nação.

O movimento espiritual, modernista, não se deve limitar unicamente à arte e à literatura. Deve ser total. Há uma ansiada necessidade de transformação filosófica, social e artística. É o surto da consciência, que busca o universal além do relativismo científico, que fragmentou o Todo infinito. Se a Academia se desvia desse movimento regenerador, se a Academia não se renova, morra a Academia. A inteligência im-pávida, libertadora e construtora, animada do espírito moderno que vivifica o mundo, transformará o Brasil. A Academia ignora a ressurreição que já começa, mas o futuro a reconhecerá. Ela aponta no pensamento e na imaginação de espíritos jovens. Vem na música de Villa-Lobos, que dá à nossa sensibilidade um ritmo novo e poderoso, na poesia de Ronald de Carvalho, libertador do nosso romantismo, criador do nosso lirismo, na poesia de Guilherme de Almeida, livre da natureza e das suas sugestões subalternas, na poesia de Mário de Andrade, vencedor do convencionalismo, construtor alegre do espírito verdadeiramente brasileiro, nas esculturas de Brecheret, que objetivam dinamicamente o subjetivo, no pensamento, na crítica, na poesia, no romance de Renato Almeida, Jackson de Figueiredo, Agripino Grieco, Manuel Bandeira, Paulo Silveira, Tristão de Athaide, Menotti dei Picchia, Ribeiro Couto, Oswald de Andrade e mil jovens espíritos sôfregos de demolição e construção.

Tudo se harmoniza, espírito e natureza, no fulgurante ambiente brasileiro. O céu não é leve nem sutil para alimentar idéias de débil e fria beleza. Não é um céu clássico para cobrir acadêmicos. É um céu ar-

51

Page 52: 06. o Modernismo Brasileiro

dente, escandecido, longínquo e implacável, que aspira as forças da natureza, homens e coisas, os eleva, os engrandece e os dissolve na imensidade da luz. O dinamismo brasileiro tem o seu segredo na profunda harmonia com as forças do universo, que aqui se apresentam fecundas, céleres, voláteis, vorazes. Não percamos o equilíbrio neste jogo arriscado com a eternidade.

Sob este céu, encerrados neste quadro da energia tropical, debatem-se os espíritos dos homens. À margem desta baía, que o mar fecunda e que a terra contempla numa elevação estática, os sonhos dos jovens brasileiros se cruzam. Tudo é nítido no espaço ardente; a água lisa espelha, as ilhas reluzem, as casas inflamam-se, vapores, cúpulas, navios, zimbórios, azulejos, pedras, árvores, tijolos, barcos, tudo pesa e tudo se agita. É o movimento universal na quietação luminosa. Na ânsia de posse da Terra e de libertação espiritual, uma voz dirá:

«Tudo isto me apavora e a minha alma não se harmoniza com esta loucura das forças da natureza. A consciência antiga separa-me do Todo e afasta-me da terra desconhecida. Volto às raízes do meu espírito. Os meus olhos fecham-se a esta luz agressiva e só vêem a claridade serena, que iluminou a alma dos meus antepassados europeus. Torno à terra antiga da civilização, reintegro-me no mundo clássico, com que se harmoniza o meu pensamento. Há uma volúpia no Passado, que é a atração da morte».

Outra voz responderá:

«Este é o meu Brasil. A nossa união é imorredoura. Nada me afasta da sua energia transcendente, que vibra na minha alma e alegra a minha fusão com esta terra exaltada e fascinante. Os meus olhos não se voltam para o Oriente, de onde vieram os meus antepassados, eles só fitam a imensidade da terra, que avança para o Ocidente, e é um dom da energia da minha raça. Repilo os artifícios do Passado, deslocado nesta feliz magnificência sem história, nem antiguidade humana. Destruo toda esta arquitetura de importação literária, grega, rococó, colonial, servil. Destruo toda esta escultura convencional e imbecil, esta pintura mofina. Destruo toda essa literatura acadêmica, romântica, literatura que só é literatura e não vida e energia. Construo com o granito, com

324

Page 53: 06. o Modernismo Brasileiro

o ferro, com a madeira, que a terra pródiga me oferece, a morada simples, clara, forte, graciosa do brasileiro. Ergo os palácios, as fábricas, as estações, os galpões, não copiando as nossas florestas, os nossos montes, mas com a força dinâmica libertadora do espírito moderno, que cria coisa própria. Recolho a língua do meu povo e transformo a sua poesia em poesia universal. Faço da minha atualidade a forja do Futuro».

Projeto de Graça Aranha apresentado à Academia Brasileira de Letras, em 3 de julho de 1924 e rejeitado

em outubro do mesmo ano.

1 ) O dicionário, que a Academia pretende fazer, será o Di-cionário da Língua Portuguesa. Nele serão incorporados todosos vocábulos e frases da linguagem corrente brasileira, impro-priamente chamados brasileirismos. Os "portuguesismos" ou ex-pressões da linguagem usada exclusivamente em Portugal, semuso corrente no Brasil, não serão introduzidos nesse dicionáriobrasileiro da língua portuguesa.2) A Academia não aceitará para os seus concursos:a ) poesias parnasianas, árcades ou clássicas;b) poesias, romances, novelas, contos ou qualquer trabalho de ficção, de assunto mitológico, que não seja do "folclore" brasileiro, tratado com espírito moderno;c ) obras de história estrangeira, antiga ou moderna. As obras históricas brasileiras devem ser tratadas com espírito critico moderno, que sabe situar o passado e libertar-se do passadismo.3) A Academia promoverá conferências públicas, feitas pelos acadêmicos, exclusivamente de assuntos atuais filosóficos, estéticos, literários ou sociais, que tenham relação com a cultura brasil ira.4) Todos os trabalhos publicados pela Academia, as conferências dos acadêmicos e as obras premiadas pela Academia serão em linguagem corrente, usual, expurgada de todo o arcaísmo ou de expressões do denominado classicismo verbal português.5) A Academia fará cada semestre um estudo critico moderno do movimento literário brasileiro, tendo em atenção principalmente as novas correntes filosóficas, literárias e artísticas.6) A Academia fará imprimir as obras dos jovens escritores, que não encontrem editores e trouxerem á literatura brasileira originalidade e modernidade.7) A Academia solicitará dos escritores modernos, premiados ou não por ela, trabalhos originais para a sua revista.

(ARANHA, Graça. Espírito moderno. São Paulo, Cia. Gráfico-Editora Monteiro Lobato, 1925.)

53

Page 54: 06. o Modernismo Brasileiro

MANIFESTO DA POESIA PAU-BRASIL'

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azu-1 cabralino, são fatos estéticos.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá o ouro e a dança.

§ § §

Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de jóquei. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.

§ § §

O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.

1. Lançado por Oswald de Andrade, no Correio da manhã, em 18 de março de 1924.

326

Page 55: 06. o Modernismo Brasileiro

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.

§ § §

Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.

A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas-de-casa tratando de cozinha. A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.

§ § §

Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Júris.

Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance nascido da invenção. Ágil a poesia. A Poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.

Uma sugestão de Blaise Cendrars: — Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.

§ § §

Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neo-lógica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.

§ § §

Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta — a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.

55

Page 56: 06. o Modernismo Brasileiro

§ § §

Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não fosse lã mesmo não prestava. A interpretação do dicionário oral das Escolas de Belas-Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado — o artista fotógrafo.

Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de tolinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A Playela. E a ironia eslava compôs para a Playela. Stravinski.

A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.

Só não se inventou uma máquina de fazer versos — já havia o poeta parnasiano.

§ § §

Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1*) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne a Mallarmé, Rodin e Debussy até agora; 2») o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.

O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.

§ § §

Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos. A síntese. O equilíbrio.O acabamento de carrosserie. A invenção. Uma nova perspectiva. Uma nova escala.

328

Page 57: 06. o Modernismo Brasileiro

§ § §

Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil.

§ § §

O trabalho contra o detalhe naturalista — pela síntese; contra a morbidez romântica — pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.

§ § § Uma

nova perspectiva:A outra, a de Paolo Ucello, criou o naturalismo de apogeu. Era uma

ilusão ótica. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.

§ § §

Uma nova escala.A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos

livros, crianças nos colos. O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasómetros. Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tiques de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O Correspondente da surpresa física em arte.

A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloqüente, um pavor sem sentido.Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.

Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.A poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com

passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.

57

Page 58: 06. o Modernismo Brasileiro

§ § §

Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.

§ § §

Temos a base dupla e presente — a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de «dorme nenê que o bicho vem pega» e de equações.

Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.

§ § §

Obuses de elevadores, cubos de arranha-céu e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.

§ § §

O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.

Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.

§ § §

O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espirito.

§ § §

O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.

§ § §

A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.

330

Page 59: 06. o Modernismo Brasileiro

§ § §

Apenas brasileiros de nossa época. O necessário, de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.

§ § §

Bárbaros crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.

OSWALD DE ANDRADE Correio

da manhã, 18 de março de 1924.

(In Revista do livro: Rio, I.N.L., n» 16, dezembro de 1959.)

59

Page 60: 06. o Modernismo Brasileiro

A ARTE MODERNA

Há, nos arraiais da inteligência, atualmente, e como sempre houve em todas as épocas, uma nova geração que anseia por ideais novos. Sobretudo, já ergueu os olhos para a meta entressonhada, em São Paulo, no Rio, Recife e Pará. A Paraíba não fugirá ao apelo que lhe faço de acompanhar-nos nesse esforço giganteo e nessa luta sem tréguas para desapressar-se das velhas fórmulas da arte, num combate cavalheiresco, e, se necessário, desapiedado, à geração antiga. Os rapazes daí acompanhar-nos-ão, decerto, nessa renovação artística necessária a que os zoilos chamam de «futurismo», denominação marinética inaceitável entre nós, projétil nas mãos dos que não têm base para discutir.

O movimento acha-se vitorioso no Rio e em São Paulo.

Hoje, nesta deliciosa Mauricéia, os passadistas enragés, não cultivando uma nova expressão de arte, não contestam, entanto, a sua necessidade. Aceitam-na, embora, por um caso de tradições de família, permaneçam nos velhos moldes bolorentos, como elementos representativos do seu tempo, no Instituto Arqueológico da Arte.

1. Trechos da Carta-manlfesto que Joaquim Inojosa, do Recife, remeteu em 5 de julho de 1924 a Severino de Lucena e S. Guimarães Sobrinho, diretores da revista Era nova, de João Pessoa, que o haviam indicado representante intelectual da revista no Recife. Constitui o primeiro documento do modernismo no Nordeste, percebendo-se nele a influência de Marinetti a de Graça Aranha. Está publicada na Integra no 3« volume de O Movimento modernista em Pernambuco, Rio, Orática Tupy 1969.

332

Page 61: 06. o Modernismo Brasileiro

Seria, porém, mais nobre não fugissem aos efeitos daquilo que julgam vitorioso por sua seiva, número e valor dos que combatem. ( . . . )

Em fins de 1922, quando afirmei nesta cidade que nada estávamos fazendo porque fazíamos tudo velho, acharam absurdas, e, até, ridículas, as minhas asserções. Depois, as visitas de Antônio Ferro, Jorge Barradas, De Garo, e, em parte, Dakir Parreiras e Joaquim do Rêgo Monteiro, para não falar na vitoriosa passagem de Paulo Torres, mostraram que a razão se achava de meu lado. Austro Costa, a princípio o meu mais intransigente adversário, voltou-se inteiramente à nova arte poética. Raul Machado publica versos modernos; Araújo Filho e Anísio Galvão aplaudem o Credo Novo; Faria Neves Sobrinho não o condena. Nem tampouco Maviael do Prado e Silvino -Lopes. ( . . . )

Ora, meus amigos, que a renovação de que falo é necessária e inevitável, provo-o com esta pergunta: / Onde já se viu persistir, por séculos, uma escola literária?

Tivemos o romantismo, o lirismo, o condoreirismo, o naturalismo, e que mais? Escolas ou não-escolas, substituíam-se umas às outras, e sempre, nesses combates, venceu a audácia dos novos contra a prepotência mental dos velhos.

Por que persistirmos inertes ante a evolução do pensamento e das artes? Esse movimento modernista a que chamam de «futurismo» (no Brasil não há «futurismo». Morra o «futurismo», gritou o Ronald) não nasceu no Brasil, nem existirá somente no Brasil. Surgiu na Itália com Marinetti e Papini, saindo o primeiro a pregar suas idéias em Paris e Londres. E hoje, em toda parte a reação continua forte. Aos poucos a Arte Moderna ganha terreno à arte antiga. ( . . . )

A literatura brasileira atravessa, atualmente, uma fase de descanso dominical. Os velhos, tendo trabalhado durante a semana, alapardam-se burguesmente a dormir o sono dos satisfeitos. Aos moços cabe romper contra a apatia e dar, a esses dias monótonos, uns tons alegres de festa, ânsias, de sonhos. A «poesia-pau-Brasil» do parnasianismo está gasta, porque os poetas de hoje querem a sua arte livre, sem códigos, sem preconceitos, sem mordaças. Há muitos anos que se diz a mesma coisa e faz-se mister que outros motivos

61

Page 62: 06. o Modernismo Brasileiro

inspirem aos artistas. A arte não tem passado, nem futuro: tem presente. Realizemos a arte da hora atual. O século não é mais de carros de bois, porém do automóvel e do aeroplano. A hora que passa, a civilização de hoje, apresenta um traço febril, nervoso, agitado, que influi na mentalidade, pela atuação vigorosa do meio sobre o homem. Desaparecerão as fórmulas frias, marmóreas, estéreis — frutos pecos do ontem sonolento. Alguma coisa de belo ficará, certamente, do que se destruir: será guardado com respeito religioso, no lugar onde, nos templos, se conservam os ossos de certas entidades da igreja. O sol nasce todos os dias no mesmo horizonte, mas não ilumina as mesmas cabeças. Andar com os velhos é envelhecer com eles. Prefiro, até, esmagá-los a sujeitar-me aos seus caprichos injustificáveis. O único exemplo que nos podem dar é o da experiência. Nós, entanto, sabemos que a experiência é inimiga da mocidade, porque é filha da velhice. Erga a mocidade a fronte, para que nela se possa colocar o estema da vitória.A vitória, no caso, pertence à Arte Moderna.

Para consegui-la — guerra aos preconceitos artísticos. Liberdade e Alegria. Guerra aos códigos literários, às fórmulas preestabelecidas. Guerra ao parnasianismo, ao gagaísmo, ao academismo, ao naturalismo da prosa, ao virtuosismo, ao conformismo, ao copismo, ao dicio-narismo. Guerra aos «almofadinhas do soneto», aos gramáticos «ápteros», aos regionalistas sistemáticos. Guerra ao passadismo inatualizável. Guerra à estética absoluta, à arte oficial, à pintura de cópia. Guerra ao belo como o fim da arte. ( . . . )

Queiram ou não queiram, a Arte Moderna vencerá. Para glória da Humanidade. E ódio mais intenso de s. exa. a Tradição, irmã gêmea de s.s. o Rotineirismo.

Meus caros amigos: / Isto já não é mais carta, e sim, um manifesto. Manifesto, carta ou relatório, quero mostrar, num balanço muito ligeiro, que este movimento moderno é muito sério e muito agitado. Desejo ainda falar do Recife. Antes, porém, duas palavras sobre o Pará e sobre o Rio Grande do Norte. ( . . . )

É, em síntese, essa a situação do movimento moderno no Recife.Resta-nos, agora, pedir que a Paraíba nos acompanhe.

Já vocês publicaram, em um dos últimos números da Era nova, um editorial sob o título «Renovação literária», e nele escreveram [em 15/4/1924]:

334

Page 63: 06. o Modernismo Brasileiro

"Demos mais esta vez razão a Augusto Comte: nada há absoluto. Esse movimento forte, partido da mocidade intelectual de S. Paulo, em prol de uma falada renovação em arte e literatura no Brasil, não deixa de oferecer o seu merecimento / Se nào se pode trazer à baila algo de nuevo no que diz respeito aos antigos, imortais motivos de Arte e de Estética, contentémonos, então, em combater a toda a força o nosso mal-malor: o lugar comum, a eterna repetição das mesmas expressões, das mesmas palavras. / Se não se podem inventar novos sentimentos, então aprendamos a expressá-los sem a chateza, sem a vulgaridade com que os Intelectuais de agora se acostumaram a faze-lo. Isto é o que entendemos por renovação. / Neste aspecto, ela não é apenas louvável, é urgente". ( . . . )

Porque, ou a Paraíba se filia ao movimento renovador, ou, em arte, ficará no Morro do Castelo da antiguidade. /Não./ Faz-se necessário substituir os bondes da T.L.F. por outros que correspondam aos ideais modernos desse povo carinhoso, inteligente e trabalhador. / Está decretada, aí também, a falência da arte antiga. Seja a Era nova o porta-voz de todos os clamores de renovação, e assim terá cumprido a sua mais nobre finalidade. / Seja a Klaxon paraibana. / Do ex-corde

JOAQUIM INOJOSA

Recife. 5 de julho de 1924.

(INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco, 3c vol. Rio, Gráfica Tupy, [1969].)

63

Page 64: 06. o Modernismo Brasileiro

PARA OS CÉTICOS1

O programa desta revista não pode necessariamente afastar-se da linha estrutural de todos os programas. Resume-se numa palavra: Ação. Ação quer dizer vibração, luta, esforço construtor, vida. Resta cumpri-lo, e com lealdade o confessamos: começam aqui as dificuldades. Supõe-se que ainda não estamos suficientemente aparelhados para manter uma revista de cultura, ou mesmo um simples semanário de bonecos cinematográficos: falta-nos desde a tipografia até o leitor. Quanto a escritores, ohl isso temos de sobra. (Assim Deus Nosso Senhor mandasse uma epidemia que os reduzisse à metade!). Desta sorte, um injustificável desânimo faz de Belo Horizonte a mais pa-radoxal das cidades: centro de estudos, ela não comporta um mensário de estudos. E se reponta, aqui e ali, uma tentativa nesse sentido, o Coro dos cidadãos experimentados e céticos exclama: «Qual! É tolice... A idéia não vinga». E como, de fato, a idéia não vinga, o ceticismo astucioso e estéril vai comprar a sua Revista do Brasil, que é de S. Paulo e, por isso, deve ser profundamente interessante. . .

Os moços que estão à frente desta publicação avaliam com segurança a soma de tropeços a vencer no empreendimento que se propuseram. Está claro que não só desejam como esperam vencê-lo. Porém, se forem derrotados, não se queixarão da fortuna, que é caprichosa, nem do meio belo-horizontino, que é,

1. Editorial de A Revista, de Belo Horizonte, redigido por Carlos Drummond de Andrade, em julho de 1925.

336

Page 65: 06. o Modernismo Brasileiro

na realidade, um dos mais cultos, polidos e estudiosos do Brasil. A derrota é ainda o menos feio dos pecados, e o mais confessável. No caso presente, o inimigo pode tornar-se em amigo: é a indiferença do público, tão legítima em vista dos repetidos b l u f f s literários dos últimos tempos.

Não somos românticos; somos jovens. Um adjetivo vale o outro, dirão. Talvez. Mas, entre todos os ro-mantismos, preferimos o da mocidade e, com ele, o da ação. Ação intensiva em todos os campos: na literatura, na arte, na política. Somos pela renovação intelectual do Brasil, renovação que se tornou um imperativo categórico. Pugnamos pelo saneamento da tradição, que não pode continuar a ser o túmulo de nossas idéias, mas antes a fonte generosa de que elas dimanem. Somos, finalmente, um órgão político. Esse qualificativo foi corrompido pela interpretação viciosa a que nos obrigou o exercício desenfreado da poli-ticagem. Entretanto, não sabemos de palavra mais nobre que esta: política. Será preciso dizer que temos um ideal? Ele se apoia no mais franco e decidido nacionalismo. A confissão desse nacionalismo constitui o maior orgulho da nossa geração, que não pratica a xenofobia nem o chauvinismo, e que, longe de repudiar as correntes civilizadoras da Europa, intenta submeter o Brasil cada vez mais ao seu influxo, sem quebra de nossa originalidade nacional.

Na ordem interna, é forçoso lançar ainda uma afirmação. Nascidos na República, assistimos ao espetáculo quotidiano e pungente das desordens intestinas, ao longo das quais se desenha, nítida e perturbadora, em nosso horizonte social, uma tremenda crise de auto-ridade. No Brasil, ninguém quer obedecer. Um criticismo unilateral domina tanto as chamadas elites culturais como as classes populares. Há mil pastores para uma só ovelha. Por isso mesmo, as paixões ocupam o lugar das ideias, e, em vez de se discutirem princípios, discutem-se homens. «Fulano está no governo, pois então vamos derrubar Fulano!» E zás! Metralhadoras, canhões, regimentos inteiros em atividade...

Contra esse opressivo estado de coisas é que a mocidade brasileira procura e deve reagir, utilizando as suas puras reservas de espírito e coração.

Ao Brasil desorientado e nevrótico de até agora, oponhamos o Brasil laborioso e prudente que a civilização

65

Page 66: 06. o Modernismo Brasileiro

está a exigir de nós. Sem vacilação, como sem ostentação. É uma obra de refinamento interior, que só os meios pacíficos do jornal, da tribuna e da cátedra poderão veicular. Depois da destruição do jugo colonial e do jugo escravista, e do advento da forma republicana, parecia que nada mais havia a fazer senão cruzar os braços. «Engano. Resta-nos humanizar o Brasil».

REDAÇÃO

(A Revista: Belo Horizonte, n» 1, Julho de 1925.)

PARA OS ESPÍRITOS CRIADORES'

Falamos aos céricos; chegou a vez de falarmos aos espíritos criadores. Trazemos outra serenidade. Vimos reafirmar a nossa orientação no sentido da mais franca nacionalização do nosso espírito. Há no nosso tempo uma volta à realidade. Não nos abismamos mais nas mentirosas ideologias das gerações passadas, que fantasiavam a nossa terra com cores quiméricas. Sofremos uma aproximação mais íntima, um contato mais vivo do nosso meio. Eis por que cabe a nós uma obra de dura disciplina e de serenidade construtiva. Precisamos não só de atos de inteligência mas, sobretudo, de atos de fé. Há uma necessidade inadiável de afirmação em todos os sentidos. Entrando em choque com a vida real, temos de confiar na nossa força para não cairmos na inação e no indiferentismo. Não queremos atirar pedras ao passado. O nosso verdadeiro objetivo é esculpir o futuro. Aí estão problemas essenciais da nacionalidade exigindo uma solução imediata. Pretendemos realizar, ao mesmo tempo, uma obra de criação e de crítica. Deixamos a cada colaborador a mais ampla liberdade de ponto de vista e de opinião. Apenas desejamos imprimir ao nosso trabalho uma unidade em

2. A apresentação do primeiro número ("Para os cépticos") sofreu uma espécie de modificação, em termos que se pretendiam mais objetivos. Dal o "Para os espíritos criadores" do segundo número, também sem assinatura, mas redigido por Martins de Almeida, conforme informação pessoal de Carlos Drummond de Andrade.

338

Page 67: 06. o Modernismo Brasileiro

harmonia com a nossa tendência nacionalista. Sem preconceitos rígidos. Sem exclusivismos estéreis. Procuramos concentrar todos os esforços para construir o Brasil, dentro do Brasil ou, se possível, Minas dentro de Minas.

Acolhemos com simpatia o regionalismo. Aproveitamos nesse movimento alguns reflexos do nosso ambiente, a originalidade local do nosso interior.

Se bem que pretendamos caminhar noutro sentido: dominar pelo espírito o nosso meio e não nos escravizarmos a ele. Mas é preciso superpormos vontades idênticas para criarmos um espírito nacional. O esforço intensificado de cada um nesse mesmo sentido constitui o fecundo trabalho subterrâneo das raízes. A nacionalidade se vai formando à custa das dolorosas experiências individuais.

Não podemos desprezar a menor contribuição. Pressentimos o perigo enorme do cosmopolitismo. É a ameaça de dissolução do nosso espírito nas reações da transplantação exótica. Não podemos oferecer nenhuma permeabilidade aos produtos e detritos das civilizações estrangeiras. Temos de recompor a nossa faculdade de assimilação para transformar em substância própria o que nos vem de fora. Aí está outro movimento nacionalista que traz também os seus frutos: o primitivismo. Este vem, sobretudo, humanizar a nossa consciência intelectual, despindo-a de seu ca-cáter olímpico. Há muito que precisávamos deixar a nossa inacessível Turris Ebúrnea e acabar com a aristocracia orgulhosa do pensamento, para tomarmos parte na humanidade, na nossa humanidade. Devemos compreender que o nosso papel é viver e não contemplar o espetáculo quotidiano.

Na verdade, um dos nossos fins principais é solidificar o fio das nossas tradições. Somos tradicionalistas no bom sentido.

Opomo-nos a qualquer desbarato da nossa pequena herança intelectual. Se adotamos a reforma estética, é justamente para multiplicar e valorizar o diminuto capital artístico que nos legaram as gerações passadas.

Dissemos que éramos um órgão político. Nas relações internas, a nossa orientação está definida no sentido da centralização do poder. Tanto na política como nas letras, ameaçam-nos perigossíssimos elementos de dissolução. Anda por aí, em explosões isoladas, um

67

Page 68: 06. o Modernismo Brasileiro

nefasto espírito de revolta sem organização nem idealismo, que tenta enfraquecer o nosso organismo social.

Para combatê-lo sentimos a necessidade do governo ser a função de uma vontade forte, de um espírito dominador. Se o poder for se tornando periférico em vez de centralizar-se, teremos a dispersão das forcas latentes do país. No momento atual, o Brasil não comporta a socialização das massas populares. Só uma personalidade inflexível dirigida por uma boa compreensão das nossas necessidades pode resolver os problemas máximos da nacionalidade. Nas relações ex-teriores do país, as nossas condições momentâneas estão exigindo uma posição, não dizemos estratégica, mas, pelo menos, tática das classes dirigentes em relação ao elemento estrangeiro. Não podemos dispensar o seu concurso. Aí está a imigração que, acolhida em massa englobada, é perigossíssima à formação atual dos nossos caracteres. Poderá perturbar ainda mais o estado da nossa mestiçagem psíquica. Não pode-mos impedi-la mas podemos organizá-la. A criação de núcleos de colonização é uma medida para o momento. Traria a vantagem de impedir o caldeamento irregular dos tipos mais díspares ,e de ir estendendo a urbanização do nosso interior. Coerentes com o nosso programa nacionalista, somos pela reforma da nossa Constituição. Esta apresenta uma pomposa fachada de federalismo norte-americano e traz um fundo decalcado do liberalismo inglês. As nossas leis fundamentais nasceram sob influência do romantismo político do Segundo Império. Foram constituídas pelo idealismo vago, o verbalismo sonoro dos últimos representantes daquele nosso brilhante e dissolvente par-lamentarismo. Há um desacordo profundo entre muitos dos princípios constitucionais e a nossa mentalidade social. Precisamos anular essa desproporção. As nossas leis devem ser tiradas da observação direta da vida brasileira, e não copiadas dos modelos estrangeiros.

REDAÇÃO

(.4 Revista: Belo Horizonte, n? 2, agosto de 1925.)

340

Page 69: 06. o Modernismo Brasileiro

TERRA ROXA E OUTRAS TERRAS

APRESENTAÇÃO

Parece que este jornal, ao nascer, dá prova de uma coragem digna do Anhangüera: destina-se a um público que não existe. O seu programa é isso mesmo: ser feito para o homem que lê.

A nossa terra roxa, mercê de sua fertilidade complexa e exagerada, tem dado à luz tudo que é o sonho de uma imaginação de pioneiro: açúcar, café, arranha-céus, trens elétricos, lança-perfumes, diretórios políticos, ônibus e até literatos. Tudo. Menos ali nesse banco de jardim inglês, ou nessa poltrona de varanda de bangalô, ou nesse clube, ou nessa rede de fazenda, ou nesse pullman da Paulista, a entidade rara e inestimável que é um homem que lê. Pois é para esse homem imaginário, ou pelo menos ainda incógnito como um rei em viagem de recreio, que decidimos imaginar, criar e jogar no mundo o TERRA ROXA. .. e outras terras.

Entre nós, o fenômeno é singular: não é o leitor à procura de um jornal, mas o jornal à procura de um leitor. Ensinemos esse leitor a ler. Sem cartilha. Sem bolos. Sem prêmio de f i m de ano.

Três desejos levam o homem civilizado à leitura: o de se instruir, o de se divertir, o de fazer bonito diante de parentes, amigos ou conhecidos. TURRA ROXA fornecerá leitura para esses três fins. Quem o ler, com aquela assiduidade que sempre comove as admi-

1. Editorial da revista Terra roxa c outras terras, aparecida em São Paulo, em 20 de janeiro de 1926.

69

Page 70: 06. o Modernismo Brasileiro

nistrações jornalísticas, poderá facilmente aprender, distrair-se e, como se diz no nosso admirável idioma ítalo-pau-brasil, bancar o intelectual.

Ao ente hipotético e incerto, para quem compomos este quinzenário, oferecemos, como numa bandeja caipira, o repasto variado e suculento que convém a um apetite virgem: crônica literária, crônica artística, crônica filosófica, crônica musical e teatral, ensaios de crítica, ensaios de história, criações de poetas, novelas, romances, todos os gêneros, menos, esperemos em Deus, esse gênero pau (ennuyeux em francês) de que fugiremos como da peste.

Os trabalhos publicados obedecerão a uma linha geral chamada do espírito moderno, que não sabemos bem o que seja, mas que está patentemente delineada pelas suas exclusões.

Camarada leitor: muito prazer e muita' honra em descobri-lo.

(Terra roxa e outras terras: SSo Paulo, n» 1, 20 de janeiro de 1926.)

342

Page 71: 06. o Modernismo Brasileiro

MANIFESTO REGIONALISTA DE 1926/1952

I

CENTRO REGIONALISTA Programa (de 1926)

1? — O Centro Regionalista do Nordeste, com sede no Recife, tem por fim desenvolver o sentimento de unidade do Nordeste, já tão claramente caracterizada na sua condição geográfica e evolução histórica, e ao mesmo tempo trabalhar em prol dos interesses da região nos seus aspectos diversos: sociais, econômicos e culturais.

2? — Para isto será o Centro constituído e organizado dentro da comunhão regional, aproveitando os bons elementos da inteligência nordestina, com exclusão de qualquer particularismo provinciano, quer quanto às coisas, quer quanto às pessoas.

3? — O Centro conservará a sua ação livre às injunções das correntes partidárias, colaborando com todos os grandes movimentos políticos que visem o (sic) desenvolvimento material e moral do Nordeste.

4? — Perante o Governo da União o Centro defenderá os interesses do Nordeste na sua solidariedade,

1. Segundo Gilberto Freyre, o "Manifesto Regionalista de 1926" foi lido no Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo, realizado no Recife, mas somente publicado em 1952; segundo Joaquim Inojosa, o que foi lido foi o Programa e o congresso se denominou Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste. Publicamos nà integra o Programa do Centro Regionalista; e, dada a extensão do texto de Gilberto Freyre, publicamos apenas os títulos dos seus vinte e um capítulos, os quais já não aparecem na última edição. Vejam-se mais comentários na parte intitulada "O Modernismo brasileiro", neste livro.

71

Page 72: 06. o Modernismo Brasileiro

sem sacrificar as questões fundamentais da região às vantagens particulares de cada Estado.

5» — A fim de congregar os elementos da vida e da cultura nordestina, o Centro procurará:

a) organizar conferências, exposições de arte, visitas, excursões;

b) manter em sua sede bibliotecas e sala de leitura, onde achem representadas as produções intelectuais do Nordeste no passado e no presente;

c) promover cada ano ou de dois em dois anos, numa cidade do Nordeste, um congresso regionalista;

d ) editar uma revista de alta cultura O Nordeste, dedicada especialmente ao estudo das questões nordestinas e ao registro da vida regional.

(1NOJOSA, Joaquim. O Movimento modernista em Pernambuco. Rio, Gráfica Tupy, 1968. 1» volume.)

II

O MANIFESTO DE 1926/1952 Apresentado por Gilberto

Freyre

O Manifesto que se segue foi lido no Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo que se reuniu na cidade do Recife, durante o mês de fevereiro de 1926 e que foi o primeiro do gênero, não só no Brasil como na América, só depois do Congresso do Recife tendo se reunido nos Estados Unidos a Conferência Regionalista de Charlottesville (Virgínia), com o apoio de Franklin D. Roosevelt e de outros eminentes norte-americanos e do qual participou o autor do «Manifesto de 1926» do Recife, por iniciativa e convite do seu colega Ruediger Bilden. Foi divulgado em parte por jornais da época, e pela primeira vez publicado na íntegra pela editora Região, de estudantes e jovens intelectuaiso do Recife, em 1952: publicação a que se seguiu a do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Social, também do Recife, no 1' número do seu Bo-letim (1953).

A essas declarações de Gilberto Freyre segue-se o texto, tal como vem na edição de Os Cadernos de Cultura do Ministério da Educação e Cultura: Gilberto Freyre.

344

Page 73: 06. o Modernismo Brasileiro

Manifesto regionalista de 1926. Rio de Janeiro, MEC, 1955. Publicamos a seguir apenas os títulos dos capítulos desse controvertido manifesto:

I. Regionalismo do Recife: que é?II. Nem separatismo nem bairrismo.III. Precisamos de uma articulação inter-regional.IV. O Nordeste e o Brasil.V. Elogio do mucambo (sic).VI. Apologia das velhas ruas estreitas do Nordeste.

VII. Defesa de outros valores regionais.VIII. Originalidade do 1» Congresso Brasileiro de Re-gionalismo.

IX. Defesa de valores plebeus e não apenas dos elegantes e eruditos.X. Pela reabilitação dos valores culinários do Nor-

deste.XI. As três regiões culinárias principais do Brasil.

XII. Dívida aos portugueses.XIII. Cunhães, negras e quitutes, do Nordeste.XIV. Contribuição dos engenhos patriarcais para uma culinária

regional.XV. Sobrados e casas nobres de cidade: sua contri-

buição para a culinária do Nordeste.XVI. Ameaças que hoje cercam os valores culinários

do Nordeste.XVII. Mas nem tudo está perdido: apenas ameaçado.

XVIII. Separando o regionalismo do simples snobismo tradicionalista.

XIX. Regionalismo e populismo.XX. A civilização regional do Nordeste como expressão de uma

harmonia de valores.XXI. Onde estão os poetas, os romancistas, os contistas? onde estão os

pintores, os fotógrafos, os compositores?

(FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista de 1926. Rio, M.E.C., 1955.)

73

Page 74: 06. o Modernismo Brasileiro

FESTA'

Nós temos uma visão clara desta hora.

Sabemos que é de tumulto e de incerteza.E de confusão de valores.E de vitória do arrivismo.E de graves ameaças para o homem.

Mas sabemos, também, que não é esta a primeira hora de agonia e inquietude que a humanidade vive.

A humanidade dança a sua dança num velho ritmo em dois tempos.Quando todas as forças interiores se equilibram, os gestos são luminosamente serenos. Mas o que nesses gestos parecia um esplendor supremo de beleza, ou de verdadenão era senão um momento efêmero da escalada. Então exsurgem das profundezas do ser ímpetos bruscos e imprevistos, que trazem a insatisfação, a angústia, a febre,e quebram os compassos harmoniosos,e fazem pensar, aos que se esqueceram de Deus, quetudo está perdido,

— mas que são, em verdade, ondas desconhecidas de energia

1. Editorial da revista Festa, publicado no primeiro número, de \ '> de agosto de 1927. É de Tasso da Silveira, que o incluiu como poema em Cantos do campo de batalha, de 1945.

346

Page 75: 06. o Modernismo Brasileiro

para a criação de um equilíbrio novo e de outra mais alta serenidade. . .

Nós temos a compreensão nítida deste momento. Deste momento no mundo e deste momento no Brasil.

Vemos, lá fora e aqui dentro, o rodopio dos sentimentos em torvelinho trágico.

E as investidas reivindicadorasdos apetites que se disfarçavame agora se desencadeiam em fúria.E ouvimos o suspiro de alívioda mediocridade finalmente desoprimida:da mediocridade que, aproveitando o desequilíbrio deum instante,ergueu também a sua voz em falsete, e encheu o ar de gestos desarticulados e proclamou-se vencedora,na ingênua ilusão de que as barreiras que a continham tombaram para sempre.

Mas vemos igualmente os espíritos legítimos no seu posto imutável.E apuramos o ouvido ao brado de alerta das sentinelas perdidas.E sentimos à flor do solo o frêmito das subterrâneas correntes de força viva, que serão captadas pela sabedoria divina na hora próxima das construções admiráveis.

A arte é sempre a primeira que fala para anunciar o que virá.E a arte deste momento é um canto de alegria, uma reiniciação na esperança, uma promessa de esplendor.E sentimos à flor do solo o frêmito em subterrâneas correntes de força viva,que serão captadas pela sabedoria divina na hora próxima das construções admiráveis.

A arte é sempre a primeira que fala para anunciar o que virá.E a arte deste momento é um canto de alegria, uma reiniciação na esperança, uma promessa de esplendor.

75

Page 76: 06. o Modernismo Brasileiro

Passou o profundo desconsolo romântico. Passou o estéril cepticismo parnasiano. Passou a angústia das incertezas simbolistas.

O artista canta agora a realidade total: a do corpo e a do espírito, a da natureza e a do sonho, a do homem e a de Deus,

canta-a, porém, porque a percebe e compreendeem toda a sua múltipla beleza,em sua profundidade e infinitude.E por isto o seu cantoé feito de inteligência e de instinto(porque também deve ser total)e é feito de ritmos livreselásticos e ágeis como músculos de atletasvelozes e altos como sutilíssimos pensamentose sobretudo palpitantesdo triunfo interiorque nasce das adivinhações maravilhosas...

O artista voltou a ter os olhos adolescentes; e encantou-se novamente com a Vida:

TODOS OS HOMENS O ACOMPANHARÃO!

(Festa: Rio, n« 1, de li de agosto de 1927.)

348

Page 77: 06. o Modernismo Brasileiro

MANIFESTO DO GRUPO VERDE DE

CATAGUAZES1

Este manifesto não é uma explicação. Uma explicação nossa não seria compreendida pelos críticos da terra, pelos inumeráveis conselheiros b. b. que dogmatizam empoleirados nas colunas pretensas importantes dos jornais mirins do interior. E seria inútil para os que já nos compreenderam e estão nos apoiando.

Nem é uma limitação dos nossos fins e processos, porque o moderno é inumerável.

Mas é uma limitação entre o que temos feito e o monte do que os outros fizeram.

Uma separação entre nós e a rabada dos nossos adesistas de última hora, cuja adesão é um desconforto.

Pretendemos também focalizar a linha divisória que nos põe. do lado oposto ao outro lado dos demais modernistas brasileiros e estrangeiros.

Nós não sofremos a influência direta estrangeira. Todos nós fizemos questão de esquecer o francês.

Mas não pense ninguém que pretendemos dizer que somos — os daqui — todos iguais.

Somos diferentes. Diversíssimos até. Mais muito mais diferentes do pessoal das casas vizinhas.

Nossa situação topográfica faz com que tenhamos, é fato, uma visão semelhante do conjunto brasileiro e americano e da hora que passou, passa e que está para passar.

Dal a união do grupo «VERDE». Sem prejuízo, entretanto, da liberdade pessoal, processos e modo de cada um de nós.

1. Publicado no número 3 da revista Verde, de Cataguazet (MO), em novembro de 1827.

77

Page 78: 06. o Modernismo Brasileiro

Um dos muitos particulares característicos do nosso grupo é o objetivismo.

Todos somos objetivistas quase. Explicação? Não precisa. Basta meter a mão na cabeça, pensar, comparar e . . . concordar.

O lugar que é hoje bem nosso no Brasil intelectual foi conquistado tão-somente ao dionisíaco empreendimento do forte grupo de Belo Horizonte, tendo à frente o entusiasmo moço de Carlos Drummond, Martins de Almeida e Emilio Moura, com a fundação da A REVISTA, que, embora não tendo tido vida longa, marcou época na história da inovação moderna em Minas. *

Apesar de citarmos os nomes dos rapazes de Belo Horizonte, não temos, absolutamente, nenhuma ligação com o estilo e vida literária deles.

Somos nós. Somos VERDES. E este manifesto foi feito especialmente para provocar um gostosíssimo escândalo . interior e até vaias íntimas.Não faz mal, não. É isso mesmo.

Acompanhamos S. Paulo e Rio em todas as suas inovações e renovações estéticas, quer na literatura como em todas as artes belas, não fomos e nem somos influenciados por eles, como querem alguns.

Não temos pais espirituais. Ao passo que outros grupos, apesar de gritos e protestos* e o diabo no sentido do abrasileiramento de nossos motivos e de nossa fala, vivem por a f a pastichar o «modus» bárbaro do sr. Cendrars e outros franceses escovados ou pacatíssimos.

Não temos pretensão ajguma de escanchar os nossos amigos. Não. Absolutamente.

Queremos é demonstrar apenas a nossa independência no sentido escolástico, ou melhor, «partipario».

O nosso movimento VERDE nasceu de um simples jornaleco da terra — JAZZ BAND.

Um pequeno jornalzinho com tendências modernistas que logo escandalizaram os pacatíssimos habitantes desta Meia-Pataca. Chegou-se mesmo a falar em bengaladas...

E dai nasceu a nossa vontade firme de mostrar a esta gente toda que, embora morando em uma cidadezinha do interior, temos coragem de competir com o pessoal lá de cima.

* Eles é que primeiro catequizaram os naturais de Minas e nos animaram com o exemplo para a publlcaçío de Verde.

350

Page 79: 06. o Modernismo Brasileiro

A falta de publicações, casas editoriais e dinheiro — tinha feito com que ficássemos à espera do momento propício para aparecer.

Mas VERDE saiu. VERDE venceu. Podemos dar pancadas ou tomar. Não esperamos aplausos ou vaias públicas, porque aquilo que provoca verdadeiro escândalo põe o brasileiro indiferente, na aparência... com medo ou com vergonha de entrar no barulho.

Sim. Não esperamos aplausos ou vaias públicas. Os aplausos de certos públicos envergonham a quem os recebe, porque nivelam a obra aplaudida com aqueles que a compreenderam.

Não fica atrás a vaia. A vaia é às vezes ainda uma simulada expressão de reconhecimento de valores...

Por isso preferimos a indiferença. Esta será a mais bela homenagem que nos prestarão os que não nos compreendem. Por que atacar VERDE? Somos o que queremos ser e pão o que os outros querem que sejamos. Isto parece complicado, mas é simples.

Exemplo: os outros querem que escrevamos sonetos líricos e acrósticos portugueses com nomes e sobrenomes.

Nós preferimos deixar o soneto na sua cova, com os seus quatorze ciprestes importados, e cantar simplesmente a terra brasileira. Não gostam? Pouco importa. O que importa, de verdade, é a glória de VERDE, a vitória de VERDE. Esta já ganhou terreno nas mais cultas cidades do país.

Considera-nos a grande imprensa os únicos literatos que têm coragem inaudita de manter uma revista moderna no Brasil, enquanto o público de nossa terra, o respeitável público, nos tem em conta de uns simples malucos criadores de coisas absolutamente incríveis.

É positivamente engraçado. E foi para dizer estas coisas que lançamos o manifesto de hoje, que apesar de tão encrencado nada tem de manifesto, apenas um ligeiro rodeio em torno da nossa gente, nosso meio.

RESUMINDO:

1') Trabalhamos independentemente de qualquer outro grupo literário.

2») Temos perfeitamente focalizada a linha divisória que nos separa dos demais modernistas brasileiros e estrangeiros.

79

Page 80: 06. o Modernismo Brasileiro

3') Nossos processos literários são perfeitamente definidos.4*) Somos objetivistas, embora diversíssimos, uns dos outros.5») Não temos ligação de espécie alguma com o estilo e o modo

literário de outras rodas.6») Queremos deixar bem frisado a nossa independência no sentido

«escolástico».7') Não damos a mínima importância à critica dos que não nos

compreendem.E é só isso.

Henrique de Resende Ascânio Lopes Rosário Fusco Guilhermino César Cristóphoro Fonte-Boa Martins Mendes Oswaldo Abritta Camillo Soares

Francisco I. Peixoto (Verde: Cataguazes (MQ), n« 3,

novembro de 1927.)

352

Page 81: 06. o Modernismo Brasileiro

MANIFESTO ANTROPÓFAGO

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupy, or not tupy that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

1. Publicado por Oswald de Andrade no primeiro número da Revista de antropofagia. São Paulo, em 1» de maio de 1928.

81

Page 82: 06. o Modernismo Brasileiro

O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade prelógica para o Sr. Levi Bruhl estudar.

Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.

A idade do ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Oú Vilte-gaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.

354

Page 83: 06. o Modernismo Brasileiro

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropo-fágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.

Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.

Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

83

Page 84: 06. o Modernismo Brasileiro

O instinto Caraiba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de Senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipejú.

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignados. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxilio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o.

Só não há determinismo, onde há mistério. Mas que temos nós com isso?

356

Page 85: 06. o Modernismo Brasileiro

Contra as histórias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: — É a mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as eschroses urbanas. Contra os Conservatórios, e o tédio especulativo.

85

Page 86: 06. o Modernismo Brasileiro

De William James a Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + falta de imaginação + sentimento de autoridade ante a pro-curiosa (sic).

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.

O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

358

Page 87: 06. o Modernismo Brasileiro

Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.

A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura-ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor quotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo — a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema — o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: — Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o

87

Page 88: 06. o Modernismo Brasileiro

faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espirito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADE

Em PiratiningaAno 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropologia,

n' 1, ano 1, maio de 1928.

(Revista de antropofagia: São Paulo, n« 1 , 1« de maio de 1928.)

360

Page 89: 06. o Modernismo Brasileiro

NHENGAÇU VERDE AMARELO

(MANIFESTO DO VERDE-AMARELISMO, OU DA ESCOLA DA ANTA)

A descida dos tupis do planalto continental no rumo do Atlântico foi uma fatalidade histórica pré-cabra-lina, que preparou o ambiente para as entradas no sertão pelos aventureiros brancos desbravadores do oceano.

A expulsão, feita pelo povo tapir, dos tapuias do litoral, significa bem, na história da América, a proclamação de direito das raças e a negação de todos os preconceitos.

Embora viessem os guerreiros do Oeste, dizendo «ya so Pindorama koti, itamarana po anhatim, yara rama recê», na realidade não desceram com a sua Anta a fim de absorver a gente branca e se fixarem obje-tivamente na terra. Onde estão os rastros dos velhos conquistadores?

X X X

Os tupis desceram para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade.

Seu totem não é carnívoro: Anta. É este um animal que abre caminhos, e aí parece estar indicada a predestinação da gente tupi.

1. O título deste manifesto foi dado pela Revista do livro, n^ 16, 1959, que o transcreveu do Correio paulistano, de 17 de maio de 1929. O jornal, ao noticiar o documento, é que o chamou de "Nheengaçu da tribo verdamarela", no que foi seguido pelos organizadores da revista. Além disso, o texto estava assinado por Menotti dei Picchia. Plínio Salgado. Alfredo Elis. Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho, nesta ordem e não como estava nas outras edições.

89

Page 90: 06. o Modernismo Brasileiro

Toda a historia desta raça corresponde (desde o reinol Marfim Afonso, ao nacionalista «verdamarelo», José Bonifacio) a um lento desaparecer de formas objetivas e a um crescente aparecimento de forças subjetivas nacionais. O tupi significa a ausencia de preconceitos. O tapuia é o próprio preconceito em fuga para o sertão. O jesuíta pensou que havia conquistado o tupi, e o tupi é que havia conquistado para si a religião do jesuíta. O português julgou que o tupi deixaria de existir; e o português transformou-se, e ergueu-se com fisionomia de nação nova contra metrópole: porque o tupi venceu dentro da alma e do sangue do português.

O tapuia isolou-se na selva, para viver; e foi morto pelos arcabuzes e pelas flechas inimigas. O tupi socializou-se sem temor da morte; e ficou eternizado no sangue da nossa raça. O tapuia é morto, o tupi é vivo.

X X X

O mameluco voltou-se contra o índio, para destruir a expressão formal, a exterioridade aborígine; porque o que há de interior no bugre subsistirá sempre na alma do mameluco e se perpetuará nos novos tipos de cruzamento. É a fisionomia própria da gente brasileira, não fichada em definições filosóficas ou políticas, mas revelada nas tendências gerais comuns.

x x x

Todas as formas do jacobinismo na América são tapuias. O nacionalismo sadio, de grande finalidade histórica, de predestinação humana, esse é forçosamente tupi.

Jacobinismo quer dizer isolamento, portanto desagregação.

X X X

O nacionalismo tupi não é intelectual. É sentimental.-E de ação prática, sem desvios da corrente histórica. Pode aceitar as formas de civilização, mas impõe a essência do sentimento, a fisionomia irradiadora da sua alma. Sente Tupã, Tamandaré ou Aricuta atra-

362

Page 91: 06. o Modernismo Brasileiro

vés mesmo do catolicismo. Tem horror instintivo pelas lutas religiosas, diante das quais sorri sinceramente: pra quê?

Deram-lhe uma casaca da Câmara dos Comuns, durante mais de meio século, e a República encontrou-o igualzinho ao que ele já era no tempo de D. João, ou no tempo de Tiradentes.

Não combate nem religiões, nem filosofias, porque toda a sua força reside na sua capacidade sentimental.

X X X

A Nação é uma resultante de agentes históricos. O índio, o negro, o espadachim, o jesuíta, o tropeiro, o poeta, o fazendeiro, o político, o holandês, o português, o indio, o francês, os rios, as montanhas, a mineração, a pecuária, a agricultura, o sol, as léguas imensas, o Cruzeiro do Sul, o café, a literatura francesa, as políticas inglesa e americana, os oito milhões de quilômetros quadrados...

Temos de aceitar todos esses fatores, ou destruir a Nacionalidade, pelo estabelecimento de distinções, pelo desmembramento nuclear da idéia que dela formamos.

X X X

Como aceitar todos esses fatores? Não concedendo predominância a nenhum.

X X X

A filosofia tupi tem de ser forçosamente a «não filosofia». O movimento da Anta baseava-se nesse princípio. Tomava-se o índio como símbolo nacional, justamente porque ele significa a ausência de preconceito. Entre todas as raças que formaram o Brasil, a autóctone foi a única que desapareceu objetivamente. Em uma população de 34 milhões não contamos meio milhão de selvagens. Entretanto, é a única das raças que exerce subjetivamente sobre todas as outras a ação destruidora de traços caracterizantes; é a única que evita o florescimento de nacionalismos exóticos; é a raça transformadora das raças, e isso porque não declara guerra, porque não oferece a nenhuma das outras o elemento vitalizante da resistência.

91

Page 92: 06. o Modernismo Brasileiro

X X X

Essa expressão de nacionalismo tupi, que foi descoberta com o movimento da Anta (do qual resultou um sectarismo exagerado e perigoso), é evidente em todos os lances da vida social e política brasileira.

Não há entre nós preconceitos de raças. Quando foi o 13 de Maio, havia negros ocupando já altas posições no país. E antes, como depois disso, os filhos de estrangeiros de todas as procedências nunca viram os seus passos tolhidos.

Também não conhecemos preconceitos religiosos. O nosso catolicismo é demasiadamente tolerante, e tão tolerante, que os próprios defensores extremados dele acusam a Igreja Brasileira de ser uma organização sem força combativa (v. Jackson Figueiredo ou Tris-tão de Athayde).

Não há também no Brasil o preconceito político: o que nos importa é a administração, no que andamos acertadíssimos, pois só assim consultamos as realidades nacionais. Os teoristas da República foram os que menos influíram na organização prática do novo regime. No Império, o sistema parlamentar só se efetivou pela interferência do Poder Moderador. Dentro da República os que mais realizam são os que menos doutrinam. Ainda agora, nas plataformas dos nossos candidatos, não procuramos os traços de uma ideologia política, porém o que nos interessa é apenas a diretriz da administração.

País sem preconceitos, podemos destruir as nossas bibliotecas, sem a menor conseqüência no metabolismo funcional dos órgãos vitais da Nação. Tudo isso, em razão do nacionalismo tupi, da não-filosofia, da ausência de sistematizações.

X X X

Somos um pais de imigração e continuaremos a ser refúgio da humanidade por motivos geográficos e econômicos demasiadamente sabidos. Segundo os de Re-clus, cabem no Brasil 300 milhões de habitantes. Na opinião bem fundamentada do sociólogo mexicano Vas-concelos, é de entre as bacias do Amazonas e do Prata que sairá a «quinta raça» a «raça cósmica», que realizará a concórdia universal, porque será filha das dores e das esperanças de toda a humanidade. Temos de construir essa grande nação, integrando na Pátria

364

Page 93: 06. o Modernismo Brasileiro

Comum todas as nossas expressões históricas, étnicas, sociais, religiosas e políticas. Pela força centrípeta do elemento tupi.

Mas, se o tupi se erigir em filosofia, criará antagonismos, provocará dissociação, será uma força centrífuga. E o Brasil falhará, pois precipitará acontecimentos.

Toda e qualquer sistematização filosófica entre nós será tapuia (destinada a desaparecer assediada por outras tantas doutrinas) porque viverá a vida efêmera das formas ideológicas de antecipação, das fórmulas arbitrárias da inteligência, tendo necessidade de criar uma exegese específica, unilateral e sem a amplitude dos largos e desafogados pensamentos e sentimentos americanos e brasileiros.

X X X

Foi o índio que nos ensinou a rir de todos os sistemas e de todas as teorias. Criar um sistema em nome dele será substituir a nossa intuição americana e a nossa consciência de homens livres por uma mentalidade de análise e de generalização características dos povos já definidos e cristalizados.

A continuação do caminho histórico tupi só se dará pela ausência de imposições temáticas, de imperativos ideológicos. O arbítrio mental não pode sobrepor-se às fatalidades cósmicas, étnicas, sociais ou religiosas.

X X X

O estudo do Brasil já não será o estudo do índio. Do mesmo modo que o estudo da humanidade, que produziu o budismo, o cristianismo, a Grécia, a Idade Média, o romantismo e a eletricidade, não será apenas a pesquisa freudiana do homem da pedra lascada. Se Freud nos dá um algarismo, a história da Civilização nos ofereceu uma equação em que esse algarismo entra tão-só como um dos muitíssimos fatores.

Assim, também o índio é um termo constante na progressão étnica e social brasileira; mas um termo não é tudo. Ele já foi dominado, quando se agitou entre nós a bandeira nacionalista, — o denominador comum das raças adventícias. Colocá-lo como numerador seria diminuí-lo. Sobrepô-lo será fadá-lo ao desaparecimento. Porque ele ainda vive, subjetivamente, e viverá sempre

93

Page 94: 06. o Modernismo Brasileiro

como um elemento de harmonia entre todos os que, antes de desembarcar em Santos, atiraram ao mar, .como o cadáver de Zaratustra, os preconceitos e filosofías de origem.

Estávamos e estamos fartos da Europa e proclamamos sem cessar a liberdade de ação brasileira.

X X X

Há uma retórica feita de palavras, como há uma retórica feita de idéias. No fundo, são ambas feitas de artifícios e esterilidades.

Combatemos, desde 1921, a velha retórica verbal, não aceitamos uma nova retórica submetida a três ou quatro regras, de pensar e de sentir. Queremos ser o que somos: brasileiros. Barbaramente, com arestas, sem auto-experiências científicas, sem psicanálises e nem teoremas.

X X X

Convidamos a nossa geração a produzir sem discutir. Bem ou mal, mas produzir. Há sete anos que a literatura brasileira está em discussão. Procuremos escrever sem espírito preconcebido, não por mera ex-periência de estilos, ou para veicular teorias, sejam elas quais forem, mas com o único intuito de nos revelarmos, livres de todos os prejuízos.

A vida, eis o que nos interessa, eis o que interessa à grande massa do povo brasileiro. Em sete anos a geração nova tem sido o público de si mesmo. O grosso da população ignora a sua existência e se ouve falar em movimento moderno é pelo prestígio de meia dúzia de nomes que se impuseram pela força pessoal de seus próprios talentos.

X X X

O grupo «verdamarelo», cuja regra é a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder; cuja condição é cada um interpretar o seu país e o seu povo através de si mesmo, da própria determinação instintiva; — o grupo «verdamarelo», à tirania das sistematizações ideológicas, responde com a sua alforria e a amplitude sem obstáculo de sua ação brasileira. Nosso nacionalismo é de afirmação, de colaboração coletiva, de igualdade dos povos e das raças, de liberdade do pensamento, de crença na predestinação

366

Page 95: 06. o Modernismo Brasileiro

do Brasil na humanidade, de fé em nosso valor de construção nacional.

Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quarto séculos, a alma da nossa gente, através de todas as expressões históricas.

Nosso nacionalismo é «verdamarelo» e tupi. O objetivismo das instituições e o subjetivismo da gente sob a atuação dos fatores geográficos e histórico.

Correio Paulistano, 17 de maio de 1929.

(In Revista do livro: Rio. n» 16, I.N.L., 1959.)

95

Page 96: 06. o Modernismo Brasileiro

LEITE CRIÓLO *

1. «LEITE CRIOLO»

Nós todos mamamos naqueles peitos fartos de vida e estragados de sensibilidade. Em vez da alegria nos pegou mas foi a tristeza banzativa que não cuida de milhorar. Até hoje não tivemos a peneiração de quanta coisa feita nos amolece a vontade de responder à terra. Ele (E'lê, no original) grita por nós como o pai carecendo de ver no filho um bocado do seu quê, do seu feitio, e não encontra — agarrado da mais bonita vontade de encontrar. Envelhecemos por obra do que foi ajuntado ao corpo. Dado de boa vontade, porém sem força pra esbanjar.

De uma feita um sujeito chamado Richet gritou na França que o negro só presta pra duas coisas no mundo: «fabricar» uréia e gás carbono (sic). Ao brasileiro ele deu mais do que isso. E é justamente esse mais do que isso que nós não queremos dele.

Que foi? Que não foi? A gente vai deve escolher. Atiçar longe a causa de estar por uma dependura. E depois cair no que serve.

Arranjemos um processo de desnatar. A manteiga gostosa é a fala deles que nós queremos bem. Queremos bem como se fosse o presente meio forçado do seu trabalho. Mas nem todo despotismo (está desptismo)

1. O Jornal Leite crlêlo, de Belo Horizonte, cujo primeiro número saiu em 13 de maio .de 1929, constitui dentro das aberturas do modernismo uma das primeiras preocupações com o negro, preocupação aliás que não fica muito clara, se contra ou a favor.

368

Page 97: 06. o Modernismo Brasileiro

de presente se bota na sala pra gozo das visitas. Alguns vão pro fundo da mala. Bem-querer a todos tem sido a enorme falta nossa.

GUILHERMINO CESAR

2. «CONVITE»

Não queremos ser mais a tradução literal da nostalgia do negro. A terra é quente. Circulação larga. Tudo se desdobrando em força sobre força. Menos o homem. Sempre nostálgico. Lerdo até. Nostalgia que nos torna apático. Resultado da má formação da nossa raça. Erro de uma aberração. Erro que vivia dizimando a alma da nossa gente. Herança danada que nos legou o preto saudoso (está sudoso) da pátria. Precisamos nos curar desse grande mal. Moléstia grave como quê. Defesa da alegria contra seus inimigos. Isto é que é. Voltando, porém, atrás. Porque o inimigo, aqui, anda de trás do toco. Pega a gente pelas costas. E não é só contra ele não. Também contra o português. Por ser culpado. Contra ele cheio de cubiça quando veio praqui ser parasita da terra nova. E inventou o mal. Só conseguiu ser parasita do índio, escravizando-o. Mas o índio não foi besta. Se fez de fraco. Precisava, então, de tronco. Correu pra áfrica. Negros em pencas chegando. Negocião. E o negro ficou mesmo sendo tronco grosso. Porém preso. E cobria de luxo os dias compridos de fartura dos senhores de engenhos, das Yayás e dos Yoyôs. Agora ele está aí que não vale nada. Nem tronçp, nem parasita da boa. Vive espalhado pela terra criôla. Como mata-pasto. Mas está. Estigma que perdura no caráter da nacionalidade.

Vamos mudar de marca.

Vamos?

ACH1LES VIVACCUA (Leite Criõlo, Belo Horizonte, 13 de

maio de 1929.)

97

Page 98: 06. o Modernismo Brasileiro

PROCURA DA POESIA1

Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina.As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais

não contam.Não faças poesia com o corpoesse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão

lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor noescuro são indiferentes.Nem me reveles teus sentimentos,que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o

segredo das casas. Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade.Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.

1. Metapoema — verdadeiro manifesto de Carlos Drummond de Andrade, publicado no Correio da manhã, de 16-1-1944 c depois, em A Rosa do povo, em 1945.

370

Page 99: 06. o Modernismo Brasileiro

Não dramatizes, não invoques,não indagues. Não percas tempo em mentir.Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de famíliadesaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhastua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.Lá estão os poemas que esperam ser escritos.Estão paralisados, mas não há desespero,há calma e frescura na superfície intacta.Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.Espere que cada um se realize e consumecom seu poder de palavrae seu poder de silêncio.Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-ocomo ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada umatem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Repara:ermas de melodia e conceito,elas se refugiaram na noite, as palavras.Ainda úmidas e impregnadas de sono,rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

(ANDRADE, Carlos Drummond àt. In A Rosa do povo. OBRA COMPLETA Rio, Aguilar, 1964.>

99

Page 100: 06. o Modernismo Brasileiro

MANIFESTO PARA NÃO

SER LIDO*

Os versos são experiências e é preciso ter vivido muito para escrever um só verso.

RAINER MARIA RILKE

Deveria existir maior variedade de empreendimentos e experiências de que todos participassem. Não sendo assim, as influências que a alguns educam para senhores, educariam a outros para escravos. E a experiência de cada uma das partes perde em significação quando não existe o livre entrelaçamento das várias atividades da vida. Uma separação entre a classe privilegiada e a classe submetida impede a endosmose da experiência. Os males que por essa causa afetam a classe superior são menos materiais e menos perceptíveis, mas. igualmente reais. Sua cultura tende a tornar-se estéril, a voltar-se para se alimentar de si mesma; sua arte torna-se uma ostentação espetaculosa e artificial; sua riqueza se transmuda em luxo; seus conhecimentos super-especializam-se; e seus modos e hábitos se tornam mais artificiais do que humanos.

JOHN DEWEY

O vivo interesse que em mim despertam os acontecimentos que se preparam e particularmente a situação da Rússia, me afasta das preocupações literárias.

1. Manifesto (colagem de textos teóricos) da revista Içaquim, Curitiba, de abril de 1946. Segundo Cassiana L. de Lacerda Carollo é de "autoria" de Erasmo Pilotto, um dos diretores da revista fundada por Dalton Trevisan.

372

Page 101: 06. o Modernismo Brasileiro

Certamente, acabo de reler ANDRÔMACA de Racine com indivisível encanto, porém, no novo estado em que habita o meu pensamento, esses esquisitos jogos não terão mais razão para existir. Eu me repito a mim mesmo sem cessar que a época em que poderiam florescer a literatura e as artes já passou.

ANDRÉ G1DE

. . . eu me domo, o pé sobre a garganta de minha própria canção.

MAIAKOVSKI

. . . toda a época moderna, desde o Renascimento, revela-se um período de decadência da cultura cristã e de transição para uma nova cultura, mal perceptível ainda em suas linhas gerais, e que poderíamos, qualquer que venha a ser a sua forma definitiva, (democracia social, nacional-socialismo, comunismo, Encíclica Rerum Novarum, etc.) denominar cultura socialista.

. . . Estamos em cheio no período de aculturação, de desintegração cultural. Que se perdeu nesse contato entre a civilização cristã moribunda e a cultura em gestação que não sabemos ainda exatamente como será? Perdemos as regras da vida, a moral, a confiança em nós, a certeza da eficiência de nossas soluções. Que veio substituir isso tudo? A consciência da contradição entre a nossa moral e a realidade do mundo, a evidência da hipocrisia dà regra do jogo, o ceticismo e o cinismo. À margem das duas culturas, observando o panorama da confusão, percebendo-o, mas ao mesmo tempo incapazes de alterar a marcha. do terrível processo desintegrador e integrador, os homens marginais se desligam dia a dia de sua sociedade.

. . . Observei a que ponto, ao atingir-se o período impressionista, a arte perdeu por completo, na forma e no espírito, a sua função comunicativa, a sua função de linguagem dentro do grupo. Mostrei que de meio utilitário de comunicação passou a exprimir apenas os sentimentos de subgrupos, a posição marginal destes na sociedade. Essa função restrita, dia a dia menos universal, vai afastar ainda mais a arte de seu objetivo primeiro. Mesmo nos subgrupos ela deixará de ser entendida por todos, ela passará pouco a pouco a

101

Page 102: 06. o Modernismo Brasileiro

instrumento de expressão individual, de nenhuma utilidade para os demais membros do todo social. Observei também que na medida em que essa perda de representatividade se verifica, as preocupações técnicas aumentam, o desprezo pelo assunto se manifesta, e o pintor se isola dentro de limites impossíveis de se transpor pelos não iniciados.

. . . Talvez já nos encontremos em plena subida para o novo clima social... Tudo leva a crer que assim seja. O artista sensível, antes marginal, assume agora a liderança e fala numa nova linguagem que ainda não conhece gramáticas. Do México e dos Estados Unidos, da Espanha e da Rússia vêm-nos exemplos de um muralismo triunfante, perfeitamente funcional através do qual se dizem ao povo coisas importantes e de um modo acessível a qualquer sensibilidade e a qualquer educação. Coisas sobretudo que representam um sentir igual, uma ambição comum, preocupações e angústias coletivas. A pintura deixa de ser CHOCHET grã-fino dos salões mundanos e se transforma na rude afirmação de força construtiva, de fé numa nova moral e numa nova ciência. Enquanto os velhos estetas se desprendem da vida, os novos pintores recolocam a vida em sua arte. Já não se vislumbram entre os NOVOS aquele desdém SUPERIOR ao assunto, aquele desprezo infantil ao inteligível, aquela propensão para um esoterismo barato de folhinha astrológica... Isso significa apenas volta ao princípio essencial da arte, à expressão.

SÉRGIO MILLIET

Os futuros historiadores chamarão, talvez, à nossa época: o SÉCULO DO SUBCONSCIENTE.

Reconhecemos no movimento histórico uma revolução perpétua, vagarosa, sem barulho revolucionário, mas inelutável; reconhecemos que a dialética, instrumento de compreensão, é, ao mesmo tempo, instrumento de ação; e chegamos à conclusão de Ernst Cysarz: HISTÓRIA É UM ATO PRATICO. Isto é o fio condutor para a compreensão da história contemporânea. O novo continente do subconsciente, apesar da sua descoberta (ou redescoberta) recente, não pertence ao mundo de amanhã, mas ao mundo de ontem. Estou convencido de que a crítica literária reconhecerá no mundo literário

374

Page 103: 06. o Modernismo Brasileiro

de Joyce e Wolf não a aurora de uma nova literatura, mas o último produto, requintado e malogrado, de uma literatura muito velha. E esse reconhecimento literário produz conclusões transcendentes. A HISTÓRIA É UM ATO PRATICO. Acabamos de DESCOBRIR UM NOVO UNIVERSO; agora trata-se de dominá-lo. Quanto à literatura, novas transformações estilísticas estão a postos. E as transformações integrais do estilo literário têm sempre um sentido profundo.

OTTO MARIA CARPEAUX

Em verdade, eu tenho demoradamente refletido sobre o pedido de Griffin a respeito de uma EXPOSIÇÃO DE PRINCÍPIOS relativos a arte dos versos, etc. E pude tirar de minha consciência somente esta conclusão: Tudo é belo e bom quando é belo e bom, venha de onde vier e tenha sido obtido pelo processo que for. Clássicos, românticos, decadentes, símbolos, asso-nantes ou como direi? incompreensíveis, desde que eles me comovam ou simplesmente me encantem, mesmo e talvez sobretudo sem que, como o Dindon de Florian, eu não saiba bem por que, todos eles me são caros. Vamos, poetas que somos, amemo-nos uns aos outros, esta máxima é tão bela em arte como na moral, e eu creio que a ela nos devemos ater. Tal é a minha teoria, maduramente assente.

PAUL VERLAINE

(Joaquim: Curitiba, n? 1, abril de 1946.)

103

Page 104: 06. o Modernismo Brasileiro

ORFEU

Dentro do sentido dinâmico que configura as atividades da inteligencia no território da arte e da cultura, ORFEU aparece, reunindo colaborações de jovens escritores e artistas brasileiros, muitos dos quais ainda completamente desconhecidos até mesmo pelos seus companheiros de geração.

Acreditamos muito pouco na importância que se concede às gerações, e ao seu sentido de reconstrução e reaparelhamento literário. Sabemos que, atrás dos agrupamentos, se oculta a única coisa que salva o efêmero dos movimentos coletivos: a contribuição pessoal, que guarda e reflete o pensamento comum.

Em ORFEU colaborarão jovens de todas as tendências ou zonas geográficas, desde que possuam as corajosas imperfeições da juventude e o frêmito de ter uma mensagem a comunicar.

É inútil ignorar que novas presenças estão surgindo, na poesia, no ensaio, no romance e nas artes plásticas, e serão elas as continuadoras do movimento ainda precário da inteligência brasileira. A essas vozes novas não poderiam deixar de corresponder revistas como esta.

Uma geração só começa a existir no dia em que não acredita nos que a precederam, e só existe realmente no dia em que deixam de acreditar nela. O modernismo e o pós-modernismo, que fixam o maior período de densidade, pesquisa e criação já atingidos no Bra-

1. Editorial do primeiro número da revista Orfeu, redigido por Ledo Ivo, na primavera de 1947.

376

Page 105: 06. o Modernismo Brasileiro

sil, comprovam hoje a existência de um novo movimento cultural, ainda incerto em sua significação e em seus objetivos.

Essa incerteza somos nós. O tempo não nos construiu ainda, ignoramos o que seremos — é a vertigem de vir a ser que nos tenta e nos congrega.

Nosso programa resume-se em apresentar aos que porventura nos lerem alguns nomes que não se explicam, mas «acontecem», como fatos normais da vida e do tempo.

Somos novos. E isso nos basta como uma certeza, porque nos define. Em uma revista de novos, não se pode exibir um espirito já perfeitamente formado, o esplendor de si mesmo, a gostosa suficiência do que se chama vulgarmente de «figura literária». Enquanto formos novos, seremos inacabados.

As gerações se sucedem normalmente, como os dias e as noites. Nessa encruzilhada é que nos situamos: insatisfeitos com os que vieram antes, e procurando fixar em nossa mensagem alguma coisa que é ainda intraduzível, quase informulável. Esse algo que buscamos transmitir, como uma interpretação do mundo e uma explicação para as nossas vidas, é o que justifica o aparecimento de ORFEU.

É à descoberta e à invenção que aspiramos, unidos nesse programa de criação artística, e infinitamente separados nos métodos de executá-lo.

(Orfeu: Rio, n» 1, primavera de 1947.)

105

Page 106: 06. o Modernismo Brasileiro

POESIA E COMPOSIÇÃO — A INSPIRAÇÃO E O

TRABALHO DE ARTE*

A composição, que para uns é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; que para uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura, segundo uns e outros se aproximem dos extremos a que se pode levar o enunciado desta conversa, a composição é, hoje em dia, assunto por demais complexo e falar da composição, tarefa agora dificílima, se quem fala preza, em alguma medida, a objetividade.

Não digo isso somente por me lembrar das dificuldades que podem resultar da falta de documentação sobre o trabalho de composição da grande maioria dos poetas. O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas. Nos poetas daquela família, para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exercitam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força — é feita de mil fracassos, de truques de que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir.

No que diz respeito à outra familia de poetas, a dos que encontram a poesia, se não é a humildade ou o pudor que os fazem calar, a verdade é que pouco

1. Conferência que João Cabral de Melo Neto pronunciou na Biblioteca de São Paulo, em 13-11-1932, num curso de Poética promovido pelo Clube de Poesia do Brasil.

378

Page 107: 06. o Modernismo Brasileiro

têm a dizer sobre a composição. Os poemas neles são de iniciativa da poesia. Brotam, caem, mais do que se compõem. E o ato de escrever o poema, que neles se limita quase ao ato de registrar a voz que os sur-preende, é um ato mínimo, rápido, em que o poeta se apaga para melhor ouvir a voz descida, se faz passivo para que, na captura, não se derrame de todo esse pássaro fluido.

A dificuldade maior, porém, não está aí. Está em que, dentro das condições da literatura de hoje, é impossível generalizar e apresentar um juízo de valor. É impossível propor um tipo de composição que seja perfeitamente representativo do poema moderno e capaz de contribuir para a realização daquilo que se exige modernamente de um poema. A dificuldade que existe neste terreno é da mesma natureza da contradição que existe, hoje em dia, na base de toda atividade crítica.

Na verdade, a ausência de um conceito de literatura, de um gosto universal, determinados pela necessidade — ou exigência — dos homens para quem se faz a literatura, vieram transformar a crítica numa atividade tão individualista quanto a criação propriamente. Isto é, vieram transformá-la no que ela é hoje, antes de tudo, — a atividade incompreensiva por excelência. A crítica que insiste em empregar um padrão de julgamento é incapaz de apreciar mais do que um peque-níssimo setor das obras que se publicam — aquele em que esses padrões possam ter alguma validade. E a crítica que não se quer submeter a nenhum tem de renunciar a qualquer tentativa de julgamento. Tem de limitar-se ao critério de sua sensibilidade, e sua sensibilidade é também uma pequena zona, capaz de apreender o que a atinge, mas incapaz de raciocinar claramente sobre o que foi capaz de atingi-la.

Nas épocas de validade de padrões universais de julgamento, nessas épocas felizes em que é possível circular «poéticas» e «retóricas», a composição é um dos campos preferentes da atividade crítica. Então, pode o crítico falar também de técnica, pois que há uma, geral, pode dizer da legitimidade ou não de uma palavra ou de seu plural, pois que o crítico é o melhor intérprete da necessidade que determina tal obra e a função critica se exerce em função de tal necessidade. A ele cabe verificar se a composição obedeceu a determinadas normas, não porque a poesia tenha

107

Page 108: 06. o Modernismo Brasileiro

de ser forçosamente uma luta com a norma mas porque a norma foi estabelecida para assegurar a satisfação da necessidade. O que sai da norma é energia perdida, porque diminui e pode destruir a força de comunicação da obra realizada.

É evidente que numa literatura como a de hoje, que parece haver substituído a preocupação de comunicar pela preocupação de exprimir-se, anulando, do momento da composição, a contraparte do autor na relação literária, que é o leitor e sua necessidade, a existência de uma teoria da composição é inconcebível. O autor de hoje trabalha à sua maneira, à maneira que ele considera mais conveniente à sua expressão pessoal.

Do mesmo modo que ele cria sua mitologia e sua linguagem pessoal, ele cria as leis de sua composição. Do mesmo modo que ele cria seu tipo de poema, ele cria seu conceito de poema, e a partir daí, seu conceito de poesia, de literatura, de arte. Cada poeta tem sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra, nem mesmo àquelas que em determinado momento ele mesmo criou, nem a sintonizar seu poema a nenhuma sensibilidade diversa da sua. O que se espera dele, hoje, é que não se pareça a ninguém, que contribua com uma expressão original. Por isso, ele procura realizar sua obra não com o que nele é comum a todos os homens, com a vida que ele, na rua, compartilha com todos os homens, mas com o que nele é mais íntimo e pessoal, privado, diverso de todos. Para empregar uma palavra bastante corrente na vida literária de agora, o que se exige de cada artista é que ele transmita aquilo que em si mesmo é o mais autêntico, e sua autenticidade será reconhecida na medida em que não se identifique com nenhuma expressão já conhecida. Não é preciso lembrar que, para atingir essa expressão pessoal, todos os direitos lhe são concedidos de boa vontade.

Esta é a razão principal que faz difícil, ou impossível, abordar o problema da composição do mesmo ponto de vista com que se abordava na época da tragédia clássica o problema das três unidades. Não vejo como se possa definir a composição moderna, isto é, a composição representativa do poema moderno. Qualquer esforço nessa direção me parece vazio de sentido. Porque ou proporia um sistema, talvez bas-

380

Page 109: 06. o Modernismo Brasileiro

tante conseqüente mas perfeitamente limitado, sem aplicação possível a mais do que à pequena família de poetas que por acaso coincidisse com seus postulados, ou se veria condenado ao simples trabalho de catalogação — espécie de enciclopédia — das inúmeras composições antagônicas que convivem hoje, defi-níveis apenas pelo lado do avesso, — por sua impossibilidade de definição.

A composição literária oscila permanentemente entre os dois pontos extremos a que é possível levar as idéias de inspiração e trabalho de arte. De certa maneira, cada solução que ocorre a um poeta é lograda com a preponderância de um ou outro desses elementos. Mas essencialmente essas duas maneiras de fazer não se opõem. Se uma solução é obtida espontaneamente, como presente dos deuses, ou se ela é obtida após uma elaboração demorada, como conquista dos homens, o fato mais importante permanece: são ambas conquistas de homem, de um homem tolerante ou rigoroso, de um homem rico de ressonância ou de um homem pobre de ressonâncias. Por este lado, ambas as idéias se confundem, isto é, ambas visam à criação de uma obra com elementos da experiência de um homem. E embora elas se distingam no que diz respeito à maneira como essa experiência se encarna, essa distinção é acidental — pois a prática, e através dela o domínio técnico, tende a reduzir o que na espontaneidade parece domínio do misterioso e a destruir o caráter de coisa ocasional com que surgem aos poetas certos temas ou certas associações de palavras.

O que observamos no trabalho de criação de cada artista individual pode ser observado também na história da literatura — ela também parece desenvolver-se numa permanente oscilação entre a preponderância de uma ou outra dessas idéias. Não quero dizer com isso que vejo na luta entre essas idéias o motor da história literária. Apenas quero dizer que a composição é um domínio extremamente sensível no qual prontamente repercutem as transformações que ocorrem na história literária. Isto é — a predominância de um ou outro desses conceitos, o fato de que se aproximem ou se afastem, suas tendências a confundir-se ou a polarizar-se são determinados pelo conjunto de valores que cada época traz em seu bojo. Quanto à nossa época, sua originalidade parece estar em que a polarização mostra-

109

93

Page 110: 06. o Modernismo Brasileiro

se maior do que nunca e em que, no lugar da preponderancia de uma ou outra dessas idéias, presenciamos à coexistencia de uma infinidade de atitudes intermediárias, organizando-se a partir das posições mais extremas a que já se chegou na historia da composição artística.

Não estou esquecido de que, neste assunto, temos de levar em conta um fator importantíssimo — a psicologia pessoal de cada autor. É inegável que existem autores fáceis, CUJQ interesse estará sempre em identificar facilidade com inspiração, e autores difíceis, pouco espontâneos, para quem a preocupação formal é uma condição de existência. E é inegável também que a disposição psicológica de cada autor, ou melhor, o fato de pertencer a uma ou outra dessas famílias, tem de refletir-se não só nas qualidades propriamente artísticas de sua poesia, mas, sobretudo, na sua concepção de poesia e de arte poética. Não será inexata a descrição de um autor difícil como um autor que desconfia de tudo o que lhe vem espontaneamente e para quem tudo o que lhe vem espontaneamente soa como eco da voz de alguém. Por outro lado, o autor espontâneo verá sempre os trabalhos de composição como alguma coisa inferior, ou mesmo sacrílega, e a menor mudança de palavras como alguma coisa que compromete o poema de irremediável falsidade.

Esses traços psicológicos são um fator importante, não há dúvida, e em nosso tempo, um fator primordial. Mas a verdade é que eles tendem a confundir-se se literatura de determinada época corresponde a uma visão estética comum. Nesses momentos de equilíbrio — entre os quais não poderemos em absoluto colocar nosso tempo — esses traços pessoais não têm força suficiente para se constituírem em «teoria» da composição de seus autores, como se dá hoje. Ela é estabelecida por meio de uma dupla relação — de autor a leitor, de leitor a autor. O temperamento natural do autor, conforme a exigência da época, terá de ser mais ou menos subordinado, mais ou menos dominado. Mas ele jamais será ponto de partida; será sempre uma influência incômoda contra a qual o autor tem de lutar.

Em nosso tempo, como não existe um pensamento estético universal, as tendências pessoais procuram se afirmar, todo-poderosas, e a polarização entre as idéias

382

Page 111: 06. o Modernismo Brasileiro

de inspiração e trabalho de arte se acentua. Como a expressão pessoal está em primeiro lugar, não só tudo o que possa coibi-la deve ser combatido, como principalmente, tudo o que possa fazê-la menos absolutamente pessoal. A inspiração e o trabalho de arte extremos são defendidos ou condenados em nome do mesmo princípio. É em nome da expressão pessoal, e para lográ-la, que se valoriza a escrita automática e é ainda em nome da expressão pessoal que se defende a absoluta primazia do trabalho intelectual na criação, levado a um ponto tal que o próprio fazer passa a justificar-se por si só, e torna-se mais importante do que a coisa a fazer.

Por tudo isso, se quisermos falar das idéias que prevalecem hoje em matéria de composição literária, temos de partir da consideração dos fatores pessoais. Podemos verificar que o conceito de composição de cada artista, da mesma maneira que seu conceito de poema, é determinado pela sua maneira pessoal de trabalhar. Libertando da regra, que lhe parece, e com razão, perfeitamente sem sentido, porque nada parece justificar a regra que lhe propõem as academias, o jovem autor começa a escrever instintivamente, como uma planta cresce. Naturalmente, ele será ou não um homem tolerante consigo mesmo, e esse homem que existe nele vai determinar se o autor será ou não um autor rigoroso, se pensará em termos de poesia ou em termos de arte, se se confiará à sua espontaneidade ou se desconfiará de tudo o que não tenha submetido antes a uma elaboração cuidadosa.

O espetáculo da sociedade aparecerá a esse jovem autor coisa muito confusa e ele não saberá descobrir, nela, a direção do vento. Por isso, preferirá recorrer ao espetáculo da literatura. A partir da vida literária que se está fazendo no momento, ele fundará sua poesia. O confrade lhe é mais real do que o leitor. Ora, no espetáculo dessa vida literária ele pode encontrar autores justificando todas as suas inclinações pes-soais, críticos para teorizar sobre sua preguiça ou sua minúcia obsessiva, grupos de artistas com que identificar-se e a partir de cujo gosto condenar todo o resto. Aí começa a descoberta de sua literatura pessoal. Essa descoberta é curiosa de acompanhar-se. Primeiro, o jovem autor vai procurando-se entre os autores de seu tempo, identificando-se primeiro com uma tendência,

111

Page 112: 06. o Modernismo Brasileiro

depois com um pequeno grupo já de orientação bem definida, depois com o que ele considera o seu autor, até o dia em que possa dar expressão ao que nele é diferente também desse seu autor. É então neste momento, em que depois da volta ao mundo se redescobre, com uma nova consciência, a consciência do que o distingue, do que nele é autêntico, consciência formada à custa da eliminação de tudo o que ele pode localizar em outros, que o jovem autor pensa ter desencavado aquele material especialíssimo, e exclusivo, com que construir a sua literatura.

Já que é impossível apresentar um tipo ideal de composição, perfeitamente válido para o poema moderno e capaz de contribuir para a realização do que se exige modernamente de um poema, temos de nos limitar ao estudo do que as idéias opostas de inspiração e trabalho artístico trouxeram à poesia de hoje. Na literatura atual, a polarização entre essas idéias chegou a seus pontos mais extremos e é a partir desses extremos que se organizam as idéias hoje correntes sobre composição. Também cabe salientar que essas posições extremas não estão ocupadas por um só conceito de inspiração e por uma só atitude radical de trabalho de arte. A inspiração será identificada por uns como uma presença sobrenatural — literalmente — e a inspiração pode ser localizada por debaixo das justificação científica para o ditado absoluto do inconsciente. Trabalho de arte pode valer a atividade material e quase de joalheria de construir com palavras pequenos objetos para adorno das inteligências sutis e pode significar a criação absoluta, em que as exigências e as vicissitudes do trabalho são o único criador da obra de arte.

É a partir desses pontos extremos que tentaremos esboçar as idéias que prevalecem hoje a respeito da composição literária.

No autor que aceita a preponderância da inspiração o poema é, em regra geral, a tradução de uma expe riência direta. O poema é o eco, muitas vezes imediato, dessa experiência. É a maneira que tem o poeta de reagir à experiência. O poema traduz a experiência, transcreve, transmite a experiência. Ele é então como um resíduo e neste caso é exato empregar a expressão «transmissor» de poesia. Por outro lado, o que também caracteriza essa experiência é o fato de ser única. Ela

384

Page 113: 06. o Modernismo Brasileiro

ou é expressada no poema, confessada por meio dele, ou desaparece. A experiência, nesse tipo de poetas, cria o estado de exaltação (ou de depressão) de que ele necessita para ser compelido a escrever. Geralmente, esses poemas não têm um tema objetivo, exterior. São a cristalização de um momento, de um estado de espírito. São um corte no tempo ou um corte num assunto. Porque se em alguma circunstância ele vier a ser provocado por um tema e se cristalizar em torno de um tema, podereis observar que ele jamais abarcará esse mesmo tema, completa e sistematicamente. Do assunto ou do tema, ele mostrará apenas um aspecto particular, o aspecto que naquele momento foi iluminado por aquela experiência.

Quase sempre, tais poemas são mal construídos. Sua estrutura não nos parece orgânica. O poema ora parece cortar-se ao meio, ora parece levar em si dois poemas perfeitamente delimitados, ora três, ora muitos poemas. A experiência vivida não é elaborada artisticamente. Sua transcrição é anárquica porque parece reproduzir a experiência como ela se deu, ou quase. E uma experiência dessa ordem jamais se organizará dentro das regras próprias da obra artística. Em tais autores o trabalho artístico é superficial. Ele se limita quase sempre ao retoque posterior ao momento da criação. Quase nunca esse retoque vai além da mudança de uma expressão ou de uma palavra, jamais atingindo o ritmo geral ou a estrutura do poema.

É comum a tendência de querer condenar tais poetas jogando-lhes as acusações de preguiça ou incapacidade ou falta de gosto artístico. Em geral, essas críticas são injustas. Tais autores não colocam o contrário desses defeitos entre as qualidades de um poema. Eles jamais pretendem criar um objeto artístico, capaz de provocar no leitor um efeito previsto e perfeitamente controlado pelo criador. A poesia para eles é um estado subjetivo pelo qual certas pessoas podem passar e que é necessário captar, tão fielmente quanto possível. Tão fielmente, isto é, tentando reproduzir a impressão por que passaram. Para eles, o trabalho de organizar essa impressão só poderia prejudicar sua autenticidade. Nesse texto elaborado, o poeta já não reconheceria a experiência por que passou e a partir daí concluiria que o leitor também não poderia perceber. A existência objetiva do poema, como obra de arte, não tem sentido

113

Page 114: 06. o Modernismo Brasileiro

para ele. O poema é um depoimento e quanto mais direto, quanto mais próximo do estado que o determinou, melhor estará. A obra é um simples transmissor, um pobre transmissor, o meio inferior que ele tem de dar a conhecer uma pequena parte da poesia que é capaz de vir habitá-lo.

Para ele, o autor é tudo. É o autor que ele comunica por debaixo do texto. Quer que o leitor sirva-se do texto para recompor a experiência, como um animal pré-histórico é recomposto a partir de um pequeno osso. A poesia deles é quase sempre indireta. Ela não propõe ao leitor um objeto capaz de lhe provocar uma emoção definida. O poema desses poetas é o resíduo de sua experiência e exige do leitor que, a partir daquele resíduo, se esforce para colocar-se dentro da experiência original.

Essa espécie de poesia, geralmente, e hoje em dia sobretudo, atinge mais facilmente o leitor. Ela é escrita em linguagem corrente, não por amor à linguagem corrente, mas como um resultado de sua pouca ela-boração. Também porque é pouco elaborada ela desdenha completamente os efeitos formais e tudo o que faça apelo ao esforço e à inteligência. Por outro lado, o tom nela é essencial. É através do tom, de suas qualidades musicais, e não qualidades intelectuais ou plásticas, que ela tenta reproduzir o estado de espírito em que foi criada. Muitas vezes, mais do que pelas palavras é pela entonação que o autor penetra em sua atmosfera. É uma poesia que se lê mais com a distração do que com a atenção, em que o leitor mais deslisa sobre as palavras do que as absorve. Vagamente, para captar das palavras, sua música. É uma poesia para ser lida mais do que para ser relida.

À literatura contemporânea essa atitude veio trazer um desprezo considerável pelos aspectos propriamente artísticos da poesia. Ela é completamente incapaz de dar à obra de arte certas qualidades como proporção, objetividade. Ela é desequilibrada como a experiência que diretamente transmite e tudo o que é a funcionalidade do trabalho de arte, isto é, todos os recursos de que a inteligência ou a técnica pode servir-se para intensificar a emoção, é deixado de lado. Esse sentido do trabalho artístico é inconcebível para ela. Toda interferência intelectual lhe parece baixa interferência humana naquilo que imagina quase divino. Outro aspecto importante a que visa o trabalho artístico, a saber,

386

Page 115: 06. o Modernismo Brasileiro

o de desligar o poema de seu criador, dando-lhe uma vida objetiva independente, uma validade que para ser percebida dispensa qualquer referência posterior à pessoa de seu criador ou às circunstâncias de sua criação, tudo isso lhe é completamente inimigo. Neles o poema não se desliga completamente de seu autor.

Esse traço aliás pode ser facilmente observado hoje em dia. Mais do que nunca, temos o escritor que se dá em espetáculo juntamente com sua obra. Às vezes mais diretamente do que em sua obra, — por fora de sua obra. Como o valor essencial da obra é a expressão de uma personalidade, como a obra será tanto mais forte quanto mais exclusiva a personalidade nela presente, o indivíduo que escreve tende a suplantar em interesse a coisa escrita. O que se procura é o homem raro, lêem-se homens. Está claro que nesse tipo de escritores vamos encontrar todos os adeptos da sinceridade e da autenticidade a qualquer preço, para quem essas palavras significam cinismo e deformação, vamos encontrar os mórbidos, os místicos, os invertidos, os irracionalistas e todas as formas de desespero com que um grande número de intelectuais de hoje fazem sua profissão de descrença no homem.

A predominância do conceito de inspiração podemos atribuir a responsabilidade de uma atitude bastante comum na literatura de hoje, particularmente na literatura brasileira. É a atitude do poeta que espera que o poema aconteça, sem jamais forçá-lo a «desprender-se do limbo». De certo modo se pode afirmar que quase toda a poesia que se escreve hoje no Brasil, ou a parte mais numerosa dela, é uma poesia bissexta, e que se perdeu completamente o gosto pelo poema que não seja de circunstância. Não falo de poemas refletindo a circunstância ambiente, mas de poemas determinados por uma circunstância fortuita na vida do autor. Esse conceito de circunstância geralmente põe em movimento as zonas mais limitadamente pessoais do poeta. A atitude deste é sempre a espera de que o poema se dê, de que se ofereça, com seu tema e sua forma. Essa atitude pode ser encontrada até nos poetas que mais conscientemente dirigem a escrita de seu poema. Eles dirigem seu poema, a feitura do poema que a circunstância lhe dita. Jamais dirigem o motivo de seu poema, jamais se impõem o poema. O que desejam, e esperam, é o poema absolutamente

115

Page 116: 06. o Modernismo Brasileiro

necessário que se propõe com uma tal urgência que é impossível fugir-lhe. Isto poderia ser uma definição do poeta bissexto, em quem as reservas de experiência parecem mínimas e que jamais pode encontrar em si mesmo o material com que construir os poemas que a necessidade do homem lhe ordene.

Daí — e esta é uma conseqüência também da predominância da teoria da inspiração — advém, sobretudo entre os poetas, uma certa repulsa ao sentido profissional da literatura. Esta palavra profissional não está muito bem empregado aqui. Mas a continuação pode aclarar o meu pensamento. Falei em que esse tipo de poeta é um ser passivo que espera o poema. Note-se bem — ele não espera somente um momento propício para realizar o poema. Ele espera o poema, com seu tema e sua forma. Há nele um grande preconceito contra o poeta que se impõe um tema, contra o poeta para quem cantar tem uma utilidade e para quem cabe a essa utilidade determinar o canto. O poema é o tema do poeta bissexto. O assunto do poema é o que está dito ali. É raro o poema sobre tal ou qual objeto. Qaundo esse poema ocorre, apenas comunica, do objeto, a visão subjetiva que o poeta se formou dele. Note-se, por exemplo, a freqüência de poemas que se chamam — poema, ode, soneto, balada.

Da mesma natureza deste é o preconceito que alimentam contra o poema chamado de encomenda. Que um poeta se imponha um tema, cristalize seu poema a partir de um assunto ou de uma tese, é coisa completamente inconcebível para a moral do poeta bissexto de hoje. Não é por preconceito contra uma possível baixeza, ou banalidade, ou prosaísmo desses temas de encomenda que os poetas se revoltam. Sua poesia geralmente aborda assuntos sem categoria e os teimas que eles costumam desprezar como indignos são temas que ocuparam alguns dos poetas mais altos que já existiram — os temas da vida dos homens. O que há no fundo dessa atitude é o desprezo pela atividade intelectual, essa desconfiança da razão do homem, essa idéia de que o homem apenas sabe quebrar as coisas superiores que lhe são dadas e que nada pode por si mesmo.

Pode-se dizer que hoje não há uma arte, não há a poesia, mas há artes, há poesias. Cada arte se fragmentou em tantas artes quantos- foram os artistas

388

�8484190

Page 117: 06. o Modernismo Brasileiro

capazes de fundar um tipo de expressão original. Essa atomização não podia acontecer num período como o do teatro clássico francês. E embora caiba ao individualismo romântico a formulação de sua justificação filosófica, somente com o que se chama literatura moderna o fenômeno chegou a seu pleno desenvolvimento.

Talvez uma rápida recapitulação das atitudes do artista diante da norma artística, no período que viu nascer e crescer o fenômeno, possa ser de alguma utilidade aqui. Numa época como a do teatro clássico francês, a obediência à norma era um elemento essencial na criação. O artista era julgado na medida em que estritamente dentro da norma realizava sua obra. A qualidade estava equiparada à capacidade de desenvolver-se dentro dos padrões estabelecidos e justificava qualquer impessoalidade. No romantismo, com o deslocamento para o autor do centro de interesse da obra, as normas continuam a existir, — mas somente até um ponto, até o ponto em que não prejudicam a expressão pessoal. Se se olha o artista romântico com os mesmos olhos com que se olha um artista clássico, o primeiro parecerá tão incorreto «quanto o segundo parecerá impessoal. A partir do romantismo, estilo deixou de ser obediência às normas de estilo, mas a maneira de cada autor interpretar essas normas consagradas. Na verdade, esse foi o golpe primeiro, e a partir daí o que houve foi apenas um agravamento do fenômeno. Isto é, aquele primeiro direito de interpretar a norma estabelecida à sua maneira viria a se transformar, depois do começo deste século, no direito de criar sua norma particular.

Essa transfromação traria consigo uma conseqüência imediata: a criação de normas particulares, de poéticas individuais, se deu por meio de uma fragmentação do conjunto que antigamente constituía uma determinada arte. A criação de poéticas particulares diminuiu o campo da arte. Em vez de seu enriquecimento, assistimos à especialização de alguns de seus aspectos, pois, em última análise, a criação de poéticas particulares não passa do abandono de todo o conjunto por um aspecto particular. Esse aspecto particular passa a ser considerado pelo artista que o descobre, o valor essencial da arte, e passa a ser desenvolvido a seu ponto extremo. Para muita gente, essa especialização significa

117

Page 118: 06. o Modernismo Brasileiro

um maior aprofundamento, absolutamente necessário se se quer faze.r a arte avançar. Essas pessoas parecem contar com uma idade futura, em que todos esses aprofundamentos particulares serão aproveitados numa síntese superior. Entretanto, creio que esse aprofundamento é apenas aparente. Desde o momento em que a arte se fragmenta, desde o momento em que sua máquina é desmontada, sua utilidade, a função que aquela máquina exercia, ao trabalhar completa, logo desaparece. Os que a desmontaram têm agora consigo peças de máquinas, pedaços de máquinas, capazes de realizar pequenos trabalhos, mas incapazes de recriar aquele serviço a que a máquina inteira estava habilitada. A fragmentação da arte limita o artista forçosamente ao exercício formal. O caso da pintura moderna parece mostrar o fenômeno bastante claramente.. E mesmo o caso de certos poetas. O caso daqueles que se dedicaram, com intenções seríssimas, à exploração de certas qualidades de ressonância, ou mesmo semânticas, de palavras isoladas, isto é, de palavras que não devem servir, que não devem transmitir idéias — me parece bastante significativo. Esses mágicos, esses metafísicos da palavra acabaram todos entregues a uma poesia puramente decorativa. Se se caminha um pouco mais na direção apontada por Mallarmé, encontra-se o puro jogo de palavras.

Portanto, o que verdadeiramente existe no fundo dessa fragmentação é o empobrecimento técnico. O poeta de hoje não poderia tentar todas as experiências. Sua técnica não é o domínio de uma ampla ciência mas o domínio dos tiques particulares que constituem seu estilo. Uma vista ligeira sobre a corrente da produção literária de hoje confirma essa afirmação. A grande maioria dos livros de poesia são coleções de pequenos poemas, cristalizações de momentos especiais, em que o trabalho formal se limita ao exercício do bom gosto. Raramente se vê o esforço continuado, nem o gosto para os infinitos problemas que implica o poema que o poeta se impõe, com seu tema e sua estrutura, e que outrora levou à criação da poesia épica, do teatro em verso, do? poemas de «arte mayor» dos espanhóis.

Não se pode dizer que esse empobrecimento técnico não exista entre os membros dessa segunda família de espíritos, isto é, a daqueles que aceitam e procuram levar às últimas conseqüências o predomínio do tra-

390

Page 119: 06. o Modernismo Brasileiro

balho de arte na composição literária. Na obra deles o empobrecimento é bastante visível. Porque se é verdade que o individualismo coloca o adepto da teoria da inspiração numa posição privilegiada para captar e dar expressão ao mais exclusivo e pessoal de si mesmo, é verdade também que coloca o adepto do trabalho de arte, como elemento preponderante, numa situação sem esperança, absolutamente irrespirável.

De certa maneira, esta segunda atitude é muito menos freqüente. Na literatura brasileira, então, é raríssima, entre outras razões, porque se coloca no lado oposto ao da porta por onde entram os adeptos mais numerosos da teoria da inspiração — os filhos da improvisação. Na origem da atitude que aceita o predomínio do trabalho de arte está muitas vezes o desgosto contra o vago e o irreal, contra o irracional e o inefável, contra qualquer passividade e qualquer misticismo, e muito de desgosto, também, contra o desgosto pelo homem e sua razão. Por outro lado, não se pode negar que essa atitude pode contribuir para uma melhor realização artística do poema, pode criar o poema objetivo, o poema no qual não entra para nada o espetáculo de seu autor e, ao mesmo tempo, pode fornecer do homem que escreve uma imagem perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e é senhor de seus gestos.

Nestes poetas já o trabalho artístico não se limita ao retoque, de bom gosto ou de boa economia, ao material que o instinto fornece. O trabalho artístico é, aqui, a origem do próprio poema. Não é o olho crítico posterior à obra. O poema é escrito pelo olho crítico, por um crítico que elabora as experiências que antes vivera, como poeta. Nestes poetas, geralmente, não é o poema que se impõe. Eles se impõem o poema, e o fazem geralmente a partir de um tema, escolhido por sua vez, a partir de um motivo racionah A escrita neles não é jamais pletórica e jamais se dispara em discurso. É uma escrita lacônica, a deles, lenta, avançando no terreno milímetro a milímetro. Estes poetas jamais encaram o trabalho de criação como um mal irremediável, a ser reduzido ao mínimo, a fim de que a experiência a ser aprisionada não fuja ou se evapore. O artista intelectual sabe que o trabalho é a fonte da criação e que a uma maior quantidade de trabalho corresponderá uma maior densidade

119

Page 120: 06. o Modernismo Brasileiro

de riquezas. Quanto à experiencia, ela não se traduz neles, imediatamente em poema. Não há por isso o perigo de que fuja. Eles não são jamais os possessos de uma experiência. Jamais criam debaixo da experiência imediata. Eles a reservam, junto com sua experiência geral da realidade, para um momento qualquer em que talvez tenham de empregá-la. Não será de estranhar que muitas vezes esqueçam essa experiência, como tal, e que ela, ao ressuscitar, venha vestida de outra expressão, diversa completamente.

Também o trabalho nesses poetas jamais é ocasional ou repousa sobre a riqueza de momentos melhores. Seu trabalho é a soma de todos os seus momentos, melhores e piores. Por isso, seu poema é raramente um corte num objeto ou um aspecto particular de um objeto visto pela luz especial de um momento. Durante seu trabalho, o poeta vira seu objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados. E é ainda seu trabalho que lhe vai permitir desligar-se do objeto criado. Este será um organismo acabado, capaz de vida própria. É um filho, com vida independente, e não um membro que se amputa, incompleto e incapaz de viver por si mesmo.

Ora, apesar de ser primordialmente artista, este poeta é, antes de tudo, de seu tempo. Ele é tão individualista quanto aqueles outros poetas que aceitam cegamente o ditado de seu anjo ou de seu incons-ciente. Da mesma forma que aqueles, este poeta-artista ao criar seu poema cria seu gênero poético. Só que nele esse gênero não é definido pela originalidade do homem mas pela originalidade do artista. Não é o tipo novo de morbidez que o caracteriza mas o tipo novo de dicção que ele é capaz de criar. E é aqui que começa o desesperado de sua situação. Porque essas leis que ele cria para o seu poema não tomam a forma de um catecismo para uso privado, um conjunto de normas precisas que ele se compromete a obedecer. Ao escrever, ele não tem nenhum ponto material de referência. Tem apenas sua consciência, a consciência das dicções de outros poetas que ele quer evitar, a consciência aguda do que nele é eco e que é preciso eliminar, a qualquer preço. Com a ajuda que lhe poderia advir da regra preestabelecida ele não pode contar — ele não a tem. Seu trabalho é assim uma violência dolorosa contra si mesmo, em que ele se corta mais

392

Page 121: 06. o Modernismo Brasileiro

121

94

4939

61�

do que se acrescenta, em nome ele não sabe muito bem de quê.

No tempo em que se reconheciam normas definidas para o verso, a situação era diferente. Estas regras estavam objetivamente fixadas e sua aplicação podia ser objetivamente verificada. A consciência poética era o conhecimento delas, seu domínio e a vigilância ao aplicá-las. O artista tinha onde apoiar-se. Sabia como limitar seu trabalho. Hoje em dia é impossível determinar até onde deve ir a elaboração do poema. Onde interrompê-la. É possível fazê-la prolongar-se indefini -damente. Quase como em Juan Ramón Jimenez, sempre a organizar de novo seus livros, sempre a elaborar mais uma vez seus poemas.

Se esta é uma primeira contradição a envenenar, pela base, a atividade do poeta desta família de espíritos, uma segunda existe, também igualmente grave e igualmente difícil de ser superada. Ela atinge a literatura num atributo essencial — o de ser uma atividade criadora, isto é, que visa a obter resultados concretos, obras. Na verdade, a preponderância abso luta dada ao ato de fazer termina por erigir a elaboração em fim de si mesma. O trabalho se converte em exercício, isto é, numa atividade que vale por si, independentemente de seus resultados. A obra perde em importância. Passa a ser pretexto do trabalho. Todos os meios são utilizados para que este se faça mais demorado e difícil, todas as barreiras formais o artista procura se impor, a fim de ter mais e mais resistências a vencer. Este seria o estágio final do caminho que a arte vem percorrendo até o suicídio da intimidade absoluta. Seria a morte da comunicação, e nela esse tipo de poesia iria se encontrar com a outra incomunicação, a do balbucio, que, por outros caminhos, estão também buscando os poetas do inefável e da escrita automática.

Gostaria de deixar claro que ao referir-me ao leitor como contraparte essencial à atividade de criar literatura e daí, à existência de uma literatura, não estou limitando o problema a questões como as de hermetismo ou obscuridade, ausência de rima ou de ritmos preestabelecidos, fatores em que, para muita gente, reside o motivo da indiferença e afastamento do homem de hoje pelos escritores de seu tempo. De forma nenhuma posso convencer-me de que a esses fatores

Page 122: 06. o Modernismo Brasileiro

caiba a responsabilidade pelo desentendimento. Prefiro vê-los, antes, não como fatores mas como conseqüência do desentendimento. Na verdade, quando se escrevia para leitores, a comunicação era indispensável e foi somente quando o autor, com desprezo desse leitor definido, começou a escrever para um leitor possível, que as bases do hermetismo foram fundadas. Porque neste momento, a tendência do autor foi a de identificar o leitor possível consigo mesmo.

Quando falo no leitor como contraparte indispensável do escritor, penso no contrapeso, no controle que deve ser exercido para que a comunicação seja assegurada. Esse controle já foi exercido pela crítica, nos tempos em que, sendo a literatura comunicação, cabia ao crítico um papel essencial, completamente diverso da criação de segunda mão a que está reduzido hoje. Esse controle se exercia a partir da necessidade do leitor, de sua exigência, definida pelo que esse leitor desejava encontrar na literatura de seu tempo. Essa exigência nem sempre é clara de se ver e ativa. Em nosso tempo, os poetas podem fazer ouvidos de mercador a ela, ou mesmo desprezar até a possibilidade de vir a auscultá-la. Ela nunca está formulada em termos precisos e concretos. Isso cabia aos críticos, da mesma maneira que ao autor cabia sentir essa exigência, vivendo a vida de seu leitor, identificando-se com ele, integralmente.

Evidentemente, a atitude do poeta de hoje não é essa. É a contrária. O poeta se isola da rua para se fechar em si mesmo ou se refugiar num pequeno clube de confrades. Como ele busca, ao escrever, o mais exclusivo de si mesmo, ele se defende do homem e da rua dos homens, pois ele sabe que na linguagem comum e na vida em comum essa pequena mitologia privada se dissipará. O autor de hoje, e se poeta muito mais, fala sozinho de si mesmo, de suas coisas secretas, sem saber para quem escreve. Sem saber se o que escreve vai cair na sensibilidade de alguém com os mesmos segredos, capaz de percebê-los. Aliás, sabendo que poucos serão capazes de entender perfeitamente sua linguagem secreta, ele conta também com aqueles que serão capazes de mal-entendê-Ia. Isto é, com o leitor ativo, capaz de deduzir uma mensagem arbitrária do código que não pode decifrar.

Esse tipo de poeta individualista, apenas dá de si. A outra missão do leitor, no ato literário, a saber, a

394

Page 123: 06. o Modernismo Brasileiro

de colaborar indiretamente na criação, é desconhecida ou negada. Este poeta não quer receber nada nem compreende que sua riqueza só pode ter origem na realidade. Na sua literatura existe apenas uma metade, a do criador. A outra metade, indispensável a qualquer coisa que se comunica, ele a ignora. Ele se julga a parte essencial, a primeira, do ato literário. Se a segunda não existe agora, existirá algum dia — e ele se orgulha de escrever para daqui a vinte anos. Mas ele esquece o mais importante. Nessa relação o leitor não é apenas o consumidor. O consumidor é aqui parte ativa. Pois o homem que lê quer ler-se no que lê, quer encontrar-se naquilo que ele é incapaz de fazer.

Houve épocas, e creio que ninguém duvida disso, em que o entendimento foi possível. Infelizmente, o plano teórico a que me obriga o tamanho desta conversa não me permite a descrição concreta de uma delas. Naquelas épocas, inspiração e trabalho artístico não se opunham essencialmente. Isto é, não se repeliam como pólos de uma mesma natureza. Nessas épocas, a exigência da sociedade em relação aos autores' é grande. A criação está subordinada à comunicação. Como o importante é comunicar-se o autor usa os temas da vida dos homens, os temas comuns aos homens, que ele escreve na linguagem comum. Seu papel é mostrar a beleza no que todos vêem e não falar de uma beleza a que somente ele teve acesso.

Nessas épocas, a espontaneidade ganha novo sentido. Não é mais uma facilidade extraordinária de indivíduo eleito. É o sinal de uma enorme identificação com a realidade. Não é mais uma maneira de valorizar, indiscriminadamente, o pessoal. Nessa espécie de esponta-neidade o que se valoriza é o coletivo que se revela através daquela voz individual. Como na poesia popular, funde-se o que é de um autor e o que ele encontrou em alguma parte. A criação inegavelmente é individual e dificilmente poderia ser coletiva. Mas é individual como Lope de Vega escrevendo seu teatro e seu romancero, de aldeia em aldeia de Espanha, em viagem com seus comediantes e profundamente identificado com seu público.

Nessas épocas,' também é essencialmente diferente da que vemos hoje, a atitude do poeta em relação ao tema imposto. Esse poeta cuja emoção se identifica com a de seu tempo, jamais considera violentação

123

Page 124: 06. o Modernismo Brasileiro

a sua personalidade o assunto que lhe é ditado pela necessidade da vida diária dos homens. Para o poeta de hoje essa exigência é violenta porque em sua sensibilidade ele não dispõe senão de formas pessoais, exclusivamente suas, de ver e de falar. Ao passo que no autor identificado com seu tempo não será difícil encontrar a mitologia e a linguagem unânimes que lhe permitirão corresponder ao que dele se exige.

Nessas épocas de equilíbrio, fáceis de encontrar nas histórias literárias, não há na composição duas fases diferentes e contraditórias — não há um ouvido que escuta a primeira palavra do poema e uma mão que trabalha a segunda. Nessas épocas, pode-se dizer que o trabalho de arte inclui a inspiração. Não só as dirige. Executa-as também. O trabalho de arte deixa de ser essa atividade limitada, de aplicar a re.gra, posterior ao sopro do instinto. Também não se excede nunca num exercício formal, de atletismo intelectual. O tra -balho de arte está, também, subordinado às necessidades da comunicação.

As regras nessas épocas não são obedecidas pelo desgosto da liberdade, que segundo algumas pessoas é a condição básica do poeta. A regra não é a obediência, que nada justifica, a maneiras de fazer defuntas, pelo gosto do anacronismo, ou a maneiras de fazer arbitrárias, pelo gosto do malabarismo. A regra é então profundamente funcional e visa a assegurar a existência de condições sem as quais o poema não poderia cumprir sua utilidade. Para o poeta ela não é jamais uma mutilação mas uma identificação. Porque o verdadeiro sentido da regra não é o de cilício para o poeta. O verdadeiro sentido da regra está em que nela se encorpa a necessidade da época.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

{Revista Brasileira de poesia: São Paulo, n? 7, abril de 1956.)

396