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106 Estilos da Clínica, 2009, Vol. XlV, n° 26, 106-127 RESUMO Considerando que o autismo sus- cita questões referentes ao mo- mento mais primitivo da cons- tituição da subjetividade, o trabalho aborda inicialmente as particularidades implicadas no gozo que, segundo a teoria psica- nalítica, estabelece a representa- ção como uma inscrição no in- consciente ao atrelar o sujeito ao Outro. Em seguida, o gozo no autismo, na medida em que se situa num aquém da represen- tação, é abordado a partir do conceito de alíngua proposto por Lacan como o precursor da re- presentação como gozo. Descritores: autismo; alíngua; gozo; representação. Professora do Curso de Especialização em Psicanálise da Universidade Federal Fluminense. Dossiê Pode acontecer que um sujeito que dispõe de todos os elementos da linguagem, e que tem a possibilidade de fazer certo número de desloca- mentos imaginários, que lhe permitem estruturar seu mundo, não esteja no real. Por que não está? – unicamente porque as coisas não vieram numa certa ordem. A figura no seu conjunto está pertur- bada. Não há meio de dar a esse conjunto o menor desenvolvimento. (Lacan, 1983) Introdução O sujeito autista suscita questões que di- zem respeito à relação com o outro, à fala, à singula- ridade com que constrói sua realidade. A precocida- de do aparecimento das características autísticas permite supor que seu estudo possa trazer esclareci- mentos a propósito do que está implicado na consti- tuição do sujeito. Isso vem acarretando um interesse A REPRESENTAÇÃO E O GOZO NA CLÍNICA DO AUTISMO Maria Elizabeth da Costa Araújo

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106 Estilos da Clínica, 2009, Vol. XlV, n° 26, 106-127

RESUMO

Considerando que o autismo sus-cita questões referentes ao mo-mento mais primitivo da cons-tituição da subjetividade, otrabalho aborda inicialmente asparticularidades implicadas nogozo que, segundo a teoria psica-nalítica, estabelece a representa-ção como uma inscrição no in-consciente ao atrelar o sujeito aoOutro. Em seguida, o gozo noautismo, na medida em que sesitua num aquém da represen-tação, é abordado a partir doconceito de alíngua proposto porLacan como o precursor da re-presentação como gozo.Descritores: autismo;alíngua; gozo; representação.

Professora do Curso de Especialização em Psicanálise

da Universidade Federal Fluminense.

Dossiê

Pode acontecer que um sujeito que dispõe detodos os elementos da linguagem, e que tem a

possibilidade de fazer certo número de desloca-mentos imaginários, que lhe permitem estruturar

seu mundo, não esteja no real. Por que não está? –unicamente porque as coisas não vieram numa

certa ordem. A figura no seu conjunto está pertur-bada. Não há meio de dar a esse conjunto o menor

desenvolvimento. (Lacan, 1983)

Introdução

O sujeito autista suscita questões que di-

zem respeito à relação com o outro, à fala, à singula-

ridade com que constrói sua realidade. A precocida-

de do aparecimento das características autísticas

permite supor que seu estudo possa trazer esclareci-

mentos a propósito do que está implicado na consti-

tuição do sujeito. Isso vem acarretando um interesse

A REPRESENTAÇÃO EO GOZO NA CLÍNICA

DO AUTISMO

Maria Elizabeth da Costa Araújo

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cada vez maior no tema, não obstantea baixa taxa de prevalência do autismo.

Em tempos de interlocução comFreud, Eugen Bleuler cunhou o ter-mo autismo por subtração de eros dotermo auto-erotismo proposto porHavellock Ellis. Bleuler designoucomo autismo o estado de alheamentoe de desinvestimento no mundo, umdos sintomas mais importantes dapatologia que o imortalizou aonomeá-la esquizofrenia.

Em 1943, Leo Kanner descreveu,pela primeira vez, o que chamou dedistúrbio autístico do contato afetivo, sín-drome de aparecimento muito preco-ce, que tinha o fechamento autístico,manifesto na incapacidade de estabe-lecer relações desde o princípio davida, como sintoma patognomônico.Em 1955, esse autor estabeleceu comofundamentais no autismo dois sinto-mas: o desejo de solidão (aloneness),que se expressa na busca de um isola-mento profundo; e a preocupaçãocom a imutabilidade (sameness), evi-denciada na intrusão assustadora quea modificação no meio interno ouexterno conota. Destacou que, como avançar da idade costuma haver, emgrau variado, a ruptura da solidão e aaceitação de algumas pessoas, embo-ra sempre persista um nível elevadode isolamento afetivo.

A linguagem verbal no autismopode estar completamente abolida oulimitar-se à repetição monótona depalavras, como a repetição continua-da de anúncios publicitários, sequênciade números, séries de palavras etc.

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Podem ocorrer alterações das palavras por assonância, duplicaçãoou triplicação de letras. Utilizam-se verbalizações aparentemente semsentido e, sobretudo, sem endereçamento. Entre as onze criançasmencionadas na primeira descrição de Kanner, embora oito falas-sem e três fossem “mudas”, ele considerou que não havia diferençafundamental entre as que falavam e as que não falavam, pois a lin-guagem não servia para transmitir qualquer mensagem aos outros.Um fenômeno linguístico despertou desde o início a atenção deKanner: “os pronomes pessoais são repetidos exatamente como sãoouvidos”, não havendo a inversão pronominal. Ele também desta-cou “a excelência da capacidade de memorização decorativa” dosautistas (Kanner, 1997).

O modo singular como se servem da palavra, de tal forma quenão se pode identificar ali uma intenção de comunicação, coloca emquestão a própria constituição da fala e a inserção do sujeito na lin-guagem, isto é, o modo como escolhe submeter-se a sua condiçãode ser falante.

A articulação entre os três aspectos fundamentais no autismo –a estranha relação com o semelhante, a excentricidade da linguageme o enigma de sua realidade – atesta a vinculação entre a relação como semelhante, o surgimento da linguagem e o estabelecimento darealidade psíquica. A teoria psicanalítica estabelece alguns parâmetrospara abordar essa questão que remete ao momento mais primitivoda subjetividade a partir das particularidades implicadas na emer-gência da Vorstellung – a representação.

1. A estrutura da linguagem

No “Projeto para uma Psicologia Científica” (Freud, 1981),Freud define memória pela impressão de sucessivas marcas no níveldo sistema nervoso oriundas, por um lado, do que passa pelo filtrodo sistema perceptivo e, por outro, determinadas pela exigência defluidez de Qh, a energia pulsional. Essas marcas se dão ao seremenlaçadas pela pulsão, que faz delas uma rede articulada segundo afacilidade com que o impulso as percorre. Trata-se de uma rede demarcas capaz de permanecer sempre aberta ao acréscimo de maisuma que favoreça a descarga. À facilitação, Freud contrapõe as bar-reiras de contato, verdadeiros sugadores de energia. O inconsciente

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é um sistema de memória que se or-ganiza segundo uma espécie deautomatismo que corresponde à fun-ção do princípio do prazer (Lacan,1988) onde o que se repete e norteiao percurso é fundamentalmente a di-ferença, não de qualidades perceptivasinerentes à consciência, mas de quan-tidades de investimento pulsional quecorrespondem a marcas significantes,as representações de coisa.

Um significante na medida emque se define como marca de pura di-ferença, caracteriza-se por remetersempre a outro significante, não sig-nificando nada em si mesmo, mas pro-duzindo, no seu encadeamento, efei-tos capazes de se organizar numasignificação ou, nos termos de Freud,fazem surgir, de tempos em tempos,os signos de qualidade no nível cons-ciente.

Considerando que a representa-ção implica na presentificação de umgozo, isso nos instiga a interrogarcomo se dá o gozo no autismo.

2. Da experiência desatisfação ao gozo dealíngua

Embora todo humano esteja ir-remediavelmente imerso na lingua-gem, é necessário que cada sujeito dêo passo que efetiva sua captura e seucompromisso com a fala. Para a psi-canálise, a instauração da representa-ção – célula elementar da linguagem

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e da fala – pressupõe o ato que enodao sujeito, a fala e a significação. A clí-nica do autismo evidencia um uso sin-gular da representação, que parecedesvincular-se de qualquer intenção designificação. No autismo, a concomi-tância do comprometimento da fala eda instauração da relação com o ou-tro desde o princípio da vida, apon-tam no sentido do vínculo originárioentre um ato de fala e a constituiçãosubjetiva.

2.1 A experiência desatisfação

Vimos que é próprio da subjeti-vidade humana articular-se a uma redecomplexa de significantes. Emboratodo ser falante esteja inserido na lin-guagem, para que o sujeito se expres-se num discurso é necessária a opera-ção mítica de um corte que instaure adiferença entre o eu e o mundo exter-no e inaugure a relação do sujeito como Outro. Essa operação de corte ocor-re numa sucessão de acontecimentoslógicos que requer a participação doque Freud chamou de Nebenmensch,termo que encerra a noção de próxi-mo assegurador: um outro falante que,de alguma forma, toma o infans aosseus cuidados. Tradicionalmente, amãe encarna esse lugar. Lacan lhe atri-buiu a função de Outro primordial,na medida em que desempenha a fun-ção de transmissor da referência ao

Outro, campo da linguagem diante doqual o infans advirá sujeito.

No Projeto, são fornecidos os ele-mentos fundamentais para a compre-ensão da inserção do sujeito em suarealidade psíquica, a partir do queFreud estabeleceu como a primeira ex-

periência de satisfação (Freud, 1981). Essaexperiência é apresentada em termosde uma alteração irreversível noprotoplasma das células nervosas quedeterminam as facilitações, responsá-veis pela orientação dos trilhamentos.Foi assim que Freud abordou, naque-la ocasião, a noção de um elementomítico capaz de situar um gozo realtão inacessível quanto almejado pelarepresentação.

Freud considerou que o investi-mento neuronal – correspondente àelevação de Qh –, tem como conse-quência uma propensão à descargamotora. Enquanto ela não ocorre, oaumento de Qh em y provoca umasensação de desprazer em w – aconsciência. Sua diminuição, ao con-trário, suscita uma sensação de pra-zer. No sistema y, a primeira via a serseguida em direção à diminuição dosníveis de Qh é a alteração interna. Paraexemplificá-la, Freud evoca o estímu-lo proveniente da fome do bebê, quepromove uma modificação internaexpressa no grito. O grito cumpre,portanto, originariamente, uma fun-ção de descarga. No entanto, se o es-tímulo permanece, a descarga propi-ciada por essa ação interna não produzalívio suficiente, sendo necessária umaalteração no mundo externo através

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de uma ação específica. A especificidadedessa ação se deve ao fato de ela ocor-rer tão-somente através de caminhosprecisos. No exemplo da fome dolactente, a oferta do seio que alimentapode ser considerada como protóti-po da ação específica, evidenciando queo desamparo do organismo desse pe-queno homem torna-o incapaz derealizá-la sem o auxílio externo. E énessa impossibilidade real que se devesituar a centelha do enganchamentodo sujeito em seu mundo.

O grito

O grito é o primeiro movimentodo sujeito em direção ao Outro. Elesitua-se num ponto limite, na medidaem que corresponde ao esgotamentodas possibilidades individuais de re-dução de Qh e convoca uma ação quesó pode provir de um Outro. Freudconferiu ao grito um lugar de desta-que na constituição do sujeito falanteao afirmar que: “Essa via de descar-ga adquire, assim, a importantíssimafunção secundária da compreensão [co-municação com o próximo], e o de-samparo original do ser humano con-verte-se, assim, na fonte primordial detodas as motivações morais” (Freud,1981).

Dessa forma, a via de descargaque é o grito de apelo assume a fun-ção de comunicação por exigir que umoutro lhe empreste um sentido, tra-duzindo-o numa demanda. Na leitu-ra de Lacan, um grito de apelo se cons-titui como demanda e como desejo:

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“Quando a mãe responde aos gritos do bebê, ela os reconhece cons-tituindo-os como demanda, mas o que é mais importante é que osinterpreta no plano do desejo da criança de estar perto dela, desejode tomar-lhe algo, desejo de agredi-la, pouco importa. O que é certoé que, por sua resposta, o Outro a dar a dimensão de desejo ao gritoda necessidade, ao investir na criança, é de início resultado de umainterpretação subjetiva, função do desejo materno, de seu própriofantasma.” (Lacan, [1961-62]).

A ação específica que está em jogo na experiência de satisfaçãoarticula-se com a leitura que a mãe faz do grito conforme o desejoque a afeta. Isso faz do desejo do Outro a bússola que orienta aconstituição do sujeito (Ciaccia, 2005). Lacan também destacou que,ainda que inicialmente exerça a função de descarga, o grito pontua acaptura de algo passível de ser reconhecido posteriormente comoconsciência, ao sinalizar a instauração do objeto enquanto hostil:“O objeto enquanto hostil só é sinalizado no nível da consciência namedida em que a dor faz o sujeito soltar um grito. ... O grito cumpreaí uma função de descarga e desempenha um papel de uma ponteno nível do qual algo ocorre de ser pego e identificado na consciên-cia do sujeito. Esse algo permaneceria obscuro e inconsciente se ogrito não lhe viesse conferir, no que diz respeito à consciência, osinal que lhe confere seu [do objeto] valor, sua presença, sua estru-tura – da mesma feita, com o desenvolvimento que lhe é conferidopelo fato de que os objetos mais importantes para o sujeito humanosão os objetos falantes, lhe permitirão ver, no discurso dos outros,revelarem-se os processos que habitam efetivamente seu inconsci-ente.” (Lacan, 1988).

Assim, o grito corresponde ao primeiro movimento constituti-vo do sujeito: o corte que, do lado do infans, exerce a função primor-dial de inscrever o sujeito na linguagem ao instaurar uma relação dedependência. No entanto, Lacan ressaltou que o grito deve ser situ-ado num nível aquém da linguagem, pois não implica, em si mesmo,nenhuma dicotomia, nenhuma bipartição significante. É somenteapós o movimento interpretativo executado pelo desejo do Outroque aquilo que era puro vazio, pura escansão, assume o estatuto depalavra significativa e faz do grito um apelo. Dessa forma, “a res-posta do Outro transforma o grito em apelo de um sujeito” (Miller,1998). A clínica do autismo vem justamente evidenciar que há pos-sibilidade de recusa do grito em seu estatuto de apelo.

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A primeira experiência desatisfação

Freud esquematizou o que sepassa na primeira experiência de sa-tisfação descrevendo três ações ocor-ridas no sistema ψ:

1. Opera-se uma descarga duradouraque faz cessar o desprazer produzidono consciente (ω) pelo excesso de ten-são (Qη) no inconsciente (ψ).2. Gera-se o investimento que corres-ponde à percepção de um primeiroobjeto: o semelhante que executa aação específica capaz de fazer cessar aexcitação endógena.3. Registra-se a descarga que se segueà ação específica, promovendo a experi-ência de satisfação.

A experiência de satisfação gerauma facilitação entre duas imagensmnêmicas, a do objeto e da descarga(itens 2 e 3), mantendo-as de tal modoassociadas que o investimento em umaremete facilmente ao investimento naoutra. Com o re-afloramento do es-tado de urgência, lugar onde se situa-rá o desejo, as duas lembranças sãoinvestidas simultaneamente. Devido aesse duplo investimento, na falta dooutro assegurador, a ativação desejan-te dos traços mnêmicos de tal experi-ência é capaz de produzir algo idênti-co a uma percepção, ou seja, umaalucinação. Dessa forma, a primeiraexperiência de satisfação serve de su-porte para a instalação da experiênciaalucinatória de satisfação.

A experiência alucinatória desatisfação

Na leitura de Freud a partir deLacan, a experiência de satisfação éuma inscrição mítica de gozo que dei-xa traços mnêmicos dos atributos dogozo alocado no Outro. Essas mar-cas denunciam o investimentolibidinal na medida em que criam opolo alucinatório de satisfação. Ditode outro modo, por meio da repeti-ção da experiência de satisfação atra-vés da alucinação, o princípio do pra-zer rege os trilhamentos que sedirigem de um modo recorrente àsrepresentações vinculadas ao desejoe instala o lugar-tenente da represen-tação da pulsão (Lacan, 1973). Essasrepresentações correspondem ao re-encontro alucinatório do gozo e sópodem chegar à consciência sob aforma de identidade de percepção. Talidentidade diz respeito a uma percep-ção capaz de atender ao princípio derealidade (Lacan, [1968-69]).

O princípio do prazer comandaa associação de uma representação àoutra, enquanto o princípio de reali-dade elege a aglutinação de certas re-presentações como constituintes darealidade. Assim, a partir de um mar-co inaugural, a regulação homeostáticavisa o retorno a uma identidade queserve de suporte para a construção darealidade psíquica. A experiência desatisfação pode ser considerada a ins-tauração de um traço real que se tor-na referência para tudo que há de re-levante no mundo perceptivo e,

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consequentemente, para o que há demais relevante na realidade psíquica.Nas palavras de Lacan: “sem algo que o

alucine enquanto sistema de referência, ne-

nhum mundo da percepção chega a ordenar-

se de maneira válida, a constituir-se de ma-

neira humana” (Lacan, 1988).Com isso, Lacan destaca que a

percepção, tal como apresentada porFreud, não leva em conta nenhumcritério de realidade, uma vez que seumundo se constrói a partir da aluci-nação fundamental. De certa manei-ra, podemos dizer que, no homem, arealidade é “alucinatória”. A partirdela se constrói o mundo externo noqual o sujeito se desloca.

Embora Freud tenha se servido dafome do bebê para descrever o estabe-lecimento da satisfação como um mar-co inaugural, a instauração da satisfaçãopulsional independe de qualquer expe-riência real. A esse respeito, Lacan afir-mou que: “nenhum objeto de nenhumNot, necessidade, pode satisfazer apulsão. ... essa boca que se abre no re-gistro da pulsão – não é pelo alimentoque ela se satisfaz” (Lacan, 1979).

No entanto, a ideia de que a ex-periência de satisfação da necessidadealimentar serviria de apoio para a sa-tisfação pulsional possibilitou a Freudinstituir uma historicidade constitutivado sujeito onde o outro, através da ação

específica, assume um papel fundamen-tal na estruturação do aparelho psíqui-co. O vínculo com um Outro primor-dial (suporte da linguagem), que arelação com o outro (semelhante) vei-cula, é o lugar fundador do sujeito.

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2.2 Inscrições e repetição significante

No Projeto, Freud descreveu o pensamento inconsciente comoo funcionamento de um aparelho de memória que consiste no des-locamento do impulso segundo as diferentes facilitações. Na carta52, ele apresentou a Fliess a constituição e o funcionamento desseaparelho a partir da sucessão das Niederschriften, as inscrições, comouma concepção indispensável à compreensão do funcionamento doaparelho psíquico (Freud, 1977). Noções como signo (Zeichen) e ins-crição (Niederschrift) sustentam a leitura de Lacan de que o que sepassa nesse aparelho é da ordem de uma escrita e que os trilhamentosneurológicos propostos no Projeto são trilhamentos de significantes.As inscrições são o que efetivamente operam nos traços mnêmicos(Lacan, 1988). A carta 52 destaca-se, portanto, como momento pri-vilegiado de “significantização” do esquema proposto no Projeto.Jacques Derrida (1971), citado por Garcia-Roza (1993) resumiu estapassagem dizendo que ali “o traço começa tornar-se escritura”, ouseja, o traço, ao qual Freud já se havia referido no Projeto, assumemais claramente, na carta 52, o estatuto de escrita.

A rede de representações inconscientes se instaura a partir deuma sucessão de acontecimentos que marcam o assujeitamento dofalante ao significante. Na carta 52, Freud descreveu o processo deestratificação onde os tempos lógicos da constituição do aparelhopsíquico se distinguem conforme o esquema abaixo:

W _____ Wz _____ Ub _____ Vb _____ Bew

O circuito da apreensão psíquica inicia-se com W(Wahrnehmungen: percepções), que corresponde à pluralidadeperceptiva decorrente das impressões brutas do mundo exterior.Trata-se de uma posição primordial, comparável à total transparên-cia do papel celofane do bloco mágico, que não retém nenhum traçodo que aconteceu. Essa etapa primitiva jamais vem à tona no sujeitocomo experiência registrável.

Em seguida há o registro em Wz (Wahrnehmungzeichen: signos depercepção), que corresponde à primeira inscrição mnêmica dos sig-nos de percepção, associados entre si por simultaneidade. Lacan dádestaque a esse aspecto ao dizer que “temos aí a exigência originalde uma primitiva instauração de simultaneidade” (Lacan, 1985a). São

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as representações primitivas de umaorganização significante anterior à ar-ticulação do inconsciente. Nos ter-mos do Projeto, esses traços primiti-vos correspondem às primeirasincidências do estímulo na matrizorgânica. O momento de gestação dobebê pode ilustrar o que seria umtempo em que a criança, embora ain-da não nascida, encontra-se plena-mente inserida no discurso do Ou-tro, na medida em que é falada poralguém que está inscrito na lingua-gem. Este momento exemplifica umtempo da constituição subjetiva emque o sujeito se restringe a uma pro-messa, estando inteiramente subme-tido ao discurso do Outro e as suasconsequências. É importante desta-car que W e Wz são etapas que seimpõem por dedução, pertencendoà mitologia da subjetividade.

Quando incide uma repetiçãosobre os signos de percepção, os Wzsensibilizados pela facilitação e ocor-re uma transcrição que instaura o re-gistro Ub (Unbewusstsein: inconscien-te), a articulação entre os traços seestabelece. A experiência de satisfa-ção exemplifica o que vem a ser a ar-ticulação entre duas representações,rompendo com a simultaneidade.Nota-se ali uma abordagem privilegi-ada desse momento inaugural, namedida em que o enlace de dois tra-ços de memória é sincrônico com ainstauração de um gozo e a vinculaçãoinextrincável entre sujeito e Outro.

Freud descreveu o inconscientecomo uma rede articulada de traços

mnésicos que correspondem a “lem-

branças conceituais” (Freud, 1977). La-can, a partir da leitura particular quefaz da linguística de Ferdinand deSaussure, propôs que essas lembran-ças conceituais correspondem a sig-nificantes, de forma que o inconsci-ente consiste numa rede articulada designificantes. A estrutura do incons-ciente deve, portanto, ser descrita talcomo a da linguagem. Ela foi sinteti-zada por Lacan no binário funda-mental S

1 � S

2. Esse matema reve-

la que a importância da relação entreessas marcas reside no fato de, no re-metimento de uma a outra, haver umsujeito que se faz representar; isto é:“um significante representa o sujei-to para outro significante” (Lacan,1998). S

1 � S

2 revela, também, que

um conjunto de significantes S1,

como um essaim1, um enxame de sig-nificantes, representa o sujeito paraS

2, o significante de exceção; ou, ain-

da, que a multiplicidade do saber,representado por S

2, está relacionada

a S1 como unidade. Dito de outro

modo, S1 � S

2 revela que o sujeito

surge no intervalo entre o Um e oOutro.

Antes da instauração da repre-sentação de coisa, o significante com-parece como simultaneidade, sem ins-tauração do tempo, mera sucessãosem encadeamento, numa cronologiasó percebida pelo Outro. Pode-se de-duzir que o impedimento da passa-gem dos signos perceptivos a traçosmnêmicos corresponde ao impedi-mento da inscrição dessa hiância.

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A repetição promove uma trans-crição na medida em que implica ainscrição de uma marca diferencialentre os registros mnêmicos. A partirdessa marca diferencial, onde antes sóhavia simultaneidade, passa a haverdeslocamento metonímico e, portan-to, tempo e espaço. Dessa forma, oque vem distinguir um registro da or-dem do signo perceptivo de um traçomnêmico é o fato de haver, no segun-do, inscrição da hiância que se traçana diferença entre os trilhamentos.Essa descontinuidade, que constituiuma falta, promove a captura subjeti-va pelo simbólico. A instauração doinconsciente consiste no corte em queo sujeito, ao ser barrado pelo signifi-cante, se faz representar por ele. É aúnica via pela qual o humano avalizasua submissão ao simbólico ao alie-nar-se ao significante. O deslocamen-to metonímico de uma representaçãoa outra, segundo o princípio do pra-zer, caracteriza o movimento do in-vestimento libidinal inconsciente. As-sim, o registro do traço mnêmicoconsiste na instauração de uma repre-sentação libidinalmente investida.

De acordo com Lacan, a inscri-ção mnêmica é um signo quecorresponde alucinatoriamente à sa-tisfação da necessidade (Lacan, 1999).Assim, vemos estabelecida a relaçãoentre a experiência de satisfação e oregistro dos traços mnêmicos. Na ex-periência primária de satisfação, a sa-tisfação da necessidade correspondeao gozo maciço que é barrado nomomento em que, através da repre-

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sentação, se instaura uma ilusão de gozo que alucina essa satisfação.No gozo maciço, a percepção do mundo externo não é acessadapela via do significante.

Vb (Vorbewusstsein: pré-consciente) é o terceiro registro, quecorresponde à tradução da representação de coisa em representaçãode palavra; isto é, corresponde à transformação da pura alucinação,ligada ao princípio do prazer, em identidade de pensamento, regidopelo princípio de realidade, princípio que instaura o “eu oficial”. Freuddestacou que o pré-consciente “está ligado à ativação alucinatóriadas representações da palavra”. Os movimentos do inconsciente,regidos pelo princípio do prazer, chegam à consciência à medidaque podem ser verbalizados, quer dizer, traduzidos pelas palavras aoprincípio de realidade que vigora no pré-consciente e no consciente.Freud afirmou que: “o material presente sob a forma de traçosmnêmicos fica sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo, deacordo com as novas circunstâncias – a uma retranscrição” (Freud,1977).

Os traços mnêmicos são inscrições diferenciais – significantes– que se deslocam indefinidamente e só se estancam mediante umaretranscrição, uma tradução, no registro do pré-consciente, num signode qualidade, que corresponde à aparição de um significado no nívelda consciência. Nesse processo, a liberação de desprazer que a tra-dução de certos traços pode provocar promove uma falha de tradu-ção que corresponde ao recalcamento desses traços.

Segundo Freud, a representação de palavra que se constitui nopré-consciente vem ordenar-se, na consciência (Bewusstsein), de acor-do com certas regras, as quais, para Lacan, são as regras do signifi-cado. Assim, o campo da consciência é dominado pelo ordenamentonum significado que se presta à ilusão da comunicação. Nele, o in-consciente comparece através de suas formações – chistes, atos fa-lhos, sintomas – que se contrapõem ao que se quer dizer conscien-temente.

2.3 O gozo de alíngua

A experiência de satisfação descrita por Freud implica numadescarga na qual a satisfação em questão encontra-se essencialmen-te ligada a uma experiência de gozo. A leitura da carta 52 e do Projeto

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indica que na instauração do incons-ciente ocorre um ciframento atreladoa um gozo capaz de enlaçar sujeito eOutro. Esse enodamento suscita a co-municação no nível consciente, aindaque não se restrinja a ela.

Assim, pode-se considerar que,no momento inaugural do sujeito – aexperiência de satisfação – a matériasignificante destaca-se das marcas degozo do Outro que vêm configurar oobjeto.

Miller aponta que, com a noçãode discurso, elaborada mais detalha-damente no seminário O avesso da psi-

canálise, Lacan deslocou o enfoque darelação primitiva e originária entre sig-nificante e gozo, passando a valorizara repetição como repetição de gozo.Parafraseando a clássica definição designificante proposta por Lacan – “Osignificante é aquilo que representao sujeito para outro significante” (La-can, 1998) –, Miller afirma que: “osignificante representa o gozo paraoutro significante” (Miller, 2000),uma vez que o significante faz faltaro gozo assim como faz faltar o sujei-to. O significante faz faltar o gozona medida em que promove o gozofálico, que é o gozo fictício da lin-guagem. O sujeito é estruturalmenteirrepresentável. Paradoxalmente, elerequer a representação, pois só sur-ge cristalizado no significante, que re-presenta sua morte. É o que traduz afrase de Lacan: “o significante fazsurgir o sujeito ao preço de cristali-zá-lo” (Lacan citado por Miller,2000). Se considerarmos, inicialmen-

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te, a primeira experiência de satisfação como correspondente à instauração daimaginarização do gozo, convém lembrar que ela também estabelece o gozocomo ponto de inserção do sujeito no aparelho significante.

No animal existe um saber instintual que possibilita a realização do coitoatravés da correspondência entre Imaginário e Real. Um breve exemplo dessacolagem pode ser verificado na constatação de que uma pomba atinge a matu-ridade sexual mediante a visão de um semelhante da mesma espécie. Por talmotivo, quando se coloca um espelho diante desse animal, obtém-se o mesmoresultado, evidenciando que ele não se engana quanto aos traços imaginários doobjeto sexual determinado pelo real orgânico. Por outro lado, no ser falante, aintervenção do Simbólico estabelece a inexistência da relação sexual Real-Ima-ginária, tal como ocorre nos outros animais, forçando-o na direção da constru-ção de uma unidade promovida pelas palavras, que possa estabelecer algumaequivalência com a relação sexual para sempre perdida. O sentido é sexual por-que faz suplência ao sexual que sempre falta (Lacan, [1973-74]). Essa unidade,sempre falha, é possibilitada pontualmente nos efeitos de sentido que emergemdo remetimento de um significante a outro. O efeito de sentido resultante dotrilhamento representado no binário S

1 – S

2, que corresponde à articulação sig-

nificante inconsciente, não tem intenção de significação e, portanto, não está aserviço do diálogo, mas da realização do gozo possível para o falante (Henry,2004).

Lacan diz que lalangue, palavra traduzida como alíngua, está relacionada àlíngua materna (Lacan, 1985b). Miller, por sua vez, considera que através dealíngua, transmite-se a coletânea dos traços do Outro em que cada um inscreveuseu desejo (Miller, 1996a). Dessa forma, podemos supor que alíngua se vincula àlíngua materna na medida em que diz respeito à repetição aos traços do Outroque marcam o desejo do sujeito. O fenômeno essencial de alíngua não é o sen-tido, mas o gozo (Miller, 1996b). Dessa forma, alíngua não está comprometidacom o significado das palavras, mas com a gramática e com a repetição, poisretorna como um estribilho, assim como o registro da primeira experiência desatisfação. O motor de alíngua não é a comunicação, mas a homofonia – o quedesloca o foco da função da linguagem em direção à estrutura da fala. No dis-curso inconsciente, o significante, despojado do lastro de significado, faz emer-gir efeitos de sentido capazes de se propagar e proliferar ao infinito, mas quecostumam se aglutinar num sentido. Dito de outro modo, na medida em quenão há relação sexual, esta se dá por intermédio do sentido precipitado do sem-sentido que caracteriza alíngua.

A alíngua se sustenta no mal-entendido que mobiliza o sentido, fazendocom que se cruze e se multiplique. É porque há alíngua que todo sentido éequivocado. Ela diz respeito a um gozo promovido pela unidade vinculada ao

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efeito de sentido e tem, simultanea-mente, função de escoamento de sen-tido (Lacan, [1973-74]), na medida emque toda palavra é ambígua. Assim, aalíngua diz respeito ao que é da or-dem do Real no campo da linguagem(Lacan, [1971-72]).

As noções de alíngua e efeito desentido possibilitam inserir o que édescrito por Freud como experiênciade satisfação numa abordagemlinguageira. Apresenta a vantagem de,ao levar em conta o vínculo inelutá-vel com o Outro, salientar que elepode ou não estar acoplado a umaintenção de dizer. Dissociado da in-tenção de dizer, o efeito de sentidocorresponde a uma unidade vincula-da ao gozo da fala promovida poralíngua que estabelece uma relação decontinuidade entre sentido e sem-sen-tido. Alíngua se vincula tanto ao sen-tido proveniente da experiência desatisfação quanto ao sem-sentido, an-terior a qualquer simbolização. Oautista torna manifesta, de um modoprivilegiado, essa relação com a falaque não passa pela comunicação, masque, nem por isso, deixa de implicarum gozo.

Lacan distinguiu um saber sobre

alíngua de um saber fazer com alíngua. Osaber sobre alíngua corresponde a umaconstrução de saber capaz de estabe-lecer laço social. Assim, a linguagemé uma elucubração de saber sobre alín-gua (Lacan, 1985b). O saber fazer com

alíngua, por sua vez, diz respeito a umsaber capaz de fazer emergir um gozoque não implica num enodamento. O

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inconsciente é testemunho de um sa-

ber fazer com alíngua (1985b), pois é umsaber que se define como um gozovinculado ao significante que não está,necessariamente, atrelado a um senti-do. Lembremos da afirmação de La-can de que: “se se pode dizer que oinconsciente é estruturado como umalinguagem, é no que os efeitos de alín-gua, que já estão lá como saber, vãoalém de tudo que o ser que fala é sus-cetível de enunciar” (Lacan, 1985b).Por outro lado, o encadeamento sig-nificante inconsciente chega à reali-dade na forma de um saber não sa-bido – um enigma – que sustenta olaço social. Portanto, o inconscienteatesta um saber fazer com alíngua que,ao se organizar como discurso incons-ciente – na medida em que é estrutu-rado como uma linguagem – é, tam-bém, uma elucubração de saber sobre

alíngua.Alíngua é correlativo à disjunção

Real implicada no sentido Imaginário– o semblante – através do campoSimbólico do significante. É a falta desentido que sustenta os efeitos de sen-tido que, por sua vez, possibilitam ogozo fálico, que Lacan denomina, nes-te contexto, gozo semiótico (Lacan,[1973-74]). A alíngua é pura diferen-ça que encontra seu saber fazer à medi-da que essa diferença se introduz nocampo da linguagem. Esse avanço nateorização da psicanálise permite sus-tentar a hipótese de uma anteriorida-de de alíngua ao significante mestre,de tal forma que o campo de alíngua,antes de ordenar os significantes, põe

a nu um enxame de significantes semefeito de sentido. Isso permite suporum saber fazer com alíngua anterior aosaber sobre alíngua.

3. O gozo no autismo

Kanner propôs que não haviadiferença entre os autistas que fala-vam e os que não falavam, pois “a lin-guagem não servia para transmitirmensagem aos outros” (Kanner,1997), e sugeriu que o emprego daspalavras no autismo deixa às claras umuso diverso daquele que parecia a ra-zão de ser da fala: a comunicação.Freud, ao elaborar a lógica dos sinto-mas de seus pacientes, indicara que há,nas palavras, uma satisfação alheia ànecessidade de comunicação. Lacanchamou-a de gozo.

A crença que se tem no sentidodas palavras dificulta a percepção dadefasagem que há entre gozo e co-municação. A criança autista não com-partilha desse engano. Isso a colocasensivelmente apartada do discursosocial, o que vem comprovar que es-tar na linguagem não garante que seesteja no discurso. Os discursos sãoformados de representações e se ca-racterizam pelo enlace que vinculagozo e significação. A problemáticaautista favorece a explicitação da de-fasagem entre comunicação e gozo,na medida em que diz respeito a ummodo de estar na linguagem atreladoa um gozo que nada tem a ver com a

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significação. Ao revelar a desconexãoentre sujeito e Outro, o autistaexplicita a estrutura de gozo que ca-racteriza a fala.

O autismo vem evidenciar a pos-sibilidade de uma fala não ser causa-da pela intenção de significação. Nes-ses casos, uma vez que se trata dofalante, devemos considerar, comMiller, que o motor da enunciaçãopersiste sendo a pulsão – emboradesvinculada da intenção de signifi-cação – e que o que se produz é ogozo (Miller, 1998). Trata-se de umcomportamento atípico da pulsão emque o gozo não emerge enlaçado pelapalavra, produzindo um sentido ima-ginário, mas em sua pureza real. Emdecorrência disso, a realidade que seproduz na tensão da relação entre osujeito e o Outro não assume a orga-nização de um campo passível de sercompartilhado socialmente.

Na conferência de Genebra, aoafirmar que os autistas não nos ou-vem quando nos ocupamos deles(Lacan, 1985c), Lacan sugere que, parao autista, não parece haver pacto pos-sível com o Outro. Antonio di Ciacciaabordou essa solidão dizendo que parao autista só existe o Um-sozinho, oUm-sem-o-Outro (Ciaccia, 2005),onde a linguagem é puro gozo queindepende da identificação primitiva.Trata-se, portanto, de um gozo dis-tinto daquele que é promovido pelaexperiência alucinatória primitiva.

Rosine Lefort, por sua vez, aoconsiderar que no autismo “não hágozo do balbucio” (Lefort, 1984), re-

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feriu-se à ausência do gozo que semarca na identificação primitiva comS

1, onde o registro de um traço dife-

rencial remete à alteridade e inaugurauma cadeia significante com possibi-lidade infinita de proliferação. O gozofálico advém da emergência da repre-sentação e da experiência alucinatóriade satisfação, que estabelecem a cap-tura do sujeito nas malhas do Outrosimbólico. Não ocorrendo dessa for-ma, torna-se pertinente a interrogaçãosobre o gozo que pode comparecer nolugar desta “falha” na constituição daVorstellung.

A articulação significante S1 � S

2

vincula o gozo à significação fálica,onde o sujeito é identificável com osequívocos inerentes ao sentido pre-sente nessa significação. A teoria dealíngua estabelece que existe uma ca-deia sem efeito de sentido, anterior aoordenamento significante. Esse enca-deamento sugere que há um saber fa-

zer com alíngua anterior ao saber sobre

alíngua, marcado pela relação de si-multaneidade entre os significantesque caracteriza um gozo que não de-pende do sentido veiculado pelo dis-curso. Tais elaborações teóricas são decrucial importância para situar o gozoautista como um gozo de alíngua.

4. Conclusão

A abordagem de Lacan nos per-mite considerar os trilhamentos, esta-belecidos por Freud no “Projeto para

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uma Psicologia Científica”, como o encadeamento de significantes.A existência desses trilhamentos é a marca diferencial do ser huma-no e o ponto de sustentação de sua realidade. Essa rede signficantese estabelece a partir de marcas da relação com o Outro na medidaem que o significante, ao cingir a impossibilidade real de repetir umaexperiência mítica de satisfação, possibilita o estabelecimento de umgozo vinculado a uma significação, ainda que provisória. É o gozofálico, que está em jogo na ilusão da comunicação e sustenta o laçosocial.

O autista expressa uma desconcertante indiferença com rela-ção àqueles que se endereçam a ele. Sua fala é precária, suas expres-sões, incompreensíveis, caracterizando-se pelo não estabelecimentodo laço social sustentado no gozo fálico.

Os fenômenos que se verificam na clínica do autismo destacamque, diante do impedimento da captura do sujeito nas malhas dogozo fálico, esse trabalho de enlaçamento semiótico ocorre a céuaberto, no real. O significante comparece no que seria o auge de suamaterialidade impedido de realizar o remetimento que lhe é caracte-rístico, persistindo num registro de simultaneidade, atemporal.

De acordo com Lacan, a alíngua é responsável pelo equívocona linguagem. Desprotegido do equívoco que alíngua imprime aosignificante, o imaginário comparece no real como terrorífico e ogozo que advém nesse lugar congela o sujeito, como se estivessesubmetido ao olhar da medusa. O permanente trabalho autista nosentido de neutralizar o Outro parece confirmar essa noção. Impe-didos de elucubrar o falacioso saber sobre alíngua que caracteriza odiscurso, os autistas são, entretanto, seres de linguagem que apre-sentam um saber fazer com alíngua.

Dessa forma, podemos considerar que, assim como as histéri-cas convocaram Freud a ocupar o lugar de analista ao endereçar-seao Outro no lugar de sujeito-suposto-saber, o autista convida o ana-lista a participar de seu saber fazer com alíngua e, dessa forma, a esva-ziar a plenitude do gozo de seu Outro Real.

THE REPRESENTATION AND THE ENJOYMENT IN THE AUTHISMCLINIC

ABSTRACT

Considering that autism brings up questions about the most primitive moment of the subjectivityconstitution, this paper first approaches the particularities of the enjoyment that, according to

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psychoanalytic theory, establishes representation asan inscription on inconscient tying up the subject tothe Other. Then, since in autism the enjoyment issituated beyond representation, it is envisaged fromthe viewpoint proposed by Lacan with the concept oflalangue, the precursor of representation asenjoyment.

Index terms: autism; lalangue; enjoyment;representation.

LA REPRESENTACIÓN Y EL GOCE ENLA CLÍNICA DEL AUTISMO

RESUMEN

Considerando que el autismo plantea cuestiones re-lativas a las fechas más primitivas de la subjetividad,el texto aborda inicialmente las particularidades queparticipan del goce que, de acuerdo con la teoría psi-coanalítica, postula la representación como unainscripción en el inconsciente que vincula el sujeto alOtro. Entonces, el goce en el autismo, en la medidaen que se plantea por debajo de la representación, sediscute desde el concepto de lalengua, propuesto porLacan como el precursor de la representación comogoce.

Palabras clave: autismo; lalengua; goce;representación.

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NOTA

1 Em francês, essaim, que quer dizer enxame,é homófono de S

1.

[email protected]

Recebido em setembro/2008.

Aceito em dezembro/2008.

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