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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL Dissertação de Mestrado TOXICOMANIAS E PSICANÁLISE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Rita de Cássia dos Santos Canabarro Porto Alegre 2011

Dissertação Rita de Cassia

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toxicomanias e laço social.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL Dissertao de Mestrado TOXICOMANIAS E PSICANLISE: ALGUMAS CONSIDERAES Rita de Cssia dos Santos Canabarro Porto Alegre 2011 Rita de Cssia dos Santos Canabarro TOXICOMANIAS E PSICANLISE: ALGUMAS CONSIDERAES Dissertaoapresentadacomorequisitoparcialparaa obtenodograudeMestreemPsicologiaSociale Institucional.ProgramadePs-GraduaoemPsicologia SocialeInstitucional.InstitutodePsicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Prof Dr. Marta Regina de Leo DAgord Porto Alegre 2011 Rita de Cssia dos Santos Canabarro AComissoExaminadora,abaixoassinada,aprovaaDissertaoToxicomaniase Psicanlise:AlgumasConsideraes,comorequisitoparcialparaobtenodoGraude Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertao defendida e aprovada em: 29/04/2011. Comisso Examinadora: ___________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Ely Mendes Ribeiro (Ministrio da Sade) _____________________________________________ Prof. Dr. Simone Moschen Rickes (PPGPSI - UFRGS) ____________________________________________ Prof. Dr. Tania Coelho dos Santos (UFRJ) AGRADECIMENTOS Aosmeuspais,MiriamdosSantosCanabarroeJooVercidaRosaCanabarro,por sempreteremfeitodetudoparagarantirarealizaodeminhasescolhas,mesmoquando delas discordavam. minha orientadora, professora Marta Regina de Leo DAgord, por acompanhar de perto e de forma to atenta todo o percurso do mestrado. Obrigada por respeitar o meu tempo de escrita e por me incentivar no estudo de Lacan, assinalando, sempre de forma to gentil, os equvocos que ainda cometo com a teoria. Ao meu namorado, Cristiano Dal Forno, por compartilhar comigo todos os momentos. Obrigada pelo carinho e pelo apoio de sempre. Obrigada, sobretudo, pela histria que, juntos, estamos construindo. squeridasamigasAnaPaulaCargneluttiVenturinieJoiceDickelSegabinazi,por meacolheremnoJoanaduranteoperododerealizaodomestrado.Suascompanhias tornaram a correria semanal menos cansativa e muito mais alegre.Ao Alexandre Rambo de Moura que, mais que um colega, tornou-se um amigo. A tua companhiatornouessetrajetomenosangustiante.Obrigadapeloapoio,pelasdicasepelo carinho.AosprofissionaisdosCAPS-adfreqentadospormim,durantearealizaoda pesquisa, por dividirem comigo as especificidades de seus trabalhos e seus questionamentos. Aos pacientes do Grupo de Preparao para o Final de Semana e Preveno Recada edoAtelierdeEscritaque,gentilmente,aceitaramaminhaparticipaonasatividadese compartilharam comigo suas histrias. professora Marta Conte, por contribuir com o trabalho no momento da qualificao do projeto. professoraSimoneRickes,pelatosingularleituradoprojetodepesquisaepor aceitar partilhar comigo de mais esse momento, agora de encerramento do estudo. Aos professores Eduardo Mendes Ribeiro e Tania Coelho dos Santos, pela cooperao na efetivao da pesquisa. ... pero una pregunta cuando es verdadera, permanece siempre como una pregunta, es decir, el de que alguna cosa, digamos un real, escapa a la respuesta, si no, no era uma pregunta... (Marie Jean Sauret) RESUMO Atualmente,vriospesquisadorestmsedebruadosobreaquestodastoxicomaniasna tentativa de tecer um saber a seu respeito. Embora no constitua uma prtica exclusivamente contempornea, alguns estudos recentes tm questionado se o uso feito, hoje, de entorpecentes qumicos o mesmo que o feito antigamente. Nesses trabalhos, verificamos a inexistncia de um consenso, inclusive entre aqueles que partem de um mesmo paradigma terico, a respeito do que est implicado nas toxicomanias. A partir da realizao de uma pesquisa psicanaltica em dois Centros de Ateno Psicossocial lcool e Outras Drogas (CAPS-ad), localizados na cidadedePortoAlegreRS,edaleituradaobraAlmooNu,deWilliamBurroughs, procuramosdarcontornosaduasquestescontroversaseaindapoucodesenvolvidasa respeito do assunto estudado, a saber, as que concernem ao campo dos discursos e ao campo dogozonastoxicomanias.Paratanto,partimosdaproposiolacanianasobreosdiscursos sociais. Palavras-chave: toxicomanias, psicanlise, discurso, gozo, prazer. ABSTRACT Currentlymanyresearchershavebeenaddressingtheissueofaddictiontryingtobuilda knowing about it. Although the practice is not exclusively contemporary, recent studies have questionedwhethertheuseofdrugsmadetodayisthesameasdonepreviously.Inthese studieswefoundtheabsenceofaconsensusevenamongthosewhodepartfromthesame theoreticalparadigmaboutwhatisinvolvedinaddiction.Afterperformingasearchontwo psychoanalyticPsychosocialCareCenters-AlcoholandOtherDrugs(CAPS-ad),inPorto Alegre-RS,andreadingthebookNakedLunch,byWilliamBurroughs,weseektogivea shape to two controversial and poorly developedissues: on the subject of speechesfield and concerningjouissanceintoxicomania.ThestartingpointisLacanianpropositionofsocial discourse. Keywords: toxicomania, psychoanalysis, discourse, jouissance, pleasure. SUMRIO INTRODUO9 MTODO14 O texto da pesquisa psicanaltica: o ensaio16 O possvel escrito da pesquisa psicanaltica19 1. AS TOXICOMANIAS E OS DISCURSOS SOCIAIS21 1.1. Os quatro discursos21 1.2. Um quinto discurso25 1.3. Os cinco discursos e suas (possveis) relaes com as toxicomanias26 1.3.1. O discurso do universitrio e as toxicomanias 26 1.3.2. O discurso da histrica e as toxicomanias28 1.3.3. O discurso do mestre e as toxicomanias30 1.3.4.OdiscursodocapitalistaeastoxicomaniasouAvirtudeemrevoltacontrao curso do mundo35 1.3.4.1. O discurso do capitalista e as toxicomanias: mais, ainda...38 1.3.5. O discurso do analista e as toxicomanias44 1.4. Um sexto (ou stimo) discurso?47 2. ALGUNS TRATAMENTOS DAS TOXICOMANIAS E SUAS RELAES COM OS DISCURSOS 50 2.1. CAPS-ad A50 2.1.1. A impossibilidade de realizao da pesquisa51 2.2. CAPS-ad B52 2.2.1. Centros de Tratamento = Centros de Recondicionamento?53 2.2.2. Discurso do universitrio X Discurso da histrica59 2.2.3. A surdez do discurso do universitrio61 2.2.4. A impotncia do discurso do universitrio64 2.2.5. A transferncia com o CAPS e com os grupos67 2.3. O que prope a psicanlise 70 3. PRAZER E GOZO NAS TOXICOMANIAS73 3.1. O prazer73 3.2. O(s) gozo(s)76 3.3. O prazer uma barreira ao gozo80 3.4. O gozo do toxicmano 84 3.5. O prazer do toxicmano 88 3.6. Do prazer com a droga ao prazer com a vida91 CONSIDERAES FINAIS97 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS100 ANEXOS108 9 INTRODUO Ousodesubstnciasentorpecentescompeahistriadacivilizao.Utilizadascom distintasfinalidades,desdeosrituaisxamnicosatostratamentoscomobjetivos teraputicos,asdrogastmseconstitudoemfocodevriosestudos,notadamente,nas ltimas dcadas. O recurso a substncias capazes de alterar os sentidos conhecido h sculos enorepresentaumaatitudeexclusivamentecontempornea,emboraadrogadio,muitas vezes, acabe por ser apresentada como uma doena atual e, at mesmo, como constituinte de umaepidemia.Sobesseprisma,cabediferenciarmosousodedrogasdastoxicomanias. Nemtodosossujeitosquelanammodasdrogassotoxicmanos.Nestes,dependncia psquicaedependnciafsicaestopresentesdeformaavassaladora,aopassoquenos usurios de drogas constata-se apenas certa dependncia psquica (BIRMAN, 2007). Destaca-se,assim,quesomenteaoestudodastoxicomaniasquenosocupamosaolongodeste trabalho. Aoreconhecerqueadependnciadesubstnciaspsicoativasacompanhaohomem desdeosprimrdiosdesuahistria,algunsestudosrecentes(BIRMAN,2007;LESOURD, 2004;MELMAN,2000,2003)tmquestionadoseousofeitohojedessesprodutoso mesmoqueofeitoantigamente.Nessesestudos,quesededicamatentartraarum entendimentoacercadastoxicomanias,oquevemosaausnciadeumconsensosobreo assunto,inclusiveentreaquelestrabalhosconstrudosapartirdeummesmoparadigma terico. Tal fato j fornece indcios da complexidade do fenmeno. As toxicomanias ganham distintos contornos at mesmo entre os trabalhos que lanam mo da psicanlise para entender a questo. Em alguns casos ela vistacomo representativa de uma nova estrutura (CALLIGARIS, 1991), ao passo que, em outros, entendida como um fenmenopresentenaestruturaperversa(BIRMAN,2007).Outrostrabalhos,ainda,avem como um fenmeno que pode estar presente em qualquer estrutura clnica (ALBERTI, INEM e RANGEL, 2003; CONTE, 2003a; LE POULICHET, 1996, 2005; MELMAN, 2003). Diante dessasdiversasformulaestericasperguntamo-nos,noinciodenossapesquisa,se existiriamvriastoxicomaniasouseessasconceitualizaesapenasevidenciamavariedade de interpretaes que a teoria psicanaltica possibilita a partir da apropriao que feita de seu arcabouo terico.Dequalquermodo,aonosdedicarmosaoestudodoqueestimplicadonas drogadiesvimosque,assimcomoafirmaSantiago(2001a,p.9),astoxicomanias 10 constituemum dos captulos dahistria da psicanlise em quemais se consegue aproximar dos prprioslimites tanto de seu saber como de sua prtica. As toxicomaniasno pem em questoapenasosaberpsicanaltico,mastambmasuaconcepodetratamento. reconhecido,principalmentenoslocaisespecializadosnocuidadoaousuriodedrogas,a baixa adeso do toxicmano ao tratamento e a sua falta de demanda para que o mesmo se d.Ointeresse em estudar a questo do uso de substncias psicoativas surgiuno perodo de nossa graduao em Psicologia. Durante a realizao dos estgios acadmicos, deparamo-nos com um nmero considervel de pacientes que chegava para o atendimento psicolgico j comumdiagnsticoefazendousodealgumpsicotrpico.Muitosdosqueaindano utilizavamnenhumamedicaoprocuravamajudapsicolgicacomointuitodeconseguira prescrio de um remdio. Tais situaeslevaram-nos ao questionamento acerca do que est envolvidonaprocuradeumsujeitoporumentorpecente,sejaelelcitoouilcito.Esse questionamento conduziu-nos ao estudo do assunto em nosso trabalho de concluso de curso, no qual abordamos a questo da medicalizao, atravs da realizao de uma pesquisa terica empsicanlise.Apsaconclusodessaetapaacadmica,otemadousodesubstncias psicoativas continuava a interrogar-nos e, por isso, decidimos dar prosseguimento aos nossos estudos nesse curso de Mestrado, enfatizando, ento, a questo das toxicomanias. Como fala Conte (2004), do sujeito que faz uso de drogas muito se fala, mas pouco se escuta. Foi a partir do desejo de escutar esses sujeitos, dos quais tantos trabalhos e tantas reportagens falam, que nos lanamos na concretizao desse trabalho. Apesar de sabermos que o uso de qualquer tipo de droga, seja ela lcita ou ilcita, deve ser analisado na particularidade de cada caso, algumas consideraes e certas questes podem serlevantadasarespeitodoassunto.Oquenosparecemaiscaroaessadissertao justamente o fato de no haver um consenso, mesmo no interior da psicanlise, a respeito do que seja a toxicomania. A partir do desdobramento e do tencionamento dos diferentes saberes jexistentessobreotemaprocuramos,aolongodenossopercurso,darcontornosaduas questes controversas e ainda pouco desenvolvidas a seu respeito, a saber, as que concernem aocampodosdiscursoseaocampodogozonastoxicomanias.ComonoslembraSantiago (2001a,p.20),parainvestigarmosaquestodadroganastoxicomaniasnecessrioque partamos da lei do discurso, uma vez que para a psicanlise no h noo de droga que no seja relativa ao contexto discursivo no qual ela se enuncia. Como forma de resposta no saber quiloquedorealodiscursoqueestemcondiesdecaptarasimplicaesda polissemiaproduzidapeladroga.Dessaforma,conformeopsicanalista,vemosquecada 11 pocaseapropriadafiguradoinefvelcomosingredientesdiscursivosqueelaprpriater produzido.Sendo assim, no princpio de nossa pesquisa, partimos da interrogao acerca de quais seriam os ingredientes discursivos de nossa poca com a finalidade de averiguarmos quais as possveisrelaesqueastoxicomaniasestabeleceriamcomelas.Paratanto,recorremos teoriadosdiscursospropostaporLacan(1969-70/1992;1972),perguntando-nosoqueas toxicomanias, enquanto discurso ou enquanto sintoma, expressam, isto , o que elas colocam em questo.Ao abordarmos as toxicomaniasemuma articulao com a teoria dos discursos inevitavelmente acabamos por trabalhar com asformas de gozo que elas permitem, umavez queodiscursoatuacomoreguladordogozodosujeito.Namedidaemqueaestruturado discurso tem como efeito a distribuio do gozo, lembremos que Lacan (1968-69/2008, p. 18) nosdizqueodiscursodetmosmeiosdegozar,namedidaemqueimplicaosujeito, procuramos, ento, postular qual o gozo engendrado pelas toxicomanias, alm debuscarmos analisar qual a relao existente entre as toxicomanias e o lao social.Ao delinearmos nossa pesquisa por esses campos, acabamos por tomar partido de uma concepoespecficadastoxicomanias:adequeelasconstituemumfenmenopassvelde ocorrnciaemqualquerumadastrsestruturasclnicaspropostaspelapsicanlise,quais sejam, neurose, psicose e perverso. Comafinalidadedeefetivarmosapesquisa,entramosemcontatocomdoisCentros deAtenoPsicossociallcooleOutrasDrogas(CAPS-ad)dacidadedePortoAlegre RS. Em um deles, participamos da Atividade Cientfica, realizada com a equipe profissional, e nooutro,participamosdasatividadesdesenvolvidascomospacientesdoGrupode PreparaoparaoFinaldeSemanaePrevenoRecadaedoAtelierdeEscrita.O trabalho escrito, resultante da pesquisa, foi construdo a partir de textos e de recortes de falas dos pacientes e dos profissionais quefreqentamambos os CAPS-ad. Alm desses dados de campo,tambmserviucomomaterialaobraAlmooNu,deautoriadeWilliamBurroughs. Nosso estudo foi efetuado atravs do mtodo da pesquisa psicanaltica e o texto que se segue compostoporensaiosquetentam,emalgumamedida,darcontadosobjetivosdenosso trabalho.NoCaptulo1dapresentedissertaoabordamosasrelaesqueastoxicomanias podemestabelecercomcadaumdosdiscursosformuladosporLacan.Essecaptulofoi construdoapartirdenossaconstataodequeasdiferentesperspectivasarespeitodas toxicomanias justificam-se quando vistas desde o vis de um determinado discurso.12 NoCaptulo2,trabalhamosaquestodealgunsdostratamentosdastoxicomanias, embasadasemnossaexperincianosdoisCAPS-adquefreqentamos.Nessecaptulo, procuramosexplicitarquequalquerprticateraputicaemvogaemumadeterminada instituio apresenta estreita relao com o(s) discurso(s) que circula(m) por esse local.Porfim,noCaptulo3,procuramosdebateraquestodogozoedoprazernas toxicomanias,apartirdarealizaodeumsucintopercorridosobreoqueessesconceitos representam nas teorias freudiana e lacaniana e em que nos so valiosos no momento em que exploramos a questo das drogadies. Contudo, antes de apresentarmos, mais detidamente, o mtodo que guiou nosso estudo e os captulos que decorreram da, queremos citar um trecho do poema Declarao em Juzo, de Carlos Drummond de Andrade: ... se se admiram de eu estar vivo, esclareo: estou sobrevivo. viver, propriamente, no vivi seno em projeto. adiamento. calendrio do ano prximo. jamais percebi estar vivendo quando em volta viviam quantos! quanto. alguma vez os invejei. outras, sentia pena de tanta vida que se exauria no viver enquanto o no viver, o sobreviver duravam, perdurando. e me punha a um canto, espera, contraditria e simplesmente, de chegar a hora de tambm viver.no chegou. digo que no. tudo foram ensaios, testes, ilustraes. a verdadeira vida sorria longe, indecifrvel. desisti. recolhi-me cada vez mais, concha, concha. agora sou sobrevivente. sobrevivente incomodamais que fantasma. sei a mim mesmo incomodo-me. o reflexo uma prova feroz. por mais que me esconda, projeto-me, devolvo-me, provoco-me. no adianta ameaar-me. volto sempre, todas as manhs me volto, viravolto com exatido de carteiro que distribui ms notcias. o dia todo dia de verificar o meu fenmeno. 13 estou onde no esto minhas razes, meu caminho onde sobrei, insistente, reiterado, aflitivo sobrevivente da vida que ainda no vivi, juro por deus e o diabo, no vivi... Esse trecho j anuncia, em poucas palavras, de forma densa e nada delicada, o que ser apresentadonaspginasseguintes.AotomardeemprstimoosversosdeDrummond, vislumbramos esses sobreviventes, recolhidos em conchas que incomodam mais do que fantasmas as autoridades e os gestores pblicos de sade: os toxicmanos. OnossoencontrocomDeclaraoemJuzodeu-seduranteoperododerealizao dessa pesquisa, e desde a primeira vez, algo nesse poema parecia dizer-nos um pouco do que vnhamos estudando. J h algum tempo impressionamo-nos com a capacidade de Drummond paraexpressarempoucosversosoquesentenapele,aquilocompartilhacomseusirmos, humanos,equeLacanetantosoutrosautoresdedicaramvriosseminriospara(tentar) transmitir.,ento,comDrummond,essepoetameiolacaniano,ousaramosdizer,que iniciamos a apresentao da pesquisa realizada nos ltimos dois anos. 14 MTODO Istonospermiteafirmarqueospsicanalistas,quandobuscamescutaros significantes, quando buscam uma forma de ler e escrever o que lem naquilo que escutam, encontram uma letra muito particular, que no letra de msica, que no se insere nas letras literrias, mas se nutre delas; que quase, que litoral entre o corpoeoverbo,entreomareaareiadomar(quequandoquebranaareia bonito, bonito). Quase um litoral entre o gozo e o saber. equivalente do intil, naquilo que o gozo tem de intil, mas imprescindvel para a vida (PEREIRA, 2006, p. 62, grifo do autor) Ao lanarmo-nos, aqui, na tentativa de empreender uma pesquisa psicanaltica em um ambienteuniversitrio,vemossurgirumasriedequestesque,delongadata,revelao embate-debate entre psicanlise e universidade.Sabemosqueapsicanlisefilhadacincia,umavezqueseusurgimentonoseria possvelsemaproduodosujeitodacincia.Dequalquerforma,apsicanlisetemo privilgiodeseranicadisciplinaquetemodesgniodenorenunciaradarpalavraao sujeito, a no renunciar quilo que constitui sua particularidade (SAURET, 2003, p. 94). Se, porumlado,acinciaprocuraexcluirosujeito,nabuscapelatosonhadaobjetividade,a psicanlise, e a pesquisa que ela permite, por outro, interessa-se pelo que constitui o particular do sujeito, aquilo pelo qual o sujeito resiste cincia.Desdeseusprimrdios,comFreud,apsicanlisededicou-seaoestudodaqueles fenmenosqueforamrenegadospelacincia,porsereminexplicveisporela.Tratava-see trata-se, ainda, daquelesfenmenos que constituemfurosno saber, tal como asformaes do inconsciente (POLI, 2008). Aoconsideraroinconsciente,easproduesdeste,comofundamentalno desenvolvimentodesuaspesquisasapsicanlisetrabalhacomumaconcepodesujeito diferentedasdemaispesquisascomumentedesenvolvidasnombitoacadmico.Paraa psicanlise,oprpriopesquisadorosujeitodesuapesquisa.Emaisdoqueisso,eleo primeiro sujeito da pesquisa que empreende. Nesse sentido, a pesquisa psicanaltica difere das demaispesquisaspsicolgicasporimprimirumaconcepodocampopsibaseadanateoria da causalidade psquica,inicialmente proposta por Freud, e por apresentar comoinstrumento detrabalhooaparelhopsquico(CAON,2002).Essaparticularidadefazcomquea experinciadejterpassadopelaanlisepessoalsejaorequisitoindispensvelparaa pesquisa psicanaltica. Segundo Caon (2002, no paginado), essa modalidade de pesquisa a continuaodaformaopsicanalticainiciadacomaexperinciaprimordialnasituao 15 psicanalticadotratamento,ondeoanalisanteaparececomooarquimodelodopesquisador psicanaltico. Tomar o analisante como arquimodelo do pesquisador psicanaltico o mesmo quedizerqueesteltimoestimplicadocomoprimeirosujeitodesuapesquisa,poisassim comooanalisanteseengajanoprocessodeanliseedizalgodeseusofrimento psicopatolgico, inserido numa situao de transferncia, tambm o pesquisador psicanaltico dumtestemunhodesuainvestigaoaumoutro,aumaalteridadecomaqualirse transferenciar (IRIBARRY, 2003).Dessa forma, a pesquisa psicanaltica relativa ao tempo de percurso e de formao de cadasujeito(POLI,2008).Oresultadodequalquertrabalhoinvestigativo,nocampo psicanaltico,dependentedotempodeanlisedopesquisador.ComoexpeCaon(1999,p. 40), a condio de ser paciente da tcnica para depois ser profissional dessa mesma tcnica constituinteecondiosinequanonempsicanlise.Nascomunidadesuniversitriasde pesquisadoresapesquisapsicanaltica,ento,arefundaodaexperinciafundada, anteriormente,nasituaopsicanalticadetratamento,naqualopacienteanalisanteo pesquisador.Por tal caracterstica, a pesquisa psicanaltica clnica ou realizada conforme o modelo da pesquisa clnica e, assim, unifica num nico e mesmo ato, a pesquisa e a terapia (CAON, 1999,p.39),oqueimplicaoperaratravsdaverbalizao,daescuta,datransferncia,da anlise e da interveno (SAURET, 2003).A pesquisa psicanaltica busca, ao contrrio das demais modalidades de pesquisa, uma posiodeenunciaoenoaproduodeconhecimento;buscaaproduodeumsaber singular(POLI,2008).Nabuscaporessesaber,somoslevadosaprovardainveno freudiana,talcomoafazemosemnossaexperinciadeanlisepessoal,submetendo-nosao mtodoeaoprocedimentodaassociaolivre.Emseupercurso,vemosqueFreudaplica sobresisuacincia,submete-seassociaolivreetestemunha,emcartasetextos,asua experincia. Como um bom cientista, no de si que ele fala, nem de um si como quem constriumpersonagemoqueocolocarianocampodaliteraturaedaarte,elefala disso que o habita (POLI, 2008, p. 164). Assim, vemos que Freud encontra uma condio demximaintimidade que, entretanto, o aproxima deformairrevogvel de seus pacientes e, porextenso,detodososseresfalantes.EstclaroqueFreudprocuradarotestemunho daquiloque,paraele,fazenigma,sem,contudo,cairnumsubjetivismodesenfreado (PEREIRA, 2006).Pereira(2006),aofalarsobreopossveleoimpossveldatransmissodeuma experinciadeanlisepessoaloudeumaexperinciaclnica,chamaanossaatenoparao 16 perigo de o escrito permanecer somente no plano da fantasmtica pessoal de quem se prope a faz-lo.Paraele,oescrito temqueproduzirumefeitodeescritura,noleitor(Ibid.,p.59) que v alm da pessoalidade. evidente que em nossas pesquisas sempre partimos daquilo que para ns faz enigma, daquiloquefazfurononossosaberequenospeatrabalhar.ComoafirmaPoli(2008),as caractersticasdoquepesquisamossoabsolutamentedependentesdotipodeestileteque utilizamospararecortarnosso objetodepesquisa.Esteestileteemparteateoria,mas tambm, e principalmente, a posio do analista, de seudesejo deanalista, na construo da questo (Ibid., p. 163). nesse sentido que podemos dizer que o mtodo que cria o objeto. Estenodadoapriorieestapenasesperandoparaserdescobertoedesvendado.Ao construirmosnossaquesto,nossoproblemadepesquisa,tambmestamosconstruindoo objeto a ser estudado, de forma que s poderemos falar dele a posteriori, no s depois. Para Poli,noofenmenoemsiquedefineonossomododepesquisar,massimarede (significante) ou o anzol (do desejo) que estendemos para apanh-lo. O objeto vem junto com a rede e acaba por se confundir com ela; o objeto traz o anzol para apanhar quem o lanou. o retorno da mensagem na medida em que o objeto da psicanlise , em sua prpria definio, um fato de linguagem ela por princpio social, mas seu uso necessariamente individual, como as formaes do inconsciente (Ibid.). Daconclumos,comLacan,quenointeriordafantasiaedatransfernciaquea psicanlisebuscaeproduzseuobjeto.Porissomesmo,apsicanlise,maisdoqueuma cincia,umatica.Tambmnaprticadepesquisaelaproduzosujeitoenoapenaso descobre (POLI, 2008). O texto da pesquisa psicanaltica: o ensaio Umavezexpostoosprincipaispressupostosqueembasamnossapesquisa,cabe esclarecermos mais alguns pontos sobre a construo do presente trabalho. Aps partirmos das consideraes feitas por psicanalistas estudiosos das toxicomanias, otextodenossapesquisafoitecidoapartirdeencontroscomaequipedeumCentrode Ateno Psicossociallcoole Outras Drogas (CAPS-ad) e de encontros com pacientes de outroCAPS-ad,amboslocalizadosnacidadedePortoAlegreRS.Duranteoestudo, freqentamos,porumperododetrsmeses,aAtividadeCientficarealizadapelaequipe profissional do primeiro CAPS-ad e, por um perodo de doismeses emeio, participamos do 17 Grupo de Preparao para o Final de Semana e Preveno Recada e do Atelier de Escrita, ambosrealizadoscomospacientesdeoutroCAPS-ad.Paraumamelhorcompreenso,no decorrerdessadissertao,referir-nos-emosaoprimeirocomoCAPS-adAeaosegundo como CAPS-ad B.Emnosso projeto de pesquisa, expusemos que pretendamos participar das atividades desenvolvidasnoCAPS-adAporumperodoaproximadodequatromeses.Noentanto,em funo do baixo nmero de pacientes atendidos pelo servio e a pedido da psicloga do local, acabamosporacompanharostrabalhosdesenvolvidoscompacientessomentenoCAPS-ad B1. Devido morosidadeno processo de passagem do projeto de pesquisa pelos Comits de ticaemPesquisa2,reduzimosnossoperododeobservaodasatividadesdequatropara dois meses e meio.Combasenessaexperincia,produzimosnossaescritaapartirdealgumasfalasede algunstextos3deautoriatantodosprofissionaisquantodospacientesdoCAPS-adB.Os relatos de nossa participao nas atividades do CAPS-ad Bforam anotados em um dirio de campo,queficousobnossoscuidadosdurantearealizaodapesquisaeficarsobnossa guardaporumperododecincoanos,apsoqualserincinerado.Almdesses,tambm usamos na composio de nosso texto a obra Almoo Nu, de autoria de William Burroughs. importanteressaltarquefizemosusoapenasdefalasedetextosdaquelesprofissionaise pacientes do CAPS-ad B que concordaram em participar da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que se encontra anexado ao final deste trabalho (ANEXO A).Afimdesalvaguardarmosaidentidadedecadaumdosparticipantesdapesquisaseus nomes foram omitidos e/ou substitudos por nomes fictcios no decorrer da dissertao.Apartirdessematerial,construmosalgunsensaiosmetapsicolgicosqueversam sobreanossaquestodepesquisa.ComoexpemCaon(1999)ePereira(2006),oensaio metapsicolgicootextodapesquisapsicanaltica.Oensaio,aocontrriodacinciaedas teoriasorganizadas,noalmejaumaconstruofechada,dedutivaouindutiva(Adorno, 1974/1985, p. 174). O ensaio no possui um fechamento de fato. Assim como a realidade, ele 17 1AsespecificidadesdenossaexperinciaemambososCAPS-adserodesenvolvidasnoCaptulo2dessa dissertao. 2NossoprojetodepesquisatevequepassarpelaavaliaodetrsComitsdeticaemPesquisa:oCEPdo InstitutodePsicologiadaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,oCEPdaSecretariadeSadeda PrefeituraMunicipaldePortoAlegreeoCEPdainstituioprivadadeondeprovmosprofissionaisque trabalham no CAPS-ad B. 3Ostextosforamtranscritosparaessadissertaoconformeseusformatosoriginais.Somentecorrigimosos erros de grafia neles apresentados. 18 descontnuo e constitudo de rupturas; ele no conclusivo, sua totalidade a totalidade de um no-total. O ensaio, por suas especificidades, aproxima-se da concepo de sujeito com a qual trabalhamos, a saber, a de Sujeito do Inconsciente, sujeito falante e incompleto, dividido pela ordem da linguagem. Por essas caractersticas, o ensaio pode servir comomaneira de escrever a elaborao daprticapsicanaltica,umavezquepermiterecontarumahistriaatravsdefragmentos quesetornamsignificantesparaosujeito(PEREIRA,2006,pp.54-55,grifodoautor).A indicao ao fragmento no deixa de estar relacionada ao resto e ao objeto causa de desejo. Estarefernciaaoresto,aoqueresta,aoqueseperde,estarticuladatantona passagemdeumatransmissodooralparaoescrito(daexperinciasingularde umaanliseparasuaescrita),comtodasasimplicaesdaadvindas;quantona prtica de uma tica que nos parece essencial neste momento: poder extrair todas as conseqncias de sustentar que o lugar da verdade, no discurso do psicanalista, est ocupadopeloS2;ouseja,osabernolugardaverdadeimplicapensarquenoh saber suficiente para fazer com que a verdade seja total. Uma verdade sempre um semi-dizer (PEREIRA, 2006, p. 55). Apsicanliseencontranoensaioaformadeescritaquemaisseaproximadeseus pressupostos. Como expe Poli (2008), a construo de um saber em psicanlise passa por um desfazerdenossascertezasapriorsticas,porummergulhonacenaemquenosdeixamos apanhar pelo enigmae por umsacamento na produo de umsaber condizente comnosso lugar na estrutura. Tudo isso implica situarmo-nos dentro da psicanlise, de sua transmisso e herana e, a partir da, construirmos nosso lugarde enunciao. Para que isso seja possvel, preciso que partamos do ato original de aceitar a queda de um referente exterior, qual seja, a operaodacastraosimblica.justamenteacastraoquepermiteaemergnciada psicanlisecomoexercciodeumaticaqueresisteobturaodofuronosaber.Aono visar a essa obturao, o ensaio constitui-se como um texto que, pelo contrrio, aponta para o furo. Realizamos uma pesquisa como uma tentativa de contornar esse buraco, essa falha, sem jamais tampon-lo.O ensaio incompleto e fragmentado, apresenta notas que dialogam com o texto, com seusobjetivosinternos,mastambmcomoutrostemaseautores.Inclui-senorelatoa experinciasubjetivadeseuautorquenosefurtade tentarfazercomqueessasvivncias faampartedesuanarrativa;poissendosuascondiesdeproduodesconhecidasparao personagem, o inconsciente, em sua forma mais laica, que entra em cena (PEREIRA, 2006, pp. 57-58). Recorrer ao ensaio uma tentativa de apropriar-se da tradio, seja ela literria ou 19 filosfica4, para inventar uma escrita da experincia psicanaltica. a ele que recorremos para dar o testemunho de nossa experincia de pesquisa. O possvel escrito da pesquisa psicanaltica Apsicanlisee,conseqentemente,apesquisapsicanalticanoseriapossvelsemo encontrocomoreal,semoencontrocomissoqueseapresentacomooimpossvelde suportar. Para Lacan, a clnica psicanaltica justamenteisso, o real enquanto impossvel de suportar.nessesentidoqueotrabalhodetodapesquisapsicanalticaoperanatenso,na interface de recobrimento impossvel entre o simblico dos significantes disponibilizados pela psicanlise e o real da clnica (POLI, 2008). Nesse ponto, escrita do caso e transmisso se entrecruzam. Como j afirmamos, fazer pesquisapsicanalticaincluir-secomoautoremsuaproduo,oqueimplicasituar-se relativamenteaumatransmisso.Assimsendo,pesquisa-se,empsicanlise,paradaro testemunho de um encontro com o real, com esse ponto da experincia que resiste ao saber, e queoperapelatransferncia,viaprivilegiadadatransmissodapsicanlise(POLI,2008). Seguindo essemodo de pesquisar, emnosso trabalho tentamos construir uma pequenaborda que fosse capaz de permitir a nomeao de um ponto do real que nos foi dado testemunhar em nossa experincia com as toxicomanias.Aolongodopercurso,noqualaescritaapresentou-secomoumadasprotagonistas, utilizamostambmorecursodaconstruodocasopropostoporFdida(1991).Ocaso constitudoporhipteses,puramenteda ordemdafantasia,queseconstroemnassessesde superviso.nasuperviso,situaoemqueexigeacapacidadeimaginativaerefletea condio para que as sobredeterminaesintertransferenciais sejam percebidas, que sebusca formar e formular o enigma do caso, a partir de um ponto de vista exterior ao tratamento. A construo do caso de anlise efetua-se, ento, em relao quilo que elaborado no decorrer da superviso e que passa a ganhar o status de caso somente no momento em que apresentadopublicamentecomunidadeanaltica.Ocaso,paraFdida(1991),este trajeto da formulao do enigma do caso produzido nas sesses de superviso at a sua apresentao diantedospares.Ocasovisto,assim,comoumateoriaemgrmenquepossuiuma capacidadedetransformaometapsiclogica.,portanto,inerenteaumaatividadede 19 4 Na literatura e na filosofia o ensaio um recurso utilizado j h bastante tempo. 20 construo tal como a anlise de superviso capaz de constituir. O caso no procede de um relato, nem da mera descrio dos funcionamentos psicopatolgicos do paciente, tampouco da histriadocaso.Ocasoconstrudo;talcomooensaio,umaficoerigidaapartirda escrituradesdeasnotasdesessoatacomunicaocientficaquespossvelpor apresentar por interlocutor o engendramento de uma comunidade, no caso, a psicanaltica.Foiassim,ento,quesedesenhounossapesquisa.Osencontros, oumelhordizendo, os registros dos encontros com os pacientes e com as equipes dos CAPS-ad que freqentamos foram discutidos nas reunies de orientao, que se constituram em momentos de superviso. Oscasosconstrudos,nesseprocesso,refletemaquiloquenosinterrogou.Para trabalharmos essasinterrogaes,escrevemosnaformadeensaio.Taisensaiospretenderam,emalguma medida,abordaraquestodastoxicomaniasemsuasrelaescomateoriadosdiscursos, proposta por Lacan (1969-70/1992; 1972), estando a entrelaado o mote do lao social, bem comotentaramdarumcontornoproblemticadopossvelgozopresentenoato toxicomanaco. 21 1. AS TOXICOMANIAS E OS DISCURSOS SOCIAIS Diferentesformulaestericas,mesmonointeriordocampopsicanaltico,tm procuradodarcontadoquesejamastoxicomanias.Diantedeumadiversidadede consideraes acerca das drogadies, como vimos na introduo dessa dissertao, podemos perceberavariedadedeinterpretaesqueateoriapsicanalticapermiteatravsda assimilao de suas concepes.Afimdeinvestigarmosasquestesimplicadasnastoxicomaniaseosfatoresque possibilitamessadiversidadedesaberesaseurespeito,recorreremos,aqui,teoriados discursos, proposta por Lacan (1969-70/1992; 1972), pois acreditamos que ela poder nos ser til na elucidao desses assuntos. 1.1. Os quatro discursos EmseuSeminrio,livro17,Lacan(1969-70/1992)elaboraosquatrodiscursosque recobremaquelesofciospostuladosporFreud(1925/1996)comoprofissesimpossveis, quaissejam,governar,educarecurar.Aessestrsofcios,quetmemcomumessa impossibilidadedeobtenoderesultadossatisfatrios,Lacanacrescentaofazerdesejar.O discursodomestre,odouniversitrio,odoanalistaeodahistricareferem-se, respectivamente, a cada um desses impossveis ofcios. Osdiscursossocaracterizadosporapresentarumaestruturaquadrpodegiratria que representa um aparelho de quatro patas, com quatro posies fixas e quatro termos que permanecem na mesma ordem. Os termos S1 (o significante (s-lo) mestre), S2 (o saber), a (o objeto a; mais-gozar) e $ (o sujeito) circulam nas posies do agente, do outro, da produo e da verdade.Osquatrodiscursosforamformuladosapartirdeumaestruturatetradrica.Decada umdosvrticesdessaestruturaparte,aomenos,umvetor(flechaorientada)eumvetor,ao menos,chegaatele.Anicaexceoverificadanolugar/vrticedaverdade,deonde partemduasflechassemquenenhumachegueatele.H,portanto,asupressodeumdos ladosdotetraedro,oquerepresentaapropriedadedeumdosvrtices,asaber,adeque nenhum vetor chega para alimentar o discurso (LACAN, 1971-72/1997).22 OlugardoagentesituadoporLacan(1969-70/1992,p.41)comosendoa dominantedodiscurso. apartirdelaqueodiscursoseordenaeadominantequeserve para denominar cada um deles. No discurso do mestre a dominante o S1, a lei;no discurso da histrica a dominante o sintoma em torno do qual se situa e se ordena tudo o que desse discurso;nodiscursodoanalista,oobjetoa,umavezqueopsicanalistaseoferececomo idnticoaissoqueseapresentaaosujeitocomoacausadodesejo(Ibid.,p.99);eno discurso universitrio a dominante o saber, o mandamento do mestre que ordena continua a saber (Ibid., p. 98).Entretanto,oagentedodiscursoapenas,aparentemente,seuagente,poisamola propulsoradequalquerdiscursoaquelaquesesituanaposiodaverdade.Oagentedo discurso , dessa forma, apenas semblante, uma vez que a verdade nunca se revela totalmente, a verdade sempre meio-dizer. O agente no aquele que faz, mas aquele a quem a verdade faz agir. OprimeirodiscursoaserdesenvolvidoporLacan(1969-70/1992)odiscursodo mestre, poisneleverificamos aOrdem Simblica tal qual, aquela quenos d uma expresso formal da constituio do sujeito, a partir da operao da castrao simblica. Nele os termos soequivalentes,poistmomesmovalorqueoslugaresqueocupam.Oagentenesse discurso o significante-mestre que finge ser uno e indiviso. O desejo em questo o de que de fato seja assim. por isso que o significante-mestre tenta juntar-se ao S2 no lugar do outro. Tal desejo revela-seimpossvel, pois uma vez que haja um segundo significante, o sujeito , necessariamente,divididoentreeles.Essesujeitodivididoencontradonaposioda verdade,porquantoaverdadeescondidadomestrequeelemesmodividido.Oresultado do anseio do mestre em ser uno e indiviso atravs dos significantes um mero paradoxo, uma vezqueoqueseudiscursoproduzoobjetoa.Oobjetoperdidocomoproduodesse discursodemonstraqueomestre,enquantonelepermanecer,nuncasercapazdeassumira causa de seu desejo (VERHAEGHE, 1995). 23 Discurso do mestre Atravs da rotao de um quarto de volta no discurso do mestre obtemos o discurso da histrica.Neleosujeito,pormeiodeseusintoma,dirige-seaooutro,transformadoem mestre,quetemqueproduzirumaresposta,umsaber,quetentadarcontadoobjetoa, verdaderecalcadanessediscurso.Arespostadadapelomestresersempreirrelevante,uma vezqueaverdadeirarespostadizrespeitoaopara-sempre-perdidoobjetoquenopodeser posto em palavras (VERHAEGHE, 1995). Discurso da histrica Maisumgirodeumquartodevoltaetemosodiscursodoanalista.Nessediscurso, quem ocupa o lugar de agente o objeto a, causa do desejo, que funda a posio de escuta do analistaequeobrigao outroaconsiderarsuadiviso.Oqueseproduzdaosignificante-mestre,odeterminanteedpicoparticulardosujeito.Naposiodeverdadeencontra-seo saber, o saber do analista, que no pode ser apresentado na anlise porque o lugar do agente ocupadopeloobjetoa(VERHAEGHE,1995).Nodiscursodoanalista,osaberfunciona como verdade, ressaltando o fato de que a verdade considerada como fico. Discurso do analista Com mais um quarto de giro temos o quarto discurso, odiscurso do universitrio. No discursouniversitrioquemocupaolugardeagenteosaberconstitudo.Ooutrofica reduzido a ummero objeto, causa do desejo que, neste caso, visa a alcanar o objeto atravs doconhecimento.Oprodutodessediscursoumacrescentedivisodosujeito,poisquanto mais conhecimento se usa para alcanar o objeto, mais se torna dividido entre significantes. A verdadeescondidaspodefuncionarsesetemagarantiaparaela,qualseja,adeum significante-mestre.Nohumarelaoentresujeitoesignificante-mestre,omestre 24 suposto ocultar os significantes sem que haja nenhuma relao com sua prpria subjetividade, oqueimplicaapretensaobjetividadedefendidapelacinciaequenopassadeumamera iluso(VERHAEGHE,1995).Bemsabemosqueaspesquisasempreendidasporum pesquisadordizemalgodele,poistmrelaocomosignificante-mestreque,embora recalcado,interferenasescolhasdostemasqueestuda.Contudo,essainterfernciaquea cinciaequeagrandemaioriadostrabalhosrealizadosnasuniversidadesbuscanegar, visando a uma completa impessoalidade. Discurso do universitrio Aformulaolacanianadosdiscursosrepresentaumaleiturapsicanalticadoslaos sociais.Olaosocial,condiosinequanondacivilizao,definidoporLacan(1972-73/2008)comotermodiscursoporquenohoutromeiodedesign-lo,umavezquese percebeu que o lao social s se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime sobre o ser falante. Cada um dos discursos delineia relaes fundamentais (o agente supe algo no outro) e resulta em umlao social particular (h umendereamento ao outro desde uma determinada perspectiva), pois reflete uma articulao entre o sujeito e o Outro,prottipodequalquerlaosocial(JORGE,2002).Comotodolaosocialpressupe uma relao com o Outro, necessrio, para haver discurso, que haja insero na linguagem. Assim,tododiscursoarticulaumarennciaaogozo,poisaperdadegozo introduzida pelo sistema simblico como efeito da desnaturalizao operada pelo significante. A partir do momento em que o sujeito no pode mais ser idntico a si mesmo, lembremos que umsujeitoaquiloquepodeserrepresentadoporumsignificanteparaoutrosignificantee que no h significante que possa representar a si mesmo,ele no goza mais. Algo perdido nessaoperao;essaperda,precisamente,omais-de-gozar.Omais-de-gozar,portanto, refere-seaumafunodarennciaaogozosoboefeitododiscurso(LACAN,1968-69/2008). 25 Parasehumanizar,ohomemdeverenunciaraogozoafimdepermanecerunidoaos seussemelhantes.Talrennciainauguraafaltanaestrutura,queestligada incompatibilidade entre lao social e gozo, e a responsvel por deixar o homem enfermo do desejo. A transparncia da comunicao animal substituda, desse modo, pela linguagem e, a partir de ento, o mal entendido, inerente palavra, introduzido (SAURET, 2009). 1.2. Um quinto discurso Paraaconstruodosdiscursos,Lacan(1969-70/1992)apia-senarelaoentre mestreeservo5postuladaporHegelnaobraFenomenologiadoEsprito.Nodiscursodo senhor antigo o discurso do mestre o senhor precisa, inevitavelmente, dirigir-se ao campo do Outro para obter seu mais-de-gozar. somente a partir do trabalho do servo que o senhor obtm esse mais-de-gozo. isso que faz lao social. Nodiscursodosenhorantigoquempossuiosaberoservo,assim,somentepor intermdio do ltimo que o primeiro chega at ele. do saber do servo que o senhor busca o gozo.Oprodutodessediscursoresulta,ento,dasubtraodegozodoservoquevai funcionar como mais-de-gozar para o senhor.Naformulao,feitaporLacan,em1972,deumquintodiscursoodiscursodo capitalistaqueveiosubstituirodiscursodosenhorantigo,essaoperao,contudo, apresenta-se modificada. Discurso do capitalista Aoestabelecerodiscursodocapitalista,LacanrealizaumainversoentreS1 (significante-mestre)e$(sujeito)naformacomoessestermosaparecemnodiscursodo mestre. Com a inverso entre os termos do campo do sujeito, aarticulao entre o senhor e o servo, este situado no campo do Outro, no mais ocorre. Historicamente, podemos dizer que o discursodocapitalistanasceunomomentoemqueomestretratoudeseapropriardosaber 25 5 Apesar de Lacan e outros psicanalistas utilizarem a palavra escravo para se referir dialtica do Mestre e do ServopostuladaporHegel,optamosaquipelousodotermoservo,poisoquemaisseaproximadotermo Knecht utilizado pelo filsofo. 26 produzidopeloservo(SOUZA,2007).Nessediscurso, osenhorquemsabecomooservo goza.O objetocolocadonolugardaperda/produopodeseracessadopelosujeito,situado nolugardeagente,deformaqueosujeitopassaaserimpelidopeloobjetoenomaispela verdade.Aimpossibilidadeverificadaentresujeitoeobjetonodiscursodomestre simplesmente desaparece no discurso do capitalista. Neste, nenhum termo fica isolado, como acontecenosdemaisdiscursos,ecadaumalimentaooutroemumareaoemcadeiacuja tendncia a acelerao (DARMON, 2008). 1.3. Os cinco discursos e suas (possveis) relaes com as toxicomanias Ao nos propormos a analisar as toxicomanias na perspectiva dos discursos, j sabemos de antemo que tal feito implica consider-las sob diferentes pontos de vista. Sendo cinco os discursospropostosporLacanpodemosconsiderar,ento,astoxicomaniasemcinco diferentes perspectivas. 1.3.1. O discurso do universitrio e as toxicomanias A primeira perspectiva que analisaremos aqui diz respeito relao estabelecida entre astoxicomaniaseodiscursodouniversitrioque,emsuadisposiofundamental,oque mostra onde o discurso da cincia se alicera (LACAN, 1969-70/1992, p. 97). Umdosmaisconhecidosprodutosdessediscursosoasclassificaesnosolgicas quejsetornaramcorriqueirasefazempartedo linguajarpopular.Muitosindivduos,hoje, recorrem aos manuais de classificao das doenas a fim de nomear aquilo que os afeta. Ao se identificaremcomoobjetodacincia,osindivduostornam-se,tambmeles,objetosda cincia.Odiscursodacinciadizquemoindivduo,entotransformadoemobjetodo conhecimentoe,namedidaemqueassimage,acabaporfazerdesapareceroparticulardo sujeito sob abarranesse discurso. Oindivduo se (re)conhececomo o objeto do discurso da cincia, ele quem a cincia diz que .Entremuitosusuriosdedrogas,ortulodedependentequmicoe/oude toxicmanopareceseranicacoisaquetmadizersobresi.Quandoseapresentam,em dinmicasgrupais,porexemplo,normalmenteoquedizemsereduzaonomeseguidode dependente qumico:Sou XXX,dependente qumico, abstinente h XXX dias. Qualquer 27 informao que possa dar indcios da particularidade de cada um demonstra no ser relevante. A definio, fornecida pela cincia, do que a dependncia qumica basta, por si prpria, para apresentar o drogadicto. No sou eu, no ele, ele ou ele que diz que a adio uma doena. a cincia que diz (Fala de paciente no Grupo de Preparao para o Final de Semana). Eusouadicto,obsessivo,compulsivoesofrodeumadoenaprogressiva(Falade paciente no Grupo de Preparao para o Final de Semana). Essadoenanossa,essacompulsopeladroga(FaladepacientenoGrupode Preparao para o Final de Semana). Essaapropriaodostermostoxicmanoedependentequmicoporpartedo usurio de drogas vista por Conte (2002) como representativa da falta de um trao simblico queidentifiqueosujeito.Talapropriaoreflete,paraaautora,umaalienaoaum significante produzido pelo social. ComonoslembraSantiago(2001a),otermotoxicomaniafoiforjadopelomestre que, no sculo XIX, se personificou na figura do mdico alienista. Desde ento, o significante toxicomania/toxicmanopdeadquirir,paracertossujeitos,umvaloridentificatrio, tornando-seobjetodeumaescolha.Santiagovatoxicomaniacomoumrecursodiantedo impassedeumaneuroseou,atmesmo,deumapsicose.Paraele,ovaloridentificatrioda toxicomania s se tornou possvel a partir de um certo trabalho do discurso da cincia sobre as substncias estupefacientes. A cincia, por seu princpio de escritura, comanda, no mbito do significante, no mbito da letra, uma depurao de tudo aquilo que se relaciona aos efeitos de significao(Ibid.,p.185).nessesentidoqueacinciatransformaassubstnciasque produzemosefeitostoxicomanacosemfrmulasqumicas,neutralizandotodoogozode sentidoqueorientavaossaberespr-cientficossobreasdrogas.Porintermdiodessa neutralizaodogozodesentido,acinciaapropria-sedadroga,transformando-anum produto esvaziado de sentido para o sujeito, que est sob a barra no discurso universitrio. De acordo com o autor, o modo de uso que certos sujeitos fazem desse produto da cincia reflete umabuscaporsuspender,pelomenosdemaneiraprovisria,adivisosubjetiva.Assim, vemos que na medida em que o sujeito se torna produto do gozo, quem goza o objeto que se apresenta na forma de uma nosologia. 28 1.3.2. O discurso da histrica e as toxicomanias A anlise de uma possvel relao entre o discurso da histrica e as toxicomanias j foi realizada,anteriormente,porAlberti,InemeRangel(2003).Aspsicanalistaslanarama hiptese de que possvelapontar a toxicomaniacomo equivalente ao discurso dahistrica, sem,noentanto,afirmaremqueelaseverificariasomentedessaforma.Paraformulartal hiptese,asautoraspartemdascontribuiesdealgunspsicanalistasbrasileirossobreo assuntoeretomamumafrasedeFreud,dotextoOfuturodeumailuso,aqualafirmaque aquelequenosofredeneurosetalvez,tampouco,necessitedeumaintoxicaoqueo narcotize.Daelasconcluemquenofundo,aintoxicaonecessariamenteimprescindeda neurose, mesmo se a escamoteia, porque o sujeito sofre com a neurose na medida em que esta noaformamaiseficazdeselidarcomacastrao(Ibid.,p.20),oquelevaacrerque nadaimpedetoxicomaniadeandarjuntocomaneurose,apartirdasconsideraes freudianas.Ao considerarem o discurso do capitalista como o discurso do mestre contemporneo e osintomacomoaquiloquesecontrapeaessediscurso6,Alberti,InemeRangeldefendem que o toxicmano usa a droga para se subtrair ao gozo do Outro, podendo, assim,fazer dela sintoma. As autoras situam o toxicmano como sujeito neurtico e histrico que pode recorrer drogaparaopor-sesatisfaodomestreatual.Conformeelas,sabidooquantoo discurso da histeria se insurge, antes de mais nada, contra o pior mestre aquele que se assenta namortificaodosujeito,pelosimplesfatodequenohsujeitonomundomaisadeptoa fazer valer o desejo do que o sujeito histrico (ALBERTI, INEM e RANGEL, 2003, p. 25).Dessa forma, Alberti, Inem e Rangel cogitam a possibilidade de pensar a toxicomania comouminvlucroformaldosintomananeurosehoje,vendo-anumaarticulaocoma evoluo da medicina e da psicofarmacologia. Nesse sentido, as psicanalistas defendem que o toxicmano, tal como a histrica,interpela o mestre atravs de seusintoma. Entretanto, cabe perguntarmo-nos, se, de fato, h essa interpelao na toxicomania. Atravs do recurso droga otoxicmanoseinterpe,propriamente,aocapitalista,talcomoofazahistricadiantedo mestre?ComonoslembraPetit(1989),emborasetrate,certamente,paraumtoxicmanode, drogando-se privar o Outro de um gozo que, inevitavelmente, consome a ele como sujeito, , entretanto,seumododechegaraele,porumcaminho,aparente,completamenteopostoao 28 6 Essas questes sero mais bem desenvolvidas na seqncia deste trabalho. 29 queeletoma.Dessaforma,otoxicmanolana-se,impetuosamente,emumasujeiopior ainda do que aquela que o submete ao desejo do Outro.Diferentementedahistrica,odrogadicto,atravsdeseurecursodroga,novisaa realizarseudesejo,massimaumanecessidade.SegundoPetit(1989),natoxicomania necessriosatisfazeraumanecessidadequeestlongedeser,unicamente, opuroesimples redobramento do desejo. A necessidade, nesse caso, pelo contrrio, vai como que suplantar o desejo,releg-loaumsegundoplano,porquedeagoraemdiante,elamaisurgente,mais exigente do que o desejo, a necessidade que curto-circuita qualquer realizao do desejo (p. 55). Nesse sentido, aleitura do toxicmano como umsujeito histrico quevisa abarrar o gozodocapitalista,mestrecontemporneo,apresenta-seproblemtica,umavezquea dimensododesejo,caracteristicamentepresentenahisteria,demonstrapermanecerem suspenso nas toxicomanias. Diferentespesquisadoresdasdrogadies(CONTE,2001,2003a,2003b;LE POULICHET1996,2005;PETIT,1989;SANTIAGO,2001a)defendemqueabuscapela droga,realizadapeloadicto,situa-senonveldanecessidadeenonaesferadodesejo, refletindoumatentativadeafastamentodosefeitosdoOutroedesuademanda.Paraos psicanalistas,podemosverificarquenastoxicomaniasouafaltanofoiinscritanoregistro simbliconessecaso,adrogafuncionacomoumaprtesedainstnciasimblicaou precisaseresquecidacasosemqueadrogafuncionacomodefesacontraainstncia simblica.Apesar de a dimenso do desejo aparecer ligada, intrinsecamente, a uma falta que no podeserpreenchidapornenhumobjetoreal,otoxicmanoacreditaterachadonadrogao objetodesuasatisfao.Sendoassim,algicatoxicomanacaumatentativade presentificarumencontrocomoobjetodesatisfaoatravsdadroga (CONTE,2001,p. 94). No interior dessa dinmica, o txico apresenta-se como necessrio para que a montagem toxicomanacacontinueaexistir,enquantoqueodesejo,aoreferir-seaumamaneiraqueo sujeito tem de se identificar com a falta (DAVID-MNARD, 1996), permanece anestesiado. 30 1.3.3. O discurso do mestre e as toxicomanias Aopostularqueodiscursodomestreomatemadaentradamesmadosujeitona linguagem, umavez que esta efeito do discurso do mestre e sua estrutura a mesma desse discurso (JORGE, 2002) Lacan (1972) o toma como o discurso eterno e fundamental.No texto A terceira, Lacan (1974/1986) afirma que a finalidade do discurso do mestre, o discurso dominante, a de que as coisas andem, ao passo que o sintoma justamente aquilo que vem perturbar esse andar. Segundo o psicanalista, o sintoma o que vem do real e o real que seinterpe paraimpedir que as coisas andem, no sentido de dar conta de simesmas, de maneira satisfatria para o mestre. O real o que no deixa nunca de se repetir para atrapalhar esse andar. O Real aquilo que se atravessa no discurso do mestre, sobretudo aquilo que se recusaaandarecriasintomasocial:OReal,portanto, temavercomosintoma(CONT, 1995, p. 145).Para Lacan, destemodo, o real o que nofunciona. E justamente disso queir se ocupar a anlise. De acordo com o psicanalista, a anlise, por se ocupar do que no funciona, ouseja,doreal,umafunoaindamaisimpossveldoqueasoutraseducaregovernar. Essa a diferena entre o que funciona e o que no funciona. O que funciona o mundo. O real o que no funciona (...) disso que se ocupam os analistas, de modo que, ao contrrio doqueseacredita,elessomuitomaisconfrontadosaorealqueosprprioscientistas (LACAN, 1975/2005, p. 63). O sintoma , portanto, a manifestao do real em nosso nvel de seres vivos. Somente atravsdocaminhocientficoquepoderemosteracessoaoverdadeiroreal,emboraeste realserefirajustamentequiloquenosfaltaporinteiro,quilodoqualestamos completamente separados em virtude de uma coisa a cujo termo nunca chegaremos aocabo. Pelo menoso queacredito,semjamaisterconseguidodemonstr-loabsolutamente.Nunca chegaremos ao cabo da relao entre esses falasseres que sexuamos como macho e essesfalasseresquesexuamoscomomulher.inclusiveoqueespecificaoque chamamosdeserhumano.Daopululardossintomas,porquetudoseprendea isso. nisso que Freud tem razo ao falar do que chama de sexualidade. Digamos queparaofalasserasexualidadesemesperana.Masorealaoqualacessamos compequenasfrmulas,overdadeiroreal,coisatotalmentediferente.Ato presente s temos gadgets como resultado disso (Ibid., p. 77). SegundoLacan(1974/1986),osgadgetssocriaesdacinciaengendradasna tentativadedistrairainexistnciadarelaosexual.Nessesentido,paraopsicanalista,o 31 porvir da psicanlise depende do que advir desse real, isto , depende, por exemplo, do que nos ser imposto pelos gadgets, que no se referem a nada alm de sintomas. Santiago(2001a;2001b),aofalarsobreastoxicomanias,fazumaequivalnciaentre os gadgets e as drogas. Os gadgets, ele nos lembra, oferecem os meios de uma recuperao da satisfao pulsional atravs da ligao e, at mesmo, da fixao dos sujeitos a eles. De acordo comoautor,atualmente,acinciaforneceosoperadoresqumicosquepodemconstituir-se emreguladoresdaprpriaeconomialibidinal,cujanicafinalidadeextrairsatisfaono nveldocorpo.Ousodedrogascomogadgetsrepresentaparaosujeitoumatcnicado corpoquepodeserconsideradacomoummais-gozarespecial,emrazodomodode captaodosexcedentesdogozogeradopelautilizaodesubstnciasentorpecentes.Para Santiago,essatcnica,destinadaaproporcionarsatisfao,agepormeiodatentativade recuperaodapartedogozoperdidaprimitivamente,quandodainserodosujeitona linguagem. nesse contexto, emfuno da aproximao entre real e sintoma e do sintoma como aquiloqueseinterpeaumdiscursoqueatoxicomaniapodeserconsideradaumsintoma social.Dessaforma,possvelquepensemosqueadrogadio,dealgummodo,denuncia umafalhanosomentenodiscursodomestre,masemqualquerdiscurso.Ouseja,as toxicomanias demonstram que h sempre falha no discurso, que h sempre algo que se perde: o mais-de-gozar. Para tentar no perder o mais-de-gozar no discurso no h outra forma a no ser orient-lo para o corpo, assim como o toxicmano o faz. Cabelembrarmosque,segundoLacan(1974/1986),shumsintomasocial:aquele quenofazlaosocial.Osintomasocial,portanto,nofazdiscurso,eleseinterpeaum discurso,qualseja,odiscursodominante.Comovimos,Lacanutilizaotermodominante emcadaumdosdiscursosparadesignaraquelequeocupaolugardeagente,agenteno sentido daquele que se faz agir, a saber, o funcionrio. Assim, o sintoma social, ao se interpor dominante,interpe-seaolaoexistenteentreolugardeagenteeolugardeoutro, produzindo a ruptura no lao, isto , em cada uma das quatro ou cinco formas de lao social. Algunsestudiososdastoxicomaniasvalem-sedessaafirmaoparadefenderqueatentativa engendradapeladrogadioadedesfazernossolaosocial,causadomal-estar.Talfato forneceriaindciosdeque,hoje,cadavezmenosossujeitosestodispostosarealizara renncia ao objeto em prol de uma vida em sociedade (MELMAN, 2000).VimoscomFreudecomLacanque,desdeoinciodavida,osujeitoconfrontado comsituaesquefrustramosplanosdeumasatisfaoplena.Aonascer,acriana constitutivamentesubmetidasexignciasdanecessidade.Asprimeirasmanifestaesdos 32 imperativosorgnicostraduzem-seporestadosdetensodocorpocujosesteretiposfsicos constituemarespostadocorpoprivao.Acondiodeincapacidadederesponderporsi mesma a essas exigncias orgnicas torna a criana dependente de um outro. esse outro que lerasmanifestaesdocorpodacriana,anteaprivao,comopossuidorasdeum significadoeresponderaelassuamaneira.Nonveldessaprimeiraexperinciade satisfao,nohnenhumaintencionalidadeporpartedacriananosentidodemobilizaro estadodoseucorpoemmanifestaesqueteriamalgumvalordemensagemdestinadaao outro. Em compensao, essas manifestaes fazem, prontamente, sentido para o outro, o que implicaqueacriana,deimediato,colocadanumuniversodecomunicao,noquala intervenodooutroconstitui-secomoumarespostaaalgoquefoi,deantemo,suposto como uma demanda (DOR, 1989, p. 144, grifos do autor).Atravs de sua interveno, portanto, o outro situa a criana a um universo semntico eaumuniversodediscurso,qualseja,ouniversoemqueeleestinserido,constituindo-se, assim,comoumoutroprivilegiadooOutro7.ElevadoposiodeOutro,esseoutro assujeita a criana ao universo de seus prprios significantes, visto que mobiliza, por meio do oferecimento do objeto que sacia anecessidade,uma resposta ao que elemesmointerpretou antecipadamentecomoumasupostademanda(manifestaescorporais).Estademanda suposta no pode deixar de ser tomada como projeo do desejo do Outro. A resposta fornecida pelo Outro far a criana gozar, para alm da satisfao de sua necessidade. Nesse sentido, pode-se circunscrever o lugar de uma satisfao globalonde o a-maisdogozosuportadopeloamordamevemapoiar-senasatisfaodanecessidade propriamente dita (DOR, 1989, p. 145, grifo do autor). somente a partir desse momento da experincia de satisfao que a criana passa a ter condies de desejar atravs damediao deumademandaendereadaaoOutro.Deformageral,portanto,ademandasempre formulada e endereada a outrem. Expressododesejo,ademandasempredupla,poisparaalmdademandade satisfao da necessidade, h a demanda desse a-mais que , antes de tudo, demanda de amor. Mesmo que incida sobre um objeto de necessidade, a demanda sempre comportar o desejo da criana de ser o nico objeto do desejo do Outro que satisfaz suas necessidades. Esse desejo do desejo do Outro expresso no desejo de um reencontro da satisfao originria, na qual a crianafoi totalmente satisfeita, sem demandar,nem esperar. O carter nico dessa primeira satisfaoprovmdaimediatitudecomqueanecessidadedacrianafoisatisfeita,semser 32 7 Para abordar esse processo, Lacan utilizou o conceito de alienao, explicitando que o sujeito surge, primeiro, no campo do Outro. 33 mediadaporumademanda.Entretanto,apartirdasegundaexperinciadesatisfao,a crianaconfrontadacomaperda,emfunodamediaodademanda.Algumacoisa perdidanadiferenaqueseinstauraentreoquedadoimediatamentecriana,sem nenhumamediaopsquica,eoquelhedadomediatamente,comodevendoser demandado. Oadventododesejofica,ento,suspensobusca,aore-encontrodaprimeira experincia de gozo. Masj a partir da segunda experincia de satisfao, a criana, tomada no assujeitamento do sentido, intimada a tentar significar o que deseja (DOR, 1989, p. 146, grifodoautor).Assim,amediaodanominaointroduzumadiscordnciaentreoque desejado fundamentalmente e o que se faz ouvir deste desejo na demanda. essa discordncia que damedida doimpossvel re-encontro do gozo primeiro com o Outro. Este Outro que fazacrianagozar,pormaisquesejabuscadoeseuencontroesperado,permanece inacessvel e perdido enquanto tal, devido ciso introduzida pela demanda (Ibid.).Atravs desse movimento, a demanda tambm se torna a Coisa das Ding da qual a crianadesejaodesejo,masquenenhumadesuasdemandassercapazdesignificar adequadamente.Quantomaisademandasedesenvolve,maisaumentaadistnciacoma Coisa.Dadecorreomal-estarnacivilizao:desdeainseronouniversosimblico,no restaoutraalternativaaohomemanosercontentar-secomassatisfaessempreparciais, conseqnciasdesuadivisooperadapelalinguagem.Divisoessa,que,decertaforma, buscaserapagadapelostoxicmanos,queinsistemnapossibilidadedoreencontrocoma satisfaoprimeira.Diantedesituaesqueatualizamafalibilidadehumana,adroga apresenta-se como um meio de neg-la. issoa.Agenteseanestesia.Usaadrogapraseanestesiarenopensarmais naquiloali[emsituaesquefragilizam,talcomoquandoadoece](Falade paciente no Grupo de Preparao para o Final de Semana). Eu uso droga pra esquecer as conseqncias da vida. (...). Eu sei que cada um tem o seu problema, que cada um usa droga por um motivo, que no igual ao meu. Eu usopraesquecerosmeusproblemas.Eusomaconha,cocana,crack,oque aparecer! (Fala de paciente no Grupo de Preparao para o Final de Semana). Situaesfrustrantesque,emalgumamedida,recolocamaquestodacastraopara toxicmano so vistas por ele como insuportveis. Diante de tais circunstncias, a recada o retorno ao uso de entorpecentes torna-se freqente. 34 Eutiveumadecepocomumacadelaessasemana.Atrecadepoisdisso.[Viu anncio em jornal sobre cachorra da mesma raa da que tinha com a ex-noiva, foi comospaisatolocalparacompr-laeviuquesetratavadeumavira-lata]. Quandochegueiemcasa,euacheiqueiacheirardezreaisdecocanaprame anestesiaredeu, mas daveiotudoabaixo!Atpedraeufumei!(Fala depaciente no Grupo de Preparao para o Final de Semana). Autilizaodesubstnciasentorpecentes,comonoslembraFreud(1930/1987), constitui um dos principaismodos de se evitar o contato direto com a realidade, o que torna esse ato uma medida basicamente autodependente. O indivduo, apenas com o recurso a uma substncia intoxicante, afasta de si todos os infortnios, tornando-se, assim, imune quilo que pode causar-lhe sofrimento. Caminhei por um campo de um vale verde. Subi em pedras e sumi. Agora estou aqui no meio da mata to perto de mim e longe de tudo que costumo ficar. Perdi de vista a fumaa da civilizao que costumava me mal-tratar. Mas nesta caminhada que fiz, e no bom senso deestar aqui to em paz meditando ao ar puro, simplesmente penso neste mal estar de ter que voltar. Sairde mim nomeiodesta matapara aquelafumaadecivilizaoter novamente que respirar. (Texto produzido por paciente no Atelier de Escrita). Freud(1930/1987,p.85),emMal-estarnacivilizao,afirmaqueasatisfao irrestrita das necessidades apresenta-se-nos como o mtodo mais tentador de conduzir nossas vidas, embora tal propsito seja responsvel por logo acarretar seu prprio castigo, uma vez queseopeaosintentosdavidaemsociedade.Segundoopsicanalista,oconflitoexistente entre os interesses do sujeito e osinteresses dacivilizao o grande gerador do sofrimento humano. A civilizao impe ao sujeito que renuncie sua satisfao pulsional, o que implica aoltimotersualiberdaderestritapelaordemsocial.Emnomedavidaemcomunidade,o indivduotemdesesujeitarsrestriesimpostassuasexualidadeesuaagressividade, umavezqueacivilizaoconstrudasobreumarennciaaoinstinto(Ibid.,p.104), pressupondoanosatisfaoatravsdeopresso,represso,entreoutrosmeiosde impulsos instintuais poderosos.nessesentidoqueFreud(1930/1987)postulaEroseAnankecomoospaisda civilizao. Conforme o mdico vienense, de umlado, o amorfoi responsvel por reunir em famlias os sujeitos isolados e, de outro, a necessidade externa fez com que os homens vissem uns aos outros como companheiros de trabalho na luta contra as adversidades mundanas.Asubstituiodopoderdosujeitopelopoderdacomunidadeconstituiopasso decisivodacivilizao.Paraqueoslaossociaispossamseestabelecerprecisoquecada sujeito renunciea uma parcela desua satisfao. Dessemodo, a vidahumanaem comums 35 se torna possvel na medida em que uma maioria reunida torna-se mais forte do que qualquer sujeito isolado e permanece unida contra todos os sujeitos isolados (FREUD, 1930/1987). Eu passei muito tempo fugindo dos outros sem perceber que fugia de mim mesmo. Assim foi a bebida em minha vida, eu achava que as outras pessoas estavamsaindo de minha vida sem me dar conta que era eu quem estava me afastando dos outros e at de mim mesmo. (Texto produzido por paciente no Atelier de Escrita). Aceitareaprenderalidarcomoslimitesimpostospelacultura,apesardetodoo sofrimento que isso implica, lana a possibilidade ao indivduo de descobrir-se sujeito, ator de sua histria, capaz de encontrar outras formas de estabelecer laos com quem o rodeia. J estou h dois meses sem fazer o uso do lcool, estou me sentindo bem, voltou a auto-estima,tambmconversocomaspessoascoisaquenofaziaantesquando bebia, brinco com os filhos, no brigo com a minha esposa que antes era todo o dia, estou feliz graas ao Caps. (Texto produzido por paciente no Atelier de Escrita). O restabelecimento de vnculos outrora fragilizados ou, at mesmo, desfeitos refere-se aumdosprincipaisefeitosteraputicosdotratamentodetoxicmanos.Efeitomuito valorizadoeconstantementerelembradoentreelesnasocasiesemqueparticipamde dinmicas grupais e relatam suas experincias aos demais participantes dos grupos8. 1.3.4. O discurso do capitalista e as toxicomanias ou A virtude em revolta contra o curso do mundo No matema do discurso do capitalista9, discurso do senhor moderno, vemos o sujeito, localizadonolugardoagente,estabelecerumarelaodiretacomoobjeto,localizadono lugardaproduo.Essarelaolevaacrerqueaosujeitopossveloacessoaomais-de-gozar de forma imediata, sem que haja a nenhuma mediao.Apartirdessasconsideraes,podemosinferiralgumasdasimplicaesdodiscurso docapitalista.SeseguirmosospassosdeLacanenosvalermosdaLgicaAristotlicadas 35 8 A questo do tratamento das toxicomanias ser abordada, mais detalhadamente, no prximo captulo. 9 Ver frmula do discurso do capitalista na pgina 25. 36 Proposies,amesmautilizadapelopsicanalistanoestabelecimentodasfrmulasda sexuao,podemosconsiderarqueapremissaouProposioUniversaldodiscursodo capitalista afirma que Todo querer poder, uma vez que vemos esse discurso anunciar que possveloacessoaomais-de-gozaratravsdapossedealgunsobjetos,osconhecidos gadgets.Dessemodo,osujeito,imersonodiscursodocapitalista,temailusodeque agente do discurso e cr que o mais-de-gozar acessvel.Seconsiderarmosqueastoxicomanias,enquantosintomassociais,contradizemo discurso dominante, o do capitalista, podemos postular que elas afirmam queAlgum querer nopoder,jqueomais-de-gozarinalcanvelporestrutura.Sendoassim,podemos analis-lascomoseestivessememumarelaolgicadeContradioDialticacomo discursodocapitalista.Poressavia,possvelconcluirmosqueastoxicomanias,ao contradizerem o discurso do capitalista, atravs da negao deste, conferem existncia a esse discurso,umavezquenarelaolgicadeContradioaProposioUniversalea ProposioParticularnopodemserambasverdadeiras,nemambasfalsas;quandouma verdadeiraaoutra,conseqentemente,serfalsa.ComodizLacan(1971/2009),auniversal afirmativaenunciaumaessnciaquesesitua,fundamentalmente,nalgica;auniversal afirmativa puro enunciado de discurso. Nada contraria um enunciadolgico qualquer que seja identificvel, nada seno a observao de queh... que no. a particular negativa. [...]. Essaanicacontradioquesepodefazercontraaafirmaodequeesseumfato essencial (Ibid., pp. 102-103, grifo do autor). atravs da contradio que se pode obter uma proposioverdadeira,isto,vlida.Dessaforma,nossahipteseadequeotoxicmano encontra-senumlugardeexceo,umavezqueimpelimiteaodiscursodocapitalistae denunciaoseucarterilusrio.Aoiraoextremodoquepropostoporestediscurso,as toxicomanias demonstram a falha que existe a; mesmo que obtenha alguma satisfao com a droga por determinados perodos, ou at mesmo, por determinados dias, o toxicmano sempre chega a um momento no qual essa montagem comea a falhar, seja porque no obtm mais a mesma satisfao, seja porque comea a ter delrios e alucinaes, entre tantos outros fatores; nesse preciso momento, a inacessibilidade do mais-de-gozar evidenciada. Aoseguirporessecaminho,perguntamo-nossenopoderamospostularas toxicomaniascomosereferindoaumadastrsmodalidadesdoindividualismomoderno propostasporHegelemFenomenologiadoEsprito.SegundoHegel,existemtrs modalidadesmodernas,prpriasdoprogressodacultura,nasquaisoindivduocortao vnculoqueouneaotodo,ondeassingularidadesseccionamolaoqueasunea universalidade,epretendembastar-seasimesmasdando-seseufimprprio 37 (EIDELSZTEIN,2008,p.88,traduonossa).Referimo-nosaqui,maisespecificamente,a terceira forma de individualismo proposta por ele, qual seja, a virtude e o curso do mundo. EssaaterceiradasfigurasmoraisdaFenomenologiadoEsprito,atravsdasquaisHegel analisa o problema da relao entre o indivduo e o universal. Nafigura da virtude e o curso domundo,aconscinciasevasimesmavirtuosa.Avirtudeumavoltaessncia,lei universal,quepercebidacomopervertidaoudesnaturadapelaindividualidadenocursodo mundo. Avirtudesepropeaperverteropervertidomundo.Comaidiadocompleto sacrifcio da individualidade (no importa se se morre no intento), se busca retificar aperversoquehnomundo.Oprpriosacrifciojimplica,paraesta individualidade,ocomeodaretificao.Sesuperaaleidocorao,namesma medida em que se tenta lutar contra a maldade projetada, mas se segue na posio de designar a perverso ao outro(EIDELSZTEIN, 2008, p. 92, traduo nossa). Paraapontarailusododiscursodocapitalista,otoxicmanoenvolveoprprio corpo;elesevaledosobjetosproduzidoseexploradospelocapitalismonatentativade alcanar o gozo absoluto prometido e acaba por demonstrar a impossibilidade a existente. Ao mesmotempoemqueconfereexistnciaaodiscursodocapitalista,aocontradiz-loo toxicmanodeixaentreverseucunhoenganoso.Eatravsdaimplicaodeseucorpo, atravsdaintoxicao,queotoxicmanofazisso.Emvezdefalar,oquelanariaa possibilidade do estabelecimento de algum lao, o toxicmano se intoxica.Acrticaaomundo,aoqueeaquemorodeiaconstituiumacaractersticado toxicmano, tal como podemos observar nas falas a seguir: Eu cresci vendo maldade. E quando tu t ali [drogado] tu s v maldade, tu no v o outro lado (Fala de paciente no Grupo de Preparao para o Final de Semana). Deusanicacoisaboadessemundoporco!(FaladepacientenoGrupode Preparao para o Final de Semana). A humanidade egosta (Fala de paciente no Grupo de Preparao para o Final de Semana). Nessasociedadedeconsumo,emqueaspessoastmmuitacoisaprafazer,as pessoasnoestomuitoafimdeescutarooutro(FaladepacientenoGrupode Preparao para o Final de Semana). Dessaforma,poderamossituarastoxicomaniascomoumfenmeno,comparvel figuradescritaporHegeldavirtudecontraocursodomundo,embora,cabeesclarecer,no 38 nosparecequeotoxicmanoocupeumlugarquepoderamoschamar,especificamente,de virtuoso. O que nos fez realizar essa aproximao entre as toxicomanias e a terceira forma de individualismopropostaporHegelfoiesselugardecrticodasociedadequeotoxicmano assume, por vezes, ao denunciar as falhas nos laos sociais. Como nos lembra Conte (2003a, p. 34), ao tentar prescindir do Outro, o toxicmano acaba fazendo-se testemunha, atravs de seu sintoma, dos imperativos encobertos e contidos no discurso social dominante.Portanto,apartirdaconsideraododiscursodocapitalistacomooatualdiscurso dominantequepodemosleratoxicomaniacomoumsintomasocialqueseinterpeaesse discurso.Astoxicomaniasnofazemlaosocialporquerecusamparticiparedenunciama ilusodolaosocial.Nessesentido,astoxicomaniasatuamcomoumaformadetratamento domal-estardodesejopelomtodoqumicodaintoxicao(SANTIAGO,2001a)ese caracterizam como uma tcnica de limitao do ideal de felicidade suprema e inacessvel, no qual a dimenso do gozo ilimitado parte integrante e constitutiva. 1.3.4.1. O discurso do capitalista e as toxicomanias: mais, ainda... A fim de aprofundarmos um pouco mais nossa discusso sobre a possvel relao entre dependnciaqumicaediscursodocapitalistarecorreremos,aqui,obraAlmoonu,de WilliamBurroughs.Burroughsumescritornorte-americanoquefazpartedachamada geraobeat.Dependentedeopicios,Burroughsficouconhecidoaopublicartextosque foramescritosapartirdefluxosdeconscinciaobtidosduranteoefeitodousodedrogas. Almoo Nu a obra mais conhecida do autor e composta por textos escritos no decorrer de nove anos. Almde textos escritos sob o efeito de drogas, o livro tambm traz depoimentos do autor, escritos enquanto estava sbrio.Aolongodolivro,Burroughs,pordiversasvezes,equiparaajunkumtermo genricoparaopioe/ouseusderivados,incluindotodosossintticos(BURROUGHS, 2009,p.245)aumvrus,umvrusquesedifundiuportodaaTerraestandobaseado,tal como uma grande indstria, nos princpios da posse e do monoplio. ... h diversas pirmidesdejunkalimentando-sedapopulaoda Terra, todaselas assentadas no princpio do monoplio: 1.Nunca dar coisa alguma sem receber algo em troca. 2.Nunca dar mais do que voc tem para dar (seu comprador deve estar sempre na fissura, e voc deve sempre faz-lo esperar). 3.Sempre que possvel, tomar de volta tudo que foi dado. 39 OTraficantesempretomatudodevolta.Odependenteprecisadedosescadavez maiores de junk para manter sua forma humana... [...]. O mundo da junk moldado em posse e monoplio (BURROUGHS, 2009, p. 246). EmboraBurroughsnorelacione,diretamente,oavanodovrusdajunkcomos avanosdocapitalismo,essapareceserumaaproximaoqueperpassasuaconcepode dependnciaqumica.Avendadejunkvistapeloautorcomoumnegciocolossalquese espraioupelomundo,levandocomelaumaconcepolegalderepressoaousuriode drogas. Ajunkumnegciogigantesco;comosempre,existemmanivelaseseus operadores.[...].Ovrusdajunkomaiorproblemadesadepblicadomundo atual (Ibid., pp. 251-252, grifo do autor). Quandoafirmeiqueovrusdajunkomaiorproblemadesadepblicado mundoatual,noestavamereferindosomenteaosefeitosdanososdosopicios sobreasadedosindivduos(que,emcasosdedosagenscontroladas,podemser mnimos), mastambm histeriaqueousodedrogascostumacausar nasmassas preparadas pela mdia e pelos agentes de narcticos para ter reaes histricas. Emsuaformaatual,oproblemadajunkcomeoucomaLeiHarrisonde Narcticos,decretadaem1914nosEstadosUnidos.Agoraahisteriaantidrogas espalhou-seportodoomundoe,ondequerque aparea,consisteemumaameaa mortalsliberdadespessoaiseaplicaocorretadasgarantiaslegais(Ibid.,p. 257). Diantedisso,osadictossovistosporBurroughs(Ibid.,p.268)como assustadoramente sos e capazes de perceber o que nem sempre facilmente apreendido. Comosempre,oalmooestnu.Seospasescivilizadosdesejamum retornoaos Rituais de Enforcamento dos Druidas nos Bosques Sagrados, ou beber sangue com osastecasalimentandoseusDeusescomsanguedesacrifcioshumanos,que tenhamplenaconscinciadoque realmenteestocomendoebebendo.Quevejam depertoocontedodascolherescompridasservidasaelespelosjornais(Ibid.,p. 252). Ser que Burroughs no est fazendo aluso, de forma indireta, ao modo capitalista de existir? O escritor faz questo de afirmar que existem diversasformas de dependncia e que todas elas obedecem a leis bsicas. NaspalavrasdeHeisenberg:Este[ouniversodadependncia]podenosero melhordosuniversospossveis,maspodeacabarseprovandoumdosmais simples. Se o homem for capaz de perceber (Ibid., p. 252, grifo do autor). Emmeioaodiscursodocapitalista,tornar-seadictodeumobjetoqualqueroude diferentes objetos, e no somente de substncias qumicas, pode ser visto como uma forma de 40 vida,talvezaformadevidamaissimplesdaatualidade,comoexpeBurroughs.nesse sentido que, segundo Melman (2000), qualquer um pode tornar-se toxicmano, uma vez que a causadatoxicomaniasocial.Conformeopsicanalista,asociedadedeconsumorepousa sobre um ideal que realizado pelo toxicmano e isso que o leva a ver o drogacidto como o estofo dessa sociedade, como a sua verdade. Por essa via, Melman defende que o toxicmano vaiatofinaldenossodesejodeneurtico,queofantasmadaexistnciadeumbem soberano,quereencontraramos,seseconsentisseemiratofimdenossodesejo,soba forma de um objeto que viria nos preencher, nos satisfazer (Ibid., p. 95). Esseidealreflete,paraCalligaris(1991,p.18),ummodeloestruturaldesintoma social que opera nos sujeitos em sua relao com os objetos, j que os primeiros esperam que osltimososconstituamcomosujeitos.DeacordocomCalligaris,nomaisestamos,hoje, sobadominnciadodiscursodomestreesimsobodomniododiscursodocapitalista.O que, de forma alguma, o que defende Melman, que v a toxicomania articulada ao discurso domestre.Nemtodosossujeitossetornamtoxicmanos,apenasaquelesque,poralgum motivo, se enredam nesse ideal vinculado pelo discurso do capitalista. Euficomal,ficomalquandoeubebo,porqueeununcasbebo.Semprequeeu beboeuusoalgomais.Emesmosabendoqueeuficomal emesmomaleuquero mais, quero mais. Quero mais o que me faz mal. No d pra entender isso a(Fala de paciente no Grupo de Preparao para o Final de Semana). impossvelanalisarmosodiscursodocapitalistasemv-lo,dealgumaforma, atreladoaodiscursodacincia.ComoafirmaLacan(1971-72/1997),oquedistingueo discurso do capitalista a rejeio da castrao. Dessa forma, esse discurso leva a crer que o sujeitopodeencontrarnomercadooobjetoquesatisfarseudesejo,umobjetoque,no raramente, fabricado pela cincia com esse intento.Adifusododiscursodacinciatrouxetodaumasriedeconseqncias.Santiago (2001a, 2001b), inclusive, acredita que o recurso do toxicmano s drogas apenas um efeito, entre outros, do que a cincia produz no mundo. O principal aspecto do surgimento da cincia , segundo Lacan (1969-70/1992), o de ter feito surgir no mundo coisas que no existiam no nveldapercepohumana.Soaslatusas,pequenosobjetosa,queencontramosem todasasesquinas,atrsdetodasasvitrines(Ibid.,p.153).Aslatusassofabricaesda cincia que servem para causar o nosso desejo.NoSeminrio,livro20,Lacan(1972-73/2008,p.88)passaachamaraslatusas,os instrumentosqueodiscursocientficoengendra,degadgets.Conformeopsicanalista, 41 desdeesseengendramento,ossujeitossomuitomaisdoquepensam,sosujeitosdos instrumentos,umavezqueessesobjetosjsetornaramelementosdanossaexistncia. Atravsdosgadgets,entreelesosprodutosqumicosproduzidospelacincia,ossujeitos tentamrecuperaraperdaprimitivadegozomais-de-gozarvalendo-sedapromessado discurso do capitalista. AtravsdasordensConsuma,Vocquer,vocpode,Euquero,euposso,o discursodocapitalistadizquepossveloacessoaomais-de-gozare,assim,acabapor fabricar um sujeito animado pelo desejo do capitalista. Tal desejo o leva a produzir,isto , a materializar o significante-mestre desse discurso que , precisamente, o dinheiro, que em seu carter virtual se chama capital (QUINET, 1999). O sujeito como falta-a-ser , no discurso do capitalista, o sujeito como falta-a-ser-rico, o sujeito descapitalizado. Conforme Quinet (1999), a sociedade conduzida pelo discurso do capitalista nutrida pelafabricaodafaltadegozo,produzindosujeitosinsaciveisemsuademandade consumo; consumo de gadgets que essa mesma sociedade oferece como objetos do desejo. A sociedadecapitalistapromove,assim,umanovaeconomialibidinal.Poroutrolado,ao colocaramais-valianolugardacausadodesejo,essasociedadetransformacadaumnum explorador em potencial de seu semelhante para dele obter um lucro de um sobretrabalho no contabilizado(QUINET,1999,nopaginado).Nessecontexto,oindividuoquerobter vantagemparapoderconsumirmaisobjetosproduzidospelocapitalismocientfico-tecnolgico. No interior desse ciclo, vemos o lugar da mais-valia coincidir com o dos objetos de gozo gozo prometido e no alcanvel por estrutura. Os objetos produzidos e explorados pelo capitalismo transformam-se em promessa de acessoaomais-de-gozar.Entretanto,umavezadquiridos,osobjetossodescartados produzindo uma insacivel falta-de-gozar. O objeto, transmudado em bem de consumo, passa a ser continuamente oferecido como uma promessa de satisfao possvel para o sujeito. Esse objeto, produto do discurso do capitalista, transformado em objeto de gozo, converte-se numa condioincontrolveldaprpriafalta-de-gozardosujeito,umavezqueotrabalhadorno podegozarintegralmentedoqueproduz(SOUZA,2007).essesistema,essemodode funcionamento,que,nosparece,otoxicmanocolocaemquesto,demonstrando, solitariamente, a impossibilidade da promessa feita pelo discurso do capitalista. Falamos na solido do toxicmano porque, como vimos, o sintoma social no faz lao social.Aquebradosvnculosedassituaesquedemandariamcertavinculaouma caracterstica marcante nas toxicomanias. Burroughs (2009) a expe de forma clara: 42 Odependente[...]conseguepassarhorasencarandooprpriosapatoou simplesmentedeitadonacama.Noprecisadesexo,contatossociais,trabalho, diverso ou exerccio, apenas a morfina (Ibid., pp. 268-269). Atoxicomaniaacabaporreduzirolaosocialaumadualidade(sujeito-objeto),de modo que, segundo Melman (2000), estamos lidando, hoje, com um discurso que comanda o sintoma social e ataca o lao social. Eunoprecisodeamigo.Eufaotudosozinho.Noprecisodeningum.No preciso de me, no preciso de amigo, no preciso de ningum. (...) Eu consumo a droga sozinho (Fala de paciente no Grupo de Medicao10). Oqueodiscursodocapitalistavendequeogozoperdidoprimitivamentepodeser recuperado,demodoqueosujeito,aoadquirirumobjeto,capazdebastar-seasimesmo sem precisar estabelecer qualquer outro tipo de relao. Para Santiago (2001a, p. 110), o que estemcausanessetipodesatisfaoumelementoautsticoesolitrio,quesereferea uma estratgia de tentar prescindir do Outro. Aoforacluiracastrao(SAURET,2003),odiscursodocapitalistarejeitaaLeido Pai, a Lei Simblica. Recusasemelhante a que est em causanas toxicomanias, ondeno se pe em jogo a castrao, mas sim um gozo sem desejo e sem sujeito dividido. nesse sentido queCouso(2005,p.195,traduonossa),aoretomarasidiasfreudianas,dizqueentreo beberroesuagarrafahummatrimniosemamor,umavezquequemsecasacoma garrafa a elege porque no signo de uma falta. Como demonstra Burroughs (2009, p. 269), o dependente existe dentro de um estado desprovido de dor, sexo e tempo. Odependentecapazdepassaroitohorasencarandoumaparede.Permanece conscientedaquiloqueorodeia,masoambientenotemparasinenhuma conotaoemocional e, por conseguinte, nenhum interesse. Relembrar um perodo dedependnciapesadacomoassistir aumagravaodeacontecimentosvividos to-somente pelo crebro anterior. um relato frio de eventos externos. Fui at o mercadoecompreiacarmascavo.Apliqueiumadosededuzentosmiligramas etc. so lembranas completamente desprovidas de saudade (Ibid., p. 44). Tudosepassacomoseotoxicmanofizesseopossvelparanosesubmeteraos avataresdofaloedesuanegativizao,dossemblantesedeseusdesmoronamentos, preferindooencontrodasatisfaoaoeludirodesejo,oamor,asexualidadeeacastrao, como se se encontrasse em uma busca por esquivar-se da linguagem (COUSO, 2005).42 10 No primeiro dia em que fomos ao CAPS-ad B, a coordenadora do servio levou-nos para observar o Grupo de Medicao. Essa foi a nica vez em que participamos desse grupo.43 NoSeminrio,livro18,Lacan(1971/2009)afirmaquenomomentoemquesurgea linguagem,surge,tambm,anatureza.Noumanaturezaqualquer,masanaturezadoser falante,queseapresentadeformadiferentedanaturezaanimal.Noinstanteemquesurgea linguagem,surgeumafalhanorealeprecisamenteessafalhaqueirdeterminartodo discurso.Essa diferena infinita existente entre a natureza do ser falante e a natureza animal formalizada por Lacan atravs de uma de suas mais conhecidas acepes, qual seja, a de que noexisterelaosexual.ParaLacan(1971/2009,p.63),alinguagem,esferanaqual estamos inseridos desde antes de nosso nascimento, tem seu campo reservado na hincia da relao sexual, tal como o falo a deixa aberta. Quando se adentra no mundo simblico no h mais relao entre homem emulher, posto quehomem e mulherno se referem anada alm de semblantes. A diferena sexual passa a serlocalizada, ento, nalinguagem enomaisno rgosexual.Nessesentido,odiscursosurgeporquehumarelaoquenoocorre,pois preciso que o ato fracasse para que surja o semblante, para que surja a palavra.DeacordocomLacan(1971/2009),quandosetratadeestruturar,defazerarelao sexual funcionar por meio de smbolos o gozo se imiscui, criando obstculos. E pelo fato de o gozo sexualno ser diretamente tratvel que existefala. O discurso inicia ento, por haver a uma hincia. Recusando-se a qualquer posio originria com relao a isso, Lacan afirma que nada nos impede de dizer que pelo fato de o discurso comear que a hincia se produz. Issototalmenteirrelevanteparaoresultado.Ocertoqueodiscursoestimplicadona hincia, e que, como no existe metalinguagem, no pode sair dela (Ibid., p. 101). Quando Lacan fala da hincia na qual o discurso est implicado, hincia produzida pelafunoflicaqueeleserefere.Ofalointroduzasubstituiodarelaosexualpelalei sexual,lei simblica que coerente com todo o registro do desejo e da proibio. Ao existir como hincia, o instrumento flico apresenta-se como causa, como agente da linguagem.Vimos,comLacan(1957-58/1999),quehumaligaodeordemmetafricaentreo falo e o pai. O desejo do Outro, que o desejo da me, comporta um para-alm que necessita deumamediaoparaseratingido.Essamediaodadapelaposiodopainaordem simblica.opaique,numdadomomentododipo,privaramedaquiloque,afinalde contas, ela no tem, ou seja, algo que s tem existncia como smbolo.Dessaforma,coloca-separaosujeito,noplanodaprivaodame,aquestode aceitar, de registrar, de simbolizar e, at mesmo, de dar valor de significao a essa privao da qual a me o objeto. Privao essa que o sujeito infantil assume ou no, aceita ou recusa. Esse o ponto nodal do dipo, momento em que o pai entra em funo como privador da 44 me, isto , perfila-se por trs da relao da me com o objeto de seu desejo como aquele que castra, coisa que digo apenas entre aspas, pois o que castrado, no caso, no o sujeito, e sim ame(LACAN,1957-58/1999,p.191,grifodoautor).AssumiracastraodoOutro implica assumir a sua prpria condio de serno completo, dividido pela ordem simblica. A partir da, o gozo est vedado a quem fala como tal, ele s pode ser dito nas entrelinhas por quem quer que seja sujeito da Lei, j que a lei se funda justamente nessa proibio (LACAN, 1960/1998). SegundoLacan(1971-72/1997),oquedailusodarelaosexualnoserfalante tudo o que materializa o Universal. Nas palavras dele, precisamente, no nvel onde a relao sexualteriachance,noabsolutamentedeserrealizada,massimplesmentedeseresperada, maisalmdaaboliopeloafastamentodafunoflica,noencontramosmaiscomo presena, eu ousaria dizer, seno um dos sexos (Ibid., p. 83). Para o psicanalista, a partir do momento em que se trata da relao sexual, o Outro est ausente.Diante disso, se mantivermos nossa hiptese de que as toxicomanias estabelecem uma relaodecontradiodialticacomodiscursodocapitalista,diremosqueasdrogadies materializam a Proposio Universal desse discurso, a qual afirma que Todo querer poder, atravsdaposioparadoxaldeumgozonocorposemamediaodalinguagem.Nesse sentido,astoxicomaniasapresentam-secomoumsintomadirigidoaumdiscurso,qualseja, ao discurso da satisfao plena, embora saibamos da impossibilidade desta. 1.3.5. O discurso do analista e as toxicomanias Comosabemos,apsicanlisesurgiuemmeadosdosculoXX,noseiodasociedade ocidental.Segundoumdeseusprincipaisdefensores,JacquesLacan,ocapitalcatalisador dessaemergnciafoiacincia.Ofatodeapsicanlisehavernascidodacinciapatente. Que pudesse ter surgido de outro campo, inconcebvel (LACAN, 1966/1998, p. 232). Eidelsztein(2008)lembra-nosqueapsicanliseumaprticateraputica,queopera comorespostaracionalaomal-estargeradonaculturaespecficadosujeitodacincia.A psicanliseopera,portanto,comosujeitoqueefeitodapresenadodiscursodacincia. Esta,aoimplicarumamanobraespecficadeoperarcomosaber,qualseja,aforaclusoda verdade como causa, tem por correlato um efeito de sujeito que lhe antinmico. O efeito de sujeito , fundamentalmente, o sujeito dividido, que Lacan escreve S. O sujeito da cincia $, 45 aindaqueacinciacomotal,aoapontarparaocontrriodabarraduradosujeito,tendaao sujeito unificado (Ibid., pp. 16-17, traduo nossa).Diantedessemodoespecficodeacincialidarcomosaber,apsicanliserestituia funodaverdadenocampodosabercientfico.Emcontrapartidaaoataquedacincia divisodosujeito,atravsdeumatentativadesutura,apsicanlisedestina-serecuperao da condio particular de cada sujeito, buscando incluir sua verdade e seu desejo. O analista, situado nolugar deagente no discurso analtico, apresenta-se como causa dodesejodosujeito,quesesituanolugardooutro.Nodiscursodoanalista,osujeito convidadoatrabalhareaproduzirseusprpriossignificantes-mestres,a(re)construirsua histria,trazendocenaumsabercoerentecomsuaverdade.Dessaforma,odiscursodo analista diferencia-se do discurso da cincia, naquilo em que o ltimo se aproxima do discurso universitrio. No discurso da cincia o saber, produzido por estudantes e cientistas, proposto ao sujeito como algo que j foi construdo a partir dos mtodos cientficos.Emvez de oferecer ao sujeito uma classificao nosolgica pronta, da qual ele possa seapropriarepermanecerafastadodequalquerimplicaocomseusintoma,apsicanlise convoca-o a falar de seu sintoma. O que rege a relao analtica a tica do desejo, voltada ao sujeitodoinconscienteque,paraseracessado,precisasituar-seemrelaosuaexistncia, para vir a demandar algo (CONTE, 2004). O que o analista institui como experincia analtica ahisterizaododiscurso,emoutraspalavras,aintroduoestrutural,mediante condies artificiais, do discurso da histrica (LACAN, 1969-70/1992, p. 31) a fim de que o sujeito seja conduzido a um saber que, para ele, tenha valor de verdade. Como assinala Lacan, no o desejo de saber que leva ao saber, mas sim o discurso da histrica. Para o analisante que est ali, no $, o contedo seu saber. A gente est ali para conseguir que ele saiba tudo o que no sabe, sabendo-o contudo. O inconsciente isso (Ibid., p. 106).Por suas caractersticas, o discurso analtico estabelece, de antemo, uma relao com astoxicomaniasquediferedaestabelecidaporumasriedeteraputicaspsicolgicas.Ali ondecomumenteapsicologiavapenasodependentequmicoepropetratamentos restritivoseimpositivoscomonicaopo,apsicanliseprocurapelosujeitoepelafuno exercida pela droga em sua vida psquica. Como a demanda por um tratamento normalmente noestpresentenastoxicomanias,Conte(2004)defendequeaescutaanaltica fundamentalparaoestabelecimentodeumprimeirocontatocomosujeitotoxicmano. Segundo ela, preciso que se realize um trabalho preliminar sobre a demanda, cujo objetivo tentarrecuperarapalavra,ahistria,asmarcaseamemriadosujeitotoxicmano, reconhecendo sua existncia e escutando suas queixas (p. 31). 46 Almdeofereceracrscimosaotratamentodepacientestoxicmanos,odiscurso analticopossibilitaoquestionamentoacercadoqueestenvolvidonofenmeno toxicomanaco, no deixando de v-lo em estreita relao com a poca e o contexto social em que est inserido.aoseguirporessaviaqueMelman(2000)procuraleratoxicomaniacomoum sintomaqueseinsereemumdeterminadomomentohistrico.Aoanalisararelaoentreo discursodoanalistaeastoxicomanias,Melmanchegaaformularodiscursoquefariada drogadio um sintoma social. Para tanto, o psicanalista realiza uma toro no lado direito do discursodoanalista.Taltoroolevaacrerqueestaramos,atualmente,emumtipode discurso ondeoquepostoemposiodecomando[...] o objetoa.[...].Oquecomanda cadaumogozo,oobjeto,namedidaemquecadaumaliencontra,deumaformaoude outra, seu ganho (Ibid., p. 77). Discurso do analistaDiscurso da toxicomania Essediscursoseriaoprottipodaeconomialiberalnaqualnohmaisningumno comando, uma vez que, agora, trata-se apenas de fazer negcios. A tentativa dessa operao , paraoautor,adequehajaumareabsorodoobjetoapelosignificante-mestre,tentativa impossvel que, no entanto, visada pela cincia.Para Melman (2000), estamos, hoje, diante de uma espcie de mau uso do discurso do analista, o que o faz perguntar qual foi o papel que os psicanalistas, eventualmente, puderam ternojogocultural.Apesardesemelhanteaodiscursodoanalista,odiscursoqueMelman propeparadarcontadastoxicomaniasapresentadiferenasquetrazemsuasprprias peculiaridades.Osujeito,produtodessediscurso,paraoautor,umsujeitomaisradical. Ao sair de seu sono provocado, o toxicmano renasce de certo modo como sujeito, se posso dizer,atroz,pois,comoassinaleiantes,nohobjetoquelhesejaco-natural,nemobjeto quelhevenhatraaravia.TemsimplesmenteumobjetoacidentalareencontrarnoReal (MELMAN, 2000, p. 78).47 Naposiodaverdade,encontramososaber,talcomonodiscursodoanalista.A relaoqueotoxicmanoestabelececomosaberdeverasparticular,umavezquesev como seu nico detentor. Embora tal fato no torne o toxicmano incapaz de estabelecer uma relaoanaltica,merecendo,porisso,umachance,comodefendeMelman,existemmuitos profissionaisquesemostramseveramentecontrriosateraputicasdeorientaoanaltica voltadas ao tratamento das adies. Seriam esses os defensores da Pesteterapia? 1.4. Um sexto (ou stimo) discurso? NaconfernciaproferidaemMilo,em1972,namesmaocasioemqueLacan anunciou o discurso do capitalista como o substituto do discurso do mestre, um possvel novo discurso, que viria a substituir o discurso a