21
ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA UMA POLÍTICA EMERGENTE Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração – ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009 110 ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA UMA POLÍTICA EMERGENTE Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR INTRODUÇÃO Este ensaio tem por objetivo resgatar o histórico do surgimento das primeiras Universidades na Idade Média, acompanhar a expansão das instituições universitárias durante a Idade moderna, por toda a Europa e América, e a partir desse apanhado histórico fazer uma analogia ao fenômeno contemporâneo que é a expansão da educação superior pelo Brasil, em especial, os cursos de Administração. Por outro lado, este ensaio trará uma contribuição para aqueles que desejam fazer parte do corpo docente de instituições de ensino superior e que não possuem formação pedagógica, tão pouco, histórica, conhecer, historicamente, a constituição da universidade e da docência na educação superior. Em nenhum momento a intenção deste ensaio é apresentar de forma reducionista a história da Instituição Universidade, tão pouco, esgotar a discussão sobre a abertura indiscriminada de cursos superiores no Brasil. Os dados aqui apresentados servirão de elementos problematizadores para o aprofundamento da questão levantada. Claro que, o fenômeno discutido apresenta outras vertentes, além da histórica. A abertura indiscriminada de cursos superiores no Brasil sofre influência de questões econômicas e políticas de âmbito internacional. Esse momento vivenciado pela Educação Superior Brasileira, em muitas outras nações e sociedades já foi vivenciado e historicamente superado. A Universidade desde o seu surgimento no século XIII tem uma história cíclica. Questões como autonomia, programas acadêmicos, docência e expansão

Abertura Indiscriminada de Cursos

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

110

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

INTRODUÇÃO

Este ensaio tem por objetivo resgatar o histórico do surgimento das

primeiras Universidades na Idade Média, acompanhar a expansão das

instituições universitárias durante a Idade moderna, por toda a Europa e

América, e a partir desse apanhado histórico fazer uma analogia ao fenômeno

contemporâneo que é a expansão da educação superior pelo Brasil, em

especial, os cursos de Administração.

Por outro lado, este ensaio trará uma contribuição para aqueles que

desejam fazer parte do corpo docente de instituições de ensino superior e que

não possuem formação pedagógica, tão pouco, histórica, conhecer,

historicamente, a constituição da universidade e da docência na educação

superior.

Em nenhum momento a intenção deste ensaio é apresentar de forma

reducionista a história da Instituição Universidade, tão pouco, esgotar a

discussão sobre a abertura indiscriminada de cursos superiores no Brasil. Os

dados aqui apresentados servirão de elementos problematizadores para o

aprofundamento da questão levantada. Claro que, o fenômeno discutido

apresenta outras vertentes, além da histórica. A abertura indiscriminada de

cursos superiores no Brasil sofre influência de questões econômicas e políticas

de âmbito internacional.

Esse momento vivenciado pela Educação Superior Brasileira, em muitas

outras nações e sociedades já foi vivenciado e historicamente superado. A

Universidade desde o seu surgimento no século XIII tem uma história cíclica.

Questões como autonomia, programas acadêmicos, docência e expansão

Page 2: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

111

geográfica sempre foram tratadas ao longo dos séculos. Porém em cada

século estas questões refletem o modelo de sociedade vigente, ou seja, a sua

estrutura social, organização política, econômica e cultural.

Portanto, as discussões fomentadas quanto à regulamentação de

instituições universitárias no Brasil e conseqüentemente de cursos superiores e

que inquietam nós pesquisadores e docentes existiram, também, no

surgimento desta instituição e a acompanha ao longo dos tempos. É importante

considerar que a Idade Média, como destaca ULMANN & BOHEN (1994,

p.292-306) não constitui uma idade intermediária, mas uma época inicial de

fecunda gestação do futuro. O retorno às origens e o acompanhamento da

presença medieval ao longo dos séculos, parece mostrar não ter havido cisão

qualitativa, na história, mas prolongamento e continuidade. Tal idéia pode

surpreender-nos porquanto nega a concepção de que medievaliade e

modernidade se opõem frontalmente, porém, “o que há de mais vivo no

presente é o passado”.

A INSTITUIÇÃO DAS PRIMEIRAS UNIVERSIDADES: UM RECORTE

HISTÓRICO

Segundo CHARLE & VERGER (1996, p. 13) as primeiras universidades

surgiram na Europa ocidental no início do século XIII, pode-se considerar

contemporâneas as universidades de Bolonha, Paris e Oxford. O que se

ensinava nestas instituições permitia o desenvolvimento e continuação da

cultura erudita e a forma mais alta de saber que um homem livre podia almejar:

as Artes Liberais (Gramática, Retórica, Lógica, Aritmética, Música, Astronomia

e Geometria).

Até o século XII era nos centro escolares que os jovens buscavam o

conhecimento. A igreja detinha o controle e o monopólio sobre os centros

escolares por meio do sistema licentia docendi, uma espécie de autorização

para funcionamento outorgada em cada diocese pela autoridade episcopal.

Pela França, predominavam as escolas de Artes, porém existiam escolas

Page 3: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

112

isoladas de Medicina e Direito espalhadas pela Itália, Inglaterra e norte da

França, todas autônomas e sob a responsabilidade do mestre, portanto, laicas.

Para BUARQUE (2003, p.29) a Universidade nasceu porque os

mosteiros medievais perderam a sintonia com o ritmo e o tipo de conhecimento

que vinha surgindo no mundo ao seu redor. As Universidades surgiram como

um espaço para o novo pensamento livre e vanguardeiro de seu tempo, capaz

de atrair e promover jovens que desejavam se dedicar às atividades do espírito

num padrão diferente da espiritualidade religiosa.

ULMANN & BOHEN (1994, p.76) veementemente acreditam que não se

pode reduzir a uma única causa a emergência da universidade. Para elucidar a

formação delas, aplicam a linguagem aristotélica das causas.

A causa material: é o acúmulo do saber humano, em

todas as suas latitudes, à disposição dos espíritos

curiosos. A causa formal expressa-se no desenvolvimento

corporativistas dos mestres e dos alunos, que nisso

imitaram outras associações. A causa eficiente pode ser

vária: geralmente, cifra-se na formação espontânea da

universitas e no reconhecimento social por parte da Igreja

e/ou do poder público temporal ou, ainda, na origem ex

privilegio (= ex auctoritate), podendo ser fundação papal

ou do imperador (rei, príncipe). Por fim, qual a causa final

das universidades? Servir a Deus e à Igreja, sendo úteis à

sociedade. (ULMANN & BOHEN, 1994, p.76)

A história registra que inúmeros centros escolares ativos sofreram

declínio brusco na segunda metade do século XII. Indagava-se sobre a causa

do fracasso, alguns argumentavas que os professores não souberam ensinar,

outros, que as cidades não conseguiram administrar o afluxo dos estudantes.

Não existe uma causa única, como aponta CHARLE & VERGER (1996, p. 16)

seria necessário um estudo particular para cada caso. No entanto, sabe que,

Em Bolonha (...) foi em torno de 1190 que se iniciou a

mudança decisiva. Subtraindo-se à autoridade individual

Page 4: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

113

dos doutores, os estudantes começaram a se agrupar de

acordo com sua origem geográfica, por nações. (...) pouco

a pouco, as “nações” estudantis agruparam-se em

“universidades”. (...) Por volta de 1230 a Universidade de

Bolonha, pelo menos quanto aos direitos Civil e Canônico,

estava solidamente constituída. (CHARLE & VERGE,

1996 p. 16-17)

Em Paris, foi pouco depois de 1200 que os mestres, em

todo caso os mestres independentes que ensinavam,

principalmente as Artes Liberais, começaram a se

associar. (CHARLE & VERGE, 1996 p. 17)

A Universidade de Oxford também é antiga (...) em 1214

foram-lhe outorgados os privilégios pontificais. (CHARLE

& VERGE, 1996 p. 18)

Cabe registrar que estas instituições eram pouco freqüentadas por

nobres, e muito menos ainda pela massa populacional, afastada pelos altos

custos dos cursos e o tempo de duração. O maior contingente de estudantes

era oriundo de uma classe media que via o acesso, aquisição e domínio do

conhecimento como uma possibilidade de ascensão social também. Inclusive

os nobres faziam questão em contratar os diplomados para cargos superiores

da administração e da justiça em seus Reinos.

Analisando as causas da gênese das universidades ULLMANN &

BOHNEN (1994, p. 76-78) apresenta uma classificação, predominante entre os

estudiosos, quanto às modalidades de origem:

1.Ex consuetudine são universidades que nasceram

espontaneamente de escolas preexistentes, ou seja, das

escolas catedralícias, formando os professores e os

alunos uma única societas.

2.Ex privilegio ou ex auctoritate denominam-se as que

foram criadas ou por um governante ou por um Pontífice,

ou por ambos, não sem motivos políticos e utilitários.

Page 5: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

114

3.Ex migratione chamam-se as universidades originadas

por secessão1 de alunos e professores, por causa de

desavenças com autoridades locais.

Apostando abertamente na modernidade institucional e intelectual, em

todos os lugares o papado garantiu a autonomia universitária; por meio disso,

ele reconhecia para as universidades uma espécie de magistério doutrinal

extensivo a toda cristandade, servindo em última instância, evidentemente, a

objetivos definidos por ele mesmo.

Ao longo dos séculos seguintes, a universidade floresceu como um

verdadeiro centro de geração de alto conhecimento nas sociedades. Mas, para

tal, ela teve de reciclar, mudar e se adaptar, em diversos momentos, à

realidade ao seu redor.

É importante destacar, ao longo dessa história, dois séculos importantes

que marcaram essa nova fase da Universidade Medieval, os séculos XIV e XV.

CHARLE & VERGE (1996 p. 22) apresenta duas fortes características desse

período: as novas fundações e o crescente papel do estado. São, de certa

forma, características que possibilitaram a expansão universitária contribuindo

para a perpetuação da Universidade até os dias de hoje. Estas duas

características são elementos importantes para o entendimento da

problemática deste ensaio.

As novas fundações universitárias expandiram-se por todos os países,

mais do que as primeiras resultaram de um ato de fundação decidido por

autoridades políticas, pelo príncipe ou pela cidade, e confirmado pelo papado.

Inclusive, alguns países até então marginais em relação aos grandes centros

culturais e políticos europeus adotaram a instituição universitária como um

signo de sua modernização. O estado e os poderes políticos, portanto, passam

a exercer um controle opressivo sobre as Universidades que serviam de

instrumento para elaboração de uma ideologia nacional e monárquica.

1 Entenda-se por secessão a retirada, por protesto, de alunos e mestres que por questões políticas abandonavam as universidades, principalmente quando a liberdade era ameaçada. É claro que o êxodo de alunos e professores significava, para uma cidade, declínio de seu renome.

Page 6: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

115

Devido estarem, quase sempre, ligadas a um principado territorial,

estas novas instituições não objetivavam nenhum brilho universal. Elas se

submeteram de boa vontade, em troca dos favores do príncipe ao papel

determinado: ministrar um ensino ortodoxo formar as futuras elites locais,

contribuir para a ordem social e política estabelecida.

A expansão territorial pode ser percebida em números conforme retrata

CHARLE & VERGE:

Em 1300, não havia ainda, certamente, mais do que 12 ou

13 universidades ativas na Europa. Até 1378, o ritmo das

fundações continuou moderado. (...) Tudo irá mudar

depois do Grande Cisma (1378 – 1417). Rompimento

confessional que dividirá a Europa em duas dominações

rivais. Essa crise acelerou a emergência dos Estados e

das Igrejas nacionais. Havia menos de trinta

universidades realmente ativas em 1378; em 1500,

haverá mais que o dobro. (CHARLE & VERGE, 1996, p.

23-24)

Aos poucos a Universidade foi perdendo sua autonomia e ao final do

século XIV se tornado uma instituição bastante diferente da que havia sido em

suas origens. A história das universidades da idade média, que durante muito

tempo guardou uma identificação com a história das idéias e das doutrinas,

desliga-se completamente desta. CHARLE & VERGE (1996 p.29) chegam a

relatar que os estatutos eram freqüentemente mal-aplicados; os programas

estudados de maneira incompleta; as durações obrigatórias dos estudos, não

respeitadas, mesmo os exames algumas vezes eram fraudados; negligência e

fraude se tornavam comum. O acesso rápido, e a baixo custo, ao diploma

constituía o objetivo confesso de muitos estudantes.

Para nós, pesquisadores e docentes há um conforto. Pelo menos nos

centros mais importantes foram elaboradas novas teorias e práticas intelectuais

que fizeram progredir a cultura ocidental. As escolas e as universidades

medievais propiciaram o aparecimento, no Ocidente, da figura social do

Page 7: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

116

“intelectual”. Figura munida de uma “cultura de base” que lhe possibilitava uma

visão coerente do mundo.

A lista de disciplinas ensinadas nas universidades foi fixada no século

XIII. Na verdade, muitas universidades ensinavam apenas algumas disciplinas,

e mesmo com o surgimento, no final do século XIV, da idéia de que toda

universidade deveria ter as “quatro faculdades” tradicionais (Artes, Medicina,

Direito e Teologia), eram freqüentes aquelas que existiam apenas no papel.

Delas vem a idéia inicial de que existiam disciplinas propedêuticas,

preparatórias para os estudos propriamente superiores. Elas eram reagrupadas

sob a denominação de “Artes Liberais”. Distinguiam-se as três artes do trivium

(Gramática, Retórica e Dialética) e as quatro do quadrivium, artes das coisas e

dos números (Aritmética, Música, Astronomia, Geometria) e adquiriu-se, então

o hábito de falar da Faculdade de Artes.

O método de ensino das universidades medievais se originou do modus

docendi das escolas anteriores ao século XII. O método foi aprimorado e se

tornou mais complexo recebendo o nome de escolástica2. A Pedagogia

escolástica articulava-se, em todas as faculdades, em torno de dois exercícios:

a leitura (lectio) e a disputa (disputation). A leitura escolástica tinha antes como

finalidade fazer surgir e expor de maneira autônoma as “questões” ou os casos

que aparecessem no decorrer do comentário textual. Convertido em exercício

distinto, a questão tomou a forma concreta da “disputa”, ou seja, de uma

discussão pública organizada entre estudantes sob a direção do mestre.

Em todas as disciplinas, o ensino repousava em um pequeno número de

“autoridades”, textos de base, famosos por conter, se não todo o saber, pelo

menos os princípios gerais sobre os quais todo o conhecimento posterior devia

basear-se. O ensino escolástico era principalmente oral. O mestre deveria

possuir as autoridades que ele “lia” e consultar os principais comentaristas

anteriores; pressupunha-se que os próprios estudantes tivessem pelo menos

os textos lidos em classe, para acompanhar proveitosamente os cursos.

2 Etimologicamente Escolástica provém de schola, de que deriva scholasticus, isto é, pertencente à escola, ou ao mestre. Scholasticus significava, também homem culto, versado no trivium e no quadrivium. Era pois um título honorífico. (ULLMANN & BOHEN, 1994, p.44)

Page 8: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

117

As universidades construíram um sistema completo de exames e de

graus denominado licentia docendi. Através desses exames a competência

intelectual dos estudantes ficava oficial e coletivamente assegurada pela

universidade; o saber adquirido por meio do estudo era assim convertido em

“capital social” passível de tornar-se dinheiro no decorrer de toda uma carreira.

De modo geral havia três graus sucessivos. O bacharelado, na maioria das

vezes obtido dentro da própria escola, o mestrado e o doutorado.

As universidades procuravam facilitar o acesso de seus membros ao

livro. Porém, até o século XV, havia bibliotecas apenas nos grandes colégios.

De modo global, as insuficiências da produção livresca certamente são

responsáveis por muitas das deficiências do ensino universitário medieval.

A multiplicação das universidades não impediu que muitas grandes

cidades, capitais políticas ou econômicas como Londres, Milão, Berlim tenham

ficado desprovidas delas, devido, certamente, à desconfiança conjunta dos

governos e das elites burguesas.

Enfim, a instituição universitária começou a firmar-se fora

da Europa, nas colônias americanas. Na América Latina,

as mais antigas fundações foram as de São Domingos

(1538), a de Lima (1551) e a do México (1551); instituídas

por decreto real com estatutos inspirados nos de

Salamanca e de Alcalá, quase sempre controladas por

ordens religiosas, ensinando principalmente Teologia e

Direito Canônico, as universidades da América Latina

eram claramente fundações coloniais e missionárias: vinte

delas foram estabelecidas antes da independência, com

maior ou menor sucesso, nas principais colônias

espanholas. No Brasil não houve nenhuma. Na América

do Norte, as primeiras universidades, sob a forma de

colégios, foram antes de tudo o fruto de interesses locais:

tratava-se de formar pastores e administradores de que

necessitavam as colônias inglesas; os primeiros colégios

Page 9: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

118

foram Harvard (1636), Williamsburg (1693) e Yale (1701).

(CHARLE & VERGER, 1996, p.42)

No Brasil, diferentemente de toda a América espanhola, o ensino

superior iniciou-se em 1808, conforme apresenta ANASTASIOU & PIMENTA

(2002, p. 148), no período colonial com a criação de escolas isoladas. Até

então, os brasileiros eram enviados à Europa para estudar, principalmente em

Coimbra. O modelo adotado nessas escolas era o franco-napoleônico,

caracterizado por uma formação profissionalizante e burocrática para o

desempenho das funções do estado. Em sua organização administrativa,

tratava-se de um modelo de universidade centralizador e fragmentado.

A história do surgimento da primeira Universidade brasileira é

considerada por BUARQUE (2003, p 45) um pecado original que demonstra o

obscurantismo e o servilismo da elite brasileira.

É irônico que ela tenha sido criada para que fosse

concedido o título de Doutor Honoris Causa ao Rei

Leopoldo da Bélgica em visita ao Brasil, no ano de 1922.

Não fosse por aquela visita e a ingênua vaidade de um

monarca ou o capricho de algum de seus cortesãos, a

universidade brasileira talvez tivesse demorado mais 10

ou 20 anos para ser criada. (...) Entre 1922 e 1934, a

Universidade do Brasil e do Rei Leopoldo, no Rio de

Janeiro, foi a única e precária instituição universitária,

embora existisse no país diversos cursos de ensino

superior.(...) a primeira grande universidade brasileira

nasceu em 1934, não mais pela vontade de um rei belga

(...) a Universidade de São Paulo resultou da vontade de

intelectuais brasileiros aliados a intelectuais franceses.

BUARQUE (2003, p.45)

Buarque registra que a atual Universidade Federal do Paraná reivindica

a pioneirismo como Universidade, inclusive, em 2003, comemorou os seus 90

anos de história. É uma briga política que não vamos aprofundar aqui, mas

Page 10: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

119

que, segundo o próprio Buarque, do ponto de vista do desenvolvimento

explícito e da dimensão nacional foi mesmo no Rio de Janeiro em 1922 o

surgimento da primeira universidade brasileira, atualmente, a Universidade

Federal do Rio de Janeiro.

A EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRA EM VIAS DO SÉCULO XXI

Discutir a Educação Superior no Brasil necessariamente passa pelo

entendimento da realidade socio-politico-econômica do país. Na atual

conjuntura que vivemos, período de globalização e internacionalização, todas

as políticas, inclusive as educacionais, dos países, necessariamente sofrem

interferências de instituições e agências internacionais. Para chegarmos ao

entendimento da educação superior em vias do século XXI faz-se necessário

discutir como a Educação Superior e a universidade brasileira evoluiu ao longo

do século XX e relaciona-la à dinâmica dos determinantes socio-político-

econômicos deste período.

Segundo BOSI (2000, p.9-10),

(...) até 1934, o ensino superior estava concentrado nas chamadas

“grandes escolas”, voltadas para a formação de advogados, médicos,

engenheiros e agrônomos: as faculdades de engenharia e as escolas

superiores de agronomia. Eram instituições públicas, gratuitas e bem-

estruturadas, que cumpriam satisfatoriamente o seu propósito de formar

as elites regionais, de onde saíam os profissionais e os grupos dirigentes

do Império e da República Velha. Portadoras de uma tradição

humanística e científica de filiação européia, particularmente francesa e

alemã, representaram, em geral, a ponta-de-lança da cultura letrada em

uma nação periférica cujas elites desejavam integrar-se nos modelos

ocidentais hegemônicos.

A evolução da universidade brasileira e suas relações com o estado é

organizada por BUARQUE (1994, p. 198-199) em quatro momentos a saber:

1. Até os anos 50, a universidade era inexistente ou incipiente;

Page 11: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

120

2. Entre os anos 50 e final dos anos 60, a universidade cresceu em

todos os sentidos: número de instituições, de alunos, de professores;

3. A partir do final da década de 60 e durante a de 70, a universidade

não apenas cresceu como se transformou: as universidades públicas,

especialmente, assumiram o papel de instituições de pesquisa; seus

professores passaram a ter carreiras acadêmicas, pós-graduação,

bons salários em comparação ao período anterior; construíram-se

prédios, montaram-se laboratórios, bibliotecas;

4. Finalmente, depois dos anos 80 inicia-se um processo de

degradação: os recursos são reduzidos; uma parte considerável das

energias dos professores é canalizada para obter recursos e evitar a

degradação dos salários, nem sempre com êxito e freqüentemente

por meio do desgastante instrumento da greve.

BOSI (2000, p.15) complementa considerando que a partir dos anos 70,

a demanda cresceu significativamente, o que propiciou a expansão das redes

federais e estaduais de ensino superior. Um novo panorama começava a se

delinear, à medida que essas redes se saturavam, ou que as exigências dos

seus vestibulares superavam o desempenho dos egressos de uma escola

média deficiente, multiplicavam-se também as universidades ou simples

faculdades privadas autorizadas pelo Ministério da Educação.

Essa multiplicação pode ser observada nos dados apresentados por

BOSI (2000, p. 16): em 1980, havia no Brasil 34 universidades federais e 20

particulares. Em 2000 tínhamos 39 universidades federais (o acréscimo não

passou de 1,5%) e 76 particulares (mais de 250% de acréscimo), não incluídas

as faculdades isoladas.

O Senso da Educação Superior no Brasil, em 2002, apresentado pelo

INEP3, revela um boom do número de instituições de ensino superior4

existentes no país. São 1637 instituições. Deste número 195 instituições são de

administração pública (73 federais, 65 estaduais e 57 municipais), e 1442 são

3 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. 4 Consideradas as Universidades, Centros Universitários, Faculdades Integradas, Faculdades Isoladas e Centros de Educação Tecnológica.

Page 12: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

121

de administração privada (1125 particulares e 317 confessionais, comunitárias

ou filantrópicas). A análise dos dados demonstra uma interiorização das

instituições, tanto as públicas quanto as privadas, apresentam o número de

instituições no interior, 70%, aproximadamente, superior ao número de

instituições nas capitais.

Os dados apresentados nos permitem-nos observar que o Sistema da

Educação Superior no Brasil está estruturado em dois grandes blocos. O bloco

das instituições públicas e o bloco das instituições privadas. Dentro de cada um

deles existem categorias. As públicas são organizadas em Federais, que são

instituições marcadas pelo elevado grau de qualificação dos seus docentes e

conseqüentemente excelência na produção acadêmica; as Estaduais, mantidas

pelos governos como forma de interiorizar a educação superior, porém sofrem

com o sucateamento dos prédios e a falta de recursos para investimentos na

pesquisa, pois a arrecadação estadual não é suficiente, algumas destas

instituições de caráter estritamente eleitoreiro; e as Municipais, em sua grande

maioria faculdades isoladas instituídas para suprir uma necessidade de

qualificação local.

Quando se trata das instituições privadas estas são organizadas em

Particulares, mantidas por grupos empresariais, em alguns casos

multinacionais proprietárias de outras empresas, como supermercados, outras

surgiram a partir de colégios bem sucedidos cujos administradores resolveram

apostar no filão do momento e há também aquelas cuja propriedade pertence a

políticos tradicionais, as instituições particulares representam a maior parcela

de instituições do mercado como vimos nos dados apresentados pelo senso

2002; Comunitárias/Confessionais/Filantrópicas são instituições geralmente

mantidas por religiosos ou entidades sem fins lucrativos, são instituições com

uma certa tradição e demonstram ao longo da sua história um compromisso

com a sociedade e com a educação.

Este cenário é bem propício para o desenvolvimento da concorrência.

Para sobreviverem, as instituições lançam mão das mais diversificadas

técnicas e estratégias mercadológicas.

Page 13: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

122

A concorrência é explícita entre instituições privadas, porém

MARCOVITCH (1998, p. 129-130) visualiza a concorrência também entre

instituições públicas e instituições privadas, esta concorrência contraria os

interesses nacionais e a oposição dos dois sistemas constitui um grosseiro erro

estratégico.

É preciso que se discuta a complementariedade entre

eles. (...) É evidente que a universidade pública não

conseguiu acompanhar a demanda de cursos de

graduação. Mas também a lógica do ensino privado tem

limitado o florescimento da pesquisa.

Para BOSI (2000, p.17) a enorme propaganda que as universidades-

empresa estão fazendo nas capitais dos estados e até nas cidades médias e

menores atesta o grau de concorrência do respectivo mercado. Curiosamente,

essa luta competitiva, ao contrário do que pretende o pensamento neoliberal,

não concorre para melhorar a qualidade do produto oferecido à praça (o

ensino), mas só faz degrada-lo no afã de torna-lo mais acessível ao

consumidor-cliente (o aluno). Um verdadeiro varejão5 da educação superior foi

instalado no país. Essa idéia é confirmada e afirmada por um “dono” de

faculdade do Rio de Janeiro:

(...) a McDonald’s do curso superior. Com franquias em

quase todo o Rio de Janeiro, serviço rápido e diploma

para todos os bolsos, é a universidade particular que mais

cresce no estado. Em três décadas de funcionamento,

transformou os 166 alunos em 90 mil. (MONTENEGRO,

16 nov. 2001)

SILVA JR. & SGUISSARDI (1999, p.25) a crise e reestruturação do

estado e da educação superior não são fenômenos exclusivos do Brasil, nem

apenas de países do Terceiro Mundo ou da América Latina, mas uma realidade

presente e comum à maioria dos países de todas as dimensões, graus de

5 Expressão utilizada pela Prof. Rosa Lydia em suas aulas no Programa de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pra caracterizar as instituições de ensino superior emergente que não apresentam nenhum compromisso com a educação.

Page 14: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

123

desenvolvimento e latitudes. Trata-se de fenômenos que acompanham as

transformações da base econômica dos diferentes países, a começar pelos do

chamado Primeiro Mundo, e especialmente da Europa Ocidental, onde o

trânsito do Fordismo para um novo regime de acumulação e a crise do Estado

do Bem-Estar Social se fazem sentir antes e com maior intensidade.

CATANI (1996, p. 17) explica que a crise do Fordismo, enquanto forma

de organização do trabalho e enquanto modelo de desenvolvimento do

capitalismo, inaugura um novo momento histórico, no qual a nova ordem

econômica mundial e o neoliberalismo encontram-se em sua centralidade. A

nova ordem econômica mundial vai, pois, se delineando por meio da superação

das contradições produzidas historicamente pelo Fordismo e pode ser

considerada como uma outra etapa do capitalismo ou como um outro ciclo da

mais-valia relativa ou, ainda, como um outro estágio de acumulação capitalista.

A tendência de transformação do processo produtivo brasileiro,

impulsionada pela nova ordem internacional, e a necessidade de inserção do

Brasil na economia mundial obrigam a aproximação dos setores produtivos dos

centros elaboradores do conhecimento, isto é, as universidades e os institutos

de pesquisa do governo, em face da centralidade ocupada pela ciência e pela

tecnologia em meio às vantagens comparativas no acirrado mercado mundial.

A aproximação entre setores produtivos e educacionais, em especial a

educação superior, é um fato estruturalmente irreversível neste estágio de

desenvolvimento do capitalismo mundial.

O Estado brasileiro para acompanhar essa nova lógica do capitalismo

passa por uma Reforma modernizando-se. Esta Reforma constitui-se da

redefinição das atividades estatais distribuindo-as em setores. Os serviços

outrora de responsabilidade do Estado passam a ser realizados por instituições

não-estatais, na qualidade de prestadoras de serviço. Desta forma, segundo

CHAUÍ (1999), “a Reforma encolhe o espaço público democrático dos direitos e

amplia o espaço privado não só ali onde isso seria previsível – nas atividades

ligadas à produção econômica –, mas também onde não é, admissível – no

campo dos direitos sociais”.

Page 15: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

124

Para adequar a Universidade a essa nova realidade, a idéia da Reforma

é dicotomizar as atividades da universidade, o ensino da pesquisa. O ensino de

responsabilidade das Organizações de Educação Superior e a pesquisa de

responsabilidade dos centros de excelência em pesquisa.

O léxico da Reforma é inseparável da universidade como

“organização social” e de sua inserção no setor de

serviços não-exclusivo do Estado. Ora, desde o seu

surgimento (no século 13 europeu), a universidade

sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social,

uma prática social fundada no reconhecimento público de

sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de

diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras

instituições sociais, e estruturada por ordenamentos,

regras, normas e valores de reconhecimento e

legitimidade internos a ela. (CHAUÍ, 1999)

Portanto, a universidade abandona a condição de instituição e assume a

condição de Organização. A diferença não está apenas na nomenclatura, mas

na idéia prática de cada um dos termos. Enquanto a instituição aspira à

universalidade, a organização sabe que sua eficácia e seu sucesso dependem

de sua particularidade.

CHAUÍ (1999), caracteriza muito bem essa passagem da universidade

da condição de instituição à de organização em duas fases sucessivas, a

primeira fase a universidade funcional, voltada para a formação rápida de

profissionais requisitados como mão-de-obra altamente qualificada para o

mercado de trabalho, e a segunda fase a universidade operacional que, por ser

uma organização, está voltada para si mesma e estruturada por estratégias e

programas de eficácia organizacional.

RISTOFF (2002) numa análise mais apurada afirma, convicto, que essa

Reforma que atinge a universidade se evidenciou na República do presidente e

professor Fernando Henrique Cardoso e do ministro da Educação Paulo

Renato e é percebida pelo seguinte diagnóstico:

Page 16: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

125

Crescente vulgarização do sentido de universidade;

agressiva privatização do sistema; desinvestimento

programado e gradativo nas Instituições Federais de

Ensino Superior (IFES); crescimento vertiginoso da

exclusão no acesso às IES públicas; desrespeito repetido

à constituição no que se refere à autonomia das

Universidades, à democracia interna e à

indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão;

privatização crescente do espaço público, através de

cursos regulares, especializações, mestrados e

doutorados, assessorias, consultorias, etc. oferecidos,

como mercadorias, através das fundações de apoio;

privatização branca do espaço público através de

mestrados profissionalizantes pagos e de cursos

seqüenciais pagos; perda da qualidade acadêmica

através da substituição de professores efetivos por

estagiários de docência; aligeiramento da graduação

através de cursos seqüenciais, colocados no mesmo

patamar valorativo dos cursos de graduação, ou de

propostas de encurtamento da graduação. (RISTOFF, ?)

Enfim, esse é o panorama atual da Educação Superior no Brasil. Um

panorama não muito agradável, mas uma realidade que satisfaz ao modelo

neoliberal e segundo SGUISSARDI (2000, p.14) responde às “recomendações”

que o Banco Mundial fez para a Educação Superior dos países em

desenvolvimento através do documento La enseñanza superior: lãs lecciones

derivadas de la experiência (1994) e do The financing and management of

education: a status reportt on worldwide reforms (1998). Entre as

recomendações estão: fomentar a maior diferenciação das instituições,

incluindo o desenvolvimento de instituições privadas; redefinição da função do

governo no ensino superior; proporcionar incentivos para que as instituições

diversifiquem as fontes de financiamento, por exemplo, a participação dos

Page 17: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

126

estudantes nos gastos e a estreita vinculação entre o financiamento fiscal e os

resultados.

É notório, portanto, que a análise da realidade da Educação Superior no

Brasil não pode se limitar à observação dos dados e políticas nacionais, isto

seria uma visão reducionista, mas uma leitura que contemple o levantamento

histórico, político e econômico numa perspectiva macro e microambientais.

ALGUMAS QUESTÕES PARA REFLETIR

Este ensaio procurou resgatar historicamente como a instituição

universidade se constituiu ao longo dos tempos e como se caracteriza no

Brasil. O século XXI é um século que se iniciou com muitas transformações

políticas e econômicas cujas bases estão no século XX. A universidade

brasileira, hoje, passa por um momento de crise. A ruptura de um modelo

europeu, tardiamente e muito mal copiado, tem como mola propulsora o

modelo neoliberal.

De autônoma, a universidade passa, nos dias de hoje, a serviçal do

sistema econômico e do novo estágio do capitalismo. Para BUARQUE (1994,

p. 22), “a universidade, que foi criada para se pensar livre dos dogmas,

avançou nos métodos interpretativos, no conhecimento filosófico, no

pensamento científico inicial, mas estancou quando este pensamento precisou

ir além do que os gregos tinham criado”. É mister não esquecer, que apesar da

autonomia, conquistada nos atos de sua criação, a universidade nos

primórdios, também apresenta registros de promoção dos desejos de reis,

príncipes e burgueses.

BUARQUE (1994 p. 23) é severo quando afirma que

De promotora do saber, em poucos séculos a

universidade se transformou não apenas em conivente

como também instigadora da tentativa de impedir o

avanço do conhecimento. Vários são os casos desse

impedimento: a não reação contra a morte de Miguel

Servert, o descobridor da circulação pulmonar, a

Page 18: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

127

condenação de Joana D’arc, a proibição da menção do

nome de Descartes, entre tantos outros.

Talvez, hoje, esse impedimento, no Brasil, seja representado por todas

as questões que levantamos neste texto. A crescente vulgarização da

universidade, fazendo com que os cursos superiores percam a cada dia sua

cientificidade, a crescente privatização do setor pela iniciativa privada e

sucateamento das instituições públicas. È importante que todos estes aspectos

por nós levantados não sejam entendidos como ativismo e sindicalismo, mas

como uma preocupação com a verdadeira essência do ensino superior criado

no século XII.

Contudo, não podemos fechar nossos olhos e não trazer à tona das

discussões acadêmicas o que se vê diariamente. O que dizer dos cursos

seqüenciais, uma proposta de aligeiramento e perda da qualidade, ou uma

resposta imediata da educação superior às demandas mercadológicas? Os out

doors estampam layouts apresentando instituições que proporcionam cursos

superiores em dois anos. E os vestibulares eletrônicos realizados

semanalmente? E os vestibulares temáticos, como o “Da Véspera do Dia dos

Namorados”? Os olhos dos estudantes brilham em saber que o ensino

superior, objeto de desejo materializado no diploma, está cada vez mais

próximo.

Porém, nenhum desses out doors apresenta o valor da dívida adquirida

pelo infeliz quando assina o contrato de prestação de serviços educacionais. A

fila em busca de financiamentos educacionais encomprida a cada dia. Todos

com a ilusão de que depois de formados, estão com uma vaga garantida ao

sol6, E assim como fala FRIEDMAN, citado por BIANCHETTI (2001, p. 99):

É eminentemente desejável que todo jovem, homem ou

mulher, qualquer que seja a renda, posição social, local

de residência ou raça dos pais, tenha oportunidade de

obter educação superior contanto que estejam dispostos a

pagar por ela hoje ou com a renda mais alta que a

6 Leia-se sol como mercado de trabalho e PEA (População Economicamente Ativa)

Page 19: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

128

escolarização lhe permitirá obter depois. (FRIEDMAN,

1980)

Criticamente, BIANCHETTI (2001, p. 100) diz que “isso representaria

uma bolsa de valores de cérebros, onde os empresários investiriam naqueles

estudantes que, no desenvolvimento de suas atividades estudantis,

demonstrassem ser um investimento lucrativo”.

Hoje, ficamos impressionados e estarrecidos quando observamos uma

banalização do ensino superior, mas outrora, séculos atrás, um movimento

muito semelhante aconteceu. A educação servindo de serviçal e mordomo dos

sistemas políticos. Como sempre fala a professora Lílian Wachowicz7 em suas

aulas: “Qualquer semelhança, NÃO é mera coincidência”.

Várias são as indagações sobre o que está acontecendo. Inicialmente

deixamos a seguinte questão: a expansão da Educação Superior no Brasil na

contemporaneidade é uma democratização ou banalização? Esta e outras

questões deverão ser aprofundadas num trabalho de pesquisa que tem como

tema “A abertura indiscriminada de cursos superiores de Administração: um

aspecto da história recente”.

Por que são a Administração junto ao Direito os cursos que mais abrem

nesse momento pelo Brasil? A resposta não deve ser reducionista afirmando

que são cursos que não exigem uma infraestrutura laboratorial. Existem

implicações políticas e econômicas e cabe aos professores desses cursos

emergentes uma consciência do fenômeno para que não sejam instrumentos

de reprodução da ideologia dominante.

Esses cursos, em especial os de Administração, estão expandindo as

vagas para professores no mercado de trabalho, e alguns, inclusive com uma

boa remuneração. Isso faz com que muitos administradores de carreira,

trabalhem em empresas durante o dia e à noite exerçam a docência. Aí é onde

reside o perigo. Estariam estes professores preparados para a docência?

Sabe-se na informalidade que não. Primeiro porque não têm dedicação

7 Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR.

Page 20: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

129

exclusiva ou ao menos parcial. Muitos estão fazendo da docência um “bico” e

assim a mediocridade se instala na educação superior.

Preliminarmente, sugerimos que, uma forma de frear essa expansão

indiscriminada da iniciativa privada na Educação Superior, seria o

desenvolvimento de política regulamentadora mais séria e comprometida. Uma

política para o setor privado deve partir do reconhecimento de sua

heterogeneidade, que é muito maior do que a existente no setor público. Ele

inclui tanto instituições idôneas e competentes, como meras empresas de

ensino, sem compromisso mais sério com a Educação.

Em relação à docência, sugerimos que cada instituição estruture um

núcleo de formação pedagógica para assessorar os professores e acompanhar

sua prática. O objetivo não é desenvolver no curso de administração um

pedagogismo surreal e sim orientações direcionadas para a prática pedagógica

no ensino de Administração, por isso faz-se necessário que estejam a frente

desses núcleos profissionais que entendam da Administração e da Pedagogia

simultaneamente. Com isso, aqueles que fazem da docência um “bico”,

pressionados pelo fazer consciente e comprometido, ou desistirão ou se

entregarão ao exercício consciente do ser educador. E assim, poderão ser

minimizados os efeitos dessa expansão indiscriminada de cursos superiores.

Bibliografia

ANASTASIOU, Lea das Graças; PIMENTA, Selma. Docência no Ensino

Superior. São Paulo: Cortez, 2002.

BIANCHETTI, Roberto. Modelo neoliberal e políticas educacionais. 3 ed. São

Paulo: Cortez, 2001.

BOSI, Alfredo. Universidade: panorama e perspectivas. São Paulo: Fundação

Konrad-Adenauer-Stiftung, 2000.

CATANI, Afrânio Mendes (org.). Universidade na América latina: tendências e

perspectivas. São Paulo: Cortez, 1996.

CHARLE, Christophe; VERGER, Jacques. Trad. Elcio Fernandes. História das

universidades. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.

Page 21: Abertura Indiscriminada de Cursos

ABERTURA INDISCRIMINADA DE CURSOS SUPERIORES DE

ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL: UM ENTENDIMENTO HISTÓRICO PARA

UMA POLÍTICA EMERGENTE

Marciano de Almeida Cunha – PUC-PR

Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Administração –

ISSN 1984-5294 – Edição Especial - Vol. 1, n. 2, p.110-130, Julho/2009

130

CHAUÍ, Marilena. A universidade oparacional. Jornal Folha de São Paulo, 9

mai. 1999, p.5.

BUARQUE, Cristovam. A aventura da universidade. São Paulo: Editora da

Universidade Estadual Paulista; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

______. A Universidade na encruzilhada. In: Educação Superior: reforma,

mudança e internacionalização. Anais. Brasília: UNESCO Brasil, SESU, 2003.

MARCOVITCH, Jacques. A universidade (im)possível. São Paulo: Futura,

1998.

MONTENEGRO, Tito. Dono de faculdade diz que estudar é bobagem. Jornal

do Brasil, Rio de Janeiro, 16 nov. 2001.

RISTOFF, Dilvo. Políticas para a educação superior no Brasil: deselitização e

desprivatização. (mimeo), 2000.

SILVA JR. João dos Reis; SGUISSARDI, Valdemar. Novas faces da educação

superior no Brasil: reformas do estado e mudanças na produção. Bragança

Paulista: EDUSF, 1999.

SGUISSARDI, Valdemar. Educação superior: o banco mundial reforma suas

teses e o Brasil reformará sua política? Educação brasileira, Brasília, v. 22, n.

45, p. 11-53, jul/dez. 2000.

ULLMANN, Reinholdo; BOHEN, Aloysio. A Universidade: das origens à

renascença. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1994.